UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS –UNESP, UNICAMP E PUC-SP DANIELLE AMARAL MAKIO Estado afetivo, memória transcendente: reverberações do nacionalismo russo na Crimeia e na Transnístria São Paulo 2022 DANIELLE AMARAL MAKIO Estado afetivo, memória transcendente: reverberações do nacionalismo russo na Crimeia e na Transnístria Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc-SP), como exigência para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, defesa e segurança internacional”, na linha de pesquisa “Conflitos internacionais e violência nas sociedades contemporâneas” Orientador: Luís Alexandre Fuccille São Paulo 2022 DANIELLE AMARAL MAKIO Estado afetivo, memória transcendente: reverberações do nacionalismo russo na Crimeia e na Transnístria Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc-SP), como exigência para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, defesa e segurança internacional”, na linha de pesquisa “Conflitos internacionais e violência nas sociedades contemporâneas” Orientador: Luís Alexandre Fuccille BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) Prof. Dra. Cristina Soreanu Pecequilo (Universidade Federal de São Paulo) Prof. Dra. Renata Summa (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) São Paulo, 9 de dezembro de 2022 A todos e todas que sofrem com a guerra que volta a assombrar a todos nós AGRADECIMENTOS Agradeço inicialmente à universidade pública brasileira, em especial ao PPGRI San Tiago Dantas, pela oportunidade de realizar este mestrado. A qualidade dos estudos que pude conduzir ao longo deste programa é testemunha da excelência da Academia brasileira, a qual exalto incessantemente. Agradeço também ao meu orientador, Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille, não somente pela necessária orientação, mas também pela generosidade e pela compreensão ao longo dos mais de dois anos em que esta pesquisa esteve em desenvolvimento. Inúmeros desafios surgiram no caminho, empecilhos que por vezes impactaram severamente a condução dos meus estudos, e o professor mostrou-se sempre solícito e sensível às minhas necessidades. Da mesma maneira, agradeço ao Prof. Dr. Samuel Alves Soares pela irretocável orientação em estágio docência e às professoras Cristina Pecequilo e Renata Summa, sem as quais esta dissertação certamente não teria me feito caminhar por caminhos tão tortuosos e, ainda assim, tão frutíferos. Levarei sempre comigo as valiosas contribuições feitas durante a qualificação e a defesa deste trabalho. Agradeço, ainda, aos meus colegas de turma e de grupos de estudos – GEDES, NEAI e GECI – que provaram certo o clichê: o fardo é realmente mais leve quando temos boas pessoas com quem compartilhar. Não poderia, ainda, deixar de agradecer à minha família por sempre me apoiar e me mostrar o caminho correto pelo qual seguir. Mais uma vez mostraram-se elementares na minha vida, a parte mais especial que carrego comigo não importa onde esteja. Não fossem pelos conselhos certeiros, os abraços nos momentos certos e a inigualável confiança que sempre depositaram em mim eu talvez não conseguisse concluir mais esta etapa da minha carreira. Obrigada por terem, mais uma vez, sido luz em um dos momentos mais tenebrosos da minha vida e por serem a mais pura felicidade quando chegou ao fim a empreitada. Igualmente importante foi o Hugo, com quem já divido a vida há tantos anos e que sempre me levanta quando não consigo seguir e me aconselha quando pareço me perder em pensamentos e inseguranças. Acreditar em nós mesmos fica muito mais fácil quando temos quem nos ame e nos exalte. É imprescindível que eu agradeça também a Larissa, mais um dos muitos presentes que a universidade brasileira me deu. Pesquisadora incrível e amiga-irmã sem a qual esta pesquisa não seria possível. Obrigada por cada aula que se tornava desabafo, por cada abraço acolhedor e por cada mensagem de suporte. Agradeço, ainda, meus amigos do mundo, Abby, Sophie, Ebba, Tara, Emily, Alex, Elliot, Daniel, Henry, Dina, que me lembram a todo o momento do meu valor e que me mostraram que é possível recuperar a esperança de um futuro melhor. Como fui feliz ao lado de vocês! E, falando em amizades, não poderiam faltar minhas comadres da pensão e Fernando e Natasha, que mesmo distantes continuam imprescindíveis na minha vida. Agradeço, por fim, à Universidade de Glasgow (Escócia), à KIMEP (Cazaquistão), à Universidade de Tartu (Estônia) e à União Europeia por me conferirem o privilégio de realizar um programa de mestrado que me permitiu mergulhar fundo na complexidade dos estudos sobre Rússia e todo o espaço pós-soviético. A memória aniquila o tempo: conduz à unidade aquilo que parece ter acontecido em separado. L. Tolstoy RESUMO Este trabalho pretende compreender as razões que levaram a Rússia a tomar atitudes distintas em relação à Crimeia e à Transnístria em 2014. À época, a anexação da península fora justificada sob a égide do direito à autodeterminação após resultado de plebiscito em que mais de 90% da população se identificava como parte do mundo russo. A região separatista da Moldávia, contudo, há anos luta para ser integrada à Federação Russa e, apesar da semelhança entre seu contexto político e o da Crimeia, não recebeu o mesmo tratamento. Nosso argumento central é que, dada a narrativa que embasa a construção do nacionalismo promovido por Putin e por sua coalizão, a manutenção da influência de Moscou sobre a Ucrânia é uma questão de maior interesse do que a tomada de poder sobre a Transnístria. Baseada amplamente em memórias acerca da glória do passado russo e em experiências traumáticas de relações com o Ocidente, o Kremlin esboça um projeto político que pretende retomar o lugar da Rússia no tabuleiro internacional, seu lugar de direito dada a excepcionalidade de seu povo e Estado. Para tanto, o comportamento do Estado é dirigido por uma espécie própria de orientalismo que, a partir de uma amálgama de interesses estratégicos e discursivos, essencializa o externo a fim de legitimar seu domínio sobre ele. Esta essencialização se dá com base em características identitárias compartilhadas e serve ao propósito único da política de grande potência do Kremlim. Crimeia e Transnístria, nesse contexto, ocupam lugares distintos na narrativa de Moscou tanto do ponto de vista geopolítico quanto afetivo. O controle do berço do eslavismo, a Ucrânia moderna, assim, é um objetivo central do governo russo, o que justifica as diferentes posturas tomadas em relação aos casos aqui analisados a despeito das semelhanças partilhadas por ambos. Palavras-chave: nacionalismo russo; Transnístria; Crimeia; orientalismo; Rússia. ABSTRACT This work intends to understand the reasons that led Russia to take different attitudes towards Crimea and Transnistria in 2014. At the time, the annexation of the peninsula was justified under the aegis of the right to self-determination after the result of a plebiscite in which more than 90% of