UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP MARÍLIA GABRIELA MALAVOLTA PINHO Do dorso à cauda do tigre: trilhando a linguagem de Clarice Lispector ARARAQUARA - SP 2016 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Pinho, Marília Gabriela Malavolta Do dorso à cauda do tigre: trilhando a linguagem de Clarice Lispector / Marília Gabriela Malavolta Pinho — 2016 132 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquista Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Luiz Gonzaga Marchezan 1. Lispector, Clarice. 2. Nunes, Benedito. 3. I Ching. 4. Aderência. 5. A paixão segundo GH. I. Título. Marília Gabriela Malavolta Pinho Do dorso à cauda do tigre: trilhando a linguagem de Clarice Lispector Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP / Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutora em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientador: Prof. Dr. Luiz Gonzaga Marquezan Bolsa de fomento à pesquisa: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) ARARAQUARA - SP 2016 Marília Gabriela Malavolta Pinho Do dorso à cauda do tigre: trilhando a linguagem de Clarice Lispector Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP / Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutora em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientador: Prof. Dr. Luiz Gonzaga Marquezan Bolsa: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Data da defesa: 26/04/2016 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: ____________________________________________________ Presidente e Orientador: Prof. Dr. Luiz Gonzaga Marquezan Departamento de Literatura Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/UNESP ____________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Juliana Santini Departamento de Literatura Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/UNESP _____________________________________________________ Membro Titular: Dra. Maria Anna Olga Luisa Martinelli Bonomi Atelier MARIA BONOMI ___________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Sérgio Vicente Motta Departamento de Teoria Linguística e Literária. Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto /UNESP ___________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite Departamento de Literatura Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/UNESP MEMBROS SUPLENTES DA BANCA EXAMINADORA: ___________________________________________________ Membro Suplente: Prof. Dr. Arnaldo Franco-Júnior Departamento de Teoria Linguística e Literária Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto /UNESP ___________________________________________________ Membro Suplente: Prof. Dr. Márcio Schell Departamento de Teoria Linguística e Literária Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto /UNESP ___________________________________________________ Membro Suplente: Profa. Dra. Maria das Graças Gomes Villa da Silva Departamento de Literatura Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/UNESP Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Ao meu pai, Américo Malavolta Filho (in memorian), cuja prolongada ausência em nada impediu que tão vivamente impulsionasse o surgimento deste trabalho. À Rosana (in memorian), que com o respeito da espera e do silêncio me abriu as portas de tantos mistérios. AGRADECIMENTOS Graças ao amor e à companhia diários de meu marido, Marcos, e de meu filho, Chicão, é que este trabalho existe tal como existe. A eles agradeço calorosamente os estímulos diretos e indiretos, que foram muitos e incomensuráveis, as colaborações também diversas, por meio da confiança e da alegria compartilhadas, por meio da paciência, da espera, das viagens aos congressos, aos locais de pesquisa, e até da própria pesquisa, como tantas vezes o fez meu marido. É de modo emocionado que também registro meus agradecimentos ao meu irmão, Alexandre, que, com aval de amigos seus que também se fizeram meus, dividiu comigo sua casa, seu cotidiano, para que, com este trabalho, uma nova etapa de minha vida se iniciasse. Com não menos intensidade, agradeço à minha mãe, Irene, a quem devo os mais primitivos estímulos que volto a experimentar sempre que começo uma leitura, sempre que começo uma escrita. De maneira especial, agradeço ao meu Professor e Orientador Luiz Gonzaga Marchezan, por tanto saber compartilhado e por, sem nada conhecer a meu respeito, receber-me com a confiança e a disponibilidade com que o fez, assumindo comigo os riscos de se aventurar academicamente pelos mistérios de Clarice Lispector. Singularizo, ainda, meus agradecimentos à Maria Bonomi, que me recebeu com uma generosidade que me será inesquecível, abrindo-me lembranças e materiais que abrilhantaram o caminho desta pesquisa e que a mim, antes de mais nada, trouxeram a emoção do mais próximo contato que pude ter com Clarice. Meus profundos agradecimentos, também, aos Professores Sérgio Motta e Sylvia Telarolli, pelas detalhadas e ricas contribuições que me fizeram durante o Exame de Qualificação, as quais muito me nortearam na escrita final da tese. Meus profundos agradecimentos, de igual maneira, à Professora Juliana Santini, por aceitar tão prontamente ser membro da Banca de Defesa. Agradeço, ainda, ao Instituto Moreira Salles, do Rio de Janeiro, e à Fundação Casa de Rui Barbosa, cujas pesquisas propiciadas por seus acervos, e graças à prontidão de seus funcionários, foram de capital importância para esta pesquisa. À FAPESP, agradeço imensamente o auxílio financeiro concedido, viabilizador dessa pesquisa, e os avanços de abordagem propiciados por seus pareceres. Não posso deixar de registrar, ainda, minha mais sincera gratidão pelos Professores da Unesp de Araraquara, cujas disciplinas e conversas contribuíram direta e enormemente com o trabalho e com minha formação; pelos colegas, com os quais pude ter ricos intercâmbios; pelos meus amigos, Aline, André, Didi, Isaura, Janaísa, Lígia, Maria, Pâmela e Thaís, pelas trocas todas – da vida às leituras de Clarice. Claro ideograma sob a lanterna de lepra, disco solar no dorso amarelo-cadeia: tigre Amargo Id e ígneo tigre por dentro, sub escrito risco, seta atravessando a treva Tu és aquele que escreve e que é escrito das florestas de Blake aos topos da Ásia Salto relâmpago satori Ou boustrophédon dentro de jaula rajada, Oco ti’gwer, raio apagado de idas e venidas (Poema à moda da renga, de Max Martins e Age de Carvalho) SUMÁRIO DA TESE RESUMO ................................................................................................................................... 10 ABSTRACT ............................................................................................................................... 11 APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 12 I. Clarice Lispector, o I Ching e a crítica de Benedito Nunes ........................................... 12 II. O I Ching e a arte ........................................................................................................... 13 III. Uma nota sobre o título .................................................................................................. 15 1. A Aderência na poética de Clarice Lispector ........................................................................ 17 1.1. Sobre a representação da realidade na ficção de Clarice Lispector ............................... 17 1.2. A Narrativa Monocêntrica, segundo Benedito Nunes .................................................... 20 1.3. Da captação à Aderência: o(s) componente(s) de uma poética ...................................... 23 1.3.1. A Aderência no primeiro capítulo de A paixão segundo GH .................................... 30 1.3.2. A Aderência em “Os desastres de Sofia” .................................................................. 35 1.3.3. A Aderência em “Antes da Ponte Rio-Niterói” ........................................................ 41 1.3.4. A Aderência em A hora da estrela............................................................................ 43 2. Sobre a Aderência e o Aderir do I Ching ............................................................................... 46 2.1. I Ching, o Livro das Mutações ....................................................................................... 47 2.2. O trigrama Li, o Aderir .................................................................................................. 59 2.3. De T’ai para P’i: a formação do conceito chinês de arte, a forma segundo GH ............ 62 2.4. P’i: o princípio da arte e sua culminância ...................................................................... 66 2.4.1. O hexagrama P’i linha a linha ................................................................................... 69 2.4.2. As linhas de P’i, os passos de GH ............................................................................. 71 2.4.3. Semelhanças nas diferenças: a Aderência e o Aderir ................................................ 74 3. Clarice e o I Ching: aderências .............................................................................................. 76 3.1. O I Ching de Clarice ...................................................................................................... 76 3.2. O I Ching e Clarice ........................................................................................................ 80 3.2.1 Sobre os números 7, 8 e 9 .......................................................................................... 80 3.2.2 Do bestiário de Clarice: a tartaruga ........................................................................... 81 3.2.3 Sobre os seis traços iniciais e finais de A paixão segundo GH ................................. 83 3.3. O I Ching e Clarice segundo a crítica ............................................................................ 85 4. Do dorso à cauda do tigre: na trilha de confluências ............................................................. 89 4.1. O ato narrativo de Clarice Lispector, em A paixão segundo GH, na trajetória da mística chinesa ............................................................................................................... 90 4.2. Da paixão à compaixão: um percurso figurativo da Aderência ..................................... 96 4.3. Uma nota sobre a condução de uma escrita simbólica ................................................... 97 4.4. Sobre o I Ching, os ideogramas chineses e uma rosácea clariciana de convergências ................................................................................................................. 99 4.4.1. Relações e convergências entre Clarice Lispector, Maria Bonomi, os ideogramas e o I Ching ................................................................................................................ 101 4.4.2. Relações e convergências entre Clarice Lispector, o grupo literário de Francisco Paulo Mendes, os ideogramas e o I Ching .................................................................. 