UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA INSTITUTO DE ARTES – UNESP – SÃO PAULO RONALDO APARECIDO DE MATOS OS CANTOS DA COMPANHIA DE REIS FERNANDES DE OLÍMPIA – SÃO PAULO. SÃO PAULO-SP 2016 RONALDO APARECIDO DE MATOS OS CANTOS DA COMPANHIA DE REIS FERNANDES DE OLÍMPIA – SÃO PAULO. Orientador: Prof. Dr. Carlos Di Stasi. Co-orientador: Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda. SÃO PAULO-SP 2016 Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Música. Área de Concentração: Educação Musical, Etnomusicologia e Musicologia. Linha de pesquisa: Abordagens históricas, estéticas e educacionais do processo de criação, transmissão e recepção da linguagem musical. Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Di Stasi. RONALDO APARECIDO DE MATOS OS CANTOS DA COMPANHIA DE REIS FERNANDES DE OLÍMPIA – SÃO PAULO. Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em música. Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Di Stasi. São Paulo, 27 de junho de 2016. Banca examinadora: ________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduard Di Stasi. (Orientador) _________________________________ Prof. Dr. Alexandre Francischini (Membro titular) __________________________________ Profa. Dra. Suzel Ana Reily (Membro Titular) Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP M433c Matos, Ronaldo Aparecido de. Os cantos da companhia de Reis Fernandes de Olímpia – São Paulo / Ronaldo Aparecido de Matos. - São Paulo, 2016. 309 f.: Il. Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Di Stasi Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Folia de Reis. 2. Reis Magos. 3. Música – Olímpia (SP). 4. Folclore brasileiro. I. Stasi, Carlos, 1963-. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 781.72 Em memória de Sebastião Togliori, por sua fé e dedicação inabalável à Companhia de Reis Fernandes e aos Santos Reis. AGRADECIMENTOS Primeiramente a todos os foliões da Companhia de Reis Fernandes e seus familiares pela convivência, paciência e disposição em compartilhar as tantas experiências de vida ao longo destes anos. Em especial aos foliões Gessi, Dorival, Rubens (Rubinho), Rubens (Bin), Roberto (Bel), Benedito (Brás), Sebastião (Tião da Viola), Sebastião (Tião Zé), Aparecida (Dona Zeti), Rubens (Boquinha) e Natal (Boy) pela atenção, generosidade e disposição durante as conversas, entrevistas e visitas. Este trabalho é fruto da dedicação e devoção de todos vocês frente à Folia de Reis e aos Três Reis Santos. Ao Sr. Nilson Fernandes pela oportunidade em acompanhar a sua Companhia e também pela disposição em compartilhar arquivos, documentos e anotações do seu acervo pessoal. Sou muito grato pelas conversas, ensinamentos e principalmente por compartilhar sua história e a de sua família sempre de forma simpática e receptiva. Aos devotos e demais pessoas pela acolhida e hospitalidade em suas casas. Sua compreensão e cooperação foram fundamentais a este trabalho. Ao meu grande amigo Pedro Victorasso pelas conversas sobre nossos respectivos estudos sobre as folias de reis e também por sua colaboração em diversos momentos da minha inserção em campo. À Direção do Museu de Folclore e História de Olímpia pela disponibilização de seu acervo e documentos. À UNESP Instituto de Artes pela oportunidade concedida em realizar essa pesquisa. Ao Prof. Dr. Carlos Stasi pela orientação e atenção dedicada a esta pesquisa. Sou extremamente grato por tudo. Ao Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda pelas sugestões de leitura, conversas e críticas durante o meu processo como mestrando. Aos Profs. Drs. Alexandre Francischini e Wladimir Mattos pela atenção e principalmente pelos apontamentos efetuados durante o exame de qualificação, que foram cruciais para lapidar e concluir este trabalho. A todos os funcionários(as) da Secretaria de Pós-Graduação em Música da UNESP, pela atenção em todos os momentos. Aos colegas da pós-graduação por compartilhar as dúvidas, frustrações e experiências como pesquisadores. Aos companheiros dos projetos musicais Samba 172 (Robson, Thiago e Fernando) e Ponto Enredo (Cezar, Eduardo, Raphael, Ana, Robson e Guilherme) pela paciência, apoio e compreensão durante essa etapa. A todos os meus amigos de Olímpia e Londrina pela parceria de tantos anos e pelo incentivo durante a elaboração do trabalho. Ao amigo Sávio Cavalcante pela crucial ajuda em ler e apontar sugestões a esta pesquisa em sua fase final. Muito obrigado! Aos meus queridos pais Rubens e Jael pela acolhida, cuidado e carinho durante esta importante etapa de minha vida. Muito obrigado por tudo! À minha amada companheira, amiga e confidente Mariana Piovani, que por tantas vezes me ouviu, me aconselhou e me incentivou nas horas de dificuldade, que por sinal não foram poucas. Muito obrigado por ser esta pessoa maravilhosa! Esta conquista com certeza é sua também! A todos os demais que direta e indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho e que não foram citados. “A gente vê, a gente ouve, a gente quer, mas será que a gente sabe como é? Quem tá de longe pode não gostar, não entender e até censurar. Quem tá de perto diz que apenas é cultura, crença, tradição e fé.” (Criolo – Diferenças). MATOS, Ronaldo. OS CANTOS DA COMPANHIA DE REIS FERNANDES DE OLÍMPIA – SÃO PAULO. 2016. 323 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2016. RESUMO A dissertação aborda a constituição do sistema musical da Companhia de Reis Fernandes, da cidade de Olímpia, Estado de São Paulo, buscando a compreensão da sua relação com os princípios religiosos e saberes musicais de seus praticantes. Tomando o ritual desse grupo de Folia de Reis como base para observar as relações entre os cantos dedicados aos Três Reis Magos (Gaspar, Melchior e Baltazar), além de outras cantigas, e aqueles que os praticam, buscamos evidências das suas principais características, dos procedimentos e das concepções que não só estruturam a prática musical como também validam as experiências de fé. No que se refere ao aspecto etnográfico, a pesquisa se fez sob uma perspectiva metodológica integrativa, com o pesquisador atuando como observador participante durante as práticas rituais da Companhia de Reis Fernandes, no período entre 2014 e 2016. Palavras-chave: Folia de Reis; Cantos de Reis; Companhia de Reis Fernandes; Olímpia; Reis Magos. MATOS, Ronaldo. THE COMPANHIA REIS FERNANDES’ SINGING FROM OLÍMPIA – SÃO PAULO. 2016. 323 pp. Dissertation (Master in Music) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2016. ABSTRACT This research addresses the musical system formation of Companhia Reis Fernandes, from the city of Olympia, State of São Paulo. The aim is to understand the group’s relationship with its practitioners’ religious principles and musical knowledge. Considering this group`s ritual as the base to analyze the relationship between singing dedicated to the Three Magi (Caspar, Melchior and Balthasar), and other songs, and those who practice it, we intend to find evidence of their main characteristics, procedures and conceptions that not only structure the musical practice but also validate the experience of faith. With regard to the ethnographic aspect, this research has been carried out from an integrative methodological perspective, with the researcher acting as a participant observer during the ritual practices of Companhia Reis Fernandes, between 2014 and 2016. Keywords: Folia de Reis; Cantos de Reis singing; Companhia de Reis Fernandes; Olímpia; Kings of Magi. SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................... 18 CAPÍTULO I – APRESENTANDO AS CATEGORIAS NATIVAS..................... 39 1.1 A Companhia de Reis Fernandes – panorama histórico............................. 39 1.2 O conjunto de crenças e símbolos............................................................... 48 1.3 As trocas de bens materiais e espirituais.................................................... 70 1.4 As dinâmicas do giro.................................................................................... 76 CAPÍTULO II – DESCRIÇÃO DOS RITUAIS DE FOLIA DE REIS................... 80 2.1 De encontro aos Três Reis Santos.............................................................. 80 2.2 Por uma promessa: as jornadas de 2014 à 2016........................................ 84 2.2.1 Preparação............................................................................................... 84 2.2.2 No giro com a Folia................................................................................... 88 2.2.3 Dia de Reis............................................................................................... 97 2.2.4 Dia da chegada......................................................................................... 102 CAPÍTULO III – OS CANTOS DE REIS............................................................ 114 3.1 A relação entre toada e fundamento........................................................... 114 3.2 O sistema mineiro........................................................................................ 139 3.3 O ofício do embaixador................................................................................ 153 3.4 Os cantos de reis no ritual........................................................................... 158 CONCLUSÃO.................................................................................................... 178 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................. 186 ANEXOS........................................................................................................... 190 Anexo 01 – Transcrições: Repertório de cantos da Companhia de Reis Fernandes…………………………………………………………………............... Legenda – Notação musical……………………………………………………...... Observações prévias……………………………………………………………...... Canto I – Retirada da Bandeira, Chegada, Pedido de Pouso, Pedido de Janta, Promessa e Louvação de Presépio........................................................ 191 192 194 197 Canto II – Agradecimento de Oferta, Promessa, Pedido de Janta e Despedida......................................................................................................... Canto III – Agradecimento de oferta e Promessa............................................. Canto IV – Família Reunida, Chegada e Louvação de Presépio...................... Canto V – Canto para Falecido......................................................................... Anexo 02 – Transcrições: Música instrumental........................................... CORTEJO - Toada Instrumental....................................................................... MARMELADA - Dança do Fardado.................................................................. Anexo 03 – Entrevistas………………………………………………………….... Entrevista 01 – Rubens Toledo de Matos………………………………………... Entrevista 02 – Gessi Aparecido.............……………………………………….... Entrevista 03 – Sebastião Soares.............……………………………………..... Entrevista 04 – Rubens José de Carvalho……………………………………..... Entrevista 05 – Benedito Brás dos Santos.......………………………………….. Entrevista 06 – Roberto José de Carvalho………...........……………………….. Entrevista 07 – Nilson Fernandes………………………………………………... Anexo 04 – Exemplos Musicais (Audios e Vídeos)………………........…….. 224 241 260 280 294 295 300 301 302 306 308 310 315 318 321 323 LISTA DE FIGURAS Figura 01: Celso Fernandes. Fundador da Companhia de Reis Fernandes 40 Figura 02: Companhia de Reis Fernandes em visita às casas de devotos na zona rural de Olímpia................................................................................ 