the population identified themselves as part of the Russian world. The breakaway Moldovan region, however, has struggled for years to be integrated into the Russian Federation and, despite the similarity between its political context and that of Crimea, it has not received the same treatment. Our central argument is that, given the narrative that underlies the construction of nationalism promoted by Putin, maintaining Moscow's influence over Ukraine is a matter of greater interest than taking power over Transnistria. Based largely on memories of the glory of the Russian past and on traumatic experiences of relations with the West, the Kremlin outlines a political project that intends to regain Russia's place on the international board, its rightful place given the exceptionality of its people and state. To this end, the behavior of the state is guided by its own kind of orientalism that, based on an amalgamation of strategic and discursive interests, essentializes the external in order to legitimize its dominion over it. This essentialization is based on shared identity characteristics and serves the unique purpose of the Kremlin's great power politics. Crimea and Transnistria, in this context, occupy distinct places in the Moscow narrative both from a geopolitical and affective point of view. The control of the cradle of Slavism, modern Ukraine, is thus a central objective of the Russian government, which justifies the different positions taken in relation to the cases analyzed here, despite the similarities shared by both. Key words: Russian nationalism; Transnistria; Crimea; orientalism; Russia. RESUMEN Este trabajo pretende comprender las razones que llevaron a Rusia a adoptar actitudes diferentes hacia Crimea y Transnistria en 2014. En ese momento, la anexión de la península se justificó bajo la égida del derecho a la autodeterminación tras el resultado de un plebiscito en el que más del 90% de la población se identificó como parte del mundo ruso. La región separatista de Moldavia, sin embargo, ha luchado durante años por integrarse en la Federación Rusa y, a pesar de la similitud entre su contexto político y el de Crimea, no ha recibido el mismo trato. Nuestro argumento central es que, dada la narrativa que subyace a la construcción del nacionalismo promovida por Putin, mantener la influencia de Moscú sobre Ucrania es un asunto de mayor interés que tomar el poder sobre Transnistria. Basado en gran parte en recuerdos de la gloria del pasado ruso y en experiencias traumáticas de las relaciones con Occidente, el Kremlin esboza un proyecto político que pretende recuperar el lugar de Rusia en el tablero internacional, el lugar que le corresponde dada la excepcionalidad de su pueblo y Estado. Para ello, el comportamiento del Estado se guía por un orientalismo propio que, a partir de una amalgama de intereses estratégicos y discursivos, esencializa lo externo para legitimar su dominio sobre él. Esta esencialización se basa en características de identidad compartidas y sirve al propósito único de la política de gran poder del Kremlin. Crimea y Transnistria, en este contexto, ocupan lugares distintos en la narrativa de Moscú tanto desde un punto de vista geopolítico como afectivo. El control de la cuna del eslavismo, la Ucrania moderna, es así un objetivo central del gobierno ruso, lo que justifica las distintas posiciones adoptadas en relación con los casos aquí analizados, a pesar de las similitudes compartidas por ambos. Palabras clave: nacionalismo ruso; Transnistria; Crimea; orientalismo; Rusia. РЕЗЮМЕ Цель этой работы - понять причины, побудившие Россию по-разному относиться к Крыму и Приднестровью в 2014 году. В то время аннексия полуострова была оправдана под эгидой права на самоопределение после результатов плебисцита, в ходе которого более 90% населения идентифицировали себя как часть русского мира. Однако отколовшийся молдавский регион в течение многих лет боролся за интеграцию в Российскую Федерацию, и, несмотря на сходство между его политическим контекстом и контекстом Крыма, он не получил такого же отношения. Наш главный аргумент заключается в том, что, учитывая нарратив, лежащий в основе построения национализма, продвигаемого Путиным, сохранение влияния Москвы на Украину представляет больший интерес, чем захват власти в Приднестровье. Основываясь в основном на воспоминаниях о славном прошлом России и травмирующем опыте отношений с Западом, Кремль намечает политический проект, который призван вернуть России место на международной арене, ее законное место, учитывая исключительность ее народа и государства. С этой целью поведение государства руководствуется своего рода ориентализмом, который, основанный на слиянии стратегических и дискурсивных интересов, эссенциализирует внешнее, чтобы узаконить свое господство над ним. Эта эссенциализация основана на общих характеристиках идентичности и служит уникальной цели великодержавной политики Кремля. Крым и Приднестровье в этом контексте занимают особое место в московском нарративе как с геополитической, так и с эмоциональной точки зрения. Таким образом, контроль над колыбелью славянства, современной Украиной, является центральной целью российского правительства, что оправдывает различные позиции, занятые в отношении анализируемых здесь случаев, несмотря на сходство, разделяемое обоими. Ключевые слова: русский национализм; Приднестровье; Крым; ориентализм; Россия. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 – Mapa da Transnístria e da Crimeia......................................................... 16 Ilustração 2 – Mapa aproximado do território da Rus de Kievana................................ 46 Ilustração 3 – Mapa aproximado do avanço da extensão territorial da Comunidade Polaco-Lituana........................................................................................ 49 Ilustração 4 – Mapa dos territórios anexados pela Rússia durante o reinado de Catarina II (1762 – 1796)........................................................................ 51 Ilustração 5 – Mapa do território do Hetmanato............................................................ 87 Ilustração 6 – Mapa das expansões territoriais russas até Catarina, a Grande (1762 – 1796)....................................................................................................... 89 Ilustração 7 – Mapa dos territórios perdidos pela Rússia no Acordo de Brest-Litovsk 92 Ilustração 8 – Mapa da RPUO e da RSS da Ucrânia em 1918...................................... 93 Ilustração 9 – Mapa da Bessarábia................................................................................ 103 Ilustração 10 – Mapa dos territórios moldavos perdidos pelo Império Russo entre 1856 e 1878............................................................................................. 105 Ilustração 11 – Mapa da Grande Romênia e da RSS autônoma da Moldávia................. 107 Ilustração 12 – Brasão de Armas da Ucrânia................................................................... 