108 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 125 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 129 10 RESUMO O presente trabalho visa a propor que o ato narrativo de GH em A paixão segundo GH (1964), romance de Clarice Lispector, possui dimensão mística capaz de atestar uma apropriação intuitiva e estética, por parte da escritora, de prerrogativas do I Ching, o Livro das Mutações – grande repositório da cultura e sabedoria chinesas. Suas proposições argumentativas em torno deste eixo visam a incidir em espaços vazios (plenos de sentido) deixados pela crítica de Benedito Nunes. Com isto, espera-se que tais proposições agreguem novas possibilidades de leitura a alguns pontos levantados pelo acurado trabalho crítico empreendido por Nunes (dos quais aqui se destaca o pathos da escrita) e a metáforas ou códigos ficcionais empregados por Clarice, no que diz respeito, essencialmente, ao trabalho com a linguagem tal como empregado ou idealizado pela escritora frente à representação de uma realidade vivida, sentida ou intuída. Afluentes deste percurso são as imagens da Aderência aqui singularizada como um importante componente da poética clariciana. Confluentes deste percurso são as significativas relações diretas e indiretas, lineares e não lineares, em torno de Clarice Lispector, Benedito Nunes, a escrita ideogrâmica e o Clássico chinês das mutações. Palavras-chave: Clarice Lispector; Benedito Nunes; I Ching; Aderência; A paixão segundo GH. 11 ABSTRACT The aim of this work is to propose that the narrative act of G.H. in Passion According to G.H. (1964), a novel by Clarice Lispector, features a mystical dimension which stands for the author’s intuitive and aesthetic appropriation of prerogatives found in I Ching, the Book of Changes – a great repository of Chinese culture and wisdom. The work’s argumentative proposition revolving around this core shall focus on empty spaces (full of meaning) left by Benedito Nunes’ criticism. As a result, it is expected that these propositions add new reading possibilities to some issues pointed out by the thorough critical work developed by Nunes (particularly the pathos of writing), as well as to metaphors and fictional codes used by Clarice, essentially regarding the work with language as used or devised by the writer in face of the representation of an experienced, felt or sensed reality. Contributions to this track are the images of Adherence singled out here as a major component of Lispectorian poetics. Convergences with this track are the significant direct and indirect, linear and non-linear relationships around Clarice Lispector, Benedito Nunes, ideogramic writing and the Chinese Classic of changes. Keywords: Clarice Lispector; Benedito Nunes; I Ching; Adherence; A paixão segundo GH. 12 APRESENTAÇÃO I. Clarice Lispector, o I Ching e a crítica de Benedito Nunes Clarice Lispector foi leitora contumaz da milenar obra chinesa I Ching, o Livro das Mutações. Em seus escritos, a autora jamais fez menção direta à obra. Atestam-no os sinais de uso (grifos em cores variadas e anotações) presentes na edição luxuosa que lhe pertenceu (aos cuidados, hoje, do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro) e, principalmente, confirma-o a amiga Maria Bonomi. Maria e Clarice tiveram um encontro inusitado em 1958 (ao qual se seguiram anos de profunda amizade), quando a artista plástica estava, palavras suas, “em pleno deslumbramento de curso com Seong Moy”, um dos mestres da xilogravura chinesa. Segundo Bonomi, “Clarice queria saber tudo, perguntava tudo”, acerca do signo. Quanto ao Livro das Mutações, recomendava- o, ao longo dos anos que se seguiram, frequentemente à Maria: “Pega o I Ching e vai pelo I Ching” 1 , dizia. Logo após sua tradução para o inglês, na década de 50, tal obra popularizou-se sobremaneira como oracular, a despeito de seus estudiosos apontarem, quando de informações acerca de suas possibilidades de manejo e leitura, que o I Ching não prediz o futuro, delineia, a partir de seus símbolos, uma situação presente e seus caminhos prováveis de mutação, uma vez que se baseia essencialmente nas imagens correspondentes aos movimentos que se sucedem na Natureza. Essa leitura da situação presente bem como de seus possíveis desdobramentos se daria, segundo Carl Gustav Jung, autor do prefácio da basilar edição alemã, por meio de um processo por ele teorizado como princípio de Sincronicidade. Ao lado disso tudo, e principalmente, o I Ching é, reforçam os estudiosos, um repositório da mais antiga cultura chinesa, livro de sabedoria e de filosofia, base de toda uma civilização. O padre Joachim Bouvet, um dos primeiros a apresentar o livro aos europeus, no século 17, afirma, em carta a Liebniz, que a obra consiste em um “método geral das ciências”, “muito perfeito”, cuja autoria é de um “gênio extraordinário”. Nela, Bouvet encontra o sistema de “Pitágoras e Platão”, “os números do Sabá”, os da “antiga Cabala” e o sistema de combinação binária que o próprio Liebniz estava em vias de definir. (BOUVET apud JULLIEN, 1997, p.11) Em sua tecitura, o presente trabalho irá considerar a riqueza da obra e o interesse de Clarice seja por ela, em específico, seja pelo signo chinês, de modo geral, com vistas a apontar suas influências (em forma direta ou indireta ou intuitiva) nos escritos da autora. Nessa direção, a argumentação diretriz deste trabalho baseia-se em uma 1 Maria Bonomi, em depoimento concedido à pesquisadora, em 05 de dezembro de 2013. Acerca das circunstâncias do encontro com Clarice, Bonomi relembra que ambas se conheceram quando Maria, jovem estudante de Artes Plásticas na Universidade de Columbia, em Nova York, fora pedir à escritora um vestido de festa emprestado, por ocasião de uma cerimônia oferecida aos bolsistas brasileiros na Embaixada do Brasil, em Washington. 13 metáfora comum ao I Ching e a um importante trecho de A paixão segundo GH, com desdobramentos presentes, conforme será proposto, em outros escritos de Clarice. A metáfora em questão é constituída pelas imagens de “fogo” e de “terra ou montanha” – trata-se do fogo na base de uma montanha –, e versa sobre o fazer artístico, sobre a criação da obra de arte. Sendo a “Aderência” o princípio ordenador dessa metáfora, tanto no livro chinês quanto no romance de 64, o trabalho, no Capítulo 1, trilha dois caminhos argumentativos: primeiramente, propõe relações de sentido entre a representação da realidade nas narrativas claricianas e o princípio de Aderência nelas presente, exemplificado e analisado a partir de transcrições de trechos de narrativas diversas e de entrevistas; depois, são apresentadas definições críticas formuladas por Benedito Nunes, Olga de Sá e Carlos Mendes Sousa que se relacionam com a Aderência. Sequencialmente, no Capítulo 2, busca estabelecer novas relações de sentido, desta vez entre a referida Aderência e o Aderir, uma das oito imagens constitutivas, como se verá nesse capítulo, do Livro das Mutações. Essa mesma metáfora, do fogo na base da montanha, contextualizada e analisada, deverá conduzir à tese proposta por este trabalho de pesquisa, o entremeio no qual visa a se colocar. Trata-se, conforme se verá no Capítulo 4, da proposição de que o ato de narração da personagem GH deflagra uma apropriação, por parte da autora, intuitiva e estética de princípios do I Ching. A argumentação que deverá embasar esta proposição, por sua vez, consiste nos dois caminhos citados anteriormente e, sobretudo, na crítica de Benedito Nunes, no brilhante destaque que dá, por uma vertente (a da crítica existencialista), ao drama da linguagem na ficção de Clarice, que atinge seu paroxismo no romance A paixão segundo GH) e, por outra (a da pontual abordagem crítica sobre a ascese mística dessa personagem), às relações estéticas entre o romance e a mística oriental. Propomos uma semelhança entre o pathos da linguagem identificado e analisado por Nunes e a citada metáfora; nessa trilha, propomos também que, ainda que Nunes não tenha trabalhado com o I Ching nos ensaios sobre a ficção de Clarice nos quais abordou a mística oriental, dele muito se aproximou, deixando-nos espaços vazios plenos de sentido. Em tempo, no Capítulo 3 do trabalho, serão apresentadas informações sobre o exemplar do livro que pertenceu à escritora, serão também identificadas passagens ficcionais da obra de Clarice que sugerem alusão ao livro chinês, bem como serão registradas as colocações da crítica sobre as ligações de Clarice com o Livro das Mutações ou com elementos que lhe são afins. II. O I Ching e a arte O I Ching, o Livro das Mutações, obra que serviu de base aos principais preceitos da civilização chinesa, e um dos textos canônicos editados por Confúcio, foi originalmente composto apenas por 64 estruturas lineares, denominadas hexagramas, correspondentes às imagens do que seriam todos os fenômenos que se sucedem na Natureza, ininterruptamente. As seis linhas que formam essas estruturas podem ser 14 contínuas ( ___ ) ou descontínuas ( _ _ ), e são denominadas “yang” e “yin”, respectivamente. Em épocas sucessivas ao seu surgimento (que teria se dado por volta de 2800 aC), foram acrescidos textos a essa gama de imagens, visando a, ainda que cifradamente, interpretá-las. A despeito de tais acréscimos, o I Ching não consiste em obra que se presta a uma leitura convencional, uma vez que não se encontra tecido pelo enunciado de um discurso formado por partes integradas em prol de um sentido ou de uma significação. Assim, por exemplo, suas leituras, ao longo dos séculos e até hoje, dão-se, comumente, em forma de consultas, que consistem em abertura aleatória do livro ou no jogo de moedas. Neste caso, de posse de uma pergunta, o consulente joga seis vezes uma moeda sobre a mesa, contendo, aquela, um lado yin e um lado yang; a cada lance, o jogador dispõe, na vertical, o traço resultante, até formar o hexagrama correspondente. Não se dando, necessariamente, à tradicional leitura linear e contínua, o I Ching abriu-se (e abre-se, ainda) a múltiplos usos e interpretações. No século 17, Leibniz acreditou ver, nele, um perfeito sistema binário de combinação. O orientalista Terrien de la Couperie, no século 19, o possível vocabulário de uma tribo. Tendo muito meditado em torno dos 64 hexagramas, Alejandro Schulz Solari (conhecido como Xul Solar), amigo de Jorge Luis Borges, registrou-os no idioma que criou, o neocriolo, além de tê-los figurado em suas telas. John Cage, na década de 50, valeu-se desse mesmo sistema na composição de algumas de suas músicas, assim como o trouxe, tematicamente, a seus escritos. O poeta mexicano Octavio Paz também dele se valeu em seus poemas, tendo-o ainda jogado quando da escrita do prólogo de Poesía en Movimiento, livro organizado, em 1966, por ele, Alí Chumacero, José Pacheco e Homero Aridjis. No Brasil, Max Martins, poeta paraense, grande amigo de Benedito Nunes, escreveu um livro de poemas a partir do I Ching, intitulado Para ter onde ir, publicado em 1992. Recentemente, o poeta Augusto de Campos valeu-se das 64 figuras hexagramáticas para a composição de seu poema “O humano” (presente no livro Outro, publicado em 2015), além de delas ter se utilizado, em 1977, para a escrita do poema- enigmagem “Pentahexagrama” (publicado em Viva Vaia), em homenagem a John Cage. Nessa esteira, pode-se afirmar, o I Ching é obra que muito se prestou à modernidade da arte, dado, em suma, seu caráter aberto a muitos sentidos, passíveis de serem operados a partir de um jogo de combinações, na direção da nova forma poética inaugurada por Mallarmè, com Un coup de dès, que não engendra um significado, mas que consiste em uma forma em busca de significação. Por outro lado, ele tem um apelo espiritual ou espiritualizante que comungou com um espírito de época também moderno, voltado, se não centralmente a novas formas de significação, a novos sentidos de existência. A exemplo, as meditações empreendidas pelo próprio Xul Solar, transpostas em seus san signos 2 e o romance de Hermann Hesse, O jogo das contas de 2 Trata-se da obra Los san signos. Xul Solar y el I Ching, editada por El Hilo de Ariadna y la Fundación Pan Club, em 2012. A obra, que conta com textos de conhecedores da obra de Xul, entre eles Borges, traz os fac-símiles dos cadernos do pintor e escritor argentino nos quais constam os registros de suas meditações acerca do Livro das Mutações. 