41 Figura 03: Sr. Sebastião Togliori. Segundo embaixador da Companhia de Reis Fernandes a partir de 1991................................................................... 45 Figura 04: Sr. Nilson Fernandes. Terceiro embaixador e gerente da Companhia de Reis Fernandes, a partir de 2013.......................................... 47 Figura 05: Presépio de residência do Jardim Canterville.............................. 56 Figura 06: Presépio de residência do Jardim Cizoto.................................... 57 Figura 07: Presépio de residência do Bairro COHAB II................................ 57 Figura 08: Fardados no dia da chegada....................................................... 59 Figura 09: Bandeira da Companhia de Reis Fernandes............................... 61 Figura 10: Devota segurando a bandeira da Companhia............................. 64 Figura 11: Itens pessoais dos devotos fixados na bandeira......................... 65 Figura 12: Fardados junto à bandeira........................................................... 66 Figura 13: Organização dos foliões, devoto e símbolos durante o ritual..... 67 Figura 14: Fardados ajoelhados junto à bandeira........................................ 92 Figura 15: Ritual da Companhia de Reis Fernandes durante o terço......... 100 Figura 16: Mesa posta para a última janta do giro........................................ 101 Figura 17: Corte das carnes......................................................................... 102 Figura 18: Tempero às carnes...................................................................... 103 Figura 19: Bebidas arrecadadas durante o giro............................................ 103 Figura 20: Limpeza e organização do local onde ocorreu a preparação dos alimentos................................................................................................. 104 Figura 21: Vista externa da festa da chegada.............................................. 106 Figura 22: Devotos representando a figura dos Três Reis Magos............... 107 Figura 23: A Companhia de Reis Fernandes louvando os três arcos de bambu............................................................................................................ 109 Figura 24: Festa da chegada: distribuição dos alimentos............................. 110 Figura 25: Toada: célula rítmica básica........................................................ 117 Figura 26: Variações rítmicas da toada........................................................ 118 Figura 27: Variações rítmicas da toada na caixa e pandeiro........................ 118 Figura 28: Variações rítmicas da toada na viola caipira, cavaquinho e violão.............................................................................................................. 119 Figura 29: Afinação da viola caipira – cebolão (em Mi maior)...................... 122 Figura 30: Afinação do cavaquinho – cebolão (em Mi maior)....................... 123 Figura 31: Fôrma dos acordes executados na viola caipira......................... 125 Figura 32 – Fôrma dos acordes executados no cavaquinho........................ 125 Figura 33: Afinação do violão....................................................................... 126 Figura 34: Fôrmas dos acordes executados no violão................................. 126 Figura 35: Exemplo de harmonia executada pelos instrumentos de cordas da Companhia................................................................................................ 128 Figura 36: Viola caipira – relação das cordas............................................... 129 Figura 37: Relação intervalar das funções vocais dos nativos..................... 130 Figura 38: Solo introdutório dos cantos, executado pela viola caipira......... 132 Figura 39: Solo de conclusão dos cantos, executado pela viola caipira...... 133 Figura 40: Linha melódica do mestre – Canto II........................................... 134 Figura 41: Organização vocal do sistema mineiro........................................ 142 Figura 42: Organização vocal do sistema paulista....................................... 142 Figura 43: Organização vocal do sistema baiano......................................... 143 Figura 44: Organização instrumental do sistema mineiro............................. 1 143 Figura 45: Organização instrumental do sistema paulista............................ 144 Figura 46: Organização instrumental do sistema baino................................ 144 Figura 47: Adaptação dos foliões para o procedimento de sobreposição das vozes....................................................................................................... 151 Figura 48: Canto I – toada de reis composta por Nilson Fernandes............ 169 Figura 49: Canto II – toada de reis. Autoria desconhecida........................... 170 Figura 50: Canto III – toada de reis. Autoria desconhecida.......................... 171 Figura 51: Canto IV – toada de reis. Autoria desconhecida......................... 172 Figura 52: Canto V – canto para falecido. Autoria de Celso Fernandes....... 173 LISTA DE MAPAS Mapa 01 – Localização da cidade de Olímpia no Estado de São Paulo e Brasil.............................................................................................................. 39 LISTA DE QUADROS Quadro 01: Hierarquia das entidades que integram a cosmologia do ritual. 51 Quadro 02: Cosmologia do nascimento do Menino Jesus na perspectiva da Companhia Fernandes............................................................................. 58 Quadro 03: Esquema de relação de trocas de bens materiais e espirituais. 71 Quadro 04: Tipos de trocas estabelecidas no ritual das folias de reis.......... 72 Quadro 05: Toada como sistema harmônico................................................ 127 Quadro 06: Sobreposição das vozes no sistema mineiro............................. 146 Quadro 07: Adaptação vocal do sistema mineiro adotada pela Companhia Fernandes...................................................................................................... 149 18 INTRODUÇÃO A folia de reis1 é uma manifestação cultural religiosa caracterizada pela representação do episódio bíblico que narra a jornada dos Três Reis Magos2 ao encontro do Menino Jesus3. A crença nas divindades que integram esta narrativa é ressignificada em um ritual que envolve principalmente conduta religiosa, prática musical e encenação. Esse ritual ocorre basicamente por meio de uma relação tripartite, que é estabelecida entre o santo (Três Reis Magos), aqueles que creem no santo (devotos) e os integrantes do grupo de folia de reis (foliões), que são os que representam e ‘dão voz’ à entidade. Cada uma destas partes elencadas cumpre funções distintas e complementares entre si, baseadas, segundo Brandão (1981), em trocas simbólicas de bens materiais e espirituais. Resumidamente, temos os devotos que ofertam bens materiais (donativos) em troca de bens espirituais e a folia de reis que recebe estas ofertas e, como mensageiros dos Santos Reis, intercedem os pedidos dos devotos junto à entidade para que os mesmos se concretizem. Para atender esta demanda de interações entre o devoto e os Três Reis Magos, os grupos de folias de reis se baseiam em um repertório de cantos que caracterizam e validam as situações de mediação que surgem durante o ritual. Esses cantos, além de viabilizar as trocas materiais e espirituais, há pouco mencionadas, também propiciam parâmetros fundamentais para a organização das etapas do ritual, a definição das funções e as condutas dos foliões durante a prática musical. Levando em consideração essa constatação, tomei-a como uma fértil possibilidade para melhor compreender as folias de reis, principalmente através da relação entre música e devoção. 1 Os grupos de folias de reis olimpienses denominam-se como Companhia de Reis, Companhia (abreviatura da denominação anterior), Terno de Reis ou Folia (abreviação do termo Folia de Reis). 2 Denominados como Gaspar, Balthazar e Melchior. No contexto olimpiense são também retratados como: Reis Magos, Três Reis Santos, Três Reis do Oriente, Santos Reis e Magos do Oriente. 3 É a denominação de Jesus Cristo durante sua infância, descrita nos Evangelhos de São Matheus e São Lucas, no Novo Testamento da Bíblia Católica. 19 É preciso salientar que, no contexto das folias de reis, o sentido do termo ‘devoção’ está relacionado não somente à adoração das figuras sagradas que constituem sua cosmologia (Deus, Família Sagrada e Três Reis Magos), mas também na crença de que a própria prática ritual, consolidada através dos cantos de reis, é capaz de proporcionar melhorias à vida das pessoas nela envolvidas. A partir dessa delimitação, a pesquisa teve como objeto de investigação a prática musical realizada no ritual das folias de reis, exclusivamente de um grupo situado na cidade de Olímpia4, denominado Companhia de Reis Fernandes. Tive como primeiro recorte de investigação os cantos de reis manifestados no ritual do grupo, a fim de compreender o imbricamento entre as estruturas musicais e os valores cristãos. Determinei como objetivo central desta pesquisa a investigação e descrição do sistema musical que constitui os cantos da Companhia de Reis Fernandes e a compreensão de sua relação com os princípios religiosos e morais de seus praticantes. A partir dessa expectativa primária, delimitei como objetivos específicos da pesquisa: a) identificar os tipos de cantos e estabelecer a relação de cada um destes com as etapas do ritual; b) estabelecer as características e procedimentos que constituem o sistema musical do grupo; c) demonstrar os princípios religiosos e morais que regem a prática musical do grupo. Adotei como método de pesquisa a etnografia do ritual da Companhia de Reis Fernandes, que, por meio da pesquisa de campo, possibilitou observar os atores sociais envolvidos, os procedimentos, as funções e as características que integram sua práxis. Posteriormente, a convite dos foliões integrei-me à prática musical do grupo. Por meio dessa experiência de observação participante foi possível notar as particularidades musicais de cada um dos foliões e partilhar das experiências coletivas de fé constituídas entre a Companhia e os devotos de Santos Reis. 4 Olímpia está localizada na região noroeste do Estado de São Paulo, no Aquífero Guarani. Situa-se a 430 km da capital São Paulo e possui uma área territorial de 804 km². Sua população é estimada em 53.360 habitantes (IBGE, 2015). 