121 Ilustração 13 – Mapa da divisão etnolinguística da Ucrânia........................................... 125 Ilustração 14 – Mapa das regiões favoráveis às ações russas na Ucrânia em 2014......... 125 Ilustração 15 – Mapa da distribuição das comunidades russófonas na Ucrânia.............. 129 Ilustração 16 – Divisão étnica da Moldávia em 2014...................................................... 134 Ilustração 17 – Mapa dos gasodutos russos que transitam pela Ucrânia......................... 139 Ilustração 18 – Destinos de exportação do gás russo em 2012........................................ 151 Ilustração 19 – Mapa da fronteira de expansão da OTAN.............................................. 151 Ilustração 20 – Mapa da expansão da EU........................................................................ 153 Ilustração 21 – Mapa da Ucrânia..................................................................................... 154 Ilustração 22 – Mapa dos gasodutos russos na Moldávia................................................ 154 Ilustração 23 – Mapa da Transnístria............................................................................... 158 Ilustração 24 – Mapa da Transnístria............................................................................... 161 Lista de tabelas Tabela 1 – Comparativo entre orientalismo de Said e orientalismo russo.................... 77 Tabela 2 – Divisão étnica da Moldávia em 1989.......................................................... 112 Tabela 3 – Divisão étnica da Transnístria..................................................................... 112 Tabela 4 – Síntese da identidade ucraniana................................................................... 127 Tabela 5 – Votos do parlamento ucraniano contra a concessão de estatalidade à República Autônoma da Crimeia................................................................ 131 Tabela 6 – Votos a favor da submissão do governo da Crimeia ao governo a Ucrânia em 1995....................................................................................................... 132 Tabela 7 – Síntese da identidade da Crimeia às vésperas da anexação......................... 135 Tabela 8 – Síntese da identidade moldava.................................................................... 140 Tabela 9 – Síntese da identidade da Transnístria.......................................................... 143 Tabela 10 – Comparativo do grau de russianidade de Ucrânia, Crimeia, Moldávia e Transnístria.................................................................................................. 144 Tabela 11 – Importância estratégica da Ucrânia para a Rússia....................................... 155 Tabela 12 – Importância estratégica da Crimeia para a Rússia....................................... 157 Tabela 13 – Importância estratégica da Moldávia para a Rússia.................................... 160 Tabela 14 – Importância estratégica da Transnístria para a Rússia................................. 162 Tabela 15 – Comparativo do nível de importância estratégica de Ucrânia, Crimeia, Moldávia e Transnístria para a Rússia......................................................... 163 Tabela 16 – Comparativo do nível de relevância de Ucrânia, Crimeia, Moldávia e Transnístria para a Rússia............................................................................ 166 Lista de abreviaturas e siglas CEI Comunidade dos Estados Independentes EUA Estados Unidos da América EUBAM European Border Assistance Mission to Moldova and Ukraine GUAM Georgia-Ukraine-Azerbaijan-Moldova (Organization for Democracy and Economic Development) OSCE Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte PEV Política Europeia de Vizinhança PIB Produto Interno Bruto RPUO República Popular da Ucrânia Ocidental RSS República Socialista Soviética UE União Europeia URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 15 2. REPENSANDO O ESTADO: DA IDENTIDADE AO AFETO ................................. 22 2.1 Identidade e alteridade: criando a narrativa do Estado ................................................................................... 23 2.2 Estado ou pessoa? A antropomorfização como fonte de injustiça ................................................................ 26 2.3 Memória e trauma: a materialidade do afeto ........................................................................................................ 29 2.4 Novo Estado? ........................................................................................................................................................................ 33 2.5 Novas fronteiras para a dominação? ......................................................................................................................... 35 2.6 Conclusões do capítulo ..................................................................................................................................................... 41 3. OS DETERMINANTES DA RUSSIANIDADE .............................................................. 46 3.1 O lugar do Ocidente .......................................................................................................................................................... 46 3.2 (Re)Politizando a tradição: excepcionalismo e trauma ..................................................................................... 64 3.3 O mundo russo ..................................................................................................................................................................... 69 3.4 Orientalismo à lá Rússia? ............................................................................................................................................... 73 3.5 Conclusões do capítulo ..................................................................................................................................................... 79 4. UCRÂNIA E MOLDÁVIA: UM BREVE HISTÓRICO DE RELAÇÕES COM A RÚSSIA .................................................................................................................................... 84 4.1 Ucrânia .................................................................................................................................................................................... 84 4.2 Moldávia .............................................................................................................................................................................. 103 4.3 Conclusões do capítulo .................................................................................................................................................. 115 5. OS MEIOS JUSTIFICAM OS FINS: A RUSSIANIDADE COMO DETERMINANTE DA AÇÃO DO ORIENTALISMO RUSSO ....................................................................... 