15 vidro, protagonizado por um jogo – o de avelórios – inspirado no caráter totalizante do Livro das Mutações, porque voltado às várias ciências do conhecimento, às artes e ao espírito. Foi baseado no I Ching, precisamente nesse seu caráter múltiplo que atravessou milênios, que o escritor argentino Jorge Luis Borges reviu, na década de 60, seu conceito acerca dos Clássicos: [...] Lembro-me de que Xul Solar costumava reconstruir esse texto com palitos ou fósforos. Para os estrangeiros, o Livro das Mutações corre o risco de parecer uma simples chinoseire; mas ele foi devotamente lido e relido por gerações milenares de homens cultíssimos, que continuarão a lê-lo. Confúcio declarou a seus discípulos que, se o destino lhe concedesse mais cem anos de vida, ele consagraria a metade ao estudo do livro e seus comentários, ou asas. Escolhi, deliberadamente, um exemplo extremo, uma leitura que exige um ato de fé. Chego, agora, à minha tese. Clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim. (BORGES, 2007, p. 220-221) III. Uma nota sobre o título Em nota à edição de 2009 de O dorso do tigre, que foi publicada pela Editora 34, o crítico Benedito Nunes destacou a significação do título desta sua obra lançada pela primeira vez em 1969. Tal significação se dá, conforme explicou, pelo fato do livro unir duas vertentes congênitas de seu trabalho intelectual – a Literatura e a Filosofia – e fazê-lo, completa, “sob a inspiração de uma frase de Michel Foucalt em Les Mots et les choses – “nous sommes attachés sur le dos d’um tigre” (“estamos agarrados ao dorso de um tigre”). Reconhecendo que o tigre de Foucalt descende da floresta noturna de Nietzche, ou mesmo do misticismo selvagem de William Blake, e se lembrando da brincadeira do amigo Alexandre Eulálio de que, dada a terra natal de Nunes, essa sua obra deveria chamar-se “O lombo da onça”, Benedito Nunes ratifica que “ambos, lombo e dorso, exprimem variantes de uma mesma tonalidade de escrita.” (2009, p. 9) No Livro das Mutações, o hexagrama Lü, a Conduta, tem como imagem “o trilho sobre a cauda do tigre”, em referência, justamente, aos predicativos de uma conduta, cautelosa e circunspecta, quando de se seguir algo ou alguém. Na medida em que propõe novas possibilidades de leitura à obra de Clarice, pendulares ao I Ching e à crítica de Nunes, pode-se afirmar que a tese proposta por este trabalho de pesquisa busca reproduzir, a seu modo, a cadência do título da obra de Benedito Nunes, seguindo a conduta apregoada no referido hexagrama. Assim sendo, seguem-se os quatro capítulos que constituem esta tese. O primeiro deles, reitera-se, propõe uma definição para a recorrente representação da Aderência na obra de Clarice Lispector, correlata, sugere-se, à imagem do Aderir do I Ching, apresentada, por sua vez, no Capítulo 2 – que segue fundamentando a sugerida semelhança. O Capítulo 3 apresenta mais detalhadamente o Livro das Mutações, o 16 exemplar que pertenceu à Clarice e as relações da autora com esta obra, segundo a perspectiva deste trabalho e, também, da crítica de Claire Varin, Nádia Battella Gotlib, Benjamin Moser e Carlos Mendes Sousa. Enfeixando a tese, o Capítulo 4, abrindo-se também à escrita ideogrâmica, propõe trazer à luz a dimensão estética ocupada pelo Clássico das Mutações na escrita de Clarice Lispector, e o faz na trilha da crítica de Benedito Nunes, dos seus dizeres e dos seus não-dizeres acerca de abordagens, aqui, centrais: o I Ching e a Aderência. 17 1. A Aderência na poética de Clarice Lispector Quando escrevo não penso em ninguém, nem sequer em mim mesma. Somente o que me preocupa é captar a realidade íntima das coisas e a magia do instante. Minhas novelas e meus contos vêm em pedaços, anotações sobre os personagens, o tema, o cenário, que depois vou ordenando, mas que nasce de uma realidade interior vivida ou imaginada [...]. Clarice Lispector, em entrevista a Eric Nepomuceno, em 1976 O Professor tivera a falta de sorte de ter sido logo a mais imprudente quem ficara sozinha com ele nos seus ermos. Sofia, personagem do conto “Os desastres de Sofia” O presente capítulo tem por principal objetivo apresentar, por meio de vários exemplos, a recorrência de uma prática ficcional de Clarice Lispector, a utilização da imagem ou do princípio da Aderência, e propor-lhe definições. Para isto, seu início se dá com uma abordagem acerca da relação que a autora estabeleceu com a realidade e sua representação, uma vez que a Aderência, tal como o presente trabalho irá propor, decorre deste ponto, do que a escritora apreendia como sendo realidade e da maneira como representava esta apreensão, mediada por seu característico embate com a linguagem. Os itens 1.1 e 1.2 trazem o modo como os críticos Benedito Nunes, Olga de Sá e Carlos Mendes Sousa identificaram e definiram o que aqui é denominado como Aderência. O item 1.3 visa, essencialmente, a reunir, sem contudo esgotá-los, múltiplos exemplos de Aderência. Assim, o item é composto por transcrições de excertos de crônicas, contos, romances e também de entrevistas dadas por Clarice Lispector. Esta parte foi subdividida em quatro devido à singularidade que, de acordo com a argumentação diretriz deste trabalho, os exemplos de Aderência exercem no romance A paixão segundo GH, no conto “Os desastres de Sofia” e na novela A hora da estrela. Por decorrente pertinência argumentativa, tratou-se, também separadamente, o conto “Antes da Ponte Rio-Niterói”. Ao final deste capítulo, portanto, e de posse dos exemplos trazidos, são propostas definições para esse importante expediente da poética clariciana. 1.1. Sobre a representação da realidade na ficção de Clarice Lispector Em A Ascensão do Romance (1957), Ian Watt define “realismo formal” como sendo um método narrativo e a característica fundamental, ou fundadora, do romance. Ancorado nos definidos contornos históricos e filosóficos do século 18 – em evolução 18 desde o Renascimento –, em que nas mais variadas instâncias da vida passou a preponderar não mais o caráter coletivo, mas sim o individual, Watt identifica o romance do período com a representação de particularidades, o que confere à categoria temporal um expediente representativo não apenas da História mas também da vida e da consciência individuais, para o que a especificação do espaço e da linguagem narrativa se fazem igualmente essenciais. A representação não só dos aspectos particulares da época e da ação que se desenrola, mas também dos detalhes relacionados à história e à interioridade dos personagens, argumenta o crítico, podem conferir mais verdade à obra do que a transcrição fiel da realidade. É nesta esteira que, mesmo reconhecendo os limites do romance Tristram Shandy (com volumes publicados de 1759 a 1769), de Laurence Sterne, Watt exalta o fato do romancista ter trazido avaliações do quadro de vida que seu romance apresenta sem comprometimento da sua aparência de autenticidade. Assim, conciliando o realismo de avaliação e o de apresentação, Sterne, segundo ele, conciliou abordagens internas e externas das personagens, fato bastante importante, conforme observa, em virtude da tendência posterior a serem excluídos da tradição realista os romances com investigações sobre a vida interior de seus personagens. Em favor da continuidade básica da tradição do gênero romanesco, Watt observa que esta se torna mais clara “se lembrarmos que essas diferenças no método narrativo são diferenças de ênfase e não de tipo e coexistem dentro de uma fidelidade comum ao realismo formal ou de apresentação”, característico, reforça, do gênero romance como um todo. (1990, p. 256) Embora já de dimensão ontológica, e não psicológica, os romances de Clarice Lispector, assim como os contos e muitas das suas crônicas, notadamente, são representativos de uma “ênfase” desse trânsito entre exterior e interior responsável por um singular entrelaçamento entre a realidade observável e a realidade intuída, (re)criadas no ato da representação. Uma das razões da singularidade desse entrelaçamento entre o que se vê e o que se intui, comum à literatura de linhagem moderna, estaria no fato, conforme observa Benedito Nunes no ensaio “Reflexões sobre o moderno romance brasileiro”, desta trazer consigo uma consciência preliminar das limitações da linguagem no que diz respeito a uma direta e instantânea relação com a realidade e, segundo Nunes, manter salva a sua vocação realista, fazendo recair sobre a linguagem o dever de novamente ligá-lo [o romance] ao real. (2009, p. 142) Os predicativos deste desalinhado enlace entre realidade e representação, e também da busca por um código novo, como o que visa a representar o Real, residem, justamente, na forma ou na estrutura da obra: na “forma da história ou do discurso”, nos “desdobramentos internos da narrativa”, “na posição do narrador ou do personagem”. (NUNES, 2009, p. 142) Sobre as personagens claricianas tomadas pela percepção de uma realidade outra, irredutível, e em luta com as palavras que a exprimam, Benedito Nunes, dessa vez em “O drama da linguagem”, identifica o fracasso da linguagem, seguido por uma adesão às próprias coisas de que se tenta falar: 19 Por um lado, buscando exprimir-se, aderem às palavras de maneira plena; mas por outro, seduzidas pela ideia de plenitude, sentem-se prisioneiras dentro das palavras que as dominam, que lhes furtam ao ser na forma de expressão consumada. [...] Mas essa ambição desmedida (que ainda é uma forma de hybris) de equiparação entre ser e dizer, expõe as personagens ao fracasso e ao desastre. Martim fracassa regressando à linguagem comum, alienada, em que as palavras separam da realidade; G.H. fracassa separando- se da linguagem comum pela realidade silenciosa que nenhuma palavra exprime. A paixão da linguagem terá o seu reverso na desconfiança da palavra, e o empenho ao dizer expressivo, que alimenta essa paixão, transformar-se-á numa silenciosa adesão às próprias coisas. (1995, p. 111- 112) “Adesão” é também o termo empregado por Olga de Sá para se referir, de modo semelhante a Nunes, à insólita trajetória da personagem GH, que não encontra linguagem que a exprima, que a signifique: A trajetória de G.H. termina no silêncio e no vazio, na desistência da linguagem, como forma de adesão ao ser. G.H. se despersonaliza, perde sua dimensão humana, para chegar à maior exteriorização possível, à maior objetivação. (1979, p. 259-260) Em um breve trecho de “Clarice Lispector – Pinturas”, Carlos Mendes Sousa identifica um equivalente da adesão tal como nomeada por Nunes e Sá. Trata-se do que denomina “trânsito da apropriação”, implicado na posição do narrador diante de seu objeto e, mais uma vez e sobretudo, na busca por uma expressão que não deixe intervalos entre o objeto e o objeto dito. Ao descrever e analisar um dos quadros pintado por Clarice – O sol da meia noite –, o crítico identifica um texto da autora que, afirma, “mais do que qualquer outro, [...] pode ser recortado e colocado ao lado deste quadro.” (2010, p. 211) Trata-se