UNESP | UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA | INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES MESTRADO EM ARTES Nigel Anderson de Medeiros Ferreira Materializando o espaço invisível dos movimentos do corpo: Maquetes Kinesféricas São Paulo 2017 2 UNESP | UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA | INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES MESTRADO EM ARTES Nigel Anderson de Medeiros Ferreira Materializando o espaço invisível dos movimentos do corpo: Maquetes Kinesféricas Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Artes do Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção do título de Mestre em Artes pelo Programa de Pós- graduação em Artes. Área de concentração: Artes Visuais. Linha de Pesquisa: Processos e procedimentos artísticos Orientador: Profa. Dra. Rosangela da Silva Leote. São Paulo 2017 3 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP F383m Ferreira, Nigel Anderson de Medeiros, 1988- Materializando o espaço invisível dos movimentos do corpo: Maquetes Kinesféricas / Nigel Anderson De Medeiros Ferreira. - São Paulo, 2018. 122 f. : il. color. Orientadora: Profª. Drª. Rosangela da Silva Leote. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Arte e tecnologia. 2. Impressão tridimensional. 3. Linguagem corporal - Dança. I. Leote, Rosangela da Silva. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 700.105 (Mariana Borges Gasparino - CRB 8/7762) 4 Nigel Anderson de Medeiros Ferreira Materializando o espaço invisível dos movimentos do corpo: Maquetes Kinesféricas Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Artes Visuais no Curso de Pós -Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – Unesp, com a Área de concentração em Artes Visuais, pela seguinte banca examinadora: Prof.ª Dr.ª Rosangela da Silva Leote Presidente - Orientadora UNESP – Instituto de Artes Prof. Dr. Milton Terumitsu Sogabe UNESP – Instituto de Artes Profa. Dra. Agda Regina de Carvalho Titular (externo) Universidade Anhembi Morumbi Data e Local de aprovação: São Paulo, 29 de agosto de 2017 5 AGRADECIMENTOS À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) que financiou esta pesquisa e possibilitou minha dedicação ao projeto durante os dois anos do curso de mestrado. À Professora Dra. Rosangella Leote, por aceitar embarcar comigo nessa jornada, com sua sensibilidade ímpar e por me fazer compreender, de seu modo, a riqueza que podemos fazer brotar do caos. Também ao Prof. Dr. Milton Sogabe e à Profa. Dra. Agda Carvalho, por suas contribuições na banca de qualificação, fundamentais para a forma final do trabalho. À minha família, que sempre estimulou minha produção artística e me incentivou em todos os momentos a continuar a minha jornada no universo da arte e da pesquisa. Aos amigos mais próximos - a família que nós escolhemos durante a vida – por estar sempre ao lado, em especial Hosana Celeste e Danilo Baraúna, imensamente admiráveis e eternos companheiros, pela parceria e apoio incondicional, tanto em nossos estudos acadêmicos, quanto no âmbito emocional e afetivo. Também aos amigos Franco Salluzio, Haroldo França e a contribuição essencial de Duana Aquino, que ajudou fundamentalmente na etapa final do trabalho para que o resultado 3D tenha se tornado possível. Aos companheiros Alexandre Mello, Renato Pimentel e em especial Erick Aloe, por acompanhar e se mostrar sempre presente nos últimos momentos dessa jornada. Aos eternos parceiros de vida artística, profissional e pessoal Isabel Marques, Fábio Brazil e todos os integrantes do Caleidos Cia de Dança, pelos muitos anos de aprendizado e confiança, dançando comigo esta e muitas outras trajetórias de vida. Aos parceiros que se fizeram presentes neste projeto, mesmo que apenas em determinadas fases, Washie Pichinin, Lina Lopes, Frederico Junqueira, Paulo Scatena e Renata Portelada, pelo entusiasmo e suas incríveis contribuições. E por fim, aos fiéis parceiros do GIIP – Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia, sempre colaborando e compartilhando seus conhecimentos teóricos e poéticos. 6 “Sou o espaço onde estou” Noël Arnaud 7 RESUMO Esta dissertação resulta da investigação das possibilidades de materialização do espaço construído pelo corpo em movimento e suas representações físicas, por meio de dispositivos tecnológicos emergentes, a partir de investigação acerca das espacialidades do corpo. Identificamos a perspectiva de explorar a hipótese de materialização tridimensional do corpo em movimento com base nos princípios desenvolvidos por Rudolf Laban como a kinesfera, o espaço pessoal que envolve os movimentos de nosso corpo. Partindo desta hipótese, construímos uma narrativa a partir da relação do sujeito com o espaço e desenvolvemos uma interface denominada Kintra, que é capaz de identificar elementos estruturais do corpo em movimento e gerar dados que permitam a construção de modelos arquitetônicos tridimensionais corporificados que possam, posteriormente, vir a ser impressos em 3D. Como metodologia de pesquisa utilizamos um método de abordagem sistêmico, pautado nos estudos da complexidade, em que reconhecemos este processo artístico como um sistema. Para tanto, a base teórica e conceitual dos estudos inclui a Teoria Geral dos Sistemas e estudos da complexidade presentes nas obras de Werner Mende (1982), Humberto Maturana e Francisco Varela (2003), Edgar Morin (2005), Jorge de Albuquerque Vieira (2006); os princípios da linguagem da dança encontrados em Rudolf Von Laban (1929;1978), Valerie Preston-Dunlop (2003), Ciane Fernandes (2006) e Isabel Marques (2010); conceitos e noções relacionadas ao sujeito e espaço de Merleau-Ponty (1992, 1994), Peter Eisenman (1990), Marc Augé (1994), Bernard Tschumi (1995), Henri Lefebvre (2000), Madeline Gins e Shusaku Arakawa (2002) além de Juhani Pallasmaa (2013); fundamentos de Arquitetura e Parametria nos estudos de William Mitchell (1977) e Branko Kolarevic (2003); bem como as compreensões de corpo e tecnologia levantadas por Ivani Santana (2006), Mark Hansen (2006) e Rosangella Leote (2015). Palavras chave: Arte e tecnologia, Impressão tridimensional, Linguagem corporal 8 ABSTRACT This dissertation investigates the possibilities of materialization of the space built by the moving body and its physical representations through emergent technological devices from the research about the spacialities of the body. We identify the perspective of the explorating the hypothesis of the tridimensional materialization of the moving body based on the fundamentals developed by Rudolf Laban (1966) as the concept of kinesphere, the personal space that involves the movements of our body. From this hypothesis, we create a narrative from the relationships between the subject with the space and we develop na interface named Kintra, wich is able to identify the structural elements of the moving body and generates information that makes possible for us to build tridimensional architectural models wich can be later 3D printed. As methodology of research, we will make use of the systemic approach, based on complexity studies, in wich we recognize this artistic process as a system. Therefore, the theoretical basis includes the General Systems Theory and Complexity studies inside the works of Werner Mende (1982), Humberto Maturana and Francisco Varela (2003), Edgar Morin (2005), Jorge de Albuquerque Vieira (2006), the Dance Language funtamentals and principles found in Rudolf Von Laban (1929;1978), Valerie Preston-Dunlop (2003), Ciane Fernandes (2006) and Isabel Marques (2010), the philosophic concepts and notions related to the subject and space of Merleau-Ponty (1992, 1994), Peter Eisenman (1990), Marc Augé (1994), Bernard Tschumi (1995), Henri Lefebvre (2000), Madeline Gins e Shusaku Arakawa (2002) and Juhani Pallasmaa (2013), the basis of Architecture and Generative Models in the studies of William Mitchell (1977) and Branko Kolarevic (2003), as well as the comprehension of body and technology raised by Ivani Santana (2006), Mark Hansen (2006) and Rosangella Leote (2015). Keywords: Art and Technology, Tridimensional print, Body language. 9 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Yi-Fu Tuan. Esquema visual sobre a experiência ....................................................... 28 Figura 2 – Eadweard Muybridge, Figura humana em movimento ................................................ 43 Figura 3 – Étienne-Jules Marey, Fuzil fotográfico ......................................................................... 44 Figura 4 – Kandinsky . Curvas sobre a dança de Palucca ........................................................... 45 Figura 5 – Oskar Schlemmer. Dança das varetas ........................................................................ 46 Figura 6 – Lygia Clark. Vista da instalação A casa é o corpo ...................................................... 48 Figura 7 – Marta Soares. Instalação coreográfica “O Banho” ...................................................... 50 Figura 8 – Laban Library and Archive, Três estudantes em um icosaedro .................................. 53 Figura 9 – William Forsythe, Nowhere and everywhere at the same time ................................... 57 Figura 10 – William Forsythe, Improvisational Technologies ....................................................... 58 Figura 11 – Char Davies, Osmose ............................................................................................... 60 Figura 12 – Guto Requena. Capacete neural e objeto tridimensional - Love Project ................. 62 Figuras 13 – Sophie Kahn, Memorial bust of a woman ............................................................... 63 Figura 14 – Karin Sander, Escala (Scale) 1:10 ........................................................................... 63 Figura 15 – Kitsou Dubois. Kitsou a bordo do Zero G. Caravelle ............................................... 65 Figura 16 – Raphael Perret, Bodycloud ...................................................................................... 67 Figura 17 – LARTECH, Coda, the finale of NoBody dance : The Rite of Spring ………….......... 69 Figura 18 – Nigel Anderson. Maquetes kinesférias - Mapa de ações (1) ................................... 73 Figura 19 – Nigel Anderson. Maquetes kinesférias - Mapa de ações (2) ................................... 74 Figura 20 – Nigel Anderson. Maquetes kinesférias - Mapa de ações (3) ................................... 74 Figura 21 – Nigel Anderson. Maquetes kinesférias - Mapa de ações (resumo) ......................... 75 Figura 22 – Nigel Anderson. Experimentando o vestível e visualização ................................... 76 Figura 23 – Nigel Anderson. Esquema visual Kinesfera de acordo com Laban ......................... 81 Figura 24 – Taanteatro. Maura Baiocchi em espetáculo TRANS ............................................... 82 Figura 25 – Nigel Anderson. Esquema visual do Octaedro de acordo com Laban .................... 84 Figura 26 – Nigel Anderson. Esquema visual Kinesfera de acordo com Laban ........................ 85 Figura 26 – Nigel Anderson. Esquema visual Kinesfera de acordo com Laban ........................ 85 Figura 27 – Nigel Anderson. Gráfico do esforço ou expressividade, segundo Laban ............... 86 Figura 28 – Nigel Anderson. Esquema visual do Icosaedro de acordo com Laban .................. 87 Figura 29 – Nigel Anderson. Esquema visual dos níveis do espaço de acordo com Laban ..... 88 Figura 30 – Nigel Anderson. Esquema visual dos níveis do espaço de acordo com Laban ..... 