117 5.1 Ucrânia e Crimeia ........................................................................................................................................................... 121 5.2 Moldávia e Transnístria ............................................................................................................................................... 136 5.3 Conclusões do capítulo .................................................................................................................................................. 144 6. GEOPOLÍTICA 101: ECONOMIA, SEGURANÇA E A POLÍTICA RUSSA DE GRANDE POTÊNCIA ......................................................................................................... 148 6.1 Ucrânia e Crimeia ........................................................................................................................................................... 151 6.2 Moldávia e Transnístria ............................................................................................................................................... 158 6.3 Conclusões do capítulo .................................................................................................................................................. 163 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 167 REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 176 15 1. INTRODUÇÃO Era novembro de 2013 quando algumas pessoas foram às ruas de Kiev protestar contra Viktor Yanukovych (2010-2014), então presidente democraticamente eleito à frente do país desde 2010. Os manifestantes criticavam a suspensão das negociações do Acordo de Associação com a União Europeia (UE) que vinha sendo orquestrado desde 2012. O tratado ainda não havia sido ratificado pois o Parlamento Europeu havia imposto algumas condições que deveriam ser acatadas pela Ucrânia a fim de torná-la apta a se integrar ao bloco. As exigências incluíam reforma tributária, cortes no orçamento, entre outros exemplos. O presidente vinha cooperando com os europeus e lançou uma série de medidas voltadas ao cumprimento das determinações destes. No entanto, às vésperas do início dos protestos, Yanukovych abandonou as negociações relacionadas à entrada do país no bloco. Tendo em vista a orientação política do governante, que sabidamente era favorável a uma maior aproximação com a Rússia, especulou-se que a razão pela decisão tomada por ele era fruto de pressões vindas de Moscou (BEBLER, 2015). De início, os protestos foram pacíficos e espontâneos e eram formados sobretudo por estudantes que se aglomeravam na Praça Maidan, na capital. Os manifestantes uniam-se em torno de críticas ao governo e pediam por uma maior aproximação da UE em detrimento do aprofundamento da já existente dependência em relação à Rússia. A adesão às manifestações cresceu espontaneamente até que, poucos dias após o início delas, estima-se que cerca de 400 mil pessoas estavam nas ruas. Nesse ínterim, em resposta ao tamanho do movimento, a polícia passou a reprimir os protestantes de forma violenta, o que apenas aumentou o número de pessoas nas ruas. Nesse momento, a iniciativa foi cooptada por diferentes setores da sociedade, inclusive grupos políticos ultranacionalistas altamente contrários à Rússia. Ao longo de dezembro e janeiro, os protestos continuaram de forma violenta. Prédios foram tomados, patrimônio público foi degradado e ocorreram inúmeras tentativas de ocupação de prédios do governo por parte dos manifestantes. Estes, inclusive, já clamavam pela saída de Yanukovych do poder (BEBLER, 2015). Em fevereiro de 2014, há uma nova escalada na violência das manifestações e mortes começam a ser contabilizadas. Apesar das tentativas por parte do governo de amenizar a situação e das propostas de trégua, a multidão exigia a renúncia do presidente para que os protestos acabassem. Em 22 de fevereiro, Yanikovych anuncia sua saída do cargo e novas 16 eleições são marcadas para 25 de maio de 2014. Por ter início na Praça Maidan e ser motivada pelo desejo de aproximação à Europa, o episódio ficou conhecido como Euromaidan (BEBLER, 2015). Para além da troca de governo em Kiev, os protestos que começaram em 2013 tiveram outras consequências para a Ucrânia. Logo após a deposição do presidente, tropas russas não identificadas tomaram a Crimeia, região na qual habitavam comunidades etnicamente russas favoráveis a uma maior cooperação com Moscou. Houve, ao longo de fevereiro e março, a ocupação de aeroportos, prédios oficiais e parlamento. Não houve qualquer impeditivo por parte das autoridades e população locais. Estes, contrários aos acontecimentos na capital, começaram então a se mobilizar pois temiam as consequências da renúncia do presidente e do protagonismo de setores ultranacionalistas nos recentes protestos. Dessa maneira, é feito um plebiscito sobre o estatuto da Crimeia em março de 2014 a fim de consultar a opinião da população local acerca dos recentes acontecimentos em Kiev e acerca dos seus desejos para o futuro da península. Entre os votantes, 97,47% declararam apoio à anexação do território à Federação Russa, fato que de imediato foi reconhecido pelo Kremlin. Até hoje, a independência da Crimeia é aceita apenas por 16 membros das Nações Unidas e 4 Estados de facto. Além disso, após o Euromaidan houve ainda a incitação do separatismo das repúblicas de Donetsk e Luhansk, na região do Donbas. Estas, na esteira dos acontecimentos do início de 2014, por também representarem locais na Ucrânia etnicamente próximos da Rússia e por defenderem uma maior aproximação desta, pedem por independência desde então. A situação na bacia do Donets, porém, evoluiu para uma guerra entre irredentistas e Kiev que até hoje se mantém ativa1 (BEBLER, 2015). À época, houve grande comoção internacional e foram levantadas inúmeras hipóteses acerca dos motivos por trás da decisão de Putin e de seus apoiadores e da possibilidade de haver novas anexações por parte da Rússia. Nesse contexto, cresceu o temor de que a Rússia pudesse seguir seu ímpeto expansionista e declarar posse também sobre a Transnístria, região separatista na Moldávia que luta por independência desde o fim da União Soviética, da qual fazia parte. À semelhança do ocorrido na Ucrânia, em 2006 Tiraspol realizou plebiscito parecido com o da Crimeia. Na consulta, mais de 90% da população pedia anexação à Rússia. Ademais, a 1 Neste trabalho, não iremos tratar dos separatismos do Donbas, nossa análise se limitará aos casos da Crimeia e da Transnístria. 