da crônica “Os espelhos”, em que Clarice, de fato, parece descrever aquilo que pintara. Ou, como completa ela própria, ter sido aquilo que pintara: Com cores de preto e branco recapturei na tela sua luminosidade trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturo também, em um arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água. Não, eu não descrevi o espelho – eu fui ele. E as palavras são elas mesmas, em tom de discurso. (2010, p. 211) Apoiado nestas declarações, Sousa observa, conclusivamente, que “o trânsito da apropriação é recorrente em Clarice: eu fui ele, eu sou ele. No quadro, um dos mais percucientes e emblemáticos exemplos – a visão do espelho no sol da meia-noite”. (2010, p. 211) Sequencialmente, o crítico não chega a especificar outros exemplos, e nem a analisar essa afirmação. Já ao destacar a dialética das velocidades da escrita clariciana, a saber, a constante pendulação entre aceleração e retardamento da narração, entre a narração do profundo e do superficial, do exterior e do interior, entre a tensão e a 20 distensão, Sousa, dessa vez em “Figuras da Escrita”, analisa mais detidamente o que agora denomina “trânsito da reificação”. É assim que a transfiguração de Rodrigo SM em Macabéa, em A hora da estrela, é analisada como sendo uma solução à dialética dos ritmos da escrita clariciana, uma vez que esta se encaminha, resolutivamente, segundo ele, para a triangulação do devir-escrita, da escrita entendida, por narradores e personagens, como uma “iminência incessante” (2012, p. 419). Sousa se refere ao fato de muitos dos personagens claricianos se colocarem, em algum momento, um exercício de escrita, cuja assunção se daria na novela publicada em 1977. O trânsito da reificação acontece de igual modo em A hora da estrela. Deparamos aí com a assunção do ato de escrever nos termos mais absolutos que têm como consequência a materialização do narrador na própria escrita. Agora, sendo o processo radicalmente inverso do dos primeiros livros, no fundo pretende-se ir ter ao mesmo, a uma transfiguração do ser em palavra, um desembocar na materialização em texto, o que é, afinal, o trabalho último da escrita. ‘A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto’ (2012, p. 411) Assim, segundo as citadas apreciações críticas sugerem, adesão, trânsito da apropriação e trânsito da reificação exemplificam, na obra de Clarice, expedientes ou códigos ficcionais resultantes do desajuste (característico da literatura de linhagem moderna) intrínseco à relação entre realidade – enquanto matéria narrativa – e sua representação. Em outros termos, adesão, trânsito da apropriação e da reificação, tal como formulados e exemplificados pelos críticos, são acontecimentos conclusivos da narrativa oriundos, cada qual a seu modo, do fracasso de uma busca em comum: a de representar o que é irrepresentável, a de expressar o que é inexprimível; conduzidos pelo acurado uso da linguagem, ao mesmo tempo em que marcados pela incômoda consciência das limitações intrínsecas ao ato de nomear, os personagens claricianos silenciam-se ou despersonalizam-se, aderidos que estão às coisas – à matéria de que querem tratar ou a seu conduto: a palavra escrita. 1.2. A Narrativa Monocêntrica, segundo Benedito Nunes Ao abordar comparativamente os dois primeiros romances de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem (1944) e O lustre (1946), em texto inicialmente publicado em 1973 3 , Benedito Nunes detém-se em alguns exemplos de Aderência ao tratar da intensa proximidade entre os narradores e as protagonistas dessas duas narrativas, designadas por ele, em virtude de tal elo, como “narrativas monocêntricas”. 3 O texto “A Narrativa Monocêntrica” é o capítulo primeiro de “O drama da linguagem”, de 1995, tendo sido, como os demais ensaios dessa obra, publicado pela primeira vez em 1973, em “Leitura de Clarice Lispector”. 21 O primeiro passo na direção desta designação se dá quando Nunes repassa as relações que Joana, de Perto do coração selvagem, e Virgínia, de O lustre, estabelecem com outros personagens importantes da trama que protagonizam, como Otávio e Daniel, por exemplo. O crítico assinala que o marido de Joana e o irmão de Virgínia, apesar da centralidade que ocupam nas histórias, são “menos agentes autônomos” e mais “instrumentos a serviço da situação conflitual interior a ambas”: Joana repele o professor amado, primeira instância mediadora de sua inquietação, substituído depois por Otávio, com quem se casa. Para romper com o marido, a moça se apóia em Lídia, amante dele. Apenas instrumento, o personagem-mediador mobiliza na personagem central uma razão mais profunda que o atinge e o supera. Virgínia, submissa desde criança ao irmão voluntarioso, hostiliza, por ele instigada, a irmã Esmeralda. Daniel medeia, pois, o seu rompimento com a família e o seu êxodo do campo para a cidade. E graças ao amante (Vicente), consegue Virgínia romper com a servidão que a acorrentava a Daniel, para, finalmente, sem sair do círculo fatal de um conflito interior insolúvel, afastar-se de Vicente, em demanda do campo e da família. (1995, p. 28) Tendo identificado o papel essencialmente mediador exercido pelos demais personagens desses dois romances diante da situação conflitual única vivenciada por suas protagonistas, Nunes observa – e eis o passo para a caracterização do monocentrismo – que tanto Joana quanto Virgínia chegam inclusive a exceder a função de um primeiro agente condutor ou centralizador da ação para ocuparem o núcleo articulador do ponto de vista que, palavras e destaques seus, “condiciona a forma do romance como narrativa monocêntrica, isto é, como narrativa desenvolvida em torno de um centro privilegiado que o próprio narrador ocupa.” (1995, p. 29) O que Nunes está pontuando, com base em exemplos extraídos dos dois romances iniciais de Clarice, é que a posição do narrador tende a se confundir e mesmo a se fundir com a posição do protagonista, conforme evidenciam momentos do discurso narrativo em que se misturam as narrações em primeira e terceira pessoas, ou em que se alternam e se prolongam os discursos direto e indireto. Abaixo, um trecho de Perto do coração selvagem citado, como exemplo, pelo crítico, com destaques feitos também por ele: Estava alegre nesse dia, bonita também. Um pouco de febre também. Por que esse romantismo: um pouco de febre? Mas a verdade é que tenho mesmo: olhos brilhantes, essa força e essa fraqueza, batidas desordenas do coração. Quando a brisa leve, a brisa de verão batia no seu corpo, todo ele estremecia de frio e de calor. E então ela pensava muito rapidamente, sem poder parar de inventar. É porque estou muito nova ainda e sempre que me tocam ou não me tocam, sinto – refletia. Pensar agora, por exemplo, em regatos louros. Exatamente porque não existem regatos louros, compreende? [...] Mesmo na liberdade, quando escolhia alegre novas veredas, reconheci- as depois. (LISPECTOR apud NUNES, 1995, p.28-29) 22 Conceituando tais características do discurso narrativo, recorrentes no romance, Nunes destaca ora um movimento de aderência, ora a imposição da presença do narrador: A romancista, que adota a terceira pessoa, não se suprime como instância externa da narração. Mas também percebe e sente com a personagem. Ora a ela aderindo, ora lhe impondo a sua presença como sujeito-narrador, a romancista pratica um modo de ver oscilante [...] (1995, p.29) Já em O lustre, Nunes não identifica tais alternâncias discursivas; como exemplo do monocentrismo, o crítico traz a visão infantil da protagonista Virgínia impressa, por meio de um olhar densamente expressionista, no modo de narrar adotado. Com o trecho abaixo, assim destacado, é que Nunes exemplifica a intensa proximidade entre o narrador e a personagem. Ela abria grandes olhos. Lá estava a pedra escorrendo em orvalho. E depois do jardim a terra sumindo bruscamente. Toda a casa flutuava, flutuava em nuvens, desligada de Brejo Alto. Mesmo o mato descuidado distanciava-se pálido e quieto e em vão Virgínia buscava na sua imobilidade a linha familiar; os gravetos soltos sob a janela, perto do arco decadente da entrada, jaziam nítidos e sem vida. Daí a instantes porém o sol surgia esbranquiçado como uma lua. [...] Um grito de café fresco subia da cozinha misturado ao cheiro suave e ofegante de capim molhado. O coração batia num alvoroço doloroso e úmido como se fosse atravessado por um desejo impossível. E a vida do dia começava perplexa. (LISPECTOR apud NUNES, 1995, p. 30) Conforme se depreende através do exemplo selecionado pelo crítico, há em O lustre, segundo Nunes, uma ligação afetiva entre narrador e personagem criada por essa maneira de narrar que, empática, “adere” à visão infantil da protagonista Virgínia. O que esta análise de Nunes nos permite destacar, acerca da Aderência que neste trabalho se buscará perseguir, é que, nos referidos romances de Clarice, ela, a Aderência, está implicada em um modo de narrar, moderno, que tem na consciência individual (prenhe de estados de ânimo e de vivências) seu centro mimético. Assim, uma vez adotada a narração heterodiegética, o narrador ocupa a consciência daquela personagem que protagoniza a história por ele narrada, aderindo a seu ponto de vista ou mesmo emprestando-lhe a iniciativa em primeira pessoa. Conclusivamente, no último parágrafo do texto, Nunes aponta os efeitos desse monocentrismo na ação romanesca, e sua presença nas obras posteriores de Clarice. O caráter restritivo da ação romanesca que decorre disso, é menos uma falha ou um defeito de técnica, do que uma carência intrínseca, estrutural, da forma monocêntrica. A parcimônia, a eventualidade e o caráter distorsivo dos diálogos de Perto do coração selvagem e O lustre, que perduram em obras subsequentes, como traço peculiar da novelística de Clarice Lispector, ligam- se a esse tipo de carência. (1995, p. 31) 23 1.3. Da captação à Aderência: o(s) componente(s) de uma poética Na ficção de Clarice Lispector, características da representação fronteiriça entre o visto e o intuído (resultante de um trabalho de busca, por meio de uma linguagem que visa a acessar a concretude e a vividez apreendidas pelos sentidos, o Real - indizível), no que tange sobretudo à posição do narrador diante das personagens, foram aludidas pela própria escritora. Os exemplos mais frequentes estão em A descoberta do mundo, livro que reúne parte das crônicas que a autora publicou no Jornal do Brasil, entre os anos de 1967 e 1973. Um deles traz uma referência direta ao escritor do Realismo estadunidense, Henry James. Trata-se da crônica “Fios de seda”, de 1969. O trecho transcrito abaixo foi traduzido por Clarice, conforme ela própria esclarece no início da crônica, e é seguido por um comentário. [...] ‘Que espécie de experiência é necessária, e onde ela começa e acaba? A experiência nunca é limitada e nunca é completa; é uma imensa sensibilidade, uma espécie de enorme teia de aranha, feita dos fios mais delicados de seda suspensos na câmara do consciente, e que apanha no seu tecido cada partícula trazida pelo ar. É a própria atmosfera da mente; e quando a mente é imaginativa – muito mais quando se trata de um homem de gênio – ela apanha para si as mais leves sugestões, abriga os próprios pulsos do ar em revelações.’ Sem nem de longe ser de gênio, quantas revelações. Quantos pulsos apanhados no fino ar. Os delicados fios suspensos na câmara do consciente. E no inconsciente a própria enorme aranha. Ah, a vida é maravilhosa com suas teias captantes. Avisem-me se eu começar a me tornar eu mesma demais. É minha tendência. Mas sou objetiva também. Tanto que consigo tornar o subjetivo dos fios de aranha em palavras objetivas. Qualquer palavra, aliás, é objeto, é objetiva. Além do mais, fiquem certos, não é preciso ser inteligente: a aranha não é, e as palavras, as palavras não se podem evitar. Vocês estão entendendo? Não precisam. Recebam apenas, como eu estou dando. Recebam-me com fios de seda. (LISPECTOR, 1999a, p. 194) A passagem traduzida por Clarice está presente no ensaio jamesiano A Arte da Ficção, de 1884. Nele, James, em rechaço a dicotômicas proposições de Walter Besant acerca do fazer literário, e dirigindo-se a aspirantes ao ofício da escrita, sai em defesa da captação de atmosferas vivenciadas, sentidas, e não, necessariamente, do registro de experiências totalizantes vividas na realidade. Enquanto Besant afirma que o escritor deveria escrever a partir do vivido, James argumenta em favor da adivinhação do invisível a partir do visível, “de julgar toda a peça pela mostra” de que a qualidade primeira do escritor consiste em “captar as impressões diretas” – características da mente imaginativa, do homem de gênio. (1968, p. 134) Quando argumenta favoravelmente ao enredo de consciência, de “razão psicológica”, conforme expressa, também aponta: “captar o matiz de todo esse 24 complexo é o mesmo que ser inspirado a titânicos esforços, pois há poucas coisas mais excitantes do que uma razão psicológica”. (1968, p.136) Embora já tendo transposto o enredo de razão psicológica, ao qual James se reporta, Clarice Lispector também responde por essa abordagem da captação, formulada um século antes de sua produção, nessa crítica de James que legitima de modo arejado e agudo características que tomariam corpo mais adiante, com o Modernismo. A literatura de Clarice Lispector opera, sobretudo, não na representação da realidade vivida ou então observável, mas na criação de uma, a partir dessa captação sugestiva e subjetiva de matizes do interno ou do externo presentes em pessoas ou situações, o que, por sua vez, adensa-se em complexidade dado o caráter metalinguístico intrínseco a essa operação. No ensaio “Realismo: postura e método”, Tânia Pellegrini, ao abordar a crise da representação, oriunda do gradativo esgotamento do Realismo oitocentista, arrola, em decorrência, esse outro modo de lidar com a realidade, e mesmo de conhecê-la: Os escritores passam assim a questionar a inteligência – a razão –, o mais importante de todos os instrumentos de perquirição do mundo herdados do Iluminismo; a especificidade da experiência material do indivíduo como determinante na relação com o mundo desaparece aos poucos; percebe-se o poder de conhecimento que pode advir da impressão, da sensação, da volição, numa espécie de aprofundamento do caráter cognitivo das emoções e sentimentos, que os românticos da primeira metade do século ou os realistas da primeira hora não chegaram a perceber. É outra vez um momento da redefinição do sujeito; a unidade e a permanência subjetivas positivistas que se impuseram antes agora são relativizadas inclusive pela ascensão das forças do inconsciente, com Freud, o que vai exigir novos códigos de representação. (2007, p. 147) A intuitiva escrita clariciana, pautada pelos estados de ânimo captados, é também claramente referenciada na crônica “Sensibilidade inteligente”, o que talvez exemplifique o caráter cognitivo das emoções a que se refere Pellegrini. No texto, de 1968, é possível antever também a afinidade com a crítica de James referida mais acima: [...] O que, suponho, eu uso quando escrevo, e nas minhas relações com amigos, é esse tipo de sensibilidade. Uso-a mesmo em ligeiros contatos com pessoas, cuja atmosfera tantas vezes capto imediatamente. Suponho que este tipo de sensibilidade, uma que não só se comove como por assim dizer pensa sem ser com a cabeça, suponho que seja um dom. [...]. (LISPECTOR, 1999a, p. 148) Por vezes, adensando-se, esses “ligeiros contatos”, essas “captações”, dão lugar a inescapáveis aderências entre criador e seu material, conforme nos é declarado em “Ao correr da máquina”, de 1971. No trecho transcrito a seguir, lê-se um narrador reconhecendo uma agudeza de percepção que, de tão intensa, derruba as fronteiras entre o eu e o outro: 25 [...] Que fazer, se sinto totalmente o que as outras pessoas são e sentem? Eu vivo na delas mas não tenho mais força. Vou viver um pouco na minha. Vou me impermeabilizar um pouco mais [...]. (LISPECTOR, 1999a, p. 340) Esse princípio de colagem, de aderência, decorrente da captação (também esta uma forma de aderência, uma vez que a percepção intuitiva vai ao encontro da escritora, à revelia de suas escolhas ou comandos), pois esse princípio é o que se lê também nas crônicas “Encarnação involuntária”, “Sem título” e “Não sei”, de 1970, 1971 e 1973, respectivamente. Ao longo de toda a crônica “Encarnação involuntária”, Clarice explicita o que denomina “intrusão em uma pessoa”. Aqui, inicialmente, a Aderência configura-se como verdadeira prática de perquirição acerca do outro, o que resulta em compreensão e compaixão. Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo-lhes o motivo e perdoo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesma [...]. (LISPECTOR, 1999a, p. 295) Nessa mesma crônica, entretanto, a Aderência é mais largamente exemplificada não com a gravidade da compreensão intuitiva, mas com irreverência. Clarice traz como exemplo sua encarnação em duas mulheres absolutamente díspares entre si (uma missionária e uma prostituta) e também muito distantes da vida íntima e do gestual da escritora; o seu contar resulta leve e bem humorado: Um dia, no avião... ah, meu Deus – implorei – isso não, não quero ser essa missionária. Mas era inútil. Eu sabia que, por causa de três horas de sua presença, eu por vários dias seria missionária. A magreza e a delicadeza extremamente polida da missionária já me haviam tomado. É com curiosidade, algum deslumbramento e cansaço prévio que sucumbo à vida que vou experimentar por uns dias viver. No avião mesmo já comecei a andar com esse passo de santa leiga: então compreendo como a missionária é paciente, como se apaga com esse passo que mal quer tocar no chão, como se pisar mais forte viesse prejudicar os outros [...] uma vez, também em viagem, encontrei uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando os olhos e estes ao mesmo tempo olhando fixamente um homem que já estava sendo hipnotizado. Passei imediatamente, para melhor compreender, a fumar de olhos entrefechados para o único homem ao alcance de minha visão intencionada. Mas o homem gordo que eu olhara para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais. Falhou tudo. (LISPECTOR, 1999a, p. 296-297) Quanto a este trecho, destaquemos, enfim, o tom ameno com que a Aderência pode ser também tratada, ao mesmo tempo em que ele sinaliza, vale igualmente sublinhar, aquilo que ganhará uma formulação aguda com o trocista e irônico narrador 26 de A hora da estrela: a escrita inscrevendo-se, primeiramente, não no papel, mas no corpo. Já na crônica “Sem título”, a “intrusão”, ou “colagem”, ou Aderência é reafirmada como reforço da intensa vida íntima que edifica o senso de realidade com o qual trabalha a escritora. Como é que ousaram me dizer que eu mais vegeto que vivo? Só porque levo uma vida um pouco retirada das luzes do palco. Logo eu, que vivo a vida no seu elemento puro. Tão em contato estou com o inefável. Respiro profundamente Deus. E vivo muitas vidas. Não quero enumerar quantas vidas dos outros eu vivo. Mas sinto-as todas, todas respirando. E tenho a vida de meus mortos. A eles dedico muita meditação. Estou em pleno coração do mistério. [...] (LISPECTOR, 1999a, p. 354) Na crônica “Não sei”, a Aderência, figurada no verbo “pegar”, é posta, pela escritora, como condição para que se lance à escrita de uma história: Vocês podem me dizer o que lhes interessa, sobre o que gostariam que eu escrevesse. Não prometo que sempre atenda o pedido: o assunto tem que pegar em mim, encontrar-me em disposição certa. [...] (LISPECTOR, 1999a, p. 466) A Aderência que, conforme se vai notando através das crônicas, fortemente consiste em sentir os meandros de uma vida alheia, em captar uma realidade e imediatamente criar outra, ou criar a partir dela, nos é também diretamente anunciada pelo narrador do conto “Os obedientes”, do livro A legião estrangeira, que, logo no primeiro parágrafo da narrativa, declara ter aderido ao casal cuja história irá narrar. Trata-se de uma situação simples. De um fato a contar e a esquecer. Mas cometi a imprudência de parar nele um instante mais do que deveria e afundei dentro ficando comprometida. Desde esse instante em que também me arrisco – pois aderi ao casal de que vou falar – desde esse instante já não se trata apenas de um fato a contar e por isso começam a faltar palavras. A essa altura, já afundada demais, o fato deixou de ser um simples fato, e o que se tornou mais importante foi a sua própria e difusa repercussão. [...] (LISPECTOR, 1999b, p. 89) Ao final do conto “A legião estrangeira”, a colagem entre personagem e narradora, paroxismo da sensibilidade e da aguda percepção intuitiva desta, é também retratada: Por que – confundia-me eu – por que estou tentando soprar minha vida na sua boca roxa? Por que estou lhe dando uma respiração? Como ouso respirar dentro dela, se eu mesma... – somente para que ela ande, estou lhe dando os passos penosos? Sopro-lhe minha vida só para que um dia, exausta, ela por um instante sinta como se a montanha tivesse caminhado até ela? [...] Olhou- o na mão que se estendia, olhou-me, olhou de novo a mão – e de súbito encheu-se de um nervoso e de uma preocupação que me envolveram 27 automaticamente em nervoso e preocupação. [...] Pela primeira vez me largara, ela não era mais eu. (LISPECTOR, 1999b, p. 107 e p. 109) Em trechos de duas entrevistas, transcritos sequencialmente logo abaixo, também se vê Clarice Lispector, autora, explicitando este mesmo processo de criação, em que à captação de uma atmosfera vivida ou pertencente ao outro, seguida pela gradativa assimilação de identidade alheia – em processo de aderência –, sucede o surgimento da história. O primeiro trecho pertence à entrevista concedida ao apresentador Júlio Lerner, da tv Cultura, em dezembro de 1977. Que novela é essa, Clarice? É a história de uma moça que só comia cachorro-quente. A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima… O cenário dessa novela é… É o Rio de Janeiro… Mas o personagem é nordestino, é de Alagoas… Onde você foi buscar a inspiração, dentro de si mesma? Eu morei no Recife, me criei no Nordeste. E depois, no Rio de Janeiro tem uma feira de nordestinos no Campo de São Cristóvão e uma vez eu fui lá. E peguei o ar meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro. Daí começou a nascer a ideia. Depois eu fui a uma cartomante e ela disse várias coisas boas que iam acontecer e imaginei, quando tomei o táxi de volta, que seria muito engraçado se um táxi me atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas aquelas coisas boas. Então a partir daí foi nascendo também a trama da história. [...] (LISPECTOR apud ROCHA, 2011, p. 172) Similarmente, em entrevista a Eric Nepomuceno, publicada na revista Crisis, em julho de 1976, a escritora afirma buscar, em seu trabalho, a captação de uma “realidade íntima”, “vivida ou imaginada”: Como a senhora trabalha? Para escrever necessito abstrair-me de tudo. Quando escrevo não penso em ninguém, nem sequer em mim mesma. Somente o que me preocupa é captar a realidade íntima das coisas e a magia do instante. Minhas novelas e meus contos vêm em pedaços, anotações sobre os personagens, o tema, o cenário, que depois vou ordenando, mas que nasce de uma realidade interior vivida ou imaginada, sempre muito pessoal, não me preocupo nunca pela estrutura da obra. A única estrutura que admito é a óssea. (LISPECTOR apud ROCHA, 2011, p. 121) Essa gênese de criação, cujo movimento se perfaz de dentro para fora, que surge no interior para depois exteriorizar-se por meio do trabalho com a palavra, é confirmada por Clarice em resposta curta e assertiva à observação feita pela escritora Marina Colassanti, em entrevista realizada em 1976, no MIS (RJ), por ela, Affonso Romano de Sant’Anna e João Salgueiro. MC: Eu acho que é muito recorrente nos contatos de Clarice com o pessoal de literatura esse desencontro, porque os estudiosos de literatura têm dificuldade em admitir que o teu trabalho é de dentro para fora, e não de fora 28 para dentro. Teu trabalho realmente, como você mesma diz, se dita, se faz. E isso para os exegetas literários é uma coisa muito complicada, porque eles procuram os caminhos “fora” que te levariam às coisas. CL: É, eu sei disso. (COLASANTI e SANT’ANNA, 2013, p. 225) Em datiloscrito presente no acervo da escritora junto à Fundação Casa Rui Barbosa, intitulado “Saudade: teia de aranha” (não publicado, até o momento, em qualquer coletânea), lê-se o mesmo referenciado expediente da Aderência: Não posso mais viver. A cidade me fascina com seus edifícios altos, com sua gente feia, gnomos, anões, gigantes. Olho e vejo cada um, e gravo na vista cada um. E as prostitutas? Fajudas que essas são. (Fajudas – o que significa mesmo? Falsas?) E o cinema Vitória. Quase xxxx vazio. Sentei-me perto de uma bicha velha e sofri sua vida. Na escrita de Clarice Lispector, mostram-se, portanto, recorrentes essas imagens de grude, colagem, intrusão, intuição, captação. Segundo propomos, através deste trabalho de pesquisa, essas colocações formuladas pela própria escritora ou representada por meio da atuação de seus narradores sugerem que o processo criativo de Clarice Lispector, bem como sua representação, está relacionado a esta peculiar forma de ligação – aqui denominada Aderência – com a realidade vivida ou sentida. É esta uma das molas propulsoras do seu ato criativo, e mesmo de sua ficcionalização. Um exemplo fornecido por Henry James, no seu referido ensaio, lido pela escritora, parece sistematizar esse processo igualmente clariciano. Lembro-me de que uma escritora inglesa, mulher de gênio, contou-me certa ocasião que havia sido bastante elogiada pela impressão que conseguira causar ao narrar num de seus contos a natureza e o modo de vida das jovens protestantes francesas. Perguntaram-lhe onde ela havia aprendido detalhes sobre seres tão recônditos como aquelas moças. E ela disse que, estando certa vez em Paris, ao subir uma escada, passou por uma porta aberta onde, no interior de um Pasteur, algumas jovens protestantes estavam sentadas em torno de uma mesa depois da refeição. A simples olhada criou o quadro; este se fixou por um momento apenas, mas este momento foi experiência vivida. Tocou-lhe a impressão pessoal e ensejou-lhe a criação de um tipo perfeito. Ela sabia o que era a juventude e o Protestantismo; possuía a vantagem de já ter visto o que significava ser francês; assim converteu essas ideias numa imagem concreta e produziu a realidade. Acima de tudo, entretanto, ela tinha a faculdade de tomar conta de toda a mão se lhe fosse oferecido um dedo que é para o artista fonte maior de inspiração e vigor do que qualquer acontecimento em escala social 4 . (1968, p. 135) Este trecho, parece-nos, contribui especialmente para a compreensão da atmosfera que ronda o conto “Os obedientes” e o trecho da entrevista em que Clarice fala sobre sua última novela. Fica claro, nesses dois exemplos, que, assim como ilustrou James, o 4 Destaques nossos. 29 todo de suas histórias se vai fazendo a partir de uma pequena parte, de uma impressão captada, adivinhada, pega no ar. Ainda, “Olho e vejo cada um, e gravo na vista cada um”, trecho de “Saudade: teia de aranha”, transcrito acima, conjuga diretamente com os efeitos da força do olhar da escritora inglesa aludida por James, conforme destacado anteriormente. Uma segunda afinidade, por assim dizer, entre proposições de James e de Clarice, também afim ao que aqui se persegue, dá-se no que concerne à dupla conteúdo e forma. Segundo Henry James, não há qualquer separação entre ambos os processos; antes, um é absolutamente tributário do outro: na medida em que a obra é bem sucedida a ideia nela penetra, nela se infiltra e a anima, de forma a que cada palavra e cada pontuação contribuam diretamente para a expressão, como se o enredo fosse uma espada que pudesse ser desembainhada mais ou menos, de acordo com a vontade do cavaleiro. O enredo e o romance, a ideia e a firma são como agulha e linha; nunca ouvi dizer que alguma corporação de alfaiates recomendasse a seus membros o uso da linha sem a agulha ou da agulha sem a linha. (1968, p. 135) O escritor inglês está tratando da mesma indiferenciação entre fundo e forma, entre forma e conteúdo, de que tratou Clarice Lispector na crônica, de 1969, “Forma e conteúdo”: Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não, etc. Mas, por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. (LISPECTOR, 1999a, p. 255) Esta mesma indiferenciação referente a “fundo” e “forma”, Clarice a retoma no seu ensaio, do mesmo período, acerca do conceito de vanguarda, em que a linguagem literária é intrinsecamente atrelada ao amadurecimento da literatura de língua portuguesa: Estou chamando de vanguarda ‘pensarmos’ a nossa língua. Nossa língua ainda não foi profundamente trabalhada pelo pensamento. ‘Pensar a língua portuguesa do Brasil significa pensar sociologicamente, psicologicamente, filosoficamente, linguisticamente sobre nós mesmos. Os resultados são e serão o que se chama de linguagem literária, isto é, linguagem que reflete e diz, com palavras que instantaneamente aludem a coisas que vivemos; numa linguagem real; numa linguagem que é fundo-forma, a palavra é na verdade um ideograma. (LISPECTOR, 2005, p. 105-106) Em conformidade com as outras considerações da escritora aqui analisadas, a esta perspectiva da indistinção fundo – forma pode-se manter a premissa da captação, o princípio de Aderência. Isso porque na etapa ativa (e solitária) do redigir, do criar, por 30 exemplo, algo já está presente in acto, “a intuição grudada e colada” 5 , de que a escritora fala em sua crônica “A perigosa aventura de escrever”. Progressivamente, como “não se pode pensar em um conteúdo sem sua forma”, segundo a autora, “o conteúdo luta por formar-se”, por aderir à forma que efetivamente o representa. É assim que a dificuldade de encontrar uma forma é inerente ao constituir-se do conteúdo, do “próprio pensar ou sentir, que não saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes única.” (1999a, p. 183). Assim, por ora, levantados esses exemplos, o que aqui se denomina Aderência compõe o processo de criação de Clarice Lispector na medida em que é uma figuração da indiferenciação entre forma e conteúdo e na medida em que, antes mesmo desta etapa de consolidação de um conteúdo em uma forma, é também figuração da chegada de um assunto, de uma ideia, que, conforme explicitou a escritora, em consonância com o ensaio de Henry James, devem ser pegos ou captados por ela, e não necessariamente vividos. Em itens posteriores deste trabalho, novas proposições sobre o conceito de Aderência deverão contribuir para a compreensão desses aspectos por ora destacados: a indistinção entre forma e conteúdo e a captação. No introito de A paixão segundo GH (1964), a Aderência singulariza-se sobremaneira. A fim de se acompanhar esta singularização, seguir-se-á uma pormenorização da estrutura da narração do primeiro capítulo 6 do romance. Sequencialmente, uma vez ali divisada, também, uma sutil metáfora de Aderência cujo embrião, segundo iremos propor, sugere estar no conto “Os desastres de Sofia”, seguir- se-á, do conto, outra abordagem mais detalhada. Por decorrente pertinência argumentativa, seguir-se-á abordagem também mais detalhada do conto “Antes da ponte Rio – Niterói”. Por fim, atendendo à proposição mais ampla do trabalho, a Aderência presente em A hora da estrela será também analisada separadamente. 1.3.1. A Aderência no primeiro capítulo de A paixão segundo GH A uma descrição estrutural do primeiro capítulo de A paixão segundo GH, é pertinente antepor que logo no começo do segundo (nos cinco primeiros parágrafos) o 5 “ ‘Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras’.” Isso eu escrevi uma vez. Mas está errado, pois que, ao escrever, grudada e colada, está a intuição. É perigoso porque nunca se sabe o que virá – se se for sincero. Pode vir o aviso de uma destruição, de uma autodestruição por meio de palavras. Podem vir lembranças que jamais se queria vê-las à tona. O clima pode se tornar apocalíptico. O coração tem que estar puro para que a intuição venha. E quando, meu Deus, pode-se dizer que o coração está puro? Porque é difícil apurar a pureza: às vezes no amor ilícito está toda a pureza de corpo e alma, não abençoado por um padre, mas abençoado pelo próprio amor. E tudo isso pode-se chegar a ver – e ter visto é irrevogável. Não se brinca com a intuição, não se brinca com o escrever: a caça pode ferir mortalmente o caçador.” (LISPECTOR, 1999a, p. 183) 6 Na verdade, o romance não possui capítulos intitulados ou enumerados. Adotamos esta enumeração a fim de se facilitar referências e localizações. São 33 os capítulos de A paixão segundo GH. 31 leitor recebe indicativos objetivos acerca da ação que compõe a narrativa primeira; trata-se do tempo: “Ontem de manhã”, “Eram quase dez horas da manhã”; do espaço: “quando saí da sala para o quarto da empregada”, “Atardava-me à mesa do café”; e de parte constitutiva da própria história: “No dia anterior a empregada se despedira. O fato de ninguém falar ou andar e poder provocar acontecimentos, alargava em silêncio esta casa onde em semi-luxo eu vivo.” (LISPECTOR, 1996, p. 17) Esta narração mais objetiva – muito embora surja intercalada com outra, de caráter subjetivo – não caracteriza o capítulo inicial. Neste, a narração é composta predominantemente por intransitividades verbais, por repetições, por reflexões figurativas, por pronomes interrogativos e indefinidos que, longe de esclarecerem o leitor acerca de uma anunciada narrativa primeira, suspendem-na e tensionam-na, ao mesmo tempo em que, condensadamente, formam o que ficará distribuído, intercalado, ao longo de todo o romance como sendo um tema, uma de suas pautas. É assim, por exemplo, que em meio àquelas narrações sobre tempo, espaço e ações, GH, no segundo capítulo, pergunta-se: Naquela manhã, antes de entrar no quarto, o que era eu? Era o que os outros sempre me haviam visto ser, e assim eu me conhecia. Não sei dizer o que eu era. Mas quero ao menos me lembrar: que estava eu fazendo? [...] Atardava-me à mesa do café – como está sendo difícil saber como eu era. No entanto tenho que fazer o esforço de pelo menos me dar uma forma anterior para poder entender o que aconteceu ao ter perdido essa forma (LISPECTOR, 1996, p. 17) Desse modo, no romance A paixão segundo GH, tem-se a narração não apenas da experiência mística vivida pela personagem, mas também de todo seu esforço de linguagem a fim de encontrar, através da palavra, sentidos de existência – anteriores e posteriores à entrada no quarto da ex-empregada Janair. E este esforço de linguagem, que vem do embate entre a dificuldade e a necessidade de narrar o que se sucedera no quarto, diante da barata, constitui o assunto predominantemente narrado no primeiro capítulo, espécie de preâmbulo da narrativa. Com efeito, em seu estudo paródico sobre esse romance, Olga de Sá, já acerca do título, observa: “A paixão de G.H. é o sofrimento para alcançar a despersonalização da mudez; a paixão segundo G.H., o sofrimento de narrar essa experiência vital.” (1979, p. 257) A dificuldade em empreender a necessária narração resulta em um trecho estruturalmente dilatado por o que são apenas sugestões ou pistas diversas de um fato, e não por qualquer fato propriamente narrado. Ao longo de 47 parágrafos, a narradora auto-diegética nos esconde a mínima narração acerca do episódio que lhe acontecera durante algumas horas do dia anterior. Similarmente à análise de Genette acerca da cena proustiana, a ação, no que tem de objetiva, apaga-se “quase completamente, em proveito da caracterização psicológica” (GENETTE, 1979, p. 111); no caso de A paixão segundo GH, em proveito especialmente de uma caracterização ontológica. Exemplares dessa dilatação são as relações de repetição, especialmente de intransitividades verbais ou de complementações apenas figurativas ou indefinidas. 32 Logo no primeiro parágrafo, tem-se, justamente, a repetição da falta de complementação dos verbos e mesmo da complementação indefinida deles. GH não conta o que “procura”, o que “tenta entender”, o que “tenta dar”, “o que viveu”, “o que lhe aconteceu”, apenas os repete intransitivamente: - - - - - - estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi. [...] Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização [...]. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi. [...] (LISPECTOR, 1996, p. 9) Sequencialmente, tem-se a mesma indeterminação reiterada. Como no trecho abaixo em que, além da repetição do verbo “perder”, há a complementação indefinida, “alguma coisa”, ou figurativa “como se eu tivesse perdido uma terceira perna”: Perdi alguma coisa que me era essencial e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. [...] (LISPECTOR, 1996, p. 9) Repetidamente, GH segue com a suspensão do fato ocorrido, instaurador de uma “covardia” – comparada a “acordar de manhã na casa de um estrangeiro” – que também não é clara ao leitor. A referência evasiva ao “perder” é reforçada. Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova covardia – a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la – na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É difícil perder-se. (LISPECTOR, 1996, p. 9-10) As constantes frases interrogativas também retêm a narração (assertiva) de um fato principal, ao mesmo tempo em que contribuem para o exercício de busca, através da linguagem, empreendido por GH. Repetições de palavras ou de estruturas frasais prosseguem reforçando tanto o exercício da busca quanto a suspensão da narração. [...] Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de novo penso porque tenho por objetivo achar – e que por segurança chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de saída. Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei para onde dá essa entrada. [...] (LISPECTOR, 1996, p. 10) E logo no parágrafo seguinte: Ontem no entanto perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia 33 de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar a desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se explica que meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra? – como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização? (LISPECTOR, 1996, p. 10) Em meio à procura de GH em dar uma forma ao que lhe acontecera, a fim de que não fique à mercê da profunda desorganização, há a narração – igualmente repetitiva – de um forte receio em mentir para si própria, de reconstituir uma “terceira perna” que, diz, “em mim renasce fácil como capim” (1996, p. 11). Este embate entre a necessidade e a dificuldade dá sinais de resolver-se a partir de uma indagação de GH (em busca, vã, por nova linguagem que expresse o neutro com o qual ela se deparou): Mas como faço agora? [...] Como pois inaugurar agora em mim o pensamento? E talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão (LISPECTOR, 1996, p. 11) Essa atmosfera de indagação irá, mais adiante, desembocar, segundo análise de Benedito Nunes, na instauração do pathos da escrita. GH vai reconhecendo seu “fracasso” de linguagem, como ela própria o denomina, vai reconhecendo que só através de sua falha é que poderá aproximar-se do indizível; na sujeição a esse modo de dizer, ou escrever, está o pathos: [...] a trajetória mística de GH passa pela via crucis da linguagem, pelo gozoso padecimento de ter que buscar a forma para expressar o neutro, o cru, o não humano, a existência, o ser. ‘A linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto – o indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.’ Eis o pathos da escrita como um padecimento de sujeição ao sagrado, ao inconsciente amor que atravessa a vida. (NUNES, 2009, p. 318) A paixão segundo GH realiza-se, com efeito, a partir da submissão ou rendição à única linguagem que GH possui; a partir da aceitação do fracasso da linguagem, do reconhecimento de que o indizível reside, justamente, no resíduo daquilo que sua denominação busca mas não alcança. Se a finalidade da paixão é desvelar o ser, trata-se de desvelá-lo, conforme enunciou Olga de Sá, “contra a razão que o encobre”, “contra a linguagem” mas “fazendo linguagem.” (2004, p. 124) O instante que traz esta submissão como possibilidade está narrado no referido capítulo inicial e é tensionado por 12 parágrafos anteriores que, conforme se viu, narram repetitivamente a necessidade de um difícil enformamento. E o instante mesmo da submissão ou rendição é ainda dilatado pela repetição da expressão “já que” seguida de quatro verbos que, por si só, exprimem um percurso de padecimento. Surge duas vezes a força egoica do “tenho”, depois a exposição frágil do “precisarei”, depois a não resistência absoluta do “sucumbirei”. Cumpre notar, ainda, que a fragilidade e a 34 passividade expressas por esses dois últimos verbos surgem reforçadas pelo uso do advérbio “fatalmente” que, ao derivar do latim “fatale”, conta com o sentido – também impotente ao humano – daquilo que é fixado pelo fado ou destino 7 : Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar indelimitada – então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra 8 . E que eu tenha a coragem de resistir à tentação de inventar uma forma. (LISPECTOR, 1996, p. 11) A sua narração não poderá, pela força da razão, buscar o sentido; deverá, pela força da paixão, revestir-se de sentido. Assim, aqui onde se lê o pathos da escrita, como o enunciou Nunes, lê-se a singularização, em importância, de uma metáfora de aderência, a saber: o grude em terra da nebulosa de fogo, intrínseco ao seu esfriamento natural. Conforme se fundamentará mais adiante, esta metáfora é de capital importância na argumentação deste trabalho, porque coincidente com a imagem que, no I Ching, responde pelo fazer artístico, segundo análise do sinólogo Richard Wilhelm. Precisamente no instante em que se rendeu à linguagem, GH instaura uma outra condição à narração, o fingir escrever para alguém, cuja mão será bastante solicitada no decorrer da narração: Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém. (LISPECTOR, 1996, p. 11) Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a mão. (LISPECTOR, 1996, p. 13) Nesta (nova) posição assumida por um incerto personagem-leitor, faz-se lícito constatar a presença de outra metáfora de Aderência. Uma vez que GH parece encontrar (ou representar) no “tu” imaginário a força, ou a coragem, ou a clareza com as quais vai dando corpo à sua experiência, gruda-se nele. Adiante-se, aqui, inversões em relação ao que se passa em A hora da estrela, quando é a personagem, de contornos bem definidos, quem “gruda” na pele do narrador, compelindo-o a narrar. Posteriormente, este aspecto será retomado e destacado por este trabalho. 7 Fatal. [Do lat. fatale]. Adj. 2 g. 1. Determinado, marcado, fixado pelo fado ou destino. Fatalmente. [De fatal + mente]. Adv. 1. De modo fatal; inevitavelmente. In BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, Aurélio. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 3ª edição, Curitiba, Positivo, 2004, p. 877. 8 Destaque nosso. 35 De volta à GH, após suas rendições e condições, porém, a narradora prossegue com a dilatação dessa cena inicial, prossegue com o contar evasivo, hesitante, que, no segundo capítulo, conforme já se destacou, passará a ser intercalado com narrações mais precisas acerca da história primeira, mas que não cessará, uma vez que o pathos da linguagem foi, pela narradora, incorporado à sua história. No antepenúltimo parágrafo há a narração do que sugere ser a figuração da passional aproximação da narração da história primeira. Mesmo ele, porém, não está isento das indefinições acima destacadas: Os sinais de telégrafo. O mundo eriçado de antenas e eu captando o sinal. Só poderei fazer a transcrição fonética. Há três mil anos desvairei-me, e o que restaram foram fragmentos fonéticos de mim. Estou mais cega do que antes. Vi, sim. Vi, e me assustei com a verdade bruta de um mundo cujo maior horror é que ele é tão vivo que, para admitir que estou tão viva quanto ele – e minha pior descoberta é que estou tão viva quanto ele – terei que alçar minha consciência de vida exterior a um ponto de crime contra a minha vida pessoal. (LISPECTOR, 1996, p. 15) Os dois últimos parágrafos do capítulo inicial mantêm o adiamento de que falou a própria narradora, através, mais uma vez, de repetições, de longas orações intercaladas, de interrogação. Por outro lado, o parágrafo maior revela que o exercício de linguagem empreendido, que corresponde ao presente da narração, foi tributário de uma compreensão. Se ele reteve a história primeira, ele foi, ao mesmo tempo, matéria de uma outra história – absolutamente entrelaçada àquela; compôs a história cujo tema é a busca de uma compreensão através de uma narração supostamente submetida não à razão, mas à paixão. É o que lemos, enfim, quando GH conta ter apenas “ontem e agora” descoberto algo acerca de si mesma: Para a minha anterior moralidade profunda – minha moralidade era o desejo de entender e, como eu não entendia, eu arrumava as coisas, foi só ontem e agora que descobri que sempre fora profundamente moral: eu só admitia a finalidade – para a minha profunda moralidade anterior, eu ter descoberto que estou tão cruamente viva quanto essa crua luz que ontem aprendi, para aquela minha moralidade, a glória dura de estar viva é o horror. Eu antes vivia de um mundo humanizado, mas o puramente vivo derrubou a moralidade que eu tinha? É que um mundo todo vivo tem a força de um inferno. (LISPECTOR, 1996, p. 16) O “ontem”, enfim, refere-se à experiência vivida diante da barata, portanto, à história primeira; o “agora” refere-se à tentativa de contá-la ou, mais do que isso, de incorporá-la, de significá-la, através da linguagem. 1.3.2. A Aderência em “Os desastres de Sofia” 36 O conto “Os desastres de Sofia”, de 1963, tece uma gênese da escritura enquanto narra os conflitos de uma menina com seu professor. Sofia, a narradora auto-diegética, já adulta, narra o modo desafiador como, menina, lidava com seu professor do curso primário, cuja angústia havia, como que irresistivelmente, adivinhado: O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho: - Cale-se ou expulso a senhora da sala. Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo. (LISPECTOR, 1999b, p. 11) A despeito dos enfrentamentos cotidianos, o grande conflito entre ambos se dá quando da escrita de uma história cujo tema fora proposto pelo professor. No que concerne à trama do conto, o resultado desse conflito é a percepção assustada, por parte da menina, da sua escrita como iniciação a um sacro ofício. Em cumprimento da tarefa, Sofia escreve uma história avessa à moral presente na narrativa contada pelo professor, que deveria ser continuada pelos alunos; e, conforme declara, escreve-a de qualquer jeito, despretensiosamente, apenas para ser a primeira a correr ao recreio e demonstrar ao professor “rapidez”, o que lhe parecia essencial para se viver e o que, “tinha certeza, o professor só podia admirar” (1999b, p. 17). Mais tarde, quando volta à sala para buscar qualquer coisa – e sem, antes, ter recebido qualquer elogio por sua velocidade –, é surpreendida pelo professor já leitor de sua composição, absolutamente surpreso, curioso e esperançoso daquilo que a menina escrevera. A moral avessa encantara-o. O efeito imediato de tal história, assim que lida pelo professor, representou um desmoronamento no modo como Sofia lidava com ele e com o mundo: A súbita falta de raiva nele. Olhei-o intrigada, de viés. E aos poucos desconfiadíssima. Sua falta de raiva começara a me amedrontar, tinha ameaças novas que eu não compreendia. [...] Perplexa, e a troco de nada, eu perdia o meu inimigo e sustento. (LISPECTOR, 1999b, p. 21) O professor, então, gostara muito da história, mais do que isso, confiara na menina (1999b, p. 23). O encantamento e a confiança vistos por Sofia frustram-na: “Ele matava em mim, pela primeira vez a minha fé nos adultos: também ele, um homem, acreditava como eu nas grandes mentiras” (1999b, p. 24), afirma a narradora. Assim, Sofia volta correndo, “horrorizada” e “espantada”, para o parque do colégio, onde busca entender um pouco mais o que se passara, embora ainda houvesse “muito mais corrida” dentro de si. Reconhece ter sido “tudo o que aquele homem tivera naquele momento” (1999b, p. 25): 37 Pelo menos uma vez ele teria que amar, e sem ser a ninguém – através de alguém. E só eu estivera ali. Se bem que esta fosse a sua única vantagem: tendo apenas a mim, e obrigado a iniciar-se amando o ruim, ele começara pelo que poucos chegavam a alcançar. [...] Ali estava eu, a menina esperta demais, e eis que tudo o que em mim não prestava servia a Deus e aos homens. Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro. (LISPECTOR, 1999b, p. 26) O que a narradora nos coloca, espantada, é que a continuação escrita que ela dera à história contada pelo professor iniciou-a no ofício de escritora; passa a lhe caber o ofício sagrado da criação. Com efeito, ela adulta (e, portanto, já escritora), ao recuperar essas memórias de menina, sugere-nos a origem não só dessa história como também de outras: Foi talvez por tudo o que contei, misturado e em conjunto, que escrevi a composição que o professor mandou, ponto de desenlace dessa história e começo de outras. (LISPECTOR, 1999b, p. 16) E também é possível identificar neste conto motes de outras narrativas de Clarice. Destacar-se-á, aqui, alguns desses motivos desenvolvidos em A paixão segundo GH. Enquanto, por exemplo, a “esperança” é largamente narrada por GH como sendo uma das “sentimentações” que lhe impediam o contato com o neutro, com o núcleo vital, Sofia, ao tentar se lembrar da composição que escrevera, observa: “É possível também que já então meu tema de vida fosse a irrazoável esperança [...].” (1999b, p. 18) Também no conto, lê-se, ainda incipiente, o contato com o olhar da barata: mortífero e vivificador para GH e já metáfora aterrorizante para Sofia. Para a minha súbita tortura, sem me desfitar, foi tirando lentamente os óculos. E olhou-me com olhos nus que tinham muitos cílios. Eu nunca tinha visto seus olhos que, com as inúmeras pestanas, pareciam duas baratas doces. Ele me olhava. E eu não soube como existir na frente de um homem. Eu nunca tinha visto seus olhos que tinham muitos cílios. (LISPECTOR, 1999b, p. 20) Em “Os desastres de Sofia” lê-se também, e sobretudo, o desabrochar do insólito contato com a realidade, íntima, de difícil nomeação, desabrochar intrínseco ao da escritura – que é de busca. Para muito além do sorriso que está vendo, estampado no rosto de seu Professor, Sofia, em pé diante dele, apresenta-nos as mesmas negações e indefinições de GH diante da busca pelo dizer essencial: Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi. Vi tão fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para a operação de intestinos. [...] O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. (LISPECTOR, 1999b, p. 22) 38 Na menina, o desabrochar da percepção de uma realidade irredutível era, naturalmente, “vastidão” do que “não conhecia”, mas que a ela se “confiava toda”. Desconhecê-la e ao mesmo tempo se confiar a essa espécie de força que a impelia para os ermos de um outro é, como anuncia, fonte de um nascente misticismo, que, em A paixão segundo GH, alimentará aquele percurso espiritual intermediado pelo contato com a realidade crua e muda da barata. É verdade que nem eu mesma sabia ao certo o que fazia, minha vida com o professor era invisível. Mas eu sentia que meu papel era ruim e perigoso: impelia-me a voracidade por uma vida real que tardava [...] só Deus perdoaria o que eu era porque só ele sabia do que me fizera e para o quê. Eu me deixava, pois, ser matéria d’Ele. Ser matéria de Deus era a minha única bondade. E a fonte de um nascente misticismo. Não misticismo por ele, mas pela matéria d’Ele, mas pela vida crua e cheia de prazeres: eu era uma adoradora. (LISPECTOR, 1999b, p. 13) De modo ainda similar à GH quando do final de seu relato, ao final do conto, vê- se surgir, em Sofia, um apaziguamento diante da não compreensão: Através de mim, a difícil de se amar, ele recebera, com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feito. Entendia eu tudo isso? Não. E não sei o que na hora entendi. Mas assim como por um instante no professor eu vira com aterrorizado fascínio o mundo – e mesmo agora ainda não sei o que vi – assim eu nos entendi, e nunca saberei o que entendi. Nunca saberei o que eu entendo. O que quer que eu tenha entendido no parque foi, com um choque de doçura, entendido pela minha ignorância. (LISPECTOR, 1999b, p. 26-27) Através dos rastros desses exemplos, procuramos indicar que o romance A paixão segundo GH calca caminhos contornados no conto. Assim, também a imagem de Aderência, tal como abordada neste trabalho, surge sutilmente indicada em “Os desastres de Sofia”, o que ocorre, segundo a presente leitura, de duas maneiras. Na primeira delas, sem ser um ato mencionado, anunciado, como o evidenciaram algumas crônicas, a Aderência parece estar implicada na verdadeira fixação que o Professor, escolhido, exerce na incipiente escritora: E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. Eu ia receber de volta uma realidade que não teria existido se eu não a tivesse temerariamente adivinhado e assim lhe dado vida. (LISPECTOR, 1999b, p. 11) Em outras palavras, a Aderência, tal como foi mais largamente exemplificada na primeira parte deste capítulo, parece suceder a ingênua e infantil cifra da “adivinhação” presente no conto. Ou seja, o que a menina adivinhou um dia, a adulta captou, intuiu, sentiu, mais tarde. O que paira sobre ambas é um ar místico. A representação do místico na percepção infantil se dá pela cifra, não racional, da adivinhação. Na adulta, ganha 39 outras nuances, trata-se não de adivinhar meramente, mas de sentir; mais do que isso, trata-se de um saber pertencente ao domínio do sentir. Acerca dessa dimensão consciente implicada no dado inconsciente da intuição, é oportuno retomar, aqui, uma explicação dada por Clarice na crônica “Sensibilidade inteligente”: As pessoas que falam de minha inteligência estão na verdade confundindo inteligência com o que chamarei agora de sensibilidade inteligente. Esta, sim, várias vezes tive ou tenho. [...] o que, suponho, eu uso quando escrevo, e nas minhas relações com amigos, é esse tipo de sensibilidade. Uso-a mesmo em ligeiros contatos com as pessoas, cuja atmosfera tantas vezes capto imediatamente. Suponho que esse tipo de sensibilidade, uma que não só se comove como por assim dizer pensa sem ser com a cabeça, suponho que seja um dom. (LISPECTOR, 1999a, p.148) Assim, se em “Os desastres de Sofia” a ingenuidade consiste na adivinhação ao mesmo tempo espelhada na incompreensão de um apelo – o apelo da escrita, o despontar da vocação –, a Aderência, tal como foi exemplificada mais amplamente, apresenta-se como uma versão amadurecida, compreendida, deste chamamento; neste sentido, passível de ser dominada, trabalhada, encenada, por meio, por exemplo, do humor e da ironia, como se viu na crônica “Encarnação involuntária”, e dos quais se valem alguns narradores adultos, vividos – no que lhes pese a carga da experiência, das tantas vivências, conforme se detalhará mais abaixo. No mesmo conto, porém, a narradora faz uma declaração já complexa, compreendida, acerca do que lhe foram “fixação”, “atração”, “adivinhação”: “A realidade era o meu destino, e era o que em mim doía nos outros”, afiança. (1999b, p. 26). De fato, um dos efeitos de sentido da representação da memória, neste conto, é o embaralhamento das palavras com as quais Sofia tece suas lembranças. Se nem sempre ela se lembra, conforme diz ao tentar recuperar trechos de sua composição, das “palavras de criança” com que tocara o professor, ela, fatalmente, está sujeita também a lembrá-las e utilizá-las. Melhor dizendo, o jogo de memória representado no conto imprimi-lhe um correlato jogo vocabular: há um movimento de vai e vem, um embaralhamento entre palavras e imagens simples e complexas, características do passado e do presente, da criança e da adulta, da aluna e da escritora. Movimento também inscrito nos espaços ziguezaguiantes em que se dá a história: a sala de aula e o imenso parque do colégio. Neste ponto, faz-se também pertinente recuperar afirmações presentes na crônica “Escrever”, de 02 de maio de 1970, uma vez que nela Clarice discorre sobre o tomar posse daquilo que se lhe impôs – o ofício da escrita: Quando conscientemente, aos 13 anos de idade, tomei posse da vontade de escrever – eu escrevia quando era criança, mas não tomara posse de um destino – quando tomei posse da vontade de escrever, vi-me de repente num vácuo. E nesse vácuo não havia quem pudesse me ajudar. Eu tinha que eu mesma me erguer de um nada, tinha eu mesma que me entender, eu mesma inventar por assim dizer a minha verdade. Comecei, e nem sequer era pelo começo. Os papéis se juntavam um ao outro – o sentido se contradizia, o desespero de não poder era um obstáculo a mais para realmente não poder. A história interminável que então comecei a escrever 40 (com muita influência de o lobo da estepe, Herman