89 10 Figura 31 – Nigel Anderson. Esquema visual dos níveis do espaço de acordo com Laban ..... 90 Figura 32 – Abordagem tradicional e generativa do projeto arquitetônico ................................ 95 Figura 33 – Museu Guggenheim de Frank Gehry ..................................................................... 99 Figura 34 – Estação de metrô KAFD (King Abdullah Financial District) de Riad ..................... 100 Figura 35 – MAD. Absolute Towers criadas pelo escritório chinês MAD ................................. 101 Figura 36 – Duana Aquino. Primeiro esboço e rascunho de protótipo do autolugar 1. ........... 105 Figura 37 – Duana Aquino. Protótipo virtual do autolugar 1......................................... ........... 106 11 LISTA DE TABELAS Tabela 1 –. Elementos estruturais da dança relativas a Espaço .................................................... 90 Tabela 2 – Elementos estruturais relativos a dinâmicas de movimento e ações corporais ............ 92 Tabela 3 – Tabela de parâmetros entre elementos espaciais da Dança e da Arquitetura ............ 100 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................. 13 1. Corpo, Espaço e Lugar ......................................................................... 21 1.1. A criação de espaços e lugares: uma reflexão fenomenológica......... 22 1.2. O corpo e a arquitetura....... ............................................................... 34 2. Contextualizando as espacialidades do corpo ................................. 41 2.1. Modos de espacialização do corpo nas artes .................................... 42 2.2. O corpo espacializado na arte e tecnologia........................................ 59. 3. Materializando o espaço invisível dos movimentos do corpo ......... 71 3.1. Interface Kintra: a criação de um sistema para a obra ........................... 75 3.1.1. Os princípios de corpo e espaço em Laban ...................... 78 3.1.1.1. Kinesfera ........................................................................... 80 3.1.1.2. Orientação espacial .......................................................... 82 3.1.1.3. Formas fixas e transição de formas .................................. 89 3.1.1.4. Dinâmicas e ações corporais ............................................ 91 3.1.2. Sistema de construção arquitetônica ................................ 94 3.1.2.1. Formas fixas x estrutura arquitetônica .............................. 97 3.1.2.2. Kinesfera x tamanho ......................................................... 98 3.1.2.3. Níveis do espaço x níveis da construção ......................... 98 3.1.2.4. Transição de formas X intervenção estrutural .................. 99 3.1.3. Traduções sintáticas ........................................................ 102 3.2. O autorretrato como autolugar: análise do protótipo.............................. 103 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 109 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 111 APÊNDICES .................................................................................................... 116 APÊNDICE A – Glossário Kintra ........................................................... 116 APÊNDICE B – Vocabulário descritivo Kintra ....................................... 118 APENDICE C – Ficha Descritiva Do Autolugar 1 .................................. 123 13 Introdução Corpo, Corpomídia1, Corpo arquitetural2, Corpo em código3, espaço, espaço social, espaço virtual, espaço invisível. São inúmeras as metáforas do corpo e as relações entre espaço e tecnologia que nos são apresentadas pelos mais variados teóricos de diferentes áreas do conhecimento, sendo que seus desdobramentos em proposições poéticas são ainda mais diversos. A teoria geral dos sistemas e os estudos da complexidade, dos quais falaremos mais a frente, nos fazem compreender o corpo, seus elementos, o espaço em que ele atua, a tecnologia e a própria arte como sistemas. Encontramos, portanto, na metodologia de pesquisa em arte de viés sistêmico uma forma de romper com as fronteiras historicamente construídas entre os elementos corpo, espaço e tecnologia, gerando uma crise criadora que atinge seu clímax na concepção e desenvolvimento do nosso trabalho artístico, nomeado Maquetes kinesféricas4. Este trabalho foi elaborado conjuntamente com a pesquisa teórico/prática que envolveu, essencialmente, as relações entre corpo e espaço atravessadas pelos vieses interdisciplinaridade presentes nesta proposição poética. Entendemos a proposição Maquetes kinesféricas como um modo de espacialização do corpo em movimento. Acreditamos que ao investigar as tecnologias emergentes como aliadas no processo de materialização do espaço construído com 1 Termo apresentado por Helena Katz e Chistiane Greiner, corpomídia entende o corpo como um resultado de cruzamentos de informações. Lida com a noção de corpo como mídia de si mesmo, se referindo ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. Não trabalharemos com este conceito, apenas mencionamos para evidenciar como uma das várias metáforas do corpo. 2 De acordo com a compreensão dos arquitetos Madeline Gins e Shusaku Arakawa (2002) o “corpo arquitetural” nada mais é do que “a conjunção entre o próprio corpo e a arquitetura circundante”. Falaremos melhor sobre este conceito mais a frente. 3 O termo Corpo em código (tradução nossa do inglês body in code) foi cunhado pelo filósofo Mark Hansen (2006) para se referir a um corpo cujo poder criativo e construtivo é expandido por meio de novas possibilidades de interação oferecidos por códigos de programa da realidade virtual. A definição do termo será retomada no primeiro capítulo. 4 A escolha do termo “kinesféricas” para a obra será melhor explicada durante esta dissertação. 14 e pelo corpo, forjamos um elemento que contribui para produções artísticas desta natureza. Do mesmo modo, esta pesquisa contribui para a compreensão de nossas interações com o mundo a partir destas tecnologias. Ainda, acreditando em uma arte que transforma o ser humano, discute por meio de sua poética as questões psicossociais que envolvem estas relações do ser humano e seu meio social, seu ambiente. Em se tratando das relações do sujeito com o mundo, identificamos no pensamento de muitos filósofos e estudiosos, como Merleau-Ponty (1994), Yi-Fu Tuan (1983) e Henri Lefebvre (2000), a ideia de que o espaço não existe em si próprio, mas é construído ao mesmo tempo em que é percebido. A percepção que nosso corpo tem do espaço no qual ele está inserido nada mais é do que uma representação da própria relação afetiva e social que temos com o meio ambiente diante da experiência ativa que é estar no mundo e, conforme aponta o neurobiólogo chileno Humberto Maturana (2001), “para compreender a organização do ser vivo é necessário, primeiramente, compreendê-lo em sua materialidade. ” (MATURANA, 2001. p.41). Nos deparamos, desse modo, com o principal problema norteador deste trabalho: como podemos tornar visível esta materialidade existente no espaço construído pelo corpo em movimento? No intuito de investigar as inter-relações entre o corpo e o espaço e responder a esta questão que envolve os modos de materialização de um espaço construído pelo corpo em movimento, para o desenvolvimento da pesquisa adotamos o conceito de kinesfera5 de Rudolf Laban, a “esfera que delimita o espaço pessoal do corpo” (LABAN, 1966, p.10) e a representação física deste corpo em movimento no espaço, que é um corpo arquitetural, tal qual cunhado pelos arquitetos Shusaku Arakawa e Madeline Gins (2002). 5 Em alguns livros, encontramos também o termo cinesfera para descrever o mesmo conceito, em nosso trabalho adotaremos kinesfera. 15 Tivemos por objetivo, no projeto de pesquisa e criação artística, investigar as possibilidades de materialização do espaço construído pelos movimentos do corpo e suas aplicações no fazer artístico por meio do sistema de captura de movimentos e da impressão 3D na elaboração da obra artística Maquetes kinesféricas, que pode ser resumida objetivamente em três etapas6. Na primeira, entramos em contato com um número de pessoas – a princípio apenas uma, como protótipo e pedimos para que elas descrevessem à si mesmas como se fossem um lugar. Em seguida, elaboramos uma célula coreográfica a partir dos elementos de espaço presentes em cada descrição. Por fim, o sistema chamado Kintra, criado durante a pesquisa, para a elaboração da obra, fez a captura de movimentos e a partir deles foi capaz de gerar uma maquete virtual arquitetônica de cada lugar, descrito por cada indivíduo, para serem impressas em 3D. O intuito é tornar visível, de forma concreta, esta relação do ser humano em movimento com seu espaço pessoal e conectá-lo com o mundo a sua volta por meio do fazer artístico e a criação da tangibilidade deste espaço construído. Se alia ao processo a incorporação de recursos tecnológicos emergentes, como a impressão 3D e sensores de captura de movimento, exploradas no sentido criar novas interfaces convergentes entre arte, ciência e tecnologia. Diante deste contexto, encontramos uma necessidade de investigar um recorte chave histórico para expandir a discussão do presente projeto e pensar o contexto no qual estamos inseridos. Quais foram e estão sendo os modos encontrados pela arte de se tornar visível, problematizar e provocar reflexões a respeito desta relação corpo no espaço/lugar/mundo? Assim, trouxemos vários exemplos da história da arte para discutir este diálogo infinito entre os espaços produzidos por nosso corpo. Vimos isso nas proposições das décadas de 60 e 70 de Lygia Clark e de Hélio Oiticica, quando suas obras começam 6 Estas etapas serão melhor detalhadas no último capítulo desta dissertação, referente a obra em si. 16 a se projetar para o espaço tridimensional e a incorporar noções de arquitetura. No entanto, vimos também em obras de artistas mais contemporâneas a geração de outras experiências do público com o espaço, já por meio da tecnologia digital, como é o caso da obra “Osmose”7, de Char Davies, que cria um ambiente em realidade virtual para que o fruidor possa experienciar um espaço imersivo. Quando investigamos a utilização de impressão 3D e captura de movimentos na arte, encontramos alguns artistas que têm trabalhado com esses recursos tecnológicos em obras que vão de esculturas a performances interativas, como as esculturas de corpos fragmentados da artista Sophie Kahn, ou corpos em miniatura na obra de Karen Sander, ambos trabalhando com impressões 3D que criam um novo olhar e relação destes corpos com o espaço. Trabalhos ainda como o Charon (2013) do artista norte-americano Sterlling Crispin8, que alia a impressão 3D a sensores de movimento no registro de sua interação com um robô, em uma performance onde seu corpo, com um vestível de captura de movimento, projeta um desenho virtual ao interagir com um drone programado para reagir a seus movimentos. Este desenho posteriormente é impresso tridimensionalmente, começando a desvelar assim novas possibilidades de construção poética. A partir das possibilidades encontradas nestas relações entre corpo e espaço, identificamos a perspectiva de explorar nossa hipótese de materialização tridimensional da kinesfera proposta por Laban, por meio do uso de alguns dispositivos tecnológicos, tais como os recursos da impressão 3D, softwares de programação voltados para modelagem paramétrica e sensores de captura de movimentos, podendo assim traçar parâmetros comparativos entre os elementos estruturais da dança e a construção de estruturas arquitetônicas. Desse