17 Transnístria contava ainda com tropas russas posicionadas em seu território2. As preocupações da comunidade internacional pareciam plausíveis (GUINEA, 2014; KASHI, 2014). Ilustração 1 – Mapa da Transnístria e da Crimeia Fonte: TAYLOR, 2014 Contrariando as expectativas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e demais atores internacionais, o Kremlin não satisfez o desejo dos irredentistas na Moldávia e se limitou à tomada da península ucraniana. Para além do receio gerado à época em relação às atitudes russas na região, alguns outros fatores tornam a questão ainda mais curiosa. O primeiro ponto já foi de certa forma apresentado e diz respeito ao contexto político-social de cada local aqui analisado. Tanto Transnístria quanto Crimeia compartilham o fato de que possuem uma população que se identifica com a ideia de nação russa e demonstram dinâmicas similares no que diz respeito à postura do governo central dos países que formalmente integravam às vésperas da anexação russa. Enquanto na primeira há presença militar da Rússia e houve apoio de Moscou no rompante do movimento independentista nos anos 1990, na segunda houve a reanexação conduzida por tropas enviadas pelo Kremlin. Tanto Kiev quanto Chisinau vinham, 2 As tropas, que continuam posicionadas na Transnístria até hoje, encontram-se no local desde 1992, quando foram enviadas a fim de conter a escala de violência do conflito entre separatistas e Moldávia. 18 à época, demonstrando movimentos ocidentalizantes3: enquanto o poder ucraniano havia sido recentemente tirado de Viktor Yanukovytch e entregue à coalizão pró-Ocidente, Chisinau vinha se engajando em projeto de ocidentalização4 desde o início dos anos 1990, quando se tornou independente. Outro fator que aproxima os casos da Transnístria e da Crimeia é o social. Ambos contam com populações que declaradamente se identificam mais com a Rússia do que com o Estado em que se inserem territorialmente, fruto de um histórico de ocupação e domínio que será melhor abordada doravante. Finalmente, uma outra característica é a questão geográfica: ambas as regiões são próximas e se localizam em uma zona de fronteira entre o Ocidente, a Rússia e o exterior próximo desta (GUINEA, 2014; KASHI, 2014). Por outro lado, há diferenças interessantes entre Crimeia e Transnístria que parecem dar indícios acerca das razões que embasaram tratamentos tão diferentes por parte da Rússia. Uma distinção é a geopolítica/econômica. Ambos os territórios estão localizados em regiões geograficamente importantes uma vez que são pontos limítrofes entre o domínio russo e o mundo ocidental. Porém, a Transnístria, além de não apresentar território contíguo à Rússia, não goza de características economicamente muito interessantes para o Kremlin para além de contar com alguns gasodutos russos passando por seu território e representar a área mais industrializada da Moldávia, o que pode conferir a Moscou certa margem de manobra no sentido de instrumentalizar sua presença como forma de manter influência sobre Chisinau. Já a Crimeia tem alguns diferenciais importantes: (i) dá acesso ao Mar Negro e (ii) é onde se localiza a base militar russa de Sevastopol, na qual se localiza a Frota do Mar Negro, sendo de extrema relevância para o contexto militar de Moscou (MIROVALEV, 2021). Em um primeiro instante, essas características da península ucraniana parecem ser potencialmente suficientes para que entendamos porque, a despeito das semelhanças já destacadas, a Crimeia foi anexada e a Transnístria não. Contudo, ao analisar os resultados da anexação somos confrontados com um cenário pouco favorável: estima-se que Moscou teve um prejuízo de aproximadamente 100 bilhões de dólares e 8% do produto interno bruto (PIB) comprometido, sem considerar o efeito que o evento surtiu sobre relações diplomáticas com 3 Relativo à ocidentalização, processo aqui compreendido como um conjunto de práticas que um Estado promove a fim de se aproximar das normas, valores, pensamentos e instituições que formam o Ocidente civilizacional/geopolítico do globo e que por ele são promovidas. No que diz respeito à Moldávia, podemos destacar o desejo do país de adentrar a União Europeia, objetivo que, para ser atingido, demanda que o Estado demonstre adesão a certos comportamentos, como, por exemplo, ocorrência de eleições recorrentes e trocas de poder e demais determinantes da democracia liberal. 4 O processo de ocidentalização moldavo é lento e irregular, mas, à época da invasão da Crimeia em 2014 vinha esboçando alguns avanços (KASHI, 2014). 19 outros países que não necessariamente aplicaram sanções contra a Rússia, mas que reduziram a abertura a novas negociações, como ocorrido no Cazaquistão. Se pensarmos, ainda, que a atitude do Kremlin ocorreu de forma imediata, apenas alguns poucos dias após a troca do governo de Kiev, sem que novas decisões importantes fossem tomadas no que diz respeito à relação com a Rússia, podemos ainda sugerir que as razões outrora apontadas, ainda que inegavelmente importantes, valem, por si só, o sabor amargo que resultou da anexação? (MIROVALEV, 2021). Certamente essas questões de cunho estratégico/material tiveram um papel relevante na tomada de decisão de Putin e de seu grupo, porém, sozinhos, são elementos que não parecem suficientes para entendermos toda a complexidade do evento aqui abordado. Há, ainda, uma última diferença entre Transnístria e Crimeia que pode nos ajudar a suprir essa lacuna, a encontrar o outro elemento que, junto dos demais, levou à anexação da península e à continuação do cenário moldavo. Essa característica última é o papel que cada região tem no discurso de nação promovido pelo Kremlin. Desde sua chegada ao poder, e sobretudo a partir de 2008, quando a população passa a se protestar contra seu governo, Putin e suas elites têm promovido uma narrativa histórico-ideacional muito particular para definir a configuração da nação russa. As características selecionadas pelo presidente para delinear a identidade oficial da Rússia, aquela que se sustenta com apoio das elites que controlam o país, têm um teor altamente afetivo. A maneira com que o Kremlin retoma a grandeza da história russa para justificar o lugar do país entre as maiores potências do mundo diz muito a respeito do papel das memórias na construção do nacionalismo da Rússia contemporânea. Nesse contexto, alguns fatores são especialmente reforçados pelo discurso de Moscou, entre os quais se destacam a exaltação do povo eslavo, cuja origem histórica se deu na Ucrânia e em cuja formação a Crimeia teve papel fundamental (KOROLKOV, 2014). Como afirma Gerar Toal (2017), o comportamento estatal é sim em certa medida informado pela geopolítica “clássica”, pelos interesses de ordem securitária e com forte viés geográfico. Contudo, para termos um entendimento mais profundo acerca da constituição de um Estado e de sua agenda, é preciso que consideremos outros elementos, entre os quais o autor destaca o afeto. “Falar de geopolítica afetiva, então, é ampliar e aprofundar nossa compreensão 20 da geopolítica como uma forma de pensar e agir que se apoia em fundamentos bioculturais5” (TOAL, 2017, p. 46, tradução nossa). Dessa maneira, o autor argumenta que a delimitação daquilo que chamaremos “interesses do Estado” se dá com base em necessidades materiais e a busca por maximização de poder e, também, pelas implicações práticas da maneira com que um país configura sua ideia de nação. Assim, importam