20 Durante a pesquisa de campo, com o intuito de verificar a relação entre o sistema musical e os valores religiosos e morais dos praticantes, realizei a análise e a comparação das sucessivas práticas rituais da Companhia de Reis Fernandes ocorridas durante o recorte temporal estabelecido. Desta forma foi possível compreender: os tipos de cantos; o conteúdo textual dos versos em cada ocasião do ritual; as características de cada função (vocal e instrumental); os princípios religiosos (a cosmologia que rege a manifestação, os símbolos do ritual, a crença nos Santos Reis e o modo como interpretam e expressam a narrativa bíblica que caracteriza a manifestação); os saberes musicais dos praticantes (o aprendizado, o aperfeiçoamento dentro da prática musical, as habilidades individuais de adaptação e improviso durante a prática musical). Inserido em campo, notei que a prática musical manifestada pelo grupo estudado se baseia em recursos do sistema tonal tradicional. Características como afinação, tonalidade, base harmônica, métrica, sobreposição de vozes e forma são alguns dos elementos musicais presentes em sua prática musical, que são nitidamente influenciados por conceitos e práticas do sistema tonal. O diferencial das características musicais em relação à tradição musical tonal são as categorias de conceitos e regras que os foliões utilizam não somente para designar cada um dos elementos elencados, mas também para transmiti-los oralmente e praticá-los durante o ritual. Através dessas categorias nativas foi possível discutir os significados, os comportamentos e os fenômenos sonoros presentes no ritual da Companhia de Reis Fernandes. A respeito das transcrições, adotei como referência a notação tradicional, em vista das características tonais que a prática musical da Companhia apresenta, porém, concedi uma ênfase nas singularidades (modo de tocar e cantar) de cada folião e nas características próprias de seu sistema (afinação, expressão, timbre e forma). Considerando que as partituras são apenas indícios do que realmente ocorre em uma prática musical, os exemplos musicais utilizados no decorrer do trabalho foram atrelados a descrições e contextualizações. A fim de esclarecer as características específicas da prática musical dos foliões, fiz uso de legendas e sinais complementares à notação tradicional, visando proporcionar ao leitor maiores indícios sobre o modo como as estruturas musicais são manifestadas pelos foliões e de que modo estão relacionadas às etapas ritualísticas. 21 Com base nas anotações de campo, na análise e na transcrição dos dados coletados sobre as diversas práticas musicais da Companhia (fotos, áudios e vídeos), elaborei um modelo de entrevista semi-estruturada, constituída de questões que buscaram captar informações complementares a própria observação e registro audiovisual, como por exemplo: a experiência musical prévia, o gosto musical, o procedimento de adesão à Companhia, o processo de aperfeiçoamento como folião e também a concepção de fé nos Santos Reis. Além disso, durante a aplicação da entrevista, que ocorreu de modo individual, estabeleci questões específicas a cada integrante, levando em consideração sua função, tempo de atuação como folião e habilidades musicais dentro da prática ritual do grupo. O processo de observação e análise dos dados proporcionaram importantes indícios sobre as regras e características do sistema musical adotado pela Companhia Fernandes: o sistema mineiro. Trata-se de um sistema de organização musical caracterizado principalmente pelo número de vozes que constituem os cantos de reis: mestre, contramestre, ajudante de contramestre, contrato, quarta voz, quinta voz e requinta (ou tala). Têm como instrumentos musicais característicos: viola caipira, violão, cavaquinho, pandeiro e caixa. Há folias olimpienses desse estilo que incorporam outros instrumentos como o pandeiro meia-lua, chocalho e triângulo. Os foliões da Companhia Fernandes comentaram também sobre a sanfona e o violino como sendo instrumentos característicos a esse estilo, mas que devido à escassez de instrumentistas aptos a executá-los acabaram sendo abolidos do instrumental característico do sistema mineiro. Também foram apontados pelos foliões outros tipos de sistemas musicais característicos das folias de reis olimpienses. Um deles é o sistema baiano que é constituído de duas vozes, mestre e contramestre. Tem como instrumentos musicais típicos a viola caipira, violão, caixa, pandeiro e flautas. Suas principais características são: a utilização de andamento mais acelerado durante a prática dos cantos de reis; interlúdios de flauta entre as estrofes de versos entoados; maior destaque, tanto de intensidade, quanto de variação rítmica, dos instrumentos percussivos; não possui a figura do fardado5 em sua 5 O nome mais recorrente para esta função é a de palhaço ou bastião, principalmente nos trabalhos a respeito do tema, porém, no contexto nativo estudado a referência predominante é 22 formação. O outro é o sistema paulista, caracterizado por quatro vozes, duas delas entoando os versos e duas delas complementando os versos posteriores. A instrumentação é similar a do sistema mineiro. É importante ressaltar que, apesar do relato dos foliões sobre o sistema paulista como sendo um estilo de folias de reis característico da cidade de Olímpia, durante a pesquisa de campo não foi possível estabelecer nenhum contato com esse tipo de folia de reis. Apesar disso, julguei pertinente, durante o trabalho, demonstrar a perspectiva dos foliões a respeito desse tipo de organização de folias de reis. O recorte temporal que a pesquisa abordou, de 2014 a 2016, retratou um momento de transições e mudanças repentinas na Companhia de Reis Fernandes. Em meados de dezembro de 2013, o Sr. Sebastião, embaixador6 da Companhia, foi diagnosticado com problemas de saúde e pouca expectativa de cura. Desta forma, se viu obrigado a deixar a função de líder para iniciar o tratamento da doença. A notícia do câncer do Sr. Sebastião abalou sua família e também os foliões que integram o grupo. Além disso, surgiu a demanda de uma nova liderança para o grupo. O ex-embaixador, afastando-se da função, fez uma promessa, pedindo que os Santos Reis intercedessem na cura de sua doença. Em troca da dádiva desejada, ele se propôs a ser o festeiro7 da Companhia. Assim, com o a de fardado, por isso a preferência por tal denominação. O fardado, durante o ritual dos nativos, tem como principais funções: mediar o diálogo com os moradores para a aceitação do grupo em suas casas; dialogar com os devotos durante o ritual e repassar suas intenções ao embaixador para que ele estabeleça quais os procedimentos ritualísticos a serem tomados; efetuar recitações de louvor ao presépio das casas e também de exaltação às divindades, ao final dos cantos de reis; estar sempre próximo ao estandarte do grupo; através de coreografias, gritos e brincadeiras anunciar a chegada do grupo em no bairro ou em frente às casas. No ritual dos nativos representa os soldados do rei Herodes, que ao ver o Menino Jesus se converteram a protegê-lo incondicionalmente. 6 Função denominada pelos foliões da Companhia de Reis Fernandes como embaixador ou mestre. É a função de liderança no ritual. O embaixador é aquele que inicia os cantos e constrói os versos de acordo com as situações de troca exigidas entre o devoto e o Santo. Durante a prática musical os demais foliões guiam-se pelas ações do embaixador. 7 Na Companhia de Reis Fernandes, o festeiro tem como obrigação principal auxiliar nos custos para que o grupo possa realizar a jornada. O combustível para o transporte dos foliões, os encordoamentos e as dedeiras para os instrumentos são alguns dos exemplos mais comuns que o festeiro necessita custear. Além disso, no dia da festa de Reis o festeiro, além de contribuir com uma doação significativa de alimentos para que o evento seja farto, juntamente de sua família e entes mais próximos, deve auxiliar no processo de preparação dos alimentos, distribuição às pessoas e organização e limpeza do local. Na perspectiva do ritual, o festeiro deve estar presente no primeiro dia de início da jornada e no dia da festa de Reis. É importante 23 apoio de seus familiares, o Sr. Sebastião se comprometeu a custear dois giros8 consecutivos da Companhia de Reis Fernandes, sendo o primeiro relativo ao período entre novembro de 2014 a janeiro de 2015 e o segundo entre novembro de 2015 e janeiro de 2016. Muitos dos foliões da Companhia também fizeram promessas para os Santos Reis, reforçando o pedido de cura do Sr. Sebastião e, como contrapartida ao santo, comprometeram-se a cumprir com afinco as duas jornadas referentes à promessa do companheiro de folia. O vínculo de fé na promessa realizada criou uma união entre os foliões, o Sr. Sebastião e seus familiares, acentuando o caráter de fé do grupo em relação a outros períodos de atuação. Durante a pesquisa de campo, foi possível acompanhar o ciclo completo desta promessa caracterizada principalmente na crença dos envolvidos sobre a cura do Sr. Sebastião e também pelo forte envolvimento das famílias Fernandes e Togliori para concretizar a promessa firmada junto aos Santos Reis. A respeito da função de embaixador da Companhia, quem a assumiu foi o Sr. Nilson Fernandes, filho do fundador do grupo, Sr. Celso Fernandes9. Folião tradicional na Companhia, Nilson já atuava cantando e tocando durante a prática do ritual e também exercendo no grupo a função de gerente10. Ao tomar frente das funções ritualísticas, Nilson teve como principal desafio a continuidade da identidade ritual do grupo e o estabelecimento do seu próprio estilo como novo embaixador da Companhia de Reis Fernandes. Dentre as mudanças observadas no período estudado, essa é, sem dúvida, uma das mais significativas para a pesquisa. O Sr. Nilson, durante o processo de adaptação na função de embaixador, acabou não só retomando ressaltar que esta função não é um pré-requisito para que a Companhia exerça sua jornada. A mesma pode efetuar suas jornadas sem a figura de um festeiro. 8 Também denominado como jornada. É um termo usado pelos foliões que designa a movimentação da Companhia pelas casas e bairros. A expressão ‘giro’ pode remeter tanto a um trajeto realizado durante um dia em específico (por exemplo, “hoje o giro será somente no Jardim Miessa”) como abranger todo o ciclo de atuação daquele período (por exemplo, “o giro deste ano começará um pouco mais cedo”). Neste caso é preciso considerar o contexto em que a expressão está inserida para definir a que tipo de giro está se referindo, diário ou do ciclo como um todo. 9 Sr. Celso Fernandes foi o fundador e primeiro embaixador e gerente da Companhia de Reis Fernandes. 10 Função administrativa relativa a ações como, por exemplo, o transporte dos foliões durante as jornadas diárias, o agendamento e formulação do itinerário de visitas às casas dos devotos, a organização e limpeza dos instrumentos, uniformes, vestimentas e demais símbolos ritualísticos e também o armazenamento das ofertas arrecadadas. 24 alguns cantos de reis característicos da liderança anterior do Sr. Sebastião, mas também alguns cantos de reis referentes ao período em que seu pai, Sr. Celso, exercia a função como primeiro embaixador da Companhia. Além disso, o Sr. Nilson compôs um novo canto de reis, que inclusive tornou-se, durante a pesquisa, um dos mais recorrentes à prática ritual do grupo. Neste período pesquisado tive a oportunidade única de observar esse diálogo entre três gerações de cantos de reis em uma mesma prática ritualística e, além disso, averiguar como o Sr. Nilson gradativamente foi se desenvolvendo na função de liderança do grupo e estabelecendo novas possibilidades de uso e adaptação do repertório de cantos de reis. Outro ponto importante constatado foi a dificuldade de renovação de novos foliões na prática musical da Companhia de Reis Fernandes. Os foliões estão envelhecendo e as gerações seguintes não estão aderindo à prática musical da manifestação. Assim, os praticantes que permanecem atuantes, devido a fatores como idade avançada ou doenças crônicas (diabetes, pressão alta e problemas de coluna), começam a apresentar dificuldades em participar das jornadas da Companhia. Mesmo que esse ainda seja um obstáculo a ser constatado com mais propriedade em longo prazo, alguns sintomas dessa problemática já puderam ser observados durante a pesquisa. Durante o período abordado pelo trabalho, por exemplo, a Companhia de Reis Fernandes exerceu sua prática musical com consideráveis adaptações do sistema mineiro devido à ausência de integrantes que cumprissem funções fundamentais de canto e de execução de instrumentos musicais. A partir dessas estratégias de adaptação adotadas pelo grupo, foi possível compreender quais as características musicais priorizadas e o modo como o grupo lida com a ausência de foliões para exercer determinadas funções ritualísticas. A respeito das ferramentas utilizadas para coleta dos dados, é importante ressaltar também o acesso ao caderno de versos do Sr. Nilson, que contém anotações de seu pai, Sr. Celso, sobre versos dos cantos e suas possíveis aplicações no ritual. Ao assumir a função de embaixador, o Sr. Nilson utilizou-se desse caderno para anotar versos e ideias para novos cantos, de sua autoria. A análise das anotações evidenciou quais versos permanecem atualmente e também de que forma o Sr. Nilson se apropriou deste material. 25 A família Fernandes disponibilizou também o seu acervo pessoal de fotos e vídeos para que pudéssemos analisá-lo. Mesmo que durante o decorrer do trabalho não tenha adentrado no processo histórico integral da Companhia, o conhecimento prévio da trajetória do grupo foi fundamental para estabelecer as discussões a respeito do recorte temporal observado. Utilizei também como aporte sobre os dados históricos da Companhia de Reis Fernandes a dissertação do pesquisador Pedro Henrique Victorasso, intitulada A Folia de Reis da Companhia de Reis Fernandes em Olímpia/São Paulo (1964-2014): entre o sagrado e o profano, que tem como foco a discussão sobre as mudanças no ritual da Companhia de Reis Fernandes durante o período retratado pelo autor. Nesse sentido, o presente trabalho contribui também para estabelecer uma continuidade dos dados históricos apresentados por Victorasso (2015). O acervo do Museu de História e Folclore Maria Olímpia, especificamente os Anuários do Festival do Folclore, foi também uma importante fonte documental como base às referências históricas das folias de reis olimpienses, em algumas edições, inclusive, sobre a Companhia de Reis Fernandes. Esses dados fomentaram as discussões a respeito das transformações do ritual da Companhia no decorrer de sua trajetória histórica. *** Este trabalho teve como temática central a relação entre música e ritual, investigada sob a perspectiva da performance musical. No contexto da etnomusicologia brasileira trata-se de um assunto bastante recorrente, que, sob o foco das tradições seculares, é representado principalmente por estudos voltados aos rituais indígenas, cultos afro- brasileiros e práticas culturais do catolicismo popular. Dentro dessa ultima área, relacionada diretamente ao presente trabalho, incluem-se as folias de reis, onde é possível observar, por meio de diversas pesquisas (TREMURA, 2004a, 2004b; REILY, 2002, 2014; CHAVES, 2014) a centralidade dos cantos de reis à compreensão das dinâmicas sociais, religiosas e emocionais dessa manifestação cultural. Entretanto, devido a sua vasta presença em diversas regiões brasileiras e sua abordagem como foco de 26 pesquisa relativamente recente, como é o caso da etnomusicologia, ainda se faz necessário um maior aprofundamento a seu respeito, principalmente sobre os tipos de estruturas musicais que integram o seu sistema musical e de que modo cada grupo, através da performance musical, articula seu próprio discurso devocional e, ao mesmo tempo, aglutina aqueles que compartilham de uma mesma concepção de mundo, centrada nos valores cristãos. Devido à delimitação dessas pesquisas sobre os cantos de reis estarem centradas predominantemente na investigação de uma determinada cultura local, que envolve diversos grupos de folias de reis, os tipos de aprofundamentos que julgo necessários, citados a pouco, ainda permanecem à margem das discussões etnomusicológicas. Desta forma, acredito que, pelo fato de a investigação deste trabalho estar dedicada a um grupo específico e, alinhado à estratégias de observação em campo ocorridas de modo integral e exclusivo ao objeto estudado, foi possível, mesmo que de modo pontual, estabelecer contribuições significativas sobre o modo como a música se manifesta e se estrutura durante o ritual das folias de reis. Além disso, é preciso considerar a escassez de estudos etnomusicológicos na cidade de Olímpia, região onde a Companhia de Reis Fernandes se situa. Olímpia é conhecida pelas festividades locais, os Festivais Nacional11 e Internacional12 do Folclore, e também por sua alcunha de Capital Nacional do Folclore13. Segundo levantamento da Secretaria de Cultura e 11 O festival surgiu na década de 1950, através de ações de pesquisa e exposição do professor José Sant'anna, ocorrendo, a princípio, em escolas, estabelecimentos comerciais da cidade e na Praça da Matriz. O festival permaneceu ininterruptamente e nos dias de hoje encontra-se em sua 51ª edição, sendo considerado o evento cultural local de maior destaque. Conta com a presença de grupos folclóricos e parafolclóricos de diversas regiões do país e o público é estimado em 45.000 pessoas (FESTIVAL DO FOLCLORE, 2014). 12 Trata-se da internacionalização do já tradicional Festival Nacional do Folclore. Foi idealizado pelo GODAP (Grupo de Danças Parafolclóricas Cidade Menina Moça), sob a direção da professora Cidinha Manzolli. Ocorreu durante sete anos consecutivos (1998 a 2004) na praça de atividades folclóricas “Prof. José Sant’anna” em meados do mês de maio e contou com a participação de grupos folclóricos e parafolclóricos de diversos países. Após um hiato de 10 anos, o festival retornou em 2014, em sua 8ª edição. Deste ponto em diante o mesmo ocorre com periodicidade bienal, sendo sua próxima edição prevista para 2016 (FESTIVAL DO FOLCLORE, 2014). 13 Essa denominação seguiu ao longo dos anos, mas no sentido de uma alcunha ou apelido, voltada a assinalar e promover a característica cultural local. Posteriormente, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania aprovou em primeiro de julho de 2014 o Projeto de Lei 6150/13, de autoria do deputado Sandro Mabel (PMDB-GO), que concedeu a Olímpia oficialmente o título de capital nacional do folclore (PREFEITURA MUNICIPAL DE OLÍMPIA, 2015). 27 Turismo local, há cerca de treze grupos de folias de reis em atividade (PREFEITURA MUNICIPAL DE OLÍMPIA, 2015), cada um deles constituído sob vertentes distintas, como por exemplo: folias mineiras, folias paulistas e folias baianas, além também, de possíveis casos de hibridismo proveniente da mistura entre os estilos locais. A investigação que realizei, sob o enfoque dos cantos de reis é fundamental não somente para trazer ao campo da pesquisa algumas características da performance musical das folias de reis olimpienses, mas também para fomentar futuros aprofundamentos, comparações e críticas a respeito das folias olimpienses e demais manifestações do catolicismo popular presentes nessa localidade. Considerando que a questão central deste trabalho se encontra em compreender como se constituem os cantos de reis da Companhia Fernandes e de que modo se relacionam com os valores morais e religiosos de seus praticantes, foi necessário, de modo primário, buscar algumas definições sobre as folias de reis que dialogam diretamente com as questões que me propus a investigar. Neste sentido, tomei como base teórica o trabalho de Carlos Rodrigues Brandão (1981), que discute as folias de reis sob a perspectiva das trocas simbólicas. Brandão é um dos pesquisadores brasileiros pioneiros no desenvolvimento de estudos referentes às folias de reis. Seu trabalho A Folia de Reis de Mossâmedes, datado de 1977, por exemplo, é um marco investigativo sobre as folias de reis, principalmente por discuti-las através de uma abordagem antropológica, trazendo a tona importantes apontamentos sobre as relações sociais, processos de representação simbólica e fé que integram a prática ritual dessa manifestação. Posteriormente, Brandão (1981), em sua obra intitulada Sacerdotes de viola – rituais religiosos do catolicismo popular em São Paulo e Minas Gerais, o autor discute as relações sociais presentes nos ciclos de devoção das folias de reis de Caldas Novas (Minas Gerais) e Goiás através do conceito de trocas simbólicas de bens materiais e espirituais: Em nome de pedir e de receber bens materiais — para si próprios durante a jornada (comida e hospedagem), e para os outros, depois dela (dinheiro e bens) — os foliões são obrigados a retribuir por meio 28 de dádivas sociais (a proclamação do valor moral do gesto do doador) e espirituais (bênçãos e pedidos de proteção divina). Promesseiros e devotos, contra-atores da Folia dão porque estão incorporados ao ritual, e dar é um dos seus momentos. Mas eles dão, também, porque a crença simbólica, que garante com palavras sagradas a legitimidade das trocas, proclama a reciprocidade desejada: o doador será abençoado nesta vida e/ou na outra; os seus bens serão proporcionalmente aumentados; os seus familiares e os seus animais (BRANDÃO, 1981, p. 32-33). Para Brandão, esse espaço de trocas simbólicas “[...] talvez [...] seja o caminho por onde a Folia de Santos Reis mostre a sua verdadeira face: dar, receber, retribuir” (BRANDÃO, 1981, p. 31). Esse conceito de trocas simbólicas, desenvolvido por Brandão, parte do princípio de que as relações sociais presentes no ritual das folias de reis estão centradas nos fundamentos cristãos e, desta forma, se baseiam na reciprocidade entre os envolvidos: foliões e devotos. Como base para tal afirmação, Brandão dialoga com os apontamentos de Marcel Mauss (1974) presentes na obra Ensaio sobre a Dávida, que trata a dádiva como elemento central para os contratos sociais estabelecidos entre os integrantes de diversas sociedades camponesas. A respeito dessa concepção de dádiva, Brandão a discute da seguinte maneira: Ao analisar os fundamentos da dádiva — ou do dom, se quisermos — em sociedades primitivas ou arcaicas que não conheceram as leis de contrato e troca do mercado capitalista, Mauss relaciona várias sequencias de rituais onde, sob a aparência de iniciativas pessoais e espontâneas de ofertas, na verdade os sujeitos obedecem a regras compulsórias de prestação e contraprestação de serviços, que produzem trajetórias contínuas de rodízio de bens e de efeitos sociais ligados a essas trocas de bens entre pessoas. Parecendo fazer o que querem, livres como sempre parecem ser em uma festa, os homens que Mauss descreve estão presos a sequencias de obrigações: de dar, de receber, de retribuir (BRANDÃO, 1981, p. 31). Assim como Mauss (1974), que verifica o conceito de dádiva em diversas sociedades e seus contextos ritualísticos, Brandão (1981), através das trocas simbólicas, evidencia os tipos de mediações estabelecidas entre os membros envolvidos nas práticas rituais das folias de reis. Neste processo, Brandão esclarece que: Todos os casos estudados por Mauss envolvem sistemas de trocas compulsórias entre parceiros — pessoas, famílias, clãs, aldeias, tribos 29 — através de obrigações de parte a parte, transformadas em cerimônias sempre marcadas por um definido conteúdo simbólico. Como se tudo fosse o ritual de um jogo nunca interrompido, em que as pessoas estivessem sempre amarradas à corrente dos momentos da dádiva: dar, receber, retribuir (BRANDÃO, 1981, p. 31). E, através de seu processo de verificação das trocas simbólicas presentes nas folias de reis o autor afirma que: Durante toda a jornada de Santos Reis os homens são obrigados a trocar, e o espaço camponês por onde passam, na verdade, é o de um grande ritual/mercado de circulação de bens de pequeno valor material e de bens de um acreditado grande valor simbólico-religioso. (BRANDÃO, 1981, p. 31). A adoção desse conceito de trocas simbólicas de bens materiais e espirituais como perspectiva central à interpretação do ritual da Companhia de Reis Fernandes foi de suma importância para compreender os tipos de trocas estabelecidas entre os foliões, devotos e divindades e também as regras e concepções atreladas a essas mediações. Apesar da relevância das teorias de Mauss (1974) – sobre a dádiva – e Brandão (1981) – sobre as trocas simbólicas de bens materiais e espirituais – como aporte teórico à investigação da Companhia Fernandes, é preciso deixar claro que tais conceitos são aplicados e discutidos pelos autores com base em comunidades predominantemente camponesas, o que claramente se distingue do contexto urbano em que a Companhia de Reis Fernandes se localiza. Portanto, ao transpor o princípio de trocas simbólicas ao contexto dessa pesquisa, foi preciso considerar o ritual da Companhia Fernandes não só como um modo de relação social entre os envolvidos, mas também de averiguar como este modelo, constituído de valores e condutas compartilhados, dialoga com o modo de vida urbano, marcado pela ênfase à propriedade privada e ao individualismo e, assim, inferir quais as consequências à pratica do ritual da Companhia Fernandes em decorrência dessas sobreposições de organização social: contexto rural e contexto urbano. Tomando como base o conceito de trocas simbólicas e em direção à indagação sobre o papel da música no contexto ritual da Companhia, foi possível inferir a performance musical como um elemento central de mediação e validação do discurso das três partes envolvidas durante as trocas simbólicas: foliões, devotos e os Santos Reis. Grosso modo, dentro do ritual da 30 Companhia de Reis Fernandes, para cada tipo de troca estabelecida entre homens e divindades impreterivelmente constatei a entoação de um determinado canto de reis para caracterizá-la e validá-la. Além disso, notei também que, cada uma dessas trocas estabelecidas levaram em consideração as particularidades do contexto realizado; o devoto, o pedido feito aos Santos Reis e a contrapartida ofertada para que a benção almejada seja concedida. Portanto, analisar como os cantos de reis se articulam às possibilidades de trocas simbólicas presentes no ritual determinaram a necessidade em estabelecer outros critérios teóricos a fim de compreender também sobre a organização do discurso nos cantos de reis, principalmente no que diz respeito a sua construção, no sentido de forma e conteúdo, e sobre os aspectos da performance musical (estruturas musicais, funções, instrumentação e procedimentos de execução). Para isso, busquei suporte em alguns estudos sobre as folias de reis (PEREIRA, 2014; CHAVES, 2014; REILY, 2014) relacionados à organização do ritual e análise do discurso dos cantos de reis. Através dos apontamentos presentes nessas pesquisas, foi possível estabelecer ferramentas analíticas que, atreladas ao conceito de trocas simbólicas de Brandão (1981), puderam me amparar no processo de descrição dos cantos de reis e de sua relação com as concepções religiosas durante o ritual da Companhia Fernandes. A respeito da organização musical, tomei como referência o trabalho de Pereira (2014) intitulado O giro dos outros: fundamentos e sistemas nas folias de Urucuia, Minas Gerais, onde o autor investiga nas folias de reis dessa localidade os parâmetros de organização e conhecimento ritualístico. Há, segundo Pereira (2014), conhecimentos essenciais compartilhados pelos foliões – denominado como fundamento – que estão relacionados aos fatos bíblicos e processos ritualísticos que conectam as folias de reis de modo geral. Este conceito é definido por Pereira da seguinte maneira: A noção nativa de fundamento indica [...] a ideia de que todas as folias conhecidas são apenas uma só, ‘no mundo todo’. A festa, na opinião dos devotos, possuiria uma integridade primordial ao mesmo tempo em que é idêntica a si própria, onde e quando quer que 31 aconteça. ‘Ir na folia dos outros’, neste contexto, poderia ser explicado como um deslocamento em direção ao mesmo: uma atividade que reitera a existência de um modelo criado pelos Santos Reis Magos e transmitido aos homens desde ‘o tempo em que Jesus Cristo andou pela terra’ (PEREIRA, 2014, p. 546). Durante a pesquisa de campo, os foliões da Companhia de Reis Fernandes relataram em diversos momentos sobre estes princípios que norteiam a prática do grupo. Alguns dos termos usados de modo mais frequente pelos praticantes para abordar essa questão do fundamento foram: tradição, conhecimento e ensinamento: [...] o folião tem que sabê o que tá fazendo, tem que conhecê os santos, conhecê as escritura, sabê como funciona as coisa na Companhia. Nóis tudo perante os Treis Reis Santos somos todos irmão. Toda as Companhia tão amparada nas escritura e nos ensinamento dos Reis. A gente segue o modelo dos Três Reis Santos, que foram os primeiros folião na terra [...] (CADERNO DE CAMPO 14 . Sebastião Togliori, 2016). Segundo o Sr. Sebastião estes princípios que fundamentam as folias de reis são compartilhados não só entre os integrantes do grupo, mas também por todos os foliões, de modo geral. Esse conceito de fundamento pode ser exemplificado também através da rotatividade dos foliões, prática bastante comum no contexto olimpiense, que migram de um grupo para o outro, muitas vezes exercendo no novo grupo a mesma função ritualística adotada anteriormente. Assim, podemos afirmar que o grupo de folia de reis muda, mas o folião consegue compreender e interagir em ambos os contextos, devido ao fato de que os princípios que fundamentam a manifestação são compartilhados por todos. Entretanto, Pereira aponta também o conceito de sistema: A noção de sistema, por outro lado, refere-se ao inverso. Embora [a folia de reis] seja apenas uma só [...] também pode ser ‘outra’. As diferenças entre os festejos, segundo os devotos, seriam resultados das criações particulares de pessoas ou grupos distintos. [...] As variações são percebidas atentando-se para traços distintivos 14 Os cadernos de campo foram constituídos de: notas de voz; gravações de diálogos estabelecidos com os nativos durante os intervalos entre as visitas às casas dos devotos, ao término das jornadas e em ocasiões externas às jornadas; anotações sobre as observações realizadas. Estão classificados de acordo com o ano vigente, no caso, 2014, 2015 e 2016. 32 diversos: a música tocada por um grupo que é diferente da de outro, os comportamentos valorizados pelos devotos de um grupo ao contrário de outro, a indumentária particular usada por um grupo e não pelo outro etc. (PEREIRA, 2014, p. 546). Durante uma observação de campo da chegada15 de Reis da Companhia de Reis Miranda, também de Olímpia, foi possível observar essa questão da singularidade de cada grupo apontada por Pereira. A Companhia de Reis Miranda compartilha do mesmo sistema adotado pela Companhia de Reis Fernandes, no caso o sistema mineiro, porém, foi possível observar que em sua prática musical os tipos de cantos, as funções, os instrumentos musicais e os procedimentos ritualísticos possuem particularidades distintas às da Companhia de Reis Fernandes. Apesar desses dois grupos de folias de reis compartilharem dos mesmos princípios característicos às folias de reis, cada grupo estabelece suas próprias ações para validar a prática ritual e dar significado às suas experiências de fé. A respeito dessa relação entre fundamento e sistema, Pereira afirma que: Enquanto o fundamento trata da unidade, daquilo que transforma a folia numa só e única coisa “no mundo todo”, o sistema fragmenta para produzir alteridades, contribuindo para explicar a infindável capacidade de os festejos serem criados e recriados ao longo do tempo e através do espaço (PEREIRA, 2014, p. 546-547). Com base nesses dois conceitos, fundamento e sistema aplicados às observações da prática ritual da Companhia de Reis Fernandes e na análise do discurso de seus foliões sobre suas experiências dentro da tradição das folias de reis, foi possível verificar quais os princípios da tradição (fundamento) e como se organiza sua prática ritual na Companhia (sistema mineiro). Especificamente sobre o sistema mineiro, tomei como base os apontamentos da pesquisadora Suzel Reily (2002; 2014), presentes em alguns de seus trabalhos em que a autora aborda grupos de folias de reis estruturados sobre este tipo de organização. Através dessas publicações, a autora propicia importantes apontamentos a respeito desse tipo de sistema, principalmente 15 É a festa em homenagem aos Santos Reis, representando a conclusão de sua jornada em direção à cena do nascimento de Jesus. É um evento aberto à comunidade onde as ofertas arrecadadas pela Companhia são convertidas em alimentos (churrasco, maionese, farofa, vinagrete, por exemplo) e distribuídas gratuitamente. 33 sobre as características vocais, instrumentais e o papel do embaixador como liderança da prática ritual. Julguei importante também compreender como estes princípios se estabelecem em relação às regras e características sonoras da prática musical. Para isso foi necessário adotar outros tipos de ferramentas analíticas que privilegiassem compreender não somente os tipos de princípios presentes nos cantos de reis, mas também como o texto se relaciona aos elementos musicais da performance. Considerando que a música da Companhia de Reis Fernandes se constitui de padrões musicais, o conteúdo textual presente nos cantos de reis necessita também estar em concordância ao conteúdo musical. Somente desta forma, há o sentido de unidade aos cantos de reis, ou seja, de versos entoados. A fim de complementar esta necessidade exposta, recorri ao trabalho de Chaves (2014), intitulado Canto, Voz e Presença: uma análise do poder da palavra cantada nas folias Norte-Mineiras, que tem como objetivo central investigar a centralidade da presença do santo (Três Reis Magos) na estruturação do processo ritual das folias de reis. Para compreender como isto se manifesta, o autor se propõe a analisar os cantos de reis, sob uma perspectiva semântica dos versos, para assim, estabelecer relações com os aspectos de organização ritual, comportamental e musical. A respeito desta obra, tomei como foco a discussão do autor sobre a poética dos cantos. É importante considerar que Chaves relaciona o aspecto da poética dos cantos a dados etnográficos, provenientes da pesquisa de campo e dos relatos de seus interlocutores, porém, dedico atenção propriamente a esclarecer os conceitos do autor adotados à interpretação dos versos, para em seguida demonstrar como foram aplicados a esta pesquisa. Chaves (2014) aborda como característica primária da poética dos cantos o seu aspecto responsorial constituído da relação de pergunta e resposta entre as vozes entoadas durante os cantos de reis. Através deste aspecto é possível compreender a hierarquia e correlação entre as vozes. Os foliões com maior conhecimento estabelecem os primeiros versos (pergunta) e aqueles, com menor conhecimento os complementam (resposta). 34 No repertório de cantos da Companhia de Reis Fernandes, por exemplo, esta dinâmica responsorial apresenta organizações distintas para cada um de seus tipos, tanto na organização dos versos como na relação entre as vozes. Quanto mais complexa é a construção dos versos (maior incidência de variações e improvisações necessárias para atender a demanda do devoto) mais evidente é a delimitação entre a relação de pergunta e resposta. Nestes casos, o mestre da Companhia se utiliza de tipos de cantos que propiciam essa relação responsorial. Estes tipos de moldes melódicos privilegiam que o mestre entoe os versos iniciais através de repetições, para que a pergunta possa ser assimilada e respondida adequadamente, grosso modo, como uma espécie de repetição da repetição. O processo inverso também pode ser observado, já que, quanto menor a necessidade de variações na construção dos versos, mais complexa é a relação responsorial das vozes. Constatei este segundo caso em etapas do ritual onde havia uma maior previsibilidade dos versos entoados, logo, o mestre da Companhia se utilizou de cantos constituídos por processos responsoriais com maior variação de respostas (sobreposição vocal gradual). Tratam-se de moldes melódicos com menor duração entre a pergunta e resposta. Isso demonstra os tipos de relação estabelecida entre os foliões e o caráter de cada um dos cantos presentes em seu repertório. Investigá-los através dessa perspectiva da relação responsorial proporcionou uma melhor compreensão sobre os processos envolvidos na construção e expressão do conteúdo dos versos. Foi possível observar também, segundo Chaves, a construção teleológica dos cantos de reis (começo, meio e fim) através da ordem com que os versos são dispostos e de sua relação entre si. Chaves evidencia esta questão através do conceito de sequência tripartida (entrada, parte e saída), que trata do modo como cada etapa do ritual é expressa através dos versos. Para o autor, há sempre uma preparação para o assunto, no caso, do que irá tratar o canto, em seguida ocorrendo o próprio assunto, e por fim uma conclusão a seu respeito. Esta análise pode ser aplicada observando diversos temas presentes em um mesmo canto ou então, de forma mais ampla, na própria macroestrutura do canto. 35 Para elucidar esse conceito de Chaves, tomo como exemplo sua aplicação em um trecho de um canto agradecimento e despedida16 da Companhia de Reis Fernandes (CADERNO DE CAMPO, 2014): Com licença do senhor ai Com licença do senhor oi ai Os treis reis já vai embora oi ai oi oooo Ele vai simbora agora ai Ele vai simbora agora oi ai Pra voltar no ano que vem oi ai oi ooooo As fita vai avuando ai As fita vai avuando oi ai Vai deixando os parabéns oi ai oi oooo Nós vamo com os treis rei santo ai Nós vamo com os treis rei santo oi ai Com três reis fica também oi ai oi oooo Esses conceitos de Chaves (2014) ofereceram importantes indícios sobre a organização e comunicação do texto como também auxiliaram na investigação da relação dos cantos (o que fazem) com as etapas do ritual (porque fazem) e o comportamento dos foliões (como fazem). Considerando também que o presente trabalho está alicerçado na área da etnomusicologia, foi crucial a adoção de um aporte teórico voltado ao fazer etnográfico, desde a abordagem em campo, como também da interpretação das experiências e dados coletados. Para isso, tomei como base alguns apontamentos de Antony Seeger (2004[1992]) a fim de nortear o meu fazer etnográfico durante as observações de campo. Esse autor, em seu trabalho intitulado Etnografia da música (1992) estabelece um panorama histórico-conceitual sobre a área da etnomusicologia e, através de suas vivências em campo – principalmente realizadas em tribos indígenas – estabelece não só parâmetros para delimitar a importância da 16 Canto coletado no dia 27.12.2014 nas proximidades da Rua Joaquim Miguel dos Santos, Olímpia-SP. Adotei como critério a transcrição literal do conteúdo textual, tanto para preservar a oralidade dos foliões, como também para demonstrar as características de pronuncia, que são fundamentais para construção e improvisação dos versos (CADERNO DE CAMPO, 2014). Entrada (Formalidade para iniciar o assunto) Parte (A despedida) Saída (Conclusão do assunto) 36 música em um dado contexto cultural, como também a respeito da conduta do pesquisador diante das experiências vivenciadas em campo. Considerando que Seeger define a música como “[...] sons estruturados produzidos por membros de uma comunidade que se comunicam com outros membros” (2004 [1992], p. 8) é possível afirmar que as folias de reis têm em sua essência o compartilhamento de valores morais e religiosos onde, através da música, há a enunciação desse discurso à sua comunidade e também de experiências de reafirmação espiritual, social, emocional e estética. Nessa perspectiva, os cantos de reis se fazem presentes como elementos fundamentais de síntese e concretização desses valores e experiências. Investigá-los, de longe, é tarefa árdua, considerando a quantidade e complexidade de estruturas, relações e concepções por detrás das próprias sonoridades produzidas. Para trazê-las à luz da discussão, de modo plural e integrado baseei-me também nos princípios de Seeger a respeito do próprio fazer etnográfico. Para o autor: “[...] uma combinação de pesquisa de campo, investigação das categorias nativas e uma descrição cuidadosa são as marcas da etnografia da música” (SEEGER, 2004[1992], p. 40). Em suma, a postura em campo, a investigação sobre o discurso dos foliões e o modo como sua cultura é descrita influenciam de modo definitivo para a qualidade da pesquisa. Outro importante conceito do autor trata-se das categorias nativas: [...] as 'categorias nativas' e/ou as palavras e frases que as pessoas usam para definirem e se inserirem em seu mundo. Tais categorias locais de pessoa, lugar e tempo não fazem muito sentido em si mesmas, mas formam sistemas com outras categorias de pessoa, lugar e tempo. Tomados como uma totalidade e relacionados entre si, os sistemas fornecerão dicas importantes para o significado do evento que está acontecendo (SEEGER, 2004[1992], p. 36). As categorias nativas, apontadas como fundamentais por Seeger, constituem os diálogos e sentidos não só do fazer ritualístico, mas também das relações em grupo e de expressão das individualidades dos interlocutores. Dada a importância dessas categorias nativas à compreensão da linguagem que estrutura a prática ritual da Companhia Fernandes pude estabelecer estratégias de observação de campo, participação no ritual e coleta de dados 37 (áudio, vídeo e entrevistas) focadas na compreensão e análise dos diversos elementos presentes em sua prática ritual. Utilizei também algumas obras complementares como apoio às discussões sobre temas tangenciais à perspectiva musical. Uma dessas obras é o trabalho de Alba Zaluar, intitulado Os homens de Deus (1983), para fomentar as discussões sobre os aspectos religiosos do ritual da Companhia e de sua relação intrínseca com a sua prática musical. Para isso adotei o conceito de categorias básicas que organizam o sistema cosmológico de uma manifestação devocional. Através desse conceito foi possível analisar a natureza das relações de fé presentes no ritual do grupo, assim como os tipos de bens espirituais almejados e os ‘acordos’ estabelecidos entre os devotos e os Santos Reis. Durante a análise e descrição dos cantos de reis, levei em consideração os trabalhos de Vilela (2004; 2008; 2010) para abordar a relação da música caipira com a prática musical dos foliões. *** A estrutura da pesquisa foi organizada em três capítulos, que abordam respectivamente: Apresentando as categorias nativas; Descrição dos rituais de folia de reis; Os cantos de reis. No capítulo I descrevo as características gerais da Companhia de Reis Fernandes: panorama histórico; cosmologia; símbolos; as trocas de bens materiais e espirituais; e as dinâmicas do giro. No capítulo II efetuo a descrição etnográfica das jornadas ocorridas no período de 2014 a 2016 visando demonstrar todas as etapas que a contemplam. No Capítulo III abordo a temática central do trabalho, partindo das estruturas musicais primárias à performance musical da Companhia Fernandes, denominada toada. Na sequência, trato das características que correspondem ao sistema mineiro, adotado pelo grupo, e exponho as dinâmicas que os foliões utilizam para manter tal sistema em funcionamento durante a prática musical. Na etapa seguinte, abordamos o ofício do 38 embaixador e seus processos de reprodução, criação e improvisação dos cantos. Por fim, discorro sobre os cantos de reis presentes no ritual da Companhia de Reis Fernandes relatando os tipos de cantos e a relação de cada um com as etapas do ritual. Além disso, relato os cantos intrínsecos ao ritual e aqueles praticados de modo mais específico. Levo em consideração também o imbricamento entre canto, versos e comportamento através de situações e exemplos que demonstram como tais elementos atuam de modo integrado. Ao leitor, aponto algumas observações a fim de esclarecer importantes critérios adotados no decorrer do trabalho: os cadernos de campo, apesar de citados durante o texto, não estão integrados ao corpo da pesquisa a fim de preservar a privacidade dos interlocutores; os foliões que atuaram pontualmente ou por curto período e que não foram consultados sobre o direito de expô-los nesta pesquisa foram referenciados pelo seu pseudônimo (apelido) apenas, a fim de preservar seu anonimato; os depoimentos e categorias nativas foram evidenciados durante o texto com fonte em itálico; os depoimentos dos foliões foram referenciados partindo dos cadernos de campo e entrevistas; a identificação e transcrição das falas dos foliões, no decorrer do trabalho, ocorreram de forma literal às fontes coletadas (entrevistas e cadernos de campo) visando preservar sua oralidade; a utilização das transcrições musicais, de relatos orais e de registros audiovisuais (fotos e áudios) no corpo do trabalho foram previamente autorizadas pelos integrantes da Companhia de Reis Fernandes. 39 CAPÍTULO I – APRESENTANDO AS CATEGORIAS NATIVAS 1.1 A COMPANHIA DE REIS FERNANDES – PANORAMA HISTÓRICO A Companhia de Reis Fernandes atua na cidade de Olímpia, localizada na região noroeste do Estado de São Paulo, na região sudeste do Brasil: Mapa 01 – Localização da cidade de Olímpia no Estado de São Paulo e Brasil Fonte: Wikipédia. Disponível em: . Acesso em: 06 maio de 2016. A origem1 da Companhia decorre de uma promessa feita por Celso Fernandes, em 1964. Um de seus filhos foi diagnosticado com uma doença de difícil tratamento para a época e com poucas expectativas de cura, logo, Celso prometeu aos Santos Reis, como contrapartida à cura de seu filho, fundar um grupo de folia de reis e com ele atuar por sete anos consecutivos. 1 As informações sobre a origem do grupo foram fornecidas pelos interlocutores Sr. Nilson Fernandes e Sr. Sebastião Togliori. (CADERNO DE CAMPO, 2014). 40 Figura 01: Celso Fernandes. Fundador da Companhia de Reis Fernandes. Fonte: Acervo da família Fernandes (2015). A promessa feita por Celso envolveu os familiares não só na formação do grupo, mas também em outras atividades como a confecção das roupas dos fardados, da bandeira2 e dos enfeites. Além disso, as mulheres e demais familiares que não desempenharam a função de folião, ligada diretamente ao ritual da folia, ficaram incumbidos no preparo dos alimentos ofertados durante a jornada e na sua distribuição à comunidade durante o dia da chegada. Nesse período inicial o Sr. Celso e sua família residiam no Jardim Paulista, bairro suburbano de Olímpia, porém as jornadas da folia eram realizadas predominantemente na zona rural da cidade. Na véspera de Natal, 24 de dezembro, os foliões iniciavam os giros por sítios, fazendas e vilarejos e retornavam à área urbana somente no dia de Reis, 06 de janeiro, trazendo consigo as ofertas arrecadadas. Sobre esse período, Rubens José de Carvalho comenta: 2 Estandarte feito de pano de seda e cabo de madeira. No tecido há estampado a imagem do nascimento de Jesus. Trata-se de um símbolo sagrado para foliões e devotos, que representa não só orientação e proteção durante as jornadas do grupo, mas também um meio de comunicação com os Santos Reis. 41 A gente saia era na véspera de natal. Saia só com a ropa do corpo. Cada um com seus instrumento e a gente ia...pegava os estradão de terra e ia embora. Ai um (folião) ia na frente pra ir negociando as visita, arrumando o almoço, a janta, o pouso, vendo quem tinha promessa, quem que tinha oferta pra Santo Reis. Tinha dia que a gente dormia debaixo de árvore, em curral..quando chuvia tinha que dá um jeito de achá um abrigo...e banho? banho era só quando cruzava com um rio (risos). Tinha que cumpri a missão. E vortáva só no dia de Reis [...] (CADERNO DE CAMPO, 2015. Rubens José de Carvalho). Durante o período pesquisado, e de modo mais explícito, durante as entrevistas, a perspectiva dos foliões foi unânime sobre esse período de atuação do grupo na zona rural. Para eles o modelo ‘ideal’ de jornada da folia de reis era o praticado no contexto rural. Esse modelo, na visão dos integrantes da Companhia, era o mais próximo da jornada realizada originalmente pelos Três Reis Magos. Além disso, a relação com a natureza e da vida em comunidade são fatores que também reforçam mais ainda o ‘saudosismo’ dos foliões em relação a esse período. Figura 02: Companhia de Reis Fernandes em visita às casas de devotos na zona rural de Olímpia. Fonte: Acervo da família Fernandes (2015). 42 O ritual da folia nesse contexto rural tinha um caráter de cortejo. As casas dessas vilas rurais eram organizadas de modo conjugado, umas de frente para as outras e sem muros. A Companhia, ao passar por ali envolvia toda a comunidade, como podemos observar na foto (Figura 02). À medida que os rituais eram realizados, de casa em casa, as demais pessoas pertencentes à comunidade visitada acompanhavam a Companhia durante todo o trajeto. Segundo o Sr. Sebastião Togliori nesse ambiente rural: [...] todos compartilhava tudo, era um lugar que as pessoa era muito solidária uma com as outra. Quando uma pessoa tinha dificuldade, doença ou quarqué outro pobrema todo mundo se ajuntava pra ajudá de argum jeito. E a folia de reis então, você precisava vê...era um negócio muito respeitado...as pessoa parava tudo tudo pra vê a folia passá [...] (CADERNO DE CAMPO, 2016. Sebastião Togliori). Ao término dessas jornadas pelos espaços rurais, os foliões retornavam, ao dia 06 de janeiro, à zona urbana trazendo consigo todo o montante de ofertas arrecadadas. Logo em seguida, iniciavam-se os preparativos para a festa de chegada, realizada no quintal da residência do Sr. Celso. Em frente à sua casa ocorria o ritual de encerramento do ciclo, guiado pela Companhia, e em seguida a comunidade era convidada a entrar no seu quintal para dar início à festividade de encerramento da jornada. Enquanto a folia atuava do lado de fora da casa, o restante dos familiares auxiliava no processo de preparo dos alimentos, organização de pratos, garfos, talheres, copos e, quando terminada a execução do ritual da Companhia, eles recebiam e serviam os convidados presentes. Essa dinâmica de organização e trabalho coletivo, em família, é uma característica que perdurou ao longo dos anos e permanece até hoje. Nessa primeira fase da Companhia é possível destacar a importância da família como um sistema de relações e afetos integrado e cooperativo onde a individualidade de cada membro da família é deixada de lado em prol de uma ação maior: o cumprimento da promessa. Em 1970, mesmo com o cumprimento da promessa e a cura do filho o Sr. Celso decide permanecer com o compromisso de manter a Companhia em atividade tanto por princípios cristãos, de ajudar àqueles que também passam por dificuldades, como para expressar sua gratidão aos Santos Reis. Nesse mesmo período um fazendeiro interessado em pagar uma promessa feita aos Santos Reis propôs ao Sr. Celso que ele e sua Companhia continuassem a 43 jornada de devoção aos Santos Reis em seu nome. Em troca esse promesseiro atuou como festeiro da Companhia fomentando recursos como roupas, enfeites, manutenção dos instrumentos e transporte, desta forma dando condições mínimas para que os foliões pudessem efetuar os giros anuais durante o período abrangido por sua promessa. “[...] Desde então esse ciclo festivo se repetiu por inúmeras vezes, isto já dura mais de cinquenta anos” (VICTORASSO, 2015, p. 15). É importante ressaltar que esse primeiro festeiro e também outros posteriores eram também fazendeiros, residentes na zona rural de Olímpia, o que propiciou que a Companhia permanecesse atuando ainda de modo significativo na zona rural de Olímpia, mesmo com as transformações acarretadas pelo processo de urbanização vigente na época. Os foliões não sabem precisamente afirmar por quanto tempo ocorreu esse tipo de jornada predominantemente na área rural. Essa relação com o campo também possui um papel importante na história da Companhia, principalmente no que diz respeito às características de sua performance ritualística. O fundador, Sr. Celso, durante muitos anos viveu e trabalhou no campo e, durante esse período atuou em algumas Companhias de Reis rurais. Logo, ao fundar a Companhia, o Sr. Celso se pautou nessas experiências prévias como folião para delegar as funções e procedimentos fundamentais à condução do ritual de uma folia de reis. Segundo o folião Rubens José de Carvalho: O Celso antes de fundá a nossa Companhia cantô reis com muito embaixador bom, tudo embaixador respeitado. Ai a pessoa vai aprendendo as obrigação, os verso, tudo o entendimento pra sê um bão fulião. Quando ele viro embaixador...ele com a inteligência dele levô adiante essas coisa tudo que ele aprendeu [...] (CADERNO DE CAMPO, 2015. Rubens José de Carvalho). O filho de Celso e também folião, Sr. Nilson Fernandes complementa: [...] ele aprendeu o ofício de folião na época em que ele trabalhava na roça. Foi lá que ele saiu com as primera Companhia e aprendeu a tocá e cantá Reis. Depois quando ele veio pra cidade ele monto nossa Companhia, que tá até hoje, mas isso é porque ele já conhecia, ele já sabia como que o Reis (folia de reis) funcionava [...] (CADERNO DE CAMPO, 2016 Nilson Fernandes). Essas experiências vivenciadas por Celso como folião ocorreram em folias de reis baseadas no sistema mineiro, assim, tal estilo foi adotado para estruturar o ritual da Companhia Fernandes. Observando as informações a respeito dessa época foi possível notar que, em relação à parte vocal, a hierarquia de vozes que caracteriza o sistema de 44 organização da Companhia permanece: mestre, contramestre, ajudante de contramestre, contrato, quarta voz, quinta voz e requinta (tala). Porém, em relação às funções instrumentais e de suporte durante o ritual, foi possível notar algumas mudanças significativas. Nessa fase, o instrumental se constituía de: viola caipira, cavaquinho, violão, pandeiro, caixa, violino e sanfona. Estes dois últimos, já há alguns anos não estão mais integrados na prática musical. Sobre a ausência da sanfona e do violino na prática musical do grupo, o Sr. Nilson Fernandes afirma que: Hoje em dia não tem mais quem toca esses instrumento...porque não é só chegá e tocá...tem que sabê tocá no Reis. Hoje em dia é muito difícil. Faz tempo que eu não vejo uma folia com esses instrumento. A folia com a sanfona e o violino você precisa de vê...fica lindo (CADERNO DE CAMPO, 2014. Nilson Fernandes). Sobre as funções de suporte ao ritual, havia: o bandeireiro3, o fardado, e o macuco. Este último tinha a função de cuidar dos alimentos ofertados à Companhia durante a jornada. No contexto rural era comum aos devotos ofertarem galinhas, porcos e bezerros, por vezes inclusive, ainda vivos. Logo, a função do macuco era a de transportá-los e vigiá-los durante a jornada. Além disso, era incumbido a este folião ir à frente do grupo procurando devotos que oferecessem almoço, janta ou pouso aos foliões como também mediando junto aos devotos as possíveis ofertas a serem doadas ao grupo. Os foliões comentam que, em algumas ocasiões onde o devoto não tinha recursos para fornecer um almoço ou uma janta à Companhia, o macuco partilhava com ele as ofertas arrecadadas pela Companhia para que todos pudessem se alimentar. Com a transição do ritual da área rural para a área urbana essa função foi abolida, devido a novos tipos de relação e também dos novos tipos de ofertas. No contexto urbano os devotos ofertam dinheiro ou alimentos já processados como carnes e refrigerantes. As carnes são doadas já em cortes característicos ao preparo de churrasco (em manta ou cubos) e muitas vezes já temperadas e o seu transporte ocorre através de veículo automotivo, utilizado também para o translado dos foliões durante a jornada. 3 É o folião incumbido de carregar a bandeira durante o trajeto entre as casas e, durante o ritual, de entregá-la ao devoto e, ao fim do ritual, recolhê-la. 45 Em 1991, o Sr. Celso Fernandes falece, em decorrência de um tipo de câncer diagnosticado tardiamente e, desse modo, ocorre a primeira transição de liderança no grupo. Já em estado bastante debilitado, Celso designa os foliões que irão suceder as suas funções no grupo. Na tradição do grupo, esse processo se denomina como ‘passar a patente’. Assim, o filho Sr. Nilson Fernandes, já integrado ao grupo como folião, assume a função de gerente da Companhia ficando responsável pelos procedimentos administrativos da jornada e também por orientar os foliões sobre as regras de conduta e informar as rotinas diárias de visitas às casas dos devotos. Já o Sr. Sebastião Togliori, cunhado do Sr. Celso, que exercia a função de contramestre, a pedido de Celso, assume a função de embaixador da Companhia: Figura 03: Sr. Sebastião Togliori. Segundo embaixador da Companhia de Reis Fernandes a partir de 1991. Fonte: Registro do autor (2016). Nessa mesma época acentua-se o processo de transição do ritual do campo para a cidade, devido às mudanças socioeconômicas ocorridas na região rural de Olímpia, caracterizadas principalmente pelo processo de êxodo rural e da reconfiguração do espaço do campo pelo agronegócio. Assim, a Companhia começa 46 a realizar suas jornadas simultaneamente nos dois contextos, rural e urbano, e em decorrência dessas mudanças acaba adotando algumas reconfigurações ao ritual primário. As demandas pessoais e profissionais dos foliões foram também outro fator determinante para as mudanças na forma de atuação do grupo durante esse período. Antes os foliões conseguiam estabelecer acordos em seus empregos para, durante o período da jornada se dedicarem integralmente à folia. Gradativamente esses acordos foram sendo cada vez mais difíceis de serem articulados junto às empresas e empregadores. Sebastião Togliori comenta que: “[...] antes as empresa e patrão da gente respeitava quem era folião, todo mundo era devoto, admirava o nosso compromisso. Depois foi compricano, folião deixando de ir na Companhia pra não perder o emprego. Ai nóis fômo tendo que dá um jeito” (CADERNO DE CAMPO, 2014. Sebastião Togliori). Logo, a jornada do grupo começou a ocorrer após o período comercial de trabalho; durante a semana após as 18 horas, de modo parcial, e aos fins de semana, de modo integral. Tendo em vista a demanda de doações necessárias para a realização da festa de chegada, com base nas festividades anteriores, o grupo também ampliou o período de duração de sua jornada iniciando-a em novembro, mantendo apenas o seu término como no modelo de ritual inicial, no caso, no dia 06 de janeiro, dia de Reis. Outra mudança significativa foi a transferência da festa de chegada para um salão de festas, vinculado à Igreja do Jardim Cizoto4. Anualmente, o grupo estabelece um acordo com a paróquia do bairro agendando o salão para a realização da festividade. É importante salientar que mesmo nesse novo local, a família Fernandes permanece engajada nos preparativos da festa. Devido às demandas do contexto urbano (vida pessoal, profissional, disponibilidade de horários e transporte, por exemplo), a Companhia Fernandes adaptou também a data da festa de chegada. Antes, relatam os foliões, as ofertas arrecadadas (alimento e donativos) eram preparadas no próprio dia 06, dia de Reis, com ajuda da família, vizinhos e amigos. Com a adaptação do ritual ao contexto urbano, o grupo cumpre sua jornada até o dia 06, porém, a festividade é realizada 4 Antigo Jardim Paulista, onde uma parte considerável da família Fernandes ainda reside. 47 posteriormente. Esse recesso acrescido entre o dia de Reis e o dia da chegada ocorre tanto por questões burocráticas (agendamento ou organização do local onde ocorrerá a festividade), como também para os preparativos das ofertas arrecadadas (compra de garfos, pratos, talheres, temperos, carvão, copos descartáveis, preparo dos alimentos e confecção dos enfeiteis para o local). Em 2013, o Sr. Sebastião Togliori foi diagnosticado com um tipo de câncer e, em decorrência do tratamento da doença, deixou sua função de embaixador. Neste segundo momento de transição da liderança do grupo, a patente foi passada para o Sr. Nilson Fernandes, que assumiu a função de embaixador e gerente da Companhia: Figura 04: Sr. Nilson Fernandes. Terceiro embaixador e gerente da Companhia de Reis Fernandes, a partir de 2013. Fonte: Registro do autor (2015). Ciente da gravidade de sua doença, o Sr. Sebastião Togliori fez uma promessa para que os Santos Reis o curassem e propôs como contrapartida ser o festeiro da Companhia por duas jornadas consecutivas, de 2014 a 2016. Trata-se de um período bastante delicado à atuação da Companhia, não só pelo estado emocional dos foliões e familiares a respeito do diagnóstico do Sr. 48 Sebastião, mas também devido a características locais que gradativamente vem se acentuando e, consequentemente, dificultando os giros da Companhia. Sobre essa segunda questão cito alguns exemplo como: a falta de adesão das novas gerações à integrarem a folia e o envelhecimento dos foliões mais experientes; as visitas, antes com caráter de cortejo pelos bairros, agora ocorrendo de modo mais pontual e isolado, já que cada devoto reside em um bairro diferente e sem uma relação direta com sua vizinhança; a execução do ritual de modo mais compacto, devido às rotinas de trabalho e privacidade dos devotos. Adiante, na segunda parte deste trabalho irei descrever justamente sobre esse período, abordando a tentativa dos foliões em cumprir seus votos de fé e ao mesmo tempo em superar as adversidades presentes na conjuntura atual. 1.2 O CONJUNTO DE CRENÇAS E SÍMBOLOS A folia de reis, por seu caráter religioso, tem em sua cosmologia um dos seus principais elementos de validação, organização e conduta. A crença nas divindades que constituem sua cosmologia gera reflexos no modo como os devotos se comportam e se organizam não somente para estabelecer um diálogo entre o humano e o sagrado, como também entre si. Trata-se de um “[...] sistema de reciprocidade com as divindades do cosmo construído socialmente pelos homens” (ZALUAR, 1983, p. 80). Na Companhia de Reis Fernandes isto se manifesta através do ritual, como uma tentativa de representar o poder, a hierarquia e a conduta das entidades que a constituem. Esse sistema de crenças e símbolos da Companhia Fernandes está pautado primeiramente na própria doutrina católica, tanto de ensinamentos – provenientes da Bíblia Sagrada –, como de ritos estabelecidos pela Igreja Católica. Desta forma, foliões e devotos creem e expressam sua religiosidade não só na folia de reis, mas também de modo tradicional, como por exemplo: indo à missa; rezando em casa; participando de culminâncias como uma procissão, um batizado, uma crisma ou um casamento. Através dessas ações essas pessoas buscam conectar-se espiritualmente com as figuras centrais do cristianismo (Deus, Jesus Cristo e Espírito Santo). Por isso, é comum que, durante o ritual da folia de reis, as crenças e 49 símbolos do catolicismo tradicional estejam fortemente presentes durante toda a performance ritualística do grupo. Logo, como pretendo descrever adiante com mais detalhes, os símbolos (imagens de santos, o crucifixo, a hóstia, a bíblia), os gestos (efetuar o sinal da cruz ou ajoelhar-se diante da imagem de Jesus ou de um santo), e os ensinamentos (passagens bíblicas e orações) provenientes do contexto católico tradicional são assimilados e incorporados também ao ritual da folia de reis. Outro fator fundamental à constituição das crenças e símbolos da Companhia Fernandes é também a devoção católica a outras entidades denominadas ‘Santos’. Na tradição católica essas entidades eram inicialmente pessoas comuns que, devido a uma trajetória de vida marcada por provações conseguiram, através da fé, transcender essas adversidades e tornarem-se porta-vozes da vontade e poder divino. Aqueles que creem idealizam esses Santos como um exemplo de vida a ser seguido e os consideram intercessores de suas preces à divindade suprema: Deus. Essa devoção é comumente expressada pelos foliões através de pequenos gestos como uma oração, uma vela acessa ou alguma outra ação que indique reverência ao Santo adorado. Especificamente, no caso de alguns santos católicos, como Nossa Senhora Aparecida, São Gonçalo, São Sebastião e os próprios Santos Reis, as ações destinadas à sua adoração envolvem um conjunto de devotos que, de alguma maneira, representam fatos e ações referentes à trajetória de vida do Santo. Esse tipo de representação pode ser comumente observada em terços, novenas, procissões, autos de natal e, referente a esta pesquisa, no ritual das folias de reis. Para esclarecer o modo como os foliões interpretam, a sua maneira, a trajetória de vida dos Três Reis Magos, é preciso conhecer tal narrativa para, posteriormente, analisar como decorre o processo de encenação do grupo. A figura dos Três Reis Magos está integrada à cena do nascimento do Menino Jesus, presente no Evangelho segundo Mateus5: 5 É o primeiro livro do novo testamento da Bíblia Católica, no qual aborda a vida e trajetória do filho de Deus, Jesus Cristo. É o único livro em que consta o episódio de nascimento do Menino Jesus e consequentemente a menção aos Três Reis Magos. 50 [...] Tendo, pois, nascido Jesus em Belém da Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que vieram do oriente a Jerusalém uns magos que perguntavam: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois do oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo. O rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se, e com ele toda a Jerusalém; e, reunindo todos os principais sacerdotes e os escribas do povo, perguntava-lhes onde havia de nascer o Cristo. Responderam-lhe eles: Em Belém da Judéia; pois assim está escrito pelo profeta: E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as principais cidades de Judá; porque de ti sairá o Guia que há de apascentar o meu povo de Israel. Então Herodes chamou secretamente os magos, e deles inquiriu com precisão acerca do tempo em que a estrela aparecera; e enviando-os a Belém, disse-lhes: Ide, e perguntai diligentemente pelo menino; e, quando o achardes, participai-mo, para que também eu vá e o adore. Tendo eles, pois, ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela que tinham visto quando no oriente ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino. Ao verem eles a estrela, regozijaram-se com grande alegria. E entrando na casa, viram o menino com Maria sua mãe e, prostrando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, ofertaram-lhe dádivas: ouro, incenso e mirra. Ora, sendo por divina revelação avisados em sonhos para não voltarem a Herodes, regressaram à sua terra por outro caminho [...] (BÍBLIA SAGRADA, Editora Santuário,1993, p. 1435-1436). A breve aparição dos Três Reis Magos durante essa narrativa contribui para que ao longo dos anos, a Igreja Católica e os devotos venham incorporando novos fatos, ações e personagens à trama original a fim de enaltecer a cena do episódio do nascimento de Jesus. Trata-se de um processo secular que, de modo algum pretendo discutir – dado a ausência de evidências plausíveis e a sua pertinência em relação à proposta desta pesquisa – mas que sem dúvida está ligado à capacidade das folias de reis de reencenar esse episódio bíblico. Com base na narrativa do nascimento de Jesus, a Companhia Fernandes estabelece uma hierarquia entre as divindades que integram esta cosmologia: 51 DEUS (Entidade suprema - O criador) MENINO JESUS (O filho de Deus – Salvador do Mundo) MARIA JOSÉ FAMÍLIA SAGRADA (Jesus, Maria e José) SANTOS REIS (Gaspar, Baltazar e Melchior) Quadro 01: Hierarquia das entidades que integram a cosmologia do ritual. Fonte: Elaborado pelo autor (2016). O grau de importância estabelecido entre essas divindades se constitui de acordo com a sua essência – humana ou divina – e o quão é poderosa. Em um de seus extremos temos Deus, que é o ser supremo, e no outro os Santos Reis, que representam os humanos. De modo intermediário, temos o Menino Jesus, que representa o humano e o divino simultaneamente, e José e Maria, que representam o humano que já está em contato com o divino. Para os foliões, a narrativa do nascimento parte da perspectiva dos Três Reis Magos e trata justamente do humano tentando estabelecer contato com o divino. Além disso, é interpretada também como uma demonstração de valores e condutas necessários para que esse processo de transcendência (humano transformado em divino) ocorra. Logo, os foliões, imbuídos pela fé, veem nos Três Reis Magos um exemplo de vida a ser seguido: Os Treis Reis Santo são muito milagroso. Eles participar do que participou [do nascimento de Jesus], são pessoas muito abençoada. Não é qualquer um que tem esse privilégio de ir lá...ir guiado por Deus e fazer aquele homenagem bonita que fizeram. Todos nós queria tá no lugar deles..mas eles fôro privilegiado..e foi pela pessoa que eles foram (ENTREVISTA 6, Roberto José de Carvalho, 2015). A representação dessa cosmologia ocorre através da relação entre a Companhia e os devotos, em que cada um parte de uma perspectiva distinta à do 52 outro; foliões reproduzindo a jornada dos Três Reis Magos e os devotos reproduzindo a cena do nascimento de Jesus. Esse diálogo entre as partes – foliões e devotos – é que gera a demanda para que a manifestação se valide, através de trocas e representações. A respeito dessas representações, Zaluar afirma que: Através do uso de símbolos, os agentes estão referindo-se a importantes noções abstratas – tais como solidariedade grupal, poder, autoridade, dependência, reciprocidade social, et. – para as quais podem não possuir termos precisos que facilitem sua comunicação. [...] Metáforas e metonímias constituem os principais componentes dos códigos mágico-religiosos, estando todas baseadas na relação de analogia, por similaridade ou contiguidade pelo símbolo e aquilo que este substitui ou representa (ZALUAR, 1983, p. 33). Os símbolos adotados pelos foliões e devotos indicam não só uma tentativa em materializar as entidades sagradas durante o ritual, mas também de reproduzir suas condutas e valores e, deste modo, torná-las próximas à sua realidade. O devoto, ao preparar a sua casa para a acolhida à Companhia, demonstra valores de cordialidade, de hospitalidade e de respeito aos Santos Reis e também aos foliões. Assim também, os praticantes, ao deixarem de lado suas atividades profissionais, família e demais rotinas cotidianas para integrarem a jornada de visitas às casas dos devotos, replicam os valores pregados pelos Três Reis Magos; a devoção, a solidariedade, a humildade e a determinação em cumprir a jornada. Durante o ritual da Companhia Fernandes, a cosmologia, que rege o sistema de devoção da folia de reis, é expressa de modo mais explícito nas adorações aos presépios das casas dos devotos. É nesse momento que, através do canto de louvação do presépio e das recitações dos fardados, o episódio de nascimento Jesus é reafirmado: 53 Diz a escritura sagrada oi ai Ai nascimento de Jesus oi ai Ai nascimento de Jesus oi oooo 25