modo, foi 7 Ver http://www.immersence.com/osmose/ . Acessado em fevereiro de 2017 8 Imagens e informações dos trabalhos mencionados encontram-se nas páginas dos artistas: Sophie Khan: http://www.sophiekahn.net ; Sterlling Crispin: http://www.sterlingcrispin.com e Karin Sander: http://www.karinsander.de. Acessado em fevereiro de 2017. http://www.immersence.com/osmose/ http://www.sophiekahn.net/#!portraits/c199t http://www.sterlingcrispin.com/charon.html http://www.karinsander.de/ 17 possível gerar dados que permitissem a elaboração de modelos arquitetônicos tridimensionais corporificados, que pudessem ser impressos em 3D. Para tanto, a base teórica e conceitual dos estudos inclui teoria geral dos sistemas e estudos da complexidade presentes nas obras de, Werner Mende (1982), Humberto Maturana e Francisco Varela (2003), Edgar Morin (2005), Jorge de Albuquerque Vieira (2006), os princípios da linguagem da dança encontrados em Rudolf Von Laban (1929;1978), Valerie Preston-Dunlop (2003), Ciane Fernandes (2006) e Isabel Marques (2010), conceitos e noções relacionadas ao sujeito e espaço de Merleau-Ponty (1992, 1994), Peter Eisenman (1990), Marc Augé (1994), Bernard Tschumi (1995), Henri Lefebvre (2000), Madeline Gins e Shusaku Arakawa (2002) e Juhani Pallasmaa (2013), fundamentos de Arquitetura e Parametria nos estudos de William Mitchell (1977) e Branko Kolarevic (2003), bem como as compreensões de corpo e tecnologia levantadas por Ivani Santana (2006), Mark Hansen (2006) e Rosangella Leote (2015). Em se tratando do formato de apresentação, esta dissertação está organizada em três capítulos, em um caminho constante de aproximação dos teóricos selecionados no recorte desta pesquisa com a parte mais prática e os aspectos técnicos da mesma. O primeiro capítulo, intitulado Corpo, Espaço e Lugar se desenvolve a partir de uma busca de referências teóricas e históricas dentro do recorte relacional entre corpo e espaço. Investigando linhas de pensamento de filosófos, geógrafos, sociólogos e antropólogos, dedicamo-nos ao entendimento da espacialidade do ser que habita o mundo a partir de seu esquema corporal e dentro do campo fenomenológico que nos é apresentada pelo filósofo Merleau-Ponty (1994). Este corpo é construtor de espaços ao mesmo tempo em que é afetado pelo mesmo espaço. Dependendo do nível de identidade e relação, esse espaço pode se tornar um lugar, como apresentado pelo geógrafo Yi-Fu Tuan (1983), ou um lugar antropológico, em oposição ao denominado não-lugares, termos cunhados por Marc Augé (1994). 18 Ainda neste capítulo encontramos questões norteadoras deste trabalho contida nos teóricos da arquitetura, seus estudos de espacialidade e os paradoxos encontrados nas diversas linhas de pensamento, reforçando a ideia de que o corpo é o papel central na teoria arquitetônica apresentada pelo escritor e arquiteto suíço Bernard Tschumi (1995). Apresentamos ainda uma reflexão sobre o imaginário na arquitetura, levantado pelo arquiteto Juhani Palasmaa (2003), quando conduzimos um pensar a respeito dos lugares do corpo e as relações de alteridade e identidade, passíveis de serem observadas na descrição de um corpo como lugar. No segundo capítulo, Contextualizando as espacialidades do corpo nas artes, propomos uma contextualização e discussão a respeito de modos de espacialização do corpo nas artes, com um enfoque nas artes visuais e na dança. Introduzimos autores que problematizam as relações entre corpo e espaço e apontam estudos aprofundados dentro do tema, mesclando à exemplificação de obras que possuem ênfase nestes aspectos. Apresentamos, ainda neste capítulo, uma relação estabelecida entre autores que tratam deste corpo no universo das tecnologias emergentes, propondo pensar na ideia defendida por Mark Hansen (2006) de um corpo em código: corpo atravessado pelas mídias e pela virtualidade que adquire novos modos de ser e estar no mundo expandido da contemporaneidade. No terceiro e último capítulo desta dissertação, que nomeamos Materializando o espaço invisível dos movimentos do corpo, nos detemos a discutir os princípios fundantes e as questões práticas do trabalho, concretizada na construção da interface Kintra9, que permite traduzir os elementos estruturais do corpo em movimento no espaço em elementos arquitetônicos. Discorrendo sobre os aspectos de cada um dos sistemas que se inter-relacionam no trabalho, os princípios de espaço e corpo desenvolvidos por Laban e o sistema de construção arquitetônica, este capítulo desvela a estrutura técnica presente no cerne deste projeto, seus modos de operação 9 Nome criado a partir da junção das palavras abreviadas “tradutor” e “kinesférico”. 19 e os desdobramentos em que a pesquisa culmina: as maquetes kinesféricas materializadas, impressas tridimensionalmente em 3D, com modelo de extrusão plástica, ou seja, derretendo filamentos para elaboração de objetos. Considerando a abordagem sistêmica inserida como proposta de metodologia, assumimos uma avaliação feita com base nas experimentações comparadas, observadas e reajustadas quando necessário, analisando também seus parâmetros evolutivos do sistema (composição, conectividade, estrutura, integralidade, funcionalidade e organização) durante e ao final do processo, com base na proposta metodológica sugerida por Vieira (2013). Entendemos o objeto tridimensional, a maquete 3D, como nosso material de análise e como um resultado da hibridização entre a codificação dos dados de movimento e os dados de construção arquitetônica, de modo a dividir a análise em 6 aspectos, correspondentes aos parâmetros evolutivos que garantem a permanência da obra como sistema. A Composição nos permite analisar que componentes do processo podem ser observados no material impresso em 3D e se ele dá conta de representar fisicamente o espaço construído pelo corpo em movimento; A partir da Conectividade, analisamos se a “maquete kinesférica” e seu processo conseguiram contemplar, de forma equilibrada, os conceitos e elementos técnicos do sistema Laban de análise de dinâmica espacial e dos fundamentos de desenho arquitetônico. Com a Estrutura, identificamos as relações estabelecidas entre os componentes do sistema, para além das relações conceituais e técnicas presentes na conectividade esperada. A Integralidade possibilitou uma análise da capacidade da obra de se fragmentar em outros subsistemas, apontando contribuições de diferentes formas para as áreas de conhecimento que se cruzam em sua estrutura, ou seja, sua funcionalidade. E, por meio da Organização, compreendemos e analisamos o aspecto complexo da obra enquanto sistema em sua organização após todo o seu processo. 20 Apresentamos, por fim, as considerações que encerram a pesquisa teórico- prática a partir de sua metodologia de avaliação, identificando as questões que se mantiveram em aberto após as discussões e aponta possíveis caminhos teóricos juntamente com desdobramentos práticos deste fazer artístico. 21 CAPÍTULO 1 CORPO, ESPAÇO E LUGAR 22 Neste primeiro capítulo, nos aprofundaremos nas questões conceituais norteadoras do propósito deste trabalho, tratando essencialmente de uma discussão que provoque um pensar a respeito dos espaços e lugares do corpo. Este capítulo trata de um entendimento inicial do que seria a produção de espaço e lugar, no que tange a ideia de que nossos corpos são construtores do espaço no qual vivemos e nos relacionamos. No decorrer deste capítulo, criamos pontes teóricas entre geografia, filosofia, arquitetura e estudos da complexidade e trazemos reflexões referentes as noções de espaço e lugar, em seu viés mais subjetivo e contemporâneo, apontando caminhos para posteriormente se pensar suas construções sob um caráter relacional a partir destas referências teóricas filosóficas e artísticas. 1.1. A criação de espaços e lugares: uma reflexão fenomenológica Podemos nos perceber hoje em um mundo complexo, onde nossas relações se diversificam e são potencializadas exponencialmente de modo a tornar árdua a tarefa de se refletir a respeito desta realidade. Seja sob um ponto de vista mais político, seja pelas lentes das relações culturais, perpassando pelos atravessamentos com que as tecnologias emergentes nos afetam, acreditamos que nossa realidade contemporânea está sendo construída e vivida em um dos níveis de complexidade mais altos que nosso mundo já teve. Dedicar-se sobre pensamentos acerca do ser e estar no mundo contemporâneo nos compele a buscar diferentes abordagens e correntes que considerem o ser humano que se percebe no espaço e que, ao mesmo tempo em que o constrói e o transforma, é afetado por ele. Apresentamos, inicialmente, o desenvolvimento das ideias de Merleau-Ponty (1945, 1964), para recorrer a ideia do sujeito que se percebe no mundo, a partir de sua corrente filosófica fenomenológica, campo da filosofia que faz um estudo das essências, como o próprio autor diz, em uma ambição de se tornar uma ciência exata, mas também um relato de vivências de espaço e tempo. 23 Em seu livro Fenomenologia da percepção (1994), originalmente escrito em 1945, Merleau-Ponty constrói uma relação entre o sujeito e mundo, compreendendo o mundo como um campo fenomenal, o meio natural de todos os pensamentos e percepções do sujeito que se conhece como um ser habitante neste próprio mundo percebido, ou seja, um ser-no-mundo. Levanta, portanto, uma crítica ao cogito10 cartesiano, afirmando que o verdadeiro Cogito não define a existência do sujeito pelo pensamento de existir que ele tem, não converte a certeza do mundo em certeza de pensamento do mundo e, enfim, não substitui o próprio mundo pela significação do mundo. Ele reconhece, ao contrário, meu próprio pensamento como um fato inalienável, e elimina qualquer espécie de idealismo revelando- me como ‘ser no mundo’. [...]. Para ver o mundo e compreendê-lo como um paradoxo, é preciso romper nossa familiaridade com ele, suspender, distanciar. Não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente o mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos. (MERLEAU PONTY, 1994, p.9) Partir deste pensamento nos faz compreender que o que temos como visão de mundo se dá a partir de nossa percepção e, portanto, se pudermos de algum modo romper nossa conexão e familiaridade com este mundo percebido através de uma materialização exteriorizada desta percepção, isso pode tornar-se um modo de expandir a própria percepção, enxergar nosso mundo e nossos lugares com outros olhos. 10 Do latim Cogito, ergo sum, esta afirmação que significa “penso, logo existo” foi uma das bases do pensamento filosófico do matemático René Descartes, ao descobrir a certeza da existência do sujeito pensante após pôr em dúvida sua própria existência, em seu livro Discurso do método (1996). 24 No entanto, a construção de nossa percepção não se dá apenas pela nossa relação com o mundo, via sentidos, juízo e atenção, mas também a partir de nossa relação com o outro. Para Merleau-Ponty o mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. (MERLEAU-PONTY, 1994, p.18) Desse modo, pensar nossa experiência sempre relacionada à experiência do outro é afirmar um universo relacional onde nosso conhecimento e nossa lógica de pensamento é o próprio mundo, concebido e reconhecido por nossa intersubjetividade11. O conceito de intersubjetividade do qual mencionamos, desenvolvido pela fenomenologia desde Husserl e Hegel (1931 e 1988), baseia-se essencialmente na ideia de que o único modo de os sujeitos formarem e afirmarem suas identidades pessoais é na condição de que essas identidades sejam reconhecidas por um outro, ou em termos merleau-pontianos, quando se percebe sensível e senciente em seu ser e estar no mundo a partir do outro. De acordo com Merleau-Ponty (1994), sob esse ponto de vista não há um modo de se padronizar a percepção nem esta relação intersubjetiva, pois a relação subjetiva e as associações feitas por cada indivíduo envolvem a construção subjetiva e toda a memória e história vivida pelo sujeito em sua realidade existencial que, por sua vez, se constrói justamente por meio de suas ações no mundo. 