as bases valorativas e morais do Estado, bem como suas memórias, medos e traumas. Com base no exposto, este trabalho buscará responder à seguinte pergunta principal: de que maneira a ideia de nação promovida por Putin explica as diferentes posturas adotadas pelo Kremlin nos casos da Crimeia e da Transnístria no contexto da crise política ucraniana de 2014? O objetivo da pesquisa é, pois, compreender por quais razões a Rússia, ao anexar a Crimeia em 2014, não fez o mesmo com a Transnístria, região separatista da Moldávia que faz fronteira com a Ucrânia e cuja população há anos pede pela integração à Federação Russa. Partimos da hipótese de que os elementos geopolíticos e até mesmo econômicos são, quando considerados de forma isolada, insuficientes, ainda que importantes, para a compreensão dos motivos que levaram o Kremlin a agir de forma distinta em cada uma das regiões a despeito das aparentes similaridades observadas entre elas. Sugerimos, assim, que a razão destes diferentes comportamentos de Moscou explica-se também pelo nacionalismo promovido por Putin (e sua coalizão política), que deve ser considerado em conjunto com características de cunho estratégico. O afeto envolvido na relação com a Ucrânia/Crimeia não se assemelha àquele que configura a dinâmica da interação russa com Moldávia/Transnístria. Logo, ainda que possa haver interesses de ordem material por parte de Moscou em relação aos enclaves, e ainda que as vantagens oferecidas por cada um deles possa também apresentar diferenças qualitativas e quantitativas, o fator afetivo/ideológico tem papel indispensável nos casos analisados. Esperamos, dessa forma, contribuir com os estudos acerca da política externa russa e do espaço pós-soviético no Brasil e da conexão entre afeto e relações internacionais. A pesquisa, pois, será estruturada da seguinte maneira. O primeiro capítulo pretende analisar o Estado da arte do debate teórico entre memória, trauma, afetos e atuação/formação estatal para que sejam estabelecidas as bases que orientarão a compreensão dos elementos 5 Do original: “To speak of affective geopolitics, then, is to broaden and deepen our understanding of geopolitics as a form of thinking and acting that rests on bio-cultural foundations”. 21 analisados. Dessa maneira, pretendemos demonstrar como esses elementos são relevantes e como eles se materializam no comportamento dos Estados, influenciando as formas de dominação e de organização destes. O segundo capítulo trata do nacionalismo russo liderado por Putin. Uma vez compreendidos os efeitos dos conceitos teóricos aqui mobilizados sobre o Estado, pretendemos observar como os mesmos orientam a construção da identidade nacional da Rússia de forma a fazê-la definir seu comportamento de acordo com esses elementos. O terceiro capítulo tratará da formação estatal da Ucrânia e da Moldávia. O objetivo é retomar o histórico de relações de ambos com a Rússia e demonstrar como se deu a construção político- social das regiões em disputa analisadas aqui – Crimeia e Transnístria. A ideia, assim, é demonstrar os processos que a resultaram na postura pró-Rússia destes locais e que efeitos isso tem sobre a dinâmica de relacionamento com o governo central (Kiev e Chisinau) e Moscou. O capítulo quatro tratará da formação identitária de Ucrânia, Crimeia, Moldávia e Transnístria. O objetivo é desvelar o processo de construção das identidades de cada local a fim de analisar em que medida são estas alinhadas ao discurso político de Moscou. Assim, esperamos compreender de que maneira as bases do nacionalismo russo reverberam sobre cada um dos quatro objetos. Optou-se por conduzir uma análise mais ampla, considerando também Ucrânia e Moldávia, pois as regiões irredentistas que figuram no objetivo central deste trabalho estão inseridas no território de ambos os países. Dessa forma, partimos do pressuposto que há algum nível de relação entre as identidades nacionais oficiais (reforçadas por Kiev e Chisinau) e as separatistas (lideradas pela Crimeia e pela Transnístria). O capítulo cinco, à semelhança do que foi feito no capítulo anterior, analisará o grau de interesse geopolítico e econômica da Rússia em relação a cada uma das quatro regiões. Em ambas as partes [capítulos quatro e cinco] serão definidos indicadores que guiarão a análise e permitirão, ao final, uma comparação melhor sistematizada de todos os nossos objetos. Teremos, então, um capítulo final no qual sobreporemos as conclusões de cada capítulo a fim de responder à nossa pergunta de partida. Aqui, portanto, demonstraremos como os processos analisados em cada capítulo interagem com os efeitos do nacionalismo russo a fim de determinar se este é, de fato, um fator determinante na configuração das relações bilaterais entre o Kremlin e cada um dos casos estudados aqui. 22 2. REPENSANDO O ESTADO: DA IDENTIDADE AO AFETO Ainda que constitua um campo de estudos plural, as Relações Internacionais formam uma disciplina amplamente estadocêntrica. Por mais diversas que possam ser as abordagens e os conceitos usados para promover novas análises, a centralidade do Estado nos debates acadêmicos tem sido uma constante por anos. A despeito das muitas críticas tecidas em relação ao entendimento de Estado, às relações por ele estabelecidas entre outros, o agente estatal permanece o eixo primeiro das análises realizadas no âmbito das RI. Neste contexto, a identidade nacional emana como um elemento amplamente discutido e mobilizado como objeto de inúmeros estudos. A definição de uma identidade que permita ao Estado se inserir na seara internacional e estabelecer relações com demais agentes é um debate recorrente e do qual já surgiram frutíferas contribuições acerca de interesses nacionais, da formulação de política externa entre outras temáticas. A popularidade da própria noção de identidade e dos efeitos oriundos da sua utilização, contudo, não parecem ter a mesma expressão entre os pesquisadores de RI. Toda sociedade é despótica, pelo menos se nada de fora sobrevém para conter seu despotismo. Ainda assim, eu não diria que há algo artificial nesse despotismo: é natural porque é necessário e também porque, em certas condições, as sociedades não podem sobreviver sem ele6 (NEUMANN, 2004, p. 265, tradução nossa). A provocação feita por Iver Neumann (2004) levanta uma série de reflexões acerca de possíveis consequências da excessiva mobilização da identidade como forma elementar de compreensão do Estado. Estas, por sua vez, levam-nos a questionamentos acerca da medida em que o uso isolado dos conceitos de identidade estatal permite analisar o ente estatal em sua totalidade. Pensando nestas questões, este trabalho argumenta que o uso raso da crítica pós- estruturalista é um entre muitos fatores que nos faz atentar mais ao Estado enquanto sujeito do que enquanto objeto, enquanto criação fluida e orientada por diversos fatores de ordem material, subjetiva e afetiva. A popularização dos debates sobre linguagem e alteridade promovidos no seio do pós-estruturalismo, contudo, podem nos aproximar de essencializações e nos afastar de 6 Do original: “Every society is despotic, at least if nothing from without supervenes to restrain its despotism. Still, I would not say that there is anything artificial in this despotism: it is natural because it is necessary, and also because, in certain conditions, societies cannot endure without it”. 23 compreender em maior profundidade toda a complexidade de povos, comunidades e psiques que constituem aquilo que entendemos por Estado. Pensando nessas limitações, entendemos que a inclusão de novos elementos à análise pode nos auxiliar a compreender o Estado de forma mais complexa, a acessar entendimentos que extrapolam a dualidade por vezes perpetuada por teorias que lidam com o discurso e a língua. Assim, a partir de uma crítica à centralidade das noções de identidade e alteridade promovida pelo estadocentrismo típico do campo, buscaremos demonstrar como os conceitos de afeto, memória e trauma possibilitam novos entendimentos que extrapolam aquilo que nos é apresentado pelo centralismo absoluto da identidade do Estado-nação como unidade analítica a fim de não somente demonstrar suas limitações, mas, também — e sobretudo —, oferecer vislumbres sobre os caminhos que podem nos orientar a novas realidades e agendas. Esta análise, portanto, terá início com uma breve discussão acerca da interação entre pós- estruturalismo, identidade e alteridade a fim de destacar aquilo que irá orientar as críticas que se seguirão. A seguir, promoveremos uma discussão acerca da antropomorfização do Estado perpetrada pela centralidade dos estudos de identidade e demonstraremos como estas abordagens parecem incorrer em violências contra grupos sociais que são silenciados ao longo do processo de identificação. A seletividade de memórias e a relevância política de eventos traumáticos, neste quadro, serão, pois, integrados ao debate a fim de desvelar mecanismos de poder que nos permitem vislumbrar novos horizontes que estão além do Estado-nação e que dizem respeito a um novo tipo de Estado, mais fluido e dinâmico. 2.1 Identidade e alteridade: criando a narrativa do Estado Identidade é algo que o Estado tem ou é o que ele é? Com esta indagação, Bartelson nos propõe a questionar não apenas em que consiste a identidade nacional, mas, também, em que medida pode ela de fato existir. Algumas tradições, como aquelas que provêm do Realismo (MORGENTHAU,1948; WALTZ, 2004) e do Liberalismo (ANGELL, 2002; KEOHANE, 1988) não se preocupam efetivamente com uma conceituação de identidade nacional, e, quando invocam tal conceito, em geral o encaram como um elemento que surge juntamente do Estado e que assume características próprias e incontestes. A identidade, e mesmo a própria ideia de 24 nação, neste contexto, é dada e pretende representar na íntegra aquilo que é conhecido como Estado. Por outro lado, outras correntes de pensamento partem de diferentes entendimentos acerca da natureza deste elemento. Na esteira destas interpretações alternativas, o Construtivismo de Alexander Wendt (1992) é um marco à medida em que afirma que a identidade nacional nada mais é que uma amálgama de entendimentos e expectativas razoavelmente estáveis que identifica papéis. Ou seja, uma identidade não depende apenas daquilo que um indivíduo é, mas, também, daquilo que outros entendem acerca dele. Ainda que os contributos de Wendt nos apontem para um entendimento de identidade que nega o caráter imutável e perene — sugerido pelas abordagens anteriores — e nos alerte para o papel da intersubjetividade neste contexto, há ainda a permanência de alguma influência estruturalista que impõe certos limites ao debate. De acordo com Iver Neumman (2004), uma característica marcante da obra de Wendt é seu caráter organicista segundo o qual tudo aquilo que conhecemos pode ser categorizado como interno ou externo. Ainda que o “dentro” e o “fora” sejam existências que estabelecem relações relevantes entre si, há uma cisão indelével entre estes dois contextos. A identidade, por conseguinte, deve também ser compreendida a partir desta díade. Mesmo que o Construtivismo wendtiano, que viria ainda a influenciar uma série de outras obras enquadradas na mesma chave teórica, represente uma importante cisão às noções estáticas e/ou despreocupadas acerca da identidade, ele continua, em certa medida, limitado pela sua inerente dualidade. À medida em que a identidade nacional passa a ser compreendida apenas a partir do paradigma interno/externo, donde surgem os conceitos de identidade corporativa e de identidade coletiva, o universo de possibilidades que se encontra na sobreposição de ambos se perde. Uma possibilidade de superação das limitações apontadas na obra de Wendt é a inclusão da linguagem, mais especificamente do discurso, como elemento central da análise, o que é usualmente feito por autores como David Campbell (1992), Laclau e Mouffe (1985) e Derrida (1995). Segundo estes, é por meio de mecanismos discursivos que formamos nossa identidade e nosso conhecimento. Tal conclusão resulta de uma conceituação que, influenciada por Michel Foucault, confere ao discurso a alcunha de ato político à medida em que é ele produto da articulação entre saber e poder, entre o local de fala do sujeito e a comunidade que o legitima ou não. Nas palavras de Claudemar Fernandes (2007), podemos encarar o discurso da seguinte maneira: Inicialmente, podemos afirmar que discurso, tomado como objeto da Análise do Discurso, não é a língua, nem texto, nem a fala, mas necessita de 25 elementos linguísticos para ter uma existência material. Com isso, dizemos que discurso implica uma exterioridade à língua, encontra-se no social e envolve questões de natureza não estritamente linguística. Referimo-nos a aspectos sociais e ideológicos impregnados nas palavras quando elas são pronunciadas. Assim, observamos, em diferentes situações de nosso cotidiano, sujeitos em debate e/ou divergência, sujeitos em oposição acerca de um mesmo tema. As posições em contraste revelam lugares socioideológicos assumidos pelos sujeitos envolvidos, e a linguagem é a forma material de expressão desses lugares. Vemos, portanto, que o discurso não é a língua(gem) em si, mas precisa dela para ter existência material e/ou real (FERNANDES, 2007, s/p). O discurso, por conseguinte, ainda que dependa da linguagem, não se limita a ela nem em sua constituição nem em seus efeitos. Há um processo infindo de construção e reconstrução discursiva que determina os efeitos de sentido que o discurso produz, uma vez que o significado do mesmo depende tanto da realidade de quem “fala” quanto da de quem “ouve”. Estes efeitos de sentido, intimamente atrelados ao caráter socioideológico do discurso, estão, por sua vez, relacionados às narrativas que nos cercam e que nós mesmos produzimos e/ou reforçamos. Desta maneira, a identidade passa a ser compreendida para além da dicotomia entre interno e externo e nos oferece novas possibilidades de compreender sua natureza e sua lógica constitutiva (BAITELLO JUNIOR, 1997; DERRIDA, 1995). Ainda que as diferentes conceituações de identidade aqui expostas apresentem inúmeras diferenças entre si, há ao menos um ponto de aproximação entre todas elas: a maneira com que são mobilizadas. Seja entendida como um elemento dado e que de certa forma antecede grande parte da história moderna à medida em que nasce com o Estado, seja entendida como uma construção que se apoia em diversos aspectos, mas que ainda assim se materializa a partir da cisão entre dois universos, ou seja entendida como consequência discursiva, a identidade é referenciada para que se entenda o Estado no contexto internacional. Neste sentido, independente da natureza filosófica da abordagem escolhida para se conceituar este objeto, é preciso que este seja capaz de demonstrar como um determinado Estado se pode denominar um ator em meio a um ambiente (dito) anárquico. A soberania7, assim, é um marco teórico elementar a qualquer discussão de identidade estatal (RINGMAR, 1996; WEBER, 1998). 7 Aqui, partimos do conceito da soberania internacional legal estabelecido por Stephen Krasner (1999). Segundo o autor, esta é definida pelo reconhecimento de um Estado pelo outro. É, portanto, a partir deste reconhecimento mútuo que se estabelecem as interações entre os atores internacionais. É preciso que um agente seja reconhecido pelos demais para que possa ele ser concebido enquanto um ente único e particular cuja existência não se conteste e cujos limites sejam respeitados. 26 Para que haja a devida delimitação das fronteiras (sejam elas geográficas, sociais, políticas entre outras) que definem o Estado enquanto ator na seara global é preciso que sejam compreendidas as características que o singularizam e, para além disso, como elas se distanciam da caracterização que delimita os demais agentes, sejam eles estatais ou não. Neste contexto, a alteridade torna-se central no debate à medida em que trata justamente da relação antagônica, de diferenciação, que permite que sejam explicitados os limites que separam um Estado do outro. Desta maneira, há uma indução tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista prático de reforçar os discursos que corroboram esta cisão entre aqueles que compõem o cenário da política internacional (RINGMAR, 1996; WEBER, 1998). À medida em que esta indispensabilidade da alteridade se coloca, a formação das ditas “identidades corporativas”8 se torna indispensável para a sobrevivência e a prosperidade estatais e, assim, passa a ser perseguida. Nesta esteira de pensamento, podemos concluir, portanto, que a identidade estatal está ligada à busca pelos interesses do Estado, pois é graças a ela que este formulará as estratégias e práticas necessárias à concretização dos seus próprios objetivos. Se partirmos de uma abordagem positivista, esta identidade é a única da qual goza o agente e basta que as diferenças entre este e os demais sejam reforçadas. Contudo, se partirmos de tradições pós-positivistas, entenderemos que esta identidade que se pretende assumir deverá ser construída socialmente e deve mudar de acordo com o contexto em que se insere. Como diria David Campbell (1992), a identidade é um elemento performático e, por isso, necessita de movimentos constantes que a sustentem. Destes, destacam-se as narrativas que reforçam o embate entre o Self e o Outro (NEUMANN, 2004). A alteridade, assim, é indispensável à compreensão e à definição da identidade nacional a despeito da abordagem teórica. Esta premissa, contudo, não ocorre sem a ocorrência de efeitos importantes. 2.2 Estado ou pessoa? A antropomorfização como fonte de injustiça 8 Aqui compreendidas a partir das contribuições de Wendt, que sugere que a identidade corporativa é assumida pelo Estado como uma forma de perseguir os interesses nacionais deste. É, portanto, a identidade que é mobilizada para organizar o comportamento estatal necessário para que os objetivos sejam alcançados (1992). 27 Ao passo em que as relações de diferenciação entre um agente e os demais são cruciais para a definição de uma identidade, surge a necessidade igualmente relevante de forjar uma relativa homogeneidade interna que permita a um Estado assumir o papel de um ente suficientemente uno para que possa assumir uma identidade incontestável. Desta necessidade decorrem dois efeitos importantes: 1) a antropomorfização do Estado e 2) o silenciamento de grupos. Tendo em vista a busca pela estabilização de uma unidade doméstica, é recorrente que os Estados sejam antropomorfizados à medida em que lhe são atribuídos comportamentos e características que têm, em última instância, a intenção de reduzi-los à imagem de um agente, de uma persona coerente que tem uma personalidade própria e estável. Assim como podemos identificar uma pessoa como um indivíduo cujo comportamento podemos prever com razoável precisão graças à excepcionalidade do conjunto de suas características próprias, também o Estado se pretende exclusivo e homogêneo o suficiente para que se porte como um agente inteligível. Nesse contexto, o opositor é um conceito central naquilo que entendemos como a identidade de um Estado. Tal qual uma pessoa se reconhece, em certa medida, por sua individualidade em relação ao outro que lhe é externo, o Estado e sua identidade passam a ser definidos, sobretudo, a partir de suas diferenças em relação aos demais agentes, e não precisamente a partir de sua própria realidade interna. Dada a primazia da anarquia e a necessidade de construção de limites, a alteridade se sobrepõe ao contexto doméstico cujas assimetrias e diversidade desafiam a construção de um Self coeso que permita ao Estado se comportar dentro da lógica estabelecida pelo orquestramento imposto pelo sistema de Estados (JACKSON, 2004; RINGMAR, 1996). Assim, a realidade de um ator estatal nem sempre é, de fato, tão linear quanto se pretende performar. Na realidade, é esperado que haja uma infinidade de diferentes realidades sociais que encontram pouca, ou nenhuma, similaridade com a identidade que se definiu para certo Estado. Pensando na Rússia, por exemplo, isso se torna evidente: qual a aproximação entre a existência de indivíduos que habitam comunidades indígenas na região de Yakutia e eslavos que vivem em áreas ricas de grandes centros urbanos como Moscou e São Petersburgo? Ainda que uma identidade única para um Estado que acomoda ambos os grupos pareça impossível, é justamente esse o objetivo da criação de uma identidade estatal. É evidente, porém, que esta ambição não se concretiza completamente. A identidade nacional, para que se enquadre nos moldes de estabilidade e homogeneidade aqui discutidos, 28 deve excluir algumas existências que são, em realidade9, constituintes do Estado que se pretende representar. O status de inquestionabilidade e de imparcialidade que envolve a narrativa oficial de identidade que prevalece nