Julia Girnos Elias dE souza Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) jugirnos@gmail.com Érico Bruno Viana campos Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (UNESP) ebcampos@fc.unesp.br A contrAtrAnsferênciA e A importânciA dAs cApAcidAdes do AnAlistA nA práticA psicAnAlíticA contemporâneA Countertransference and the importance of the analyst’s abilities in contemporary psychoanalytic practice Resumo Embora o uso da contratransferência seja um tema po- lêmico e a discussão sobre a participação da mente do analista possa remontar à antiga concepção de aptidão para a tarefa ana- lítica com base em personalidade ou estrutura psicológica, o fato é que a formação do psicanalista envolve a elaboração de seus conflitos inconscientes, tornando conscientes as vias de seu de- sejo e de seus sintomas por meio de um processo de análise pes- soal e de um longo treinamento teórico e técnico no campo da psicanálise. Este trabalho é uma revisão bibliográfica baseada nos estudos sobre a função materna, que tem como objetivo mostrar o caminho de valorização da contratransferência na teoria e téc- nica psicanalítica e a implicação das capacidades do analista no processo analítico. Esse desenvolvimento é tributário da valoriza- ção da função materna como modelo para a relação interpessoal e terapêutica em psicanálise, fruto do paradigma das relações de objeto na tradição da psicanálise inglesa, que tem em Donald W. Winnicott e Wilfred R. Bion dois de seus principais autores. Palavras-chave Contratransferência; Psicanálise; Analista; Clínica Psicanalítica. Abstract Although the use of countertransference is a contro- versial topic and the debate on the participation of the analyst’s mind may go back to the old conception of aptness for the ana- lytical task based on personality or psychological makeup, the fact is that the psychoanalyst’s education involves the elabora- tion of his unconscious conflicts, turning conscious the pathways of his desire and his symptoms through a process of personal analysis and a long theoretical and technical training in the field of psychoanalysis. This study is a literature review based on stud- ies about the maternal function, which aims at showing the path of recovery of countertransference in psychoanalytic theory and technique and the implication of the analyst’s abilities in the ana- lytical process. This development is tributary of the appreciation of maternal function as a model for interpersonal and therapeu- tic relationship in Psychoanalysis, due to the paradigm of object relations in the British psychoanalytic tradition, being Donald W. Winnicott and Wilfred R. Bion two of its main authors. Keywords Countertransference; Psychoanalysis; Analyst; Psychoanalytic Clinic. 124 Impulso, Piracicaba • 24(60), 123-132, maio-ago. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 Introdução Este artigo pretende apresentar alguns dos desenvolvimentos da teoria da téc- nica analítica em direção ao reconheci- mento do manejo contratransferencial como instrumento fundamental do processo psi- canalítico, discutindo a implicação da mente do analista e sua capacidade de continência como competências necessárias para o traba- lho terapêutico e desenvolvimento da análise. Embora o uso da contratransferência seja um tema polêmico, e a discussão sobre a participação da mente do analista possa remontar à antiga concepção de aptidão ou não da tarefa analítica com base em estrutu- ras de personalidade, o fato é que a formação do psicanalista envolve a elaboração de seus conflitos inconscientes, tornando conscientes as vias de seu desejo e de seus sintomas por meio de um processo de análise pessoal e de um longo treinamento teórico e técnico no campo da psicanálise. O intuito deste trabalho é mostrar como, ao longo da história, o desenvolvimen- to da teoria e da técnica psicanalítica foi cada vez mais valorizando os aspectos contratrans- ferenciais do processo analítico, levando a uma maior implicação da mente do analista e de algumas capacidades emocionais muito es- pecíficas, que podem ser genericamente des- critas como sustentação e continência. Esse desenvolvimento é tributário da valorização da função materna como modelo para a rela- ção interpessoal e terapêutica em psicanálise, fruto do paradigma das relações de objeto na tradição da psicanálise inglesa, que tem em Donald W. Winnicott e Wilfred R. Bion dois de seus principais autores. Acreditamos que a importância do olhar proposto sobre o analista e suas capacida- des emocionais justifica-se pela clara influên- cia que elas têm sobre o processo analítico. Freud (2006c), em sua conhecida metáfora entre a psicanálise e o jogo de xadrez, já fa- lava da influência do analista no andamento do processo analítico ao afirmar que ambos os processos (o jogo de xadrez e a psicanáli- se) obedecem às mesmas regras de início e de fim, mas são seguidos de diferentes jogadas intermediárias cujos desfechos serão diferen- tes, dependendo da experiência e criatividade do enxadrista/analista. Desse modo, o analista, ao exercer sua função, assume uma direção efetiva do pro- cesso que está realizando. Ele o faz em sua capacidade de escutar, ao dar o enquadre particular que utiliza para trabalhar na eleição das interpretações e em como as entrega ao paciente. Nesse sentido, dentro do modelo psicanalítico, os objetos da investigação analí- tica fazem parte também da vida psíquica do analista, e isso pode servir tanto para elucidar os fenômenos que ocorrem durante uma ses- são quanto para ocultá-los. Não é somente por meio da comunicação verbal do paciente ou da interpretação do ana- lista que se promove o conhecimento e a estru- turação de si mesmo; isso ocorre também por intermédio de uma relação intensa, íntima, em- pática e prolongada com o analista. Dentro de um ambiente propício, os pacientes revivem, com o analista, uma relação de dependência emocional própria de estágios mais primitivos da vida. Assim como o bebê, o paciente, muitas vezes, é incapaz de comunicar-se verbalmente, mas o faz por meio de uma comunicação silen- ciosa. Quando o profissional não é capaz de compreender o que seu paciente busca no tra- tamento, e persiste em um trabalho que não atende às suas necessidades psíquicas, é fre- quente que o processo terapêutico entre em uma situação de impasse. Diante destas situações, nas quais geral- mente são revividas experiências de angústia por ambas as partes, é essencial que o ana- lista possa observar suas próprias vivências contratransferenciais para analisá-las, a fim de ampliar seu espaço mental, possibilitando um maior contato com a realidade psíquica de seus pacientes. Para isso, o analista pre- cisa apoiar-se em um modelo teórico com o qual possa conceber, não só a natureza das relações transferenciais entre as figuras que preenchem a cena analítica, como também o fenômeno contratransferencial produzido em tal encontro. 125Impulso, Piracicaba • 24(60), 123-132, maio-ago • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 Ao propor um olhar acerca da impor- tância das capacidades pessoais do analista, baseamo-nos na perspectiva de Winnicott e Bion sobre as funções maternas e seu papel na constituição do sujeito, entendendo que a função do analista é permitir a elaboração dos conflitos intrapsíquicos do paciente, fomen- tando funções e conteúdos psíquicos que não foram proporcionados ou desenvolvidos pelo ambiente ao longo do desenvolvimento emo- cional de sua personalidade. Assim, quando o desenvolvimento emocional primitivo falha, o analista pode dar ao paciente a oportunidade de resgate do desenvolvimento e elaboração de seus conflitos estruturantes. Essa possibili- dade de reparação e elaboração das funções e conteúdos psíquicos, por sua vez, será pro- porcionada pela capacidade de manejo do campo transferencial-contratransferencial por parte do analista. Breve comentário histórico sobre a contratransferência O conceito de contratransferência pas- sou por gradativas mudanças ao longo do desenvolvimento da psicanálise e é, ainda hoje, um dos temas mais debatidos na área. Tanto o aprofundamento da compreensão acerca do fenômeno transferencial-contra- transferencial quanto a possibilidade do uso da contratransferência como recurso na tare- fa analítica foram vitais para o avanço da teo- ria e da técnica psicanalítica. Os conceitos de transferência e contratransferência tiveram evoluções históricas semelhantes, já que ini- cialmente esses fenômenos foram encarados como obstáculos e, gradativamente, vieram a ser elementos centrais da técnica psicanalíti- ca. Porém, as ênfases em ambos foram dife- renciadas ao longo desse processo histórico. Diferente da contratransferência, a transferência é assunto recorrente e central na obra freudiana. É nos clássicos artigos so- bre a técnica que o termo ganha o caráter de conceito verdadeiramente psicanalítico, pas- sando a ser incluído na essência da relação terapêutica. Esse é o momento em que Freud (2006b) observa que a transferência tem a função de repetir, na análise, relações pri- mordiais estabelecidas no passado por meio da figura do analista. Desde então, o manejo das interpretações e resistências no contexto da transferência consolidou-se como eixo de todo e qualquer processo psicanalítico. Freud nunca elaborou uma sistemati- zação sobre a contratransferência ou deu ao conceito um papel de destaque em sua teoria da técnica. Ele inaugura a abordagem do tema destacando seu aspecto negativo, considerando-o um obstáculo indesejável no trabalho analítico (FREUD, 2006a), tô- nica que marcou sua obra até o fim. Apesar de considerar que a resposta emocional do analista ao material inconsciente do paciente representava um obstáculo também para o progresso da psicanálise, o autor genialmen- te descreve que os conteúdos inconscientes do paciente podem ser captados pelo ana- lista de uma forma muito singular, ao afir- mar que “o médico deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do pa- ciente. Deve ajustar-se ao paciente como um receptor telefônico se ajusta ao microfone transmissor” (FREUD, 2006b, p. 129). E con- tinua, dizendo: “o inconsciente do médico é capaz, a partir de derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente, que determinou as associações livres do paciente” (FREUD, 2006b, p. 129). Dentro do pensamento freudiano, o di- álogo entre o inconsciente do analista e o do analisando baseia-se na conjunção das asso- ciações livres e da atenção flutuante. Nesse momento, em que o terapeuta não é apenas um simples observador e intérprete do fenô- meno da transferência, Freud passa a assina- lar a importância das condições e preparo do analista para o exercício de suas funções. Pouco foi publicado nos 40 anos que se- guiram ao nascimento do conceito de contra- transferência. Melanie Klein (1946-1963) man- teve o essencial da concepção freudiana de que esse fenômeno constituía um obstáculo na análise. Para a autora, a contratransferên- cia é entendida como uma reação do incons- 126 Impulso, Piracicaba • 24(60), 123-132, maio-ago. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 ciente do analista às fantasias do paciente, que são projetadas nele, de forma que o fe- nômeno contratransferencial aparece como um ruído, uma interferência que precisa ser minimizada. O surgimento de novas ideias acerca dos aspectos positivos da contratrans- ferência fez da década de 1950 um marco na teoria psicanalítica. Dentre estas novas ideias, os trabalhos de Paula Heimann e Heinrich Ra- cker destacam-se pelo uso dado ao fenôme- no contratransferencial, tido pelos autores como instrumento sensível e possivelmente útil para o desenvolvimento do processo ana- lítico (EIZIRIK; AGUIAR; SCHESTATSKY, 2005). Segundo Zimerman (1999), o desenvolvi- mento da teoria da contratransferência foi pos- sível com o avanço sugerido pelo trabalho de Melanie Klein (1946-1963) e de seus seguidores no entendimento de mecanismos primitivos que participam do fenômeno contratransfe- rencial, tais como os processos dissociativos (splitting) e de identificação projetiva. Heinrich Racker considerava que a con- tratransferência poderia operar de três for- mas: como obstáculo, assim como é conside- rado no modelo clássico; como importante instrumento de comunicação e de compre- ensão das relações de objeto do paciente; e como um campo em que o paciente tem a possibilidade de vivenciar uma experiência diferente das que teve originalmente. Já para Heimann, o conceito englobava todas as rea- ções que o analista experimenta diante de seu paciente. Em sua concepção, os sentimentos contratransferenciais originam-se no analista como produto do paciente e, portanto, cons- tituem parte essencial da relação analítica. Nesse sentido, esses sentimentos do analista devem ser reconhecidos, ao invés de nega- dos, pois só assim o analista poderá subordi- ná-los à tarefa analítica (ETCHEGOYEN, 2004). Embora as ideias de instrumentalização dos sentimentos e emoções do analista como fonte de informação sobre o paciente, sugeri- das por Heimann, nunca tenham sido aceitas por Klein, muitos de seus seguidores fizeram uso ampliado do conceito de contratransfe- rência, considerando o fenômeno um estado mental total induzido no analista, resultado da comunicação verbal e não verbal do pa- ciente (ZIMERMAN, 1999). No esteio de um desenvolvimento inde- pendente no âmbito da psicanálise das rela- ções de objeto, e em contraposição a certas proposições do movimento kleiniano, Winni- cott (2000) publica o artigo “O ódio na contra- transferência”, trabalho no qual chamava aten- ção para os sentimentos contratransferenciais, que denomina de objetivos (medo e ódio) des- pertados nos profissionais pelos psicóticos, afirmando a necessidade do profissional ser capaz de odiar objetivamente. No desenvolver de sua teoria, o autor utiliza o termo de forma mais ampla e pensa na contratransferência em paralelo à preocupação materna, fenômeno necessário para que a mãe possa adaptar-se às necessidades de seu filho e ser suficientemen- te boa para seu desenvolvimento. Já Bion (1994), mais próximo da teoria kleiniana, usou pela primeira vez a noção da identificação projetiva como ferramenta de uso na contratransferência, fundamental para a criação de seu modelo relacional continente- -conteúdo, núcleo de seu modelo vincular em psicanálise (ZIMERMAN, 1999). Este par concei- tual foi desenvolvido de modo progressivo pelo autor que, ao expor sua teoria sobre a capaci- dade de pensar, amplia o conceito kleiniano de identificação projetiva para além de uma fanta- sia onipotente, entendendo-o como um meio de comunicação primordial na relação primitiva mãe-bebê, assim como na relação analítica. Considerando a possível instrumentali- zação do fenômeno contratransferencial na prática da clínica psicanalítica, tanto os con- ceitos de preocupação materna primária e mãe suficientemente boa de Winnicott quan- to os conceitos de rêverie e função continente de Bion encaminham-nos para a importância da instrumentalização dos processos mentais do próprio analista para que o trabalho clínico progrida de forma satisfatória (SAFRA, 1995). Winnicott, o ambiente e a sustentação Por meio de sua prática clínica e dos es- tudos sobre a constituição psíquica do sujei- 127Impulso, Piracicaba • 24(60), 123-132, maio-ago • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 to, Winnicott favoreceu o desenvolvimento de teoria psicanalítica no âmbito pré-repre- sentacional das experiências. Para o autor, o objetivo da análise, com alguns pacientes, é proporcionar um ambiente suficientemente bom que se adapte à necessidade que surge do verdadeiro self e dos processos de matura- ção, permitindo o abandono de organizações defensivas e a retomada do processo de ama- durecimento (BARONE, 2011). Winnicott (2005) salienta que existem tendências naturais em direção ao desenvol- vimento e à independência, a não ser que se- jam bloqueadas por falências de cuidados do ambiente. Quando o ambiente não se apre- senta suficientemente bom, o indivíduo passa a reagir à intrusão, fazendo com que os pro- cessos de integração sejam interrompidos e o núcleo do self, ou seja, o self verdadeiro, que é mais próximo à vida pulsional do indivíduo, passa a se proteger. Quando este estado de paralisação no processo de desenvolvimento mantém-se, surge um falso self, construído so- bre a base de uma submissão defensiva. Nesse âmbito do desenvolvimento, o in- divíduo ainda não dispõe de representações mentais, de modo que os afetos são vividos no registro do próprio corpo como agonias intoleráveis de aniquilamento, e não como angústias de castração ou de separação rela- cionadas à situação edípica. Para esses tipos de paciente, a interpretação nem sempre é proveitosa, já que a comunicação acontece de forma diferenciada. Assim, o ambiente torna- se mais importante que a interpretação, e a manutenção de uma situação adaptativa a esse self é fundamental (BARONE, 2012). Sendo assim, a essência da experiência do self reside na vivência da dependência destes cuidados ambientais. O mesmo acon- tece na clínica winnicottiana, de acordo com três etapas: a dependência absoluta, na qual o indivíduo pode apenas sofrer os cuidados do ambiente; a dependência relativa, em que existe algum tipo de consciência em relação ao cuidado e este pode ser relacionado aos impulsos pessoais e, por isso, passíveis de re- produção na transferência e; rumo à indepen- dência, pois o indivíduo é capaz de tolerar a ausência dos cuidados por meio do acúmulo de experiências positivas e da confiança na sustentação do ambiente que lhe foi provido (KHAN, 2000). Inicialmente, o autor vincula o ambiente ao corpo materno como um aglomerado da percepção do bebê sobre os cuidados e sen- sações fisiológicas. À medida que sua própria teoria evolui, transcendendo a dicotomia klei- niana dos objetos parciais, o ambiente winni- cottiano passa a ser uma construção relacio- nal subjetiva, um terceiro subjetivo que inclui o corpo do bebê, a mãe e seus cuidados. Des- sa forma, a mãe deixa de ser um objeto passi- vo da fantasia do bebê para tornar-se propria- mente uma função constituinte do self. Este estado inicial de continuidade entre self e não self, cuja unidade não é o indivíduo isolado, mas, sim, o conjunto ambiente–indivíduo, é essencial para que o indivíduo possa confiar no ambiente (KLAUTAU; SALEM, 2009). Winnicott (1990) notou que os pacien- tes que não obtiveram um ambiente sufi- cientemente bom que gerasse confiança, no qual o verdadeiro self pudesse se constituir, exigiam do processo analítico adaptações es- pecíficas da técnica, de forma semelhante à exigência que é feita à mãe de ser capaz de perceber e adaptar-se às necessidades de seu bebê, chamada, pelo autor, de preocupação materna primária. A preocupação materna primária torna a mãe capaz de identificar-se ativamente com as necessidades do bebê, nutrindo sua oni- potência ao apresentar a ele o que precisa, quando precisa. Esta capacidade de perce- ber às necessidades do verdadeiro self faz-se necessária na prática clínica e torna-se possí- vel a partir da instrumentalização da contra- transferência do analista como uma forma de comunicação potencial. É a partir deste esta- do de sensibilidade, similar à “devoção” ma- terna, que o analista poderá fornecer a sus- tentação necessária para o desenvolvimento de seu paciente. Esta sustentação, ou o holding materno, diz respeito a uma provisão ambiental total 128 Impulso, Piracicaba • 24(60), 123-132, maio-ago. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 que possibilita o desenvolvimento. Segundo Safra (1995), na clínica essa sustentação mater- na fica representada principalmente pela ma- nutenção do setting constante e pela atitude respeitosa, atenta e não intrusiva do analista. Se esta condição for mantida, o analista pode- rá ser concebido, segundo a necessidade de constituição e de amadurecimento do indiví- duo, como um objeto subjetivo que dá suporte às necessidades psíquicas momentâneas. Uma destas necessidades é a de sentir- -se real. Segundo as palavras de Winnicott, “é possível pensar no rosto da mãe como o protótipo do espelho. No rosto dela o bebê vê a si próprio. Se ela estiver deprimida ou preo- cupada com alguma outra coisa, então é claro que o bebê não verá nada além de um rosto” (2002, p. 89). A função espelho, que é basea- da no processo de identificação primária com a mãe ou substituto, tece um cenário afetivo fundamental para que o indivíduo possa inte- grar uma imagem própria. Para o autor, o self não integrado não pode ser observado nem recordado pelo indivíduo, a menos que seja observado e espelhado de volta a ele. A função de apresentar objetos é base para o processo criativo e a experiência de ilusão, estando diretamente ligada com a preocupação primária, uma vez que permite ao indivíduo viver a fantasia de onipotência mantida pelos cuidados constantes e a espe- rança de uma relação viva entre a realidade interna e externa. Contudo, essa experiência depende também da capacidade do objeto de sobreviver. A sobrevivência do analista é expressa principalmente na manutenção da postura ética do profissional (SAFRA, 1995). Se o indivíduo precisar proteger o ob- jeto em virtude de sua fragilidade, ele não o destruirá, e a destruição desempenhará papel central na criação da realidade. Para que o in- divíduo perceba o mundo objetivamente, ele deve experimentar o objeto que sobrevive à sua destrutividade. A sobrevivência do objeto analista conduz ao seu uso, e este uso à sepa- ração de dois fenômenos distintos: a fantasia e o objeto real, fora da área de onipotência (JANUÁRIO; TAFURI, 2011). Segundo Winnicott, “entre o paciente e o analista está a atitude profissional do ana- lista, sua técnica, o trabalho que executa com sua mente” (1990, p. 148). Nesse sentido, um processo analítico suficientemente bom de- pende da habilidade do analista em escutar a comunicação de que seu paciente dispõe e, a partir dela, ser capaz de prover sustentação para que o desenvolvimento do verdadeiro self funcione como espelho e apresente obje- tos para seu uso, gerando um ambiente facili- tador para o desenvolvimento da criatividade e espontaneidade. Portanto, é a partir da valorização da dinâmica contratransferencial, baseada no reconhecimento da centralidade da dinâmica relacional dual mãe-bebê, que a análise sufi- cientemente boa torna-se viável. Esta contri- buição para a teoria da técnica vem no esteio das contribuições no campo da psicanálise das relações de objeto propostas por auto- res ligados ao grupo kleiniano e ao grupo in- dependente. Nesse sentido, esta abordagem da capacidade de escuta do analista também será enfatizada por Bion em sua teoria da mente ao falar da necessidade que o indiví- duo possui de encontrar um continente para suas vivências psíquicas. Bion, rêverie e a continência do analista Ao formular a teoria acerca do pensa- mento, Bion (1994) considerou a mente um instrumento para simbolizar, conter e transfor- mar sensações e sentimentos em elementos psíquicos passíveis de serem pensados, enfa- tizando que esse instrumento nasce e desen- volve-se em função da relação com o outro. Segundo Zimerman (1999), a conceituação de Bion a respeito do continente – mãe ou analis- ta – constitui um dos postulados fundamentais da teoria e da prática psicanalítica atual. Ao longo do desenvolvimento da teoria psicanalítica, houve uma ampliação na valori- zação da sensibilidade e da percepção para os estados da mente mais regredidos, incluindo maior atenção ao próprio estado mental e emocional do analista em função da maneira 129Impulso, Piracicaba • 24(60), 123-132, maio-ago • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 como seu paciente comporta-se na sessão, e emprega, ou não, a linguagem para comuni- car-se (SALVITTI, 2011). Com forte embasamento na teoria klei- niana, a originalidade da colaboração teóri- ca de Bion está na compreensão da relação mãe-bebê como constituinte da mente, de uma forma que o papel materno transcende o prover de cuidados fisiológicos que pos- sam conter a angústia para a provisão de representação mental. Nessa concepção, as pressões produzidas por experiências bru- tas, sem representação, inicialmente não se distinguem de vivências corporais. Algumas destas vivências vão se transformar em fatos mentais, chamados por Bion de elementos β, que não servem para serem pensados, e, por isso, mantêm-se como eventos da mesma na- tureza que os somáticos, ou são expelidos da mente por um processo projetivo de caráter evacuativo, ou ainda transformados em ele- mentos α por meio da função α atuante da mãe (BARROS, 1999). Para Bion, a identificação projetiva, além de ter a função de defesa do aparelho mental proposta por Klein, ou seja, de evacuar um es- tado mental insuportável a partir da fantasia onipotente de que partes indesejadas da per- sonalidade podem ser projetadas para fora de si e para dentro do objeto, tem também a função de causar ao objeto estado mental semelhante ao seu como forma de comuni- cação. Nesse sentido, o bebê projeta a parte perturbadora de sua personalidade na mãe, que, recebendo este conteúdo com sua capa- cidade continente e percebendo tais comuni- cações em seu inconsciente, estabelece certa ordem no caos de sensações e pensamentos, podendo devolvê-la de modo mais tolerável para que o bebê possa internalizar o que era inicialmente seu (MELEGA, 2011). Bion utilizou o termo rêverie para des- crever esse componente da função materna, referindo-se ao estado psicológico que torna a mãe capaz de desempenhar adequadamen- te o papel de continente para as projeções de seu filho. Esse estado psicológico assemelha- -se a um estado de sonho que permite à mãe captar o que se passa com seu filho, não pelos órgãos do sentido, mas pela retomada de uma unidade funcional, vivenciada anteriormente de forma física e fisiológica, elevando essa vivência para o plano da simbolização. Nesse conceito de sujeito que emerge da interação com o outro, a identificação projetiva passa a constituir um acontecimento psicológico in- terpessoal real com o recipiente da identifica- ção projetiva, criando uma nova subjetividade por meio da dialética conteúdo-continente. Nessa dialética, projetor (filho) e recipiente (mãe) entram em um estado que pressupõe a existência de dois sujeitos, embora a subjeti- vidade seja vivenciada simultaneamente com uma intersubjetividade única e como duas subjetividades possíveis (OGDEN, 1996). Acreditamos ser válido aqui diferenciar que ser recipiente de um conteúdo projetado implica um processo passivo, no qual o outro somente recebe, enquanto ser continente diz respeito a um processo ativo, no qual o reci- piente deve ser capaz de acolher, conter, de- codificar e transformar (ZIMERMAN, 2009). A função materna, como instrumento de simbolização da experiência emocional postu- lada por Bion, é responsável, não apenas pela transformação de percepções e emoções brutas em elementos α, como pelo desenvol- vimento destes últimos em diferentes níveis de simbolização e complexidade, bem como por seus distintos usos possíveis. Estes níveis de simbolização seriam: os elementos β, em que não há distinção entre objeto psíquico e objeto inanimado; os elementos α, resultado do exercício da função α, possibilitam a for- mação e uso de pensamentos oníricos; os pensamentos oníricos, os sonhos e mitos; a pré-concepção, um estado de expectativa; a concepção, uma variável que pode ser subs- tituída por uma constante; o conceito, que advém liberto da concepção; o sistema dedu- tivo-científico, que é um conceito que se en- reda em hipóteses por meio da lógica, e, por fim, o cálculo algébrico, que é o extremo da representação simbólica formal (BION, 1997). Todos esses diferentes níveis e usos das formações psíquicas, incluindo fragmentos de 130 Impulso, Piracicaba • 24(60), 123-132, maio-ago. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 funções psíquicas agregadas, gerados pela in- versão da função α e chamados de “objetos bi- zarros” (BION, 1994), podem ser encontrados no espaço analítico, no analisando, no analista ou no par. A fim de encontrar uma categori- zação que facilitasse a compreensão posterior dos processos mentais ocorridos durante a sessão, Bion criou um modelo matemático que chamou de Grade, no qual organizou os níveis de simbolização e seus usos. Dentre estes, Bion enfatizou a importância da elabo- ração simbólica dos primeiros níveis de sim- bolização, já que todos os outros níveis, assim como a própria integração do ego, dependem fundamentalmente da existência prévia dos elementos β e α. (GROTSTEIN, 2010). Na clínica, espera-se que o analista possa servir de continente, emprestando sua função α ao processo analítico, ajudando o pacien- te a dispor de elementos apropriados para o pensamento, permitindo ser alvo das identifi- cações projetivas massivas de elementos β do paciente, para transformá-los em elementos α (BION, 1991). A capacidade de rêverie do analista e a atenção flutuante preconizada por Freud en- contram-se, na medida em que a rêverie tam- bém diz respeito à sua capacidade de dar cur- so livre às suas associações e devaneios, e de relacionar-se com o paciente sem memória, sem desejo ou ânsia de compreensão (BION, 1991). Este estado pressupõe do analista uma disposição para conter estados de não saber, uma abertura ao desconhecido de cada situa- ção e a capacidade de transformar em maté- ria simbólica aspectos dolorosos e insuportá- veis da personalidade (ZIMERMAN, 2011). É imprescindível à função de continência que o analista consiga sobreviver às diversas formas de destruição exercidas pelo paciente, pois, no fundo, nutre a esperança de que o analista sobreviva, sem revidar, sem se de- primir, sem ficar apático e desinteressado, quer dizer, sem abandoná-lo. Essa função de sobrevivência é particularmente importante porque estes ataques provocam reações con- tratransferenciais muito densas e difíceis de serem manejadas. Conclusão Partindo das propostas apresentadas no âmbito de um modelo intersubjetivo de sujeito, o papel do ambiente e, por consequ- ência, das capacidades do analista de prover a ambientação suficientemente adequada para que o processo analítico aconteça passa a ser fundamental. Especialmente diante de situa- ções de ataque, desinvestimento, ruptura ou intrusão, capazes de tornar inoperante a fun- ção de continência e sustentação do analista. Nesses casos, faz-se fundamental a di- ferenciação conceitual da identificação proje- tiva na teoria kleiniana, que tem a finalidade de evacuar no analista o que não quer ou não pode sentir; e certa concepção de projeção discernível nas teorias de Bion e de Winnicott, nas quais o paciente evacua aquilo que ele es- pera que o analista sinta, como única forma que possui de comunicar o que precisa. Nesse sentido, as teorias de ambos os autores con- fluem para a valorização de uma função ma- terna capaz de atuar como receptáculo ativo destas projeções, não apenas suportando e sobrevivendo a elas, mas constituindo e fo- mentando a elaboração psíquica (ZIMERMAN, 2009). Mais ainda, as contribuições de Winni- cott e Bion, de valorização da função mater- na, são fundamentais para uma proposição original sobre a compreensão do vínculo transferencial-contratransferencial, em que a função interpretativa do analista amplia-se de forma considerável, passando a incluir sua mente e seu corpo como um instrumento fun- damental do manejo técnico da análise. Na clínica psicanalítica, assim como em qualquer outra profissão, devemos dispor de certo preparo que possibilite nosso trabalho. Nos primórdios da psicanálise foi postulado que a formação de um analista deve estar sus- tentada em um tripé constituído pelo ensino teórico, pela supervisão e pela análise pesso- al do analista. Os avanços mais recentes, de autores como Winnicott e Bion, mostram-nos que essa formação implica diretamente a sin- gularidade da experiência psicossomática do analista, com todas as suas respostas empá- ticas como um instrumento fundamental da 131Impulso, Piracicaba • 24(60), 123-132, maio-ago • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 técnica, e não apenas como um ruído ou inter- ferência que deve ser suplantado por meio da auto-observação sistemática que reconheça a emergência de fantasias inconscientes, fruto, fundamentalmente, de processos do analista. Portanto, são contribuições fundamentais para pensar o processo psicanalítico como uma ati- vidade intersubjetiva criativa e engajada. Referências BARONE, K. Winnicott e a posição ética do analista. Impulso, Piracicaba, v. 21, n. 52, p. 75-86, 2012. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2012. BARROS, E. M. da R. O inconsciente e a constituição de significados na vida mental. Psicologia USP, São Paulo, v. 10, n. 1, 1999. 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Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (2007), Especialista em Psicoterapias de Orientação Psicanalítica pelo Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (2012). Érico Bruno Viana Campos Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (UNESP). Graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (2002), mestrado (2004) e doutorado (2009) em Psicologia pela Universidade de São Paulo. É professor assistente doutor do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita em Bauru. Recebido: 25/02/2013 Aprovado: 06/05/2014