11 Para compreender melhor esta relação entre o mundo vivido e percebido e as relações intersubjetivas, ler a dissertação “Leituras do ‘lugar-mundo-vivido’ e do ‘lugar-território’ a partir da intersubjetividade” de Matusalem de Brito Duarte defendida na UFMG em 2006. 25 Ao tentar compreender estas relações de espacialidade do corpo dentro do campo fenomenológico, Merleau-Ponty (1994) propõe além de seu próprio pensamento de esquema corporal, que nada mais é do que um resumo da nossa experiência corporal a partir de nossa interoceptividade, proprioceptividade12, associações operadas pelo corpo, definindo sua noção de esquema corporal como não apenas um resultado destas associações obtidas pelas experiências do corpo, mas uma tomada de consciência de nossa “postura no mundo intersensorial, uma ‘forma’, no sentido da psicologia Gestalt” (MERLEAU-PONTY: 1994, p. 147). Contudo, Merleau-Ponty afirma em seguida que esta mesma compreensão já parece ultrapassada para os psicólogos, pois não basta dizer que o corpo é uma forma, um fenômeno no qual o todo é anterior as partes, sem levar em consideração que esta consciência é dinâmica, de modo que o corpo possui não uma espacialidade de posição, mas uma espacialidade de situação. O esquema corporal é afinal, “uma maneira de exprimir que meu corpo está no mundo” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 147). Esta espacialidade, mencionada pelo autor, é evidenciada pelo corpo através da ação, podendo ser melhor compreendida pela análise do próprio movimento. Levando em consideração o corpo em movimento, podemos ver como ele habita o espaço (assim como o tempo), assumindo-os com uma postura ativa e os retomando em sua significação. Dessa maneira, Merleau-Ponty (1994) nos apresenta o que ele chama de movimento abstrato, diferenciando-o daquilo que ele denomina movimento concreto. O “movimento abstrato é dotado de função simbólica, intencionalidade e significação. Enquanto no movimento concreto o mundo está dado, no movimento abstrato, ele é construído.” (MERLEAU-PONTY, 1994, p.171-172). Nesta afirmação 12 A capacidade proprioceptiva permite a um indivíduo perceber o corpo e suas partes, assim como as ações musculares e movimento das articulações, sendo responsáveis, portanto, pela consciência de movimento e de posição do corpo. A interoceptividade diz respeito a sensibilidade quanto ao que é produzido no interior do corpo. Para um estudo mais aprofundado, ler o livro Neuroanatomia funcional de Ângelo Machado (2006). 26 encontramos outra chave para nossa pesquisa: o corpo e seus movimentos abstratos, poéticos, artísticos, carregados de uma intencionalidade e simbolismo específicos e impregnado de sentidos e que gere uma consciência dessa postura no “mundo intersensorial”. Uma afirmação muito importante levantada por Merleau-Ponty, também de grande relevância para este projeto está relacionada ao corpo em seu estar/habitar no tempo e no espaço, advertindo-nos que “não deve se dizer que nosso corpo está no espaço nem tampouco que ele está no tempo. Ele habita o espaço e o tempo. ” (MERLEAU-PONTY: 1994, p.194). O filósofo reitera que enquanto temos um corpo e por meio deles agimos no mundo, nosso corpo “é” no espaço e no tempo, aplica-se a eles e os abarca, ao invés de apenas estar passivamente presente no espaço, reforçando novamente o caráter ativo deste ser-no-mundo que somos. O espaço e sua percepção apontam interiormente no sujeito a contribuição de sua corporeidade e uma comunicação com o mundo mais antiga que o próprio pensamento, conferindo a ele, por meio desta percepção, um “campo de presença no sentido amplo, que se estende segundo duas dimensões: a dimensão aqui-ali e a dimensão passado-presente-futuro” (MERLEAU-PONTY, 1994, p.357). Ao se aprofundar mais nas noções de espaço e percepção, Merleau-Ponty nos apresenta uma definição clássica13 de percepção espacial para, em seguida, afirmar que ela está distante de dar conta de nossas experiências de espaço, nos fazendo compreender que a percepção espacial é um fenômeno de estrutura compreendida no campo perceptivo, um ato que acontece com a consciência da experiência deste mundo, pois o espaço é existencial, da mesma forma podemos dizer que a existência é espacial, quer dizer, que por uma necessidade interior ela se abre a um ‘fora’ a tal ponto que se pode falar de um espaço mental e de um ‘mundo das significações e dos objetos de pensamentos que nelas se constituem’ [...] 13 Percepção espacial, de acordo com a filosofia e psicologia clássica seria “o conhecimento das relações espaciais entre os objetos e de seus caracteres geométricos que um sujeito desinteressado pode adquirir” (MERLEAU-PONTY, 1994, p.377) 27 Perceber é envolver de um só golpe todo o futuro de experiências em um presente que o rigor nunca o garante, é crer em um mundo. (MERLEAU- PONTY, 1994, p. 394, 399) Assim sendo, a noção de espaço merleau-pontiana se apresenta aberta para as impregnações de significados que o constituem e, ao mesmo tempo, impresso em nossa própria percepção, bem como a dos outros sujeitos que se relacionam e coabitam este espaço. As ações realizadas pelos sujeitos que constroem este espaço estabelecem uma relação intrínseca e oculta com os modos de criação de sentido, permitindo assim a compreensão desta relação intersubjetiva que perpassa os modos de espacialização e a própria relação deste sujeito que Merleau-Ponty denomina um ser-no-mundo. Um pequeno destaque a outra contribuição referente ao espaço é feito ao sociólogo e filósofo marxista francês Henri Lefebvre, em A Produção do Espaço (2006), originalmente La production de l’espace (1974), que nos apresenta algumas contradições deste espaço, e sua própria definição do espaço em si, analisando espaços e modalidades de outras épocas da história, para compreender sua produção e sua virtualidade, seguindo uma linha de pensamento marxista ao pensar no espaço em sua relação com os modos de produção e o produto. Segundo Lefebvre, o espaço não seria nem um “sujeito” nem um “objeto”, mas uma realidade social, um conjunto de relações e formas (LEFEBVRE, 2006, p. 30). Para ele, “o modo de produção organiza – produz – ao mesmo tempo que certas relações sociais, seu espaço (e seu tempo). É assim que ele se realiza.” (LEFEBVRE, 2006, p. 8). O espaço é um produto social e, portanto, o espaço é social e contém relações sociais. Em uma linha teórica que possa dar continuidade aos pensamentos filosóficos sobre o ser estar no mundo e como pensamos nossas relações sociais a partir dele, chegamos a um estudo mais aprofundado no conceito de lugar, fortemente presente nos estudos do geógrafo humanista Yi-Fu Tuan, que traz em suas obras “Topofilia” 28 (1980) e “Espaço e Lugar” (1983), uma interessante discussão acerca da percepção dentro da experiência espacial, partindo de seus significados e seu aspecto relacional com o mundo. As obras de Tuan tratam de conceitos de espaço e lugar sob a perspectiva da experiência, que de acordo com Tuan (1983) “é o termo que abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa constrói e conhece a realidade” (1983, p.9) podendo seguir uma linha que percorre da emoção ao pensamento, da sensação a concepção, em um modo que pode ser representado no esquema visual abaixo (figura 1). Figura 1. Esquema visual sobre a experiência, conforme Yi-Fu Tuan, 1983 Desta maneira, a experiência envolve uma gama de aspectos que se relacionam seja em um contexto mais subjetivo, seja em uma realidade objetiva. Um esquema gráfico simples como este não dá conta de representar as variadas inter- relações entre a experiência quando lida com aspectos mais emocionais e circundam o campo da sensação e aquela que envolve mais o pensamento e os modos de concepção. De fato, para Tuan (1983) os dois contextos, subjetivo e objetivo, estão próximos em um continuum experiencial e ambos são maneiras de conhecer e aprender acerca do que está em nossa volta, pois EXPERIÊNCIA Sensação | Percepção | Concepção Emoção Pensamento 29 a experiência está voltada para o mundo exterior. Ver e pensar claramente vão além do eu. [...] Assim, a experiência implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência. Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele. O dado não pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma realidade que é um constructo da experiência, uma criação de sentimento e pensamento. (TUAN, 1983, p.10) Percepção para Tuan (1980) é tanto, a resposta dos sentidos aos estímulos externos, quando envolve o campo sensorial, como a atividade proposital, na qual certos fenômenos são claramente registrados, no que envolve o campo mais conceitual. A percepção está na relação entre estes dois campos, da sensação a concepção. Em se tratando de espaço e suas relações, Tuan (1983) afirma que esta atividade proposital, o movimento intencional juntamente com a percepção dá aos seres humanos a sua gama de objetos distintos no espaço com os quais ele tem familiaridade. Neste universo de objetos, o lugar se torna uma classe especial nesse espaço, “é um objeto no qual se pode morar.” (Tuan, 1983, p.14). Tuan afirma ainda que o espaço é um termo abstrato para um conjunto complexo de ideias. [...] Contudo existem certas semelhanças culturais comuns, e elas repousam basicamente no fato de que o homem é a medida de todas as coisas. Em outras palavras, os princípios fundamentais da organização espacial encontram-se em dois tipos de fatos: a postura e a estrutura do corpo humano e as relações (quer próximas ou distantes) entre as pessoas. O homem, como resultado de sua experiência íntima com seu corpo e com outras pessoas, organiza o espaço a fim de conformá-lo a suas necessidades biológicas e relações sociais. (TUAN, 1983, p. 39) Estas relações sociais, conformadas pelo homem no espaço, podem gerar sentimentos intensos com o mesmo e com suas qualidades espaciais. O autor nos aponta a cinestesia14, visão e tato como os órgãos sensoriais e experiências que 14 Cinestesia, dentro dos estudos fisiológicos e cognitivos é a consciência (senso-percepção) que temos de nosso corpo acerta da movimentação espacial e seus movimentos musculares. Não confundir com “sinestesia”, o resultado perceptivo de ordem neural, onde, através de um sentido temos a experiência da percepção de outro sentido, ver Rosangella Leote (2016). Para compreender melhor sobre cinestesia dentro de estudos fisiológicos, ler Man on his Nature de Charles Sherrington (1956). 30 melhor permitem aos seres humanos desenvolver estes sentimentos. “Movimentos tão simples como esticar os braços e as pernas são básicos para que tomemos consciência do espaço. O espaço é experienciado quando há lugar para se mover”. (TUAN, 1983, p.13) Seguindo o pensamento de Tuan (1983) o corpo é algo que está no espaço ou ocupa espaço. Afirma que quando usamos as palavras ‘homem’ e ‘mundo’, não pensamos apenas no homem como um objeto no mundo, ocupando parte do seu espaço, mas nele como habitando o mundo, dirigindo-o e criando-o, “o corpo é ‘corpo vivo’ e o espaço é um constructo do ser humano.” (Tuan, 1983, p. 39). Este pensamento dialoga diretamente com Merleau-Ponty no sentido de corroborar com a ideia de que o ser está no centro de seu mundo e este espaço que o circunda se diferencia de acordo com seu esquema corporal, o ser habita este espaço enquanto o espaço o habita. Em se tratando da própria linguagem utilizada por nós, qualquer preposição espacial é necessariamente antropocêntrica, sejam substantivos derivados do corpo humano ou não. A partir da compreensão deste espaço que habitamos e criamos, Tuan (1983) nos apresenta uma clara distinção entre nossa capacidade de agirmos no espaço, aquilo que podemos realizar com nosso corpo, no que ele chama de habilidade espacial e a capacidade de elaborar conceitos de espaço e mundos mentais, mediante nossa percepção e experiência cinestésica, a qual ele denomina conhecimento espacial. Quando este espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar, pois o espaço transforma-se em lugar a medida que adquire definição e significado. [...] no entanto é possível descrever o lugar sem introduzir explicitamente conceitos espaciais. [...] Movemo-nos das experiências diretas e íntimas para aquelas que envolvem cada vez mais apreensão simbólica e conceitual.” (TUAN, 1983, p.151) Se o espaço é ativo, percebido e construído a partir de nosso movimento, o lugar, segundo Tuan (1983) seria uma pausa neste movimento e, ao permitir que uma localidade se torne um centro de reconhecido valor, esta pausa contribui fortemente 31 para a intensidade de seu sentimento de lugar. A este senso de valor e pertencimento dado a um lugar, foi concebido o neologismo Topofilia, por Tuan (1980) referindo-se a um alto grau de laço afetivo do ser humano com o meio ambiente, nos mais variados aspectos, sejam estéticos, emocionais ou sensoriais. A resposta ao meio ambiente pode ser basicamente estética: em seguida pode variar do efêmero prazer que se tem de uma vista, até a sensação de beleza, igualmente fugaz, mas muito intensa, que é subitamente revelada. A resposta pode ser tátil: o deleite ao sentir o ar, água, terra. Mais permanentes e mais difíceis de expressar, são os sentimentos que temos para com um lugar, por ser o lar, o locus de reminiscências e o meio de se ganhar a vida. (TUAN, 1980, p. 107) Certos ambientes, segundo o autor, possuem o poder de despertar sentimentos topofílicos, de modo que à aversão ou ausência desta relação de afeto ele atribui o termo topofobia. Do mesmo modo, seguindo um caminho mais antropológico, encontramos outra abordagem interessante para este trabalho na fala do etnólogo e antropólogo francês Marc Augé em seu livro Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade (1994). Augé (1994) define como lugares antropológicos aqueles caracterizados por uma relação intensa entre o espaço e o social, comportando três aspectos principais - o identitário, o histórico e o relacional – em uma simbologia triádica que permite que o sujeito se identifique no espaço, em sua relação com o outro e com a história comum. Os não lugares seriam, no entanto, o inverso destes lugares, a negação do lugar. 32 Para nos ajudar a compreender este pensamento, é importante investigar o contexto em que estas noções estão inseridas, dentro do que o autor chama de supermodernidade ou sobremodernidade15. De acordo com o Augé (1994), esta supermodernidade é caracterizada com um modo de vida mediado por laços de solidão e, em virtude de suas aceleradas transformações, nos faz voltar a atenção para o aspecto da alteridade, podendo ser pensada sobre três modos transformadores de organização social caracterizadas pelo que ele chama de figuras de excesso: o tempo, o espaço e o ego (figura do indivíduo). Na “figura de excesso tempo” Augé (1994) nos leva a compreensão de que não é apenas a nossa percepção de tempo que está em questão, mas sim o modo como nos apropriamos dele. O acelerar do tempo, devido ao mundo tecnológico da supermodernidade, nos traz um pensamento muito complexo onde o passado recente já se tornou história e a abundância de fatos recentes espetaculariza e ao mesmo tempo esvazia de sentido o presente. Augé afirma que é portanto, por uma figura de excesso – o excesso do tempo – que se definirá primeiro, a situação de supermodernidade, sugerindo que, pelo próprio fato de contradições, ela oferece um magnífico campo de observação e, no sentido lato do termo, um objeto para a pesquisa antropológica. (AUGÉ, 1994, p.32) Outro aspecto marcante deste modo são os excessos de espaço, um fluxo gigantesco de informações e as incessantes transformações espaciais e mobilidades sociais próprias do mundo contemporâneo, que nos leva paradoxalmente a uma noção de que o mundo encolheu. A terceira figura de excesso trata do indivíduo, o ego, que em meio a essa abundância de espaço, se encontra desterritorializado e ao mesmo tempo em que 15 Augé rejeita o uso do termo “pós modernidade” pois ela antropologicamente nos dá a ideia de que houve uma ruptura que na verdade não existe. O emprego do termo supermodernidade indica uma possibilidade de continuidade sem limitações, quebras ou abandono da temporalidade. 33 acredita estar no centro do mundo e se coloca como referência para interpretar as informações que o atravessam. Nascer é nascer num lugar, ser designado a residência. Nesse sentido, o lugar de nascimento é constitutivo da identidade individual [...] o que equivale a dizer que, num mesmo lugar podem coexistir elementos distintos e singulares, sem dúvida, mas sobre os quais não se proíbe pensar nem as relações, nem a identidade partilhada que lhes confere a ocupação do lugar comum. (AUGÉ, 1994, p. 52) Dentro desta sociedade onde impera a velocidade e o consumo é que se encontram os não lugares, materializados em aeroportos, shopping centers, vias expressas, salas de espera e estações de metrô. Estes espaços que coabitamos em determinadas situações sem necessariamente estar em convivência, e onde quem está neles cria uma relação de consumidor ou passageiro, em uma espécie de contrato com a sociedade sendo, portanto, espaços físicos com uma circulação muito grande e rápida de pessoas e bens, na intenção de atender a movimentação da sociedade e apenas satisfazer as necessidades desta supermodernidade. Para este trabalho, que levanta, já em seu título, a hipótese da materialização de espaço e se propõe a incorporar a noção de lugar como algo que vai para além do espaço, é interessante reforçar que as figuras de excesso da supermodernidade, já mencionadas neste trabalho por Augé (tempo, espaço e ego), estão diretamente relacionadas as características principais que definem um lugar antropológico (histórico, relacional e identitário). Se a figura de excesso de tempo nos distancia do passado e esvazia de sentido nosso presente, perdemos, portanto, o caráter histórico dos espaços. Na figura de excesso espaço e ego, o senso de desterritorialidade e a sensação de que somos o centro deste mundo que encolheu, nos retira o aspecto relacional e perdemos o vínculo identitário com determinados lugares pelos quais passamos. Espaços construídos sob a noção das figuras de excesso supermodernas tendem a suprimir o 34 senso de pertencimento necessário para que possamos criar neles uma relação de afeto. Augé (1994) afirma, posteriormente, que os lugares e não lugares podem remeter a duas realidades diferentes: espaços constituídos em relação a um fim e a relação que os indivíduos mantem com ele. Portanto um espaço pode ser classificado como lugar ou não lugar a partir das práticas sociais ocorridas e as relações estabelecidas em cada situação. Partindo do princípio de que este trabalho envolve fundamentalmente o tema espaço, acreditamos que a área de conhecimento voltada para os estudos da arquitetura tem muito a contribuir para o arcabouço teórico que envolve nossa poética. 1.2. Corpo e arquitetura Neste item nos dedicamos a apresentar alguns pensamentos da arquitetura que tratam a relação corpo e espaço, principalmente no que diz respeito a empatia do espaço e seus modos de afeto. Os pensamentos de teóricos da arquitetura que envolvem a espacialidade como foco de análise, têm como principal ênfase o papel do espaço, seja conceitual ou experiencial, na cultura arquitetônica. Os estudos que culminaram em conceitos de espaço e espacialidade estão contidos num campo de conhecimento iniciado por estudiosos alemães durante o século XIX. Estes estudiosos elaboraram uma linha de conhecimento denominada Einfühlung16, que posteriormente foi incorporado nas bases teóricas do movimento da arquitetura moderna. 16 As teorias do Einfühlung, termo que pode ser traduzido por “empatia” ou “sentir com”, foram desenvolvidas e interpretadas de diferentes maneiras por inúmeros estudiosos e dizem respeito basicamente à projeção sentimental presente nos traços que unem o sujeito às coisas do mundo exterior. Um estudo mais elaborado neste sentido se encontra no livro A arte abstrata, de Dora Vallier (1986). 35 Desses pressupostos, e com base nos estudos da filosofia, consiste a compreensão desta condição espacial a partir do corpo em movimento, da forma como estabelecemos a relação entre corpo em movimento e os elementos que compõem uma estrutura espacial, seja em edificações ou na própria estrutura da cidade. Os aspectos da espacialidade são dados pelo corpo da maneira como acontece sua acomodação ao espaço. Em seu artigo Espaço, corpo e movimento: notas sobre a pesquisa da espacialidade na arquitetura, o pesquisador Douglas Vieira de Aguiar (2006) discorre sobre o conceito de espacialidade referindo-o com o grau de encadeamento de dois elementos da arquitetura; o espaço e o corpo ou, em outras palavras, a forma do espaço e o deslocamento do corpo. O conceito de espacialidade, portanto, envolve os conceitos de espaço (geometria) e movimento (topologia). A espacialidade tem uma dinâmica; de acordo com Aguiar (2006) a forma do espaço e o deslocamento do corpo interagem e se modificam mutuamente. A espacialidade portanto, não é neutra, ela pode colaborar ou emperrar o desempenho do corpo. O estudo da espacialidade, portanto, é essencial no âmbito da arquitetura ao propiciar uma avaliação da performance dos espaços a partir das demandas do corpo ou, se quisermos, das demandas da(s) pessoa(s), individual e coletivamente. (...). E é na arquitetura que um conceito mais antropológico de espaço se desenvolve; isso porque é no contexto da arquitetura que o corpo – o corpo humano – se torna a base para a experiência e recepção dos espaços construídos. O papel do corpo é central. Esse novo enfoque na conceituação do espaço arquitetônico e da arquitetura em geral foi influenciado pelos estudos da então emergente psicologia perceptual e da teoria da empatia (Einfühlung). Ambas enfatizavam o papel do corpo e sua predisposição cinestética (kinesthetic) aos processos de percepção e cognição. Nesse contexto o espaço, também na teoria da arquitetura, passa a ser algo definido pelo movimento do corpo; tanto do ponto de vista da ação quanto da percepção. (AGUIAR, 2006. p. 75) Estes pensamentos apresentados por Aguiar dialogam diretamente com o que levantamos filosófica e antropologicamente pelos pensadores Merleau-Ponty, Yi-Fu Tuan, Henri Lefebvre e Marc Augé. Outrossim, pensamos a arquitetura como uma 36 estrutura que reforça nosso processo de percepção, com foco em nosso corpo na ação habitando o espaço ativamente e em constante significação. Estabelecendo outra conexão direta entre corpo e arquitetura, apresentamos também o conceito da arquiteta americana Madeline Gins com o arquiteto japonês Shusaku Arakawa (2002) de “corpo arquitetural”, que nada mais é do que “a conjunção entre o próprio corpo e a arquitetura circundante”. Para este casal de arquitetos, “o corpo é sempre um corpo no espaço, ou melhor, corpo espacializado, portanto é, por necessidade, um corpo arquitetural” (2002, p. 64). Podemos identificar ainda a preocupação com a relação empática17 do espaço corporificado no pensamento de vários teóricos da arquitetura. O arquiteto Peter Eisenman (1990) afirmava que a corporificação intrínseca da arquitetura se transformou para os arquitetos em uma adoção do corpo como um conversor de forças espaciais em afetos corporificados. O afeto nesse sentido tem potencialidade de assumir um papel crucial constitutivo na génese formal do espaço, é o veículo de transfiguração da corporificação. Introduzimos alguns outros conceitos do já mencionado geógrafo Yi-Fu Tuan (1983), ao tratar do espaço arquitetônico e conhecimento, que levanta questões sobre o conhecimento e o nível de consciência do construtor humano, criador do espaço em que habita. Sua resposta para este problema é complexa pois envolve diversos modos de experiência e conhecimento, o aspecto relacional e de afeto nesta criação, pois quando um operário cria um mundo, ele não apenas modifica seu próprio corpo como a natureza exterior. Uma vez terminado o edifício ou o complexo arquitetônico, torna-se, então, um meio ambiente capaz de afetar as pessoas que nele vivem. O espaço construído pelo homem pode aperfeiçoar a sensação e a percepção humana. [...] Outra influência é a seguinte: o meio ambiente construído define as funções sociais e as relações. As pessoas 17 Vale notar que este conceito de empatia, presente em vários campos do conhecimento, dentro do campo da arquitetura diz respeito as implícitas e distintas experiências, assimilações emocionais e estados mentais que são desenhadas por um arquiteto desde a concepção de uma obra arquitetônica. O teórico da arquitetura Juhani Pallasmaa (2013) acredita que os arquitetos, de fato, operam no cérebro humano e no sistema nervoso a partir do mundo material e das construções físicas. 37 sabem melhor quem elas são e como devem se comportar quando o ambiente é planejado pelo homem e não quando o ambiente é a própria natureza. Por ultimo, a arquitetura ‘ensina’. Uma cidade planejada, um monumento, ou até uma simples moradia pode ser um símbolo do cosmos. Na falta de livros e instrução formal, a arquitetura é uma chave para compreender a realidade. (TUAN, 1983, p. 114) Construir, de acordo com Tuan (1983), é em si uma atividade complexa. Estes construtores de espaço, especificamente os arquitetos, tornam os seres conscientes deste espaço e volta sua atenção para diferentes aspectos, desde a visualização de espaços na mente e no papel até a criação de uma forma em que esteja incorporado seu ideal, influenciando diretamente no sentimento humano e seu conhecimento espacial. Cabe a nós ainda um posicionamento com relação ao que Tuan compreende como realidade, a percepção que temos é de que a realidade para o autor é algo que está fora do corpo, elementos externos. Com esta noção ele se distancia um pouco de nosso entendimento de realidade como pertencente também ao corpo, que toca ao mesmo tempo que é tocado pelo mundo e as noções da complexidade, onde o meio ambiente é parte integrante do sistema, não externalizado. Neste universo, Tuan apresenta a analogia da linguagem como um elemento esclarecedor desta questão. A palavra tem a capacidade de intensificar o sentimento, e no mesmo modo, a construção do meio ambiente, sob o viés da linguagem, “tem o poder de definir e aperfeiçoar a sensibilidade. Pode aguçar e ampliar a consciência. Sem a arquitetura, os sentimentos sobre o espaço permanecem difusos e fugazes.” (TUAN, 1983, p. 119) Voltando-se para o mundo moderno – ou supermoderno – Tuan se questiona sobre o espaço arquitetônico e como ele afeta o conhecimento, afirma por conseguinte que não mudaram, nos aspectos importantes, as principais maneiras que influenciam os homens e a sociedade. O espaço arquitetônico continua a articular a ordem social, embora, talvez, com menos estardalhaço e rigidez do que no passado. O ambiente moderno construído ainda mantêm uma função educativa: seus sinais e cartazes informam e dissuadem. A arquitetura 38 continua a exercer um impacto direto sobre os sentidos e os sentimentos. O corpo responde, como sempre tem feito, aos aspectos básicos do plano como interior e exterior, verticalidade e horizontalidade, massa, volume, espaciosidade interior e luz. Os arquitetos, com o auxílio da tecnologia, têm aumentado a gama da consciência espacial humana, criando novas formas ou refazendo as velhas em uma escala até agora não experimentada. (Tuan, 1983, p. 129) Dando continuidade a compreensão deste paralelo entre arquitetura e nossa percepção, podemos acrescentar mais uma referência teórica voltada para a questão imagética contida nesta área de conhecimento, a noção de “imagem poética” levantada pelo teórico da arquitetura Juhani Palasmaa (2013), em seu livro A imagem corporificada – Imaginação e Imaginário na Arquitetura. Palasmaa afirma que a arquitetura é, essencialmente, uma forma de arte relacional e dialética, pois os edifícios tocam nosso corpo e noção de equilíbrio corporal, tensão, propriocepção e movimento. Na verdade os espaços da arquitetura abraçam e abrigam nossos corpos. A imagem de arquitetura é, fundamentalmente, um convite à ação; por exemplo, o piso convida à movimentação e à atividade, a porta é um convite para entrar ou sair, a janela, para olhar para fora, a mesa, para se reunir em volta dela. (PALASMAA, 2013, p. 42-43) O autor apresenta uma compreensão de imagem que, ao contrário da vinculação comumente feita com uma representação ou figura visual, são corporificadas e vivem como parte de nosso senso de existência chegando a conclusão, do mesmo modo que pudemos perceber nas constatações de Merleau- Ponty, de que o espaço é existencial e a existência é espacial. As imagens poéticas são, para ele estruturas mentais que direcionam nossas associações, emoções, reações e pensamentos. [...] A imagem poética da expressão artística é encontrada em maneira totalmente corporificada e emotiva na carne do mundo, é uma experiência internalizada. (PALASMAA, 2013, p. 41) No entanto, uma grande parte dos estudos da arquitetura identificam uma ausência generalizada da experiência do corpo nas teorias do significado na arquitetura. A ênfase dada ao significado e em referências na teoria da arquitetura tem 39 conduzido a uma compreensão do significado como um fenômeno inteiramente conceitual, abstrato. A percepção de espaço sob o ponto de vista experiência, tão valorizada por uma parte dos estudiosos do espaço e da arquitetura, ligada à condição de entendimento de nossas relações com o mundo, parece ter sido reduzida a visualidade em detrimento à própria presença física na construção arquitetônica. Dentro dessa linha de pensamento, as experiências do corpo – não apenas as visuais – não participam do modo aprofundado na elaboração e significação das obras arquitetônicas. Uma grande parte das produções arquitetônicas contemporâneas, de acordo com Palasmaa (2013), tem seguido a tendência de nos seduzir visualmente, ao invés de estabelecer uma relação metafórica existencial e vivida. Além de serem um modo de expandir as funções e demandas corporais humanas, as edificações também são para Palasmaa extensões e projeções mentais, estruturando as experiências existenciais do sujeito através da impregnação de sentidos. Segundo o autor, a arquitetura articula o encontro do mundo com a mente humana. Ela estrutura a “carne do mundo” por meio de imagens espaciais e materiais que articulam e conferem significados a nossas situações existenciais humanas básicas. Uma metáfora de arquitetura é uma entidade experimental extremamente abstraída e condensada que funde a multiplicidade de experiencias humanas em uma imagem vivenciada singular ou em uma sequência de tais imagens. As condensações definitivas do significado existencial são as imagens do cômodo e da casa de uma pessoa. A experiência de ‘estar em casa’ condensa nossos sentimentos de identidade própria, de pertencer a um lugar, de ter segurança e significado.” (PALASMAA, 2013, p. 120) Compreendemos, portanto, que o impacto da arquitetura sobre a experiência humana é incorporado de tal maneira a nível existencial que não pode ser entendido apenas como um elemento de projeto visual. Nesse contexto, a pesquisa da espacialidade vem reconhecendo, de modo crescente, a importância na arquitetura da dimensão cinestética do corpo, individual e coletivo. 40 Nessa linha, o escritor e arquiteto suíço Bernard Tschumi (1995) reitera a importância do papel do corpo como central nessa conceituação de arquitetura. Tschumi aponta a recorrente indiferença ao corpo e sua experiência nos discursos sobre a lógica da forma, ampliando a função do corpo que vá além de apenas se movimentar dentro do espaço arquitetônico, chegando a uma conclusão que já alcançamos em nosso desenvolvimento até agora, que os corpos não apenas se movem no espaço, mas produzem estes espaços por meio da ação e do movimento. Assim sendo, a arquitetura não se torna mais um segundo plano dentro da ação, mas sim a própria ação, visto que as ações do sujeito afetam os espaços do mesmo modo que os espaços afetam as ações subjetivas. Este enfoque, vislumbrado agora dentro de discursos na arquitetura, provoca nos arquitetos um repensar a lógica da forma a partir da consideração das necessidades do corpo. Nos propomos a pensar, todavia, em outros modos de discutir e problematizar a questão das espacialidades do corpo. Consideramos de grande importância apresentar de que forma esse tema é levantado no contexto da arte, apresentando em nosso próximo capítulo, portanto, um panorama de criações artísticas que trabalham com as relações corpo e espaço, para assim compreendê-las sob uma outra ótica. 41 CAPÍTULO 2 CONTEXTUALIZANDO AS ESPACIALIDADES DO CORPO NAS ARTES 42 Dentro do campo das artes encontramos, inicialmente na pintura e escultura, as mais fortes relações estabelecidas em torno da espacialidade. O início do século XX foi marcado por artistas que manifestaram vários desdobramentos e ampliações do entendimento de pintura, escultura e as relações do espaço em suas obras em um campo mais ampliado18. Elementos como o movimento e o tempo destacaram o conceito na fotografia, na produção bidimensional – a exemplo do futurismo e cubismo – bem como na produção tridimensional e na escultura, ao ultrapassar o formato de mero objeto estático, passando a agregar diversas outras linguagens e materiais e se desdobrando em novos fazeres artísticos, como os ready-mades, instalações, site specifics, performances e happenings. Todos com suas próprias especificidades, mas tendo como elemento convergente o uso do espaço. Este capítulo apresenta, portanto, alguns referenciais dentro da história da arte que nos permitem contextualizar e encontrar convergências conceituais e poéticas que se aproximam com nossa proposta. 2.1. Modos de espacialização do corpo nas artes Podemos encontrar como alguns dos precursores de estudos em corpo em movimento por meio da fotografia as primeiras investigações de seres humanos e animais em movimento com distintas técnicas fotográficas desenvolvidas pelo fisiólogo francês Étienne-Jules Marey (figura 2) e pelo fotógrafo inglês Eadweard Muybridge. Com suas cronofotografias19, ambos trouxeram durante o século XX grandes contribuições para o entendimento da espacialização e racionalização do tempo naqueles experimentos que viriam a derivar posteriormente no cinema e na animação. 18 A exemplo disto, temos como grande referência a discussão apresentada por Rosalind Krauss em seu texto “A escultura no campo ampliado” (1984) 19 Cronofotografia é um processo técnico que, por meio de fotografias sucessivas e feitas em intervalos iguais de tempo, dão uma ilusão de movimento, permitindo analisá-lo. 43 Figura 2 - EADWEARD MUYBRIDGE, figura humana em movimento, 1907. A busca pela captura e compreensão dos movimentos do corpo sempre esteve presente nas pesquisas científicas e artísticas destes fotógrafos e suas invenções, influenciando constantemente o modo de se perceber o próprio corpo e internalizar, ou melhor, corporificar, estas descobertas a partir das experimentações técnicas que envolviam o tempo e o espaço, numa constante convergência e diálogo entre a arte, ciência e tecnologia. Estes processos e constructos, como a invenção de um fuzil fotográfico (figura 3), também conhecido como revólver fotográfico, um instrumento com um formato de arma de fogo com cano longo e um disco com furos que permitiam fazer 12 registros fotográficos em apenas um segundo para capturar movimentos como os do corpo humano, já demonstravam um grande desejo de expandir a compreensão das espacialidades e temporalidades do corpo, desenvolvidas por meio da arte. 44 Figura 3 - ÉTIENNE-JULES MAREY, Fuzil fotográfico, 1878. Como já mencionado anteriormente pelo filósofo Henri Lefebvre, o movimento da escola Bauhaus na década de 1920 foi fundamental no processo de se repensar o corpo e a visualidade de seu movimento no espaço. O artista Wassily Kandinsky (figura 4), sintetizava os movimentos do corpo de bailarinos no espaço com apenas algumas curvas e Oskar Schlemmer, através de composições com elementos geométricos em figurinos, moldava espacialmente os corpos em suas experimentações. Aplicadas em construções de cenas e movimentos como as do Ballet Triádico, seus figurinos reformulavam os corpos para evidenciar os trajetos e prolongamentos dos movimentos e sua espacialidade. 45 Figura 4. KANDINSKY. Curvas sobre a dança de Palucca. Berlin, Bauhaus-archiv, 1926. Oskar Schlemmer, com seu balé triádico, traçou novos padrões de movimento para seus dançarinos no palco, a partir dos aspectos espaciais internos e externos ao corpo, através de uma discussão que problematizava e questionava a natureza formal do balé, por meio de figurinos que não só distorciam e restringiam o movimento dos bailarinos, mas também ressaltavam o espaço do palco, no qual eles se moviam. Schlemmer investigou sistemas experimentais para a estruturação, ou seja, instigava os bailarinos a repensar seus movimentos no espaço. Seus protótipos vestíveis geravam uma nova corporeidade nos movimentos de bailarinos sugeriam imagens de inspiração para a arquitetura do futuro e os seres humanos que os habitariam. É o que vemos, por exemplo, em sua produção “Dança das varetas” (figura 5), que propunha uma estrutura vestível criada a partir dos vetores de movimentos do corpo, projetando esses movimentos para muito além de seu alcance corporal. As obras de Schlemmer tornaram-se, portanto, uma espécie de híbrido entre as artes visuais e a dança onde a experiência visual ocorria de modo simultâneo a experiência corporal. 46 Figura 5. SCHLEMMER. Dança das varetas. Berlin, Bauhaus-archiv, 1927 A partir das décadas de 1960 e 1970, com o movimento construtivista e minimalista e os conceitos de instalação, surge um olhar diferenciado dos artistas voltados para a questão do espaço. Então, conseguimos vislumbrar uma série de produções artísticas que problematizaram, destacaram e provocaram reflexões acerca da relação corpo-espaço, seja por meio de vestíveis, instalações, performances ou interfaces multimídias, numa aparente busca de despertar, novamente, o senso de pertencimento do corpo em espaços relacionais. No Brasil, destacamos o diálogo corpo, espaço e arquitetura fortemente presente em trabalhos como os de Helio Oiticica e Lygia Clark20 nas décadas de 60 e 70, dentro do experimentalismo latente de seu tempo, que começaram a percorrer uma trajetória artística que projetava as questões da pintura para o espaço tridimensional. 20 Um maior aprofundamento na relação a obra dos dois artistas com espaço e arquitetura se encontra no artigo Corpo + arte = arquitetura. As proposições de Hélio Oiticica e Lygia Clark, de David Sperlling (2006) 47 Encontramos, no fluxo de suas obras, uma relação dialética intensa com as noções de arquitetura e os aspectos espaciais. Foi na criação de seus “Parangolés” que Oiticica envolveu o corpo na arte interativa da performance, fundindo corpo e espaço através do movimento e do ritmo, conectando aos movimentos gerados por aqueles que os vestiam uma sensação fluida de energias trocadas entre espaço-corpo-tempo, promovendo verdadeiras interfaces do corpo com o ambiente e a música, se tornando um “lugar” fundado pela experiência artística para ser vivido, num espaço criado para ser habitado no vestir. Em seus “Penetráveis”, também, percebemos “[…] o caráter de labirinto, que tende a organificar o espaço de maneira abstrata, esfacelando-o e dando-lhe um caráter novo, de tensão interna.” (OITICICA, 1986: 29). Neles, os espaços-entre, que são espaços de tensão, de infinitas possibilidades, se desenham nos cheios e vazios das ausências e presenças das proposições. Cabe ressaltar que os “penetráveis” de Oiticica têm como maior inspiração as estruturas de organização arquitetônica e os modos de arranjo urbanísticos da periferia, propondo ao participador um deslocar-se por entre esses espaços em uma experiência que brinca com essa organicidade presente nas estruturas da favela21. Do mesmo modo, podemos encontrar em uma série de trabalhos da artista Lygia Clark esta ruptura da concepção clássica de espaço como algo mecânico, cartesiano. Em obras como “A casa é o corpo” (1967-69) (figura 6), “O corpo é a casa” (1968-70) “Arquiteturas biológicas” (1969), Clark coloca o sujeito como elemento estruturador de espaço, entendendo que suas obras se propõem a não mais estar no espaço, mas passando a ser no espaço e até mesmo a experiência corporal adquire um aspecto arquitetural onde o próprio corpo torna-se um espaço vivido, em conexão subjetiva com o mundo. 21 Um excelente estudo foi feito pela professora de arquitetura Paola Jacques, relacionando as obras de Helio Oiticica com as estruturas arquitetônicas contemporâneas em um livro intitulado Estética da Ginga, publicado em 2001. 48 Figura 6. Lygia Clark. Vista da instalação A casa é o corpo, 1968. Fotografia de parte da exposição Lygia Clark: The Abandonment of Art, 1948-1988, no MoMA, NY.22 Dentro deste universo, podemos afirmar que toda a compreensão de filósofos como Merleau-Ponty, Yi-Fu Tuan e Marc Augé – apresentados no primeiro capítulo - tem consonância direta com as propostas de trabalho de Lygia Clark e Helio Oiticica. Assim como os teóricos, os artistas em questão compreendem este espaço vivido a partir da experiência do sujeito no espaço-tempo e, por isso, eleva a relação espectador-obra de arte a um outro patamar, assumindo o ato artístico como campo de experiência, no estabelecimento de uma multimodalidade interativa23. Em sua tese de doutorado, a psicóloga brasileira Mônica Botelho Alvim (2007) elabora uma análise bastante aprofundada da arte de Lygia Clark, dialogando com as obras de Merleau-Ponty e a Gestalt-Terapia. Alvim (2007) afirma que no ponto da carreira em que foi feita a obra “A casa é o corpo”, Lygia Clark seguia fortemente um rumo à experiência corporal sensorial, guiando os participantes a vivencias mais 22 Extraída de http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/07/15/relevancia-de-lygia-clark/. Acessado em fevereiro de 2017 23 Podemos encontrar a expressão multimodalidade interativa, que advém de diversas áreas de conhecimento, aplicada pela artista pesquisadora Rosangella Leote para indicar obras onde “vários modos de estímulos e, consequentemente interação, são colocados à disposição do interator, levando em conta que dessa interação é que a obra se constrói, ou se caracteriza em si mesma.” (LEOTE, 2015, p. 59) http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/07/15/relevancia-de-lygia-clark/ 49 “ousadas” e relacionais, chegando por diversas vezes a envolver contato entre as pessoas por meio dos vários modos de interação em suas proposições. “O espectador, que antes se encontrava ‘aprisionado’ corporalmente na contemplação, agora age no espaço-tempo por meio de uma vivência corporal da obra” (ALVIM, 2007, p. 6-7) e assim a artista transforma em lugares aquilo que poderia ser apenas espaço, a partir de uma ligação de afeto e significação. Em São Paulo, evidenciamos a artista e pesquisadora Anna Barros, que debateu por muitos anos a utilização de lugar ao invés de espaço quando se trata de questões relativas ao campo artístico. Em vários de seus trabalhos, tanto escritos teóricos quanto sua produção prática artística, Barros dá ênfase a ideia de corpo como gerador de lugares, em ambientes tanto "reais" quanto virtuais. (BARROS, 2007 p. 11) Baseando se também nos pensamentos dos arquitetos Shusaku Arakawa e Madeline Gins, de Yi-Fu Tuan, Merleau-Ponty, Mark Hansen e tendo ainda dançado estudado os princípios de Laban, todos adotados também em nossa pesquisa, Barros sintetiza as diversas conceituações que aborda para dar luz ao pensamento de que "seu corpo gera o lugar que habita" (BARROS, 2007 p. 14), com a gama de signos, vivências e transformações que definem seu eu no mundo, em um momento de eterna mudança. Em um trajeto que nos conecta a filósofos antigos e contemporâneos, de Aristóteles a James Gibson, Barros nos indica o corpo como gerador de afeto, comunicado por meio da arte no espaço, que por sua vez também projeta afetividade e se torna um lugar, exemplificado em seus próprios trabalhos, como o “Ri-to-day” (1987), performance híbrida de linguagens que dialoga com a arquitetura do local e transforma o espaço da obra em lugar vivido. Anna Barros menciona em alguns de seus escritos outros trabalhos artísticos, em que destacamos, por possuir uma investigação bem aprofundada em termos espacialidade, “O banho” (2004), da artista da dança Marta Soares, uma instalação coreográfica (figura 3) que ocorre em uma banheira e traz elementos de memórias e 50 doenças do corpo de Dona Yayá, mulher da elite paulistana que teve uma vida marcada por tragédias e viveu os últimos quarenta anos de sua vida manifestando os sintomas de sua doença mental e enclausurada em sua própria casa, na Bela Vista, em São Paulo. Figura 7. Marta Soares. Cena da instalação coreográfica “O Banho”, 2004.24 Destacamos esta obra para discorrer um pouco sobre uma das áreas do conhecimento que de modo mais aprofundado se dedica a compreender as relações entre corpo e espaço, a Dança. A partir de seus estudos tomamos consciência sobre o estar no mundo com nossos corpos, refletidos em seu fazer, nos processos de criação. Processos coreográficos de criação em dança podem ser entendidos como um gradiente que parte de métodos planejados até aqueles improvisados. As coreografias são “escritas de dança” que articulam signos por escolhas pessoais e/ou da tradição, 24 Fonte: http://www.artepluralsp.com.br/marta-soares. Acessado em fevereiro de 2017 http://www.artepluralsp.com.br/marta-soares 51 incorporadas e corporificadas por quem dança para produção de sentido. Abordagens diferentes dentro deste espectro vão desde a mais restrita baseada em movimentos codificados, como o balé clássico, até abordagens mais livres em rotinas improvisadas, presentes na contemporaneidade. Contudo apenas a criação coreográfica não é suficiente para se fazer dança. Há de se considerar o aspecto relacional. A coreógrafa e teórica da dança Isabel Marques (2010) nos apresenta o pensamento de que os corpos, dançando, criam vínculos, tornam-se corpos relacionais, corpos (portanto pessoas) que sabem, querem e prezam a comunicação, o olhar, a consideração e o diálogo com o outro. As redes de relações que podemos propor entre os conteúdos específicos da dança, entre as teorias e práticas, entre pessoas e sociedade também propõem aos corpos dançantes outras possibilidades de diálogo com o mundo. Uma das múltiplas redes de relações que se formam em sociedade está na própria dança, por ser linguagem artística: a dança não é ‘reflexo’ ou ‘espelho’ da sociedade, ela é linguagem, uma forma de ação sobre o mundo. (MARQUES, 2010, p. 138) Citando a teórica da dança britânica Valerie Preston-Dunlop, Marques (2010) compreende a dança como esta articulação de signos, de modo que possamos dizer que sua prática é um processo de corporificação25 desta linguagem própria, não necessariamente ligada a linguagem verbal, sendo, portanto, um processo que “dá forma tangível a ideias” (PRESTON-DUNLOP apud MARQUES, 2010, p.41) Neste contexto, o corpo nos é apresentado por Marques (2010) como criador de espaços e que, por meio da dança, produz sentido ao elaborar sua escrita que traça diálogos, tornando visível sua concepção de mundo. 25 Cabe ressaltar a problemática deste termo. Traduzido do inglês embodiment, o qual tem suas aplicações dentro das mais variadas abordagens e por muitas vezes com diferentes significações. Algumas possibilidades de traduções e usos no português – incorporação, encarnação - também assumem um caráter ainda mais polissêmico, nos remetendo, à primeira vista, a ideia de algo que “vem de fora do corpo e nele se acopla”. Na ausência de um termo que melhor identifique nossa concepção, escolhemos corporificação, que nos parece mais se aproximar à ideia de algo que já está radicado no corpo e nele se materializa. 52 Construções de dança/arte, por serem elas mesmas entrelaçamentos biossocioafetivo-culturais, também produzem espaços a serem lidos de múltiplas maneiras, já que cada corpo-leitor – permeável e múltiplo -, na presença da dança, cria sua própria vivência e percepção espacial. Os eventos de dança são, nessa linha de raciocínio, mais uma possibilidade de dialogarmos com diversos espaços e de revesti-los de sentidos, impregnando, concomitantemente, cada ato cotidiano de sentidos. (MARQUES, 2010, p. 119) Marques (2010) desenvolve suas reflexões sobre estes diálogos entre a construção de dança, suas inter-relações com o espaço e a impregnação de sentidos com base predominantemente nos pensamentos do filósofo e educador Paulo Freire (1982), somados e incorporados por ela aos princípios de Rudolf Laban26 (1966), artista, coreógrafo e pensador da dança que dedicou sua existência a esta investigação, desde sua sistematização, criação, notação até a apreciação e educação. A este conjunto de princípios e estudos, iniciados por ele e desenvolvidos por uma série de discípulos até hoje, denominou-se Coreologia, ou estudos coreológicos27. Entre suas descobertas do corpo em movimento, ele chegou ao conceito de kinesfera, “a esfera de delimitação do espaço pessoal de um corpo que se move” (LABAN, 1966, p.10). Portanto, todo movimento criado pelo nosso corpo está nesta kinesfera, que é na verdade o lugar de semiose do ser, é como ele significa o mundo, ao expor seus movimentos e apresentar os signos que comunicam e dialogam com o meio ambiente. Dentro desta concepção, o corpo também se torna, portanto, um construtor do espaço, na compreensão de que este espaço corporificado “é um 26 Nascido em 15 de dezembro de 1989 em Bratislava, na Eslováquia e falecido em 1 de julho de 1958 em Weybridge, Inglaterra. 27 O termo Coreologia deriva do grego “coreia”, que descrevia as antigas danças em círculo, juntamente com radical grego “logia” que significa tratado, ciência, estudo. O estudo da coreologia, portanto, compreende esta “teoria das leis da dança manifestadas na síntese de experiências espaciais e temporais.” (LABAN, 1929 apud MALETIC, 1987, tradução nossa) 53 aspecto oculto do movimento e o movimento é um aspecto visível do espaço” (LABAN, 1966, p. 4). Os estudos de Laban buscavam compreender um modo de dançar que atendesse todas as potencialidades do corpo no espaço. Após anos estudando as formas de se movimentar do ser humano, identificou o que ele considera uma “ordem coreológica” destes movimentos, como uma lei orgânica que rege a lógica do corpo em movimento. Se aprofundando especificamente nos elementos estruturantes da espacialidade do corpo, criou o sistema de princípios baseados em proporções matemáticas, sólidos platônicos e estudos harmônicos desta espacialidade, a corêutica, como nos mostra a figura 8. Trataremos os princípios de Laban referentes ao fator espaço de modo mais aprofundado no terceiro capítulo deste trabalho, ao tratar da questão mais prática de nossa proposta. 54 Figura 8 - Laban Library and Archive, Três estudantes em um icosaedro no Art of Movement Studio, Manchester, 1949. 28 As artes do corpo de modo geral têm se apropriado desta noção de corporificação para desenvolver estudos que garantam uma maior consciência corporal e sua relação com o meio/espaço. Encontramos hoje estudos aprofundados numa abordagem que investiga a relação entre mente, consciência, espaços internos e externos do corpo e movimento, como o BMC - Body-mind centering, um dos vários métodos de educação somática29 inserido nas práticas principalmente por artistas da dança e por terapeutas para o desenvolvimento da percepção. A instauração de um modo perceptivo corporificado no artista por meio destes métodos gera novos elementos e bases que permitem novas possibilidades de criação, a partir do desenvolvimento destas capacidades proprioceptivas do corpo. É interessante neste momento, retomar brevemente Merleau-Ponty (1992) para afirmar que esta estrutura de pensamento na Dança dialoga com as conclusões apontadas por nós com relação ao filósofo, ao apresentar a própria percepção como uma concepção compreendida na ação do corpo, pois antes da ciência do corpo – que implica a relação com outrem – a experiência de minha carne como ganga de minha percepção ensinou-me que a percepção não nasce em qualquer outro lugar, mas emerge no recesso de um corpo. (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 21). Traçando relações da dança com os estudos da complexidade, trazemos a luz ainda os pensamentos do livro Teoria do conhecimento e arte. Formas de conhecimento: Arte e ciência - uma visão a partir da complexidade, escrito por 28 Fonte: http://www.revistadiagonal.com/articles/analisi-critica/espacio-rudolf-laban/. Acessado em fevereiro de 2017. 29 A educação somática tem por objetivo a busca por uma consciência interior corporal, e agrega um conjunto de distintas práticas e métodos como Feldenkraiss, Eutonia, Ideokinesis e o próprio BMC, cada um com suas estruturas e práticas próprias, mas todos com enfoque no soma - o sujeito. http://www.revistadiagonal.com/articles/analisi-critica/espacio-rudolf-laban/ 55 Jorge de Albuquerque Vieira (2006) em conformidade e com base em diversos autores anteriores que levantaram os conceitos da teoria de sistemas e estudos complexos - Werner Mende (1982), Edgar Morin (2005) - nos direciona novamente ao Laban e suas ideias desenvolvidas acerca da interação entre movimento, espaço e tempo segundo esta atividade artística particular, a Dança. Segundo o autor, a relação espaço/movimento “é o gerador da percepção e da consciência, a evolução é uma história de internalizações dessas relações e, neste sentido, nosso corpo é um tipo de espaço histórico forjado por um contato limitado com o real.” (VIEIRA, 2006, p. 113). Portanto, para Vieira, em concordância com Laban, a dança é exploração e vivência do espaço-tempo, consistindo em um sistema de enorme complexidade e, finalmente consistindo em uma maneira sofisticada de conhecimento. Cabe neste contexto ressaltar que Laban, que tinha grande afinidade com os estudos da arquitetura, relacionou uma gama de aspectos arquiteturais ao movimento, a ponto de afirmar que o próprio movimento é “uma arquitetura viva - viva no sentido de transformar o espaço e sua significação” (LABAN, 1966, p.5). Nos movimentamos conforme nossa estrutura arquitetônica corporal e, de acordo com ele, nosso corpo em movimento pode ser comparado a uma construção que se mantém equilibrada por causa da compensação de forças e tensões30 de suas partes, com a diferença de que, no movimento, há trocas de lugares e coesão. Seguindo as ideias de Platão e as formas de seus sólidos sagrados, Laban explorou as figuras geométricas platônicas e traçou trajetórias a serem acompanhadas pelo corpo em cada uma destas formas, gerando direções, diagonais, níveis e planos no espaço. Laban percebeu que as relações de oposição entre os 30 Sobre esta relação de forças e tensões, cabe mencionar também o princípio de tensegridade, advindo da mecânica e biomecânica e desenvolvido pelo arquiteto, engenheiro e cientista americano Buckminster Fuller em 1961 para definir a capacidade que certos objetos tem de manter sua estabilidade a partir de relações de tração e compressão entre seus elementos estruturantes, dialogando diretamente com os estudos de harmonia espacial de Laban, sempre pensados a partir das relações de tensão e relaxamento. 56 diferentes pontos de sólidos como o octaedro, cubo, icosaedro provocava no corpo tensões e relaxamentos, bem como o permitiu identificar afinidades e desafinidades com outros fatores do corpo em movimento como peso e tempo. Estas contraposições orgânicas presente nos sólidos platônicos garantiam uma certa harmonia espacial, tornando um dos grandes enfoques de seus estudos. Estabelecendo, novamente, conexões com a abordagem sistêmica, esta perda e reorganização de estabilidade nas relações corpo-espaço na dança, apresentadas por Laban, podem ser melhor compreendidas se incorporadas na ideia de crise evolutiva levantada pelo ecólogo Werner Mende dentro de seu conceito de Evolon (MENDE, apud VIEIRA, 2007, p. 116), que “descreve a evolução através de uma crise quando um sistema transita entre dois níveis consecutivos de estabilidade, ou como diria Laban, de tranquilidade”, e se desenvolve em 7 etapas que se inicia em sua crise e vai se organizando até o clímax, onde uma nova metaestabilidade é adquirida. Podemos traçar então um paralelo entre as ideias de Laban, Vieira e Mende, no sentido de afirmar que um sujeito (sistema vivo), ao se ter consciência dos processos de transição (evolon) no seu universo particular e das inter-relações de seus elementos constituintes a partir da visualização matérica de seus movimentos no espaço pessoal (kinesfera), passa a compreender sua estrutura de corpo espacializado (arquitetônico) e dominar sua relação com este ambiente. “Conhecer [e dominar], logo transformar-se, é crescer em complexidade”. (VIEIRA, 2007. p.66) Presentes e incorporadas nos trabalhos de muito profissionais de diversas áreas (antropologia, educação, psicologia, sociologia, comunicação etc.) e, sobretudo nos de artes cênicas, as ideias e estudos de movimento feitos por Laban continuam, cada vez mais, sendo difundidas, apesar de nem sempre serem denominadas como tais. Retornando ao contexto histórico da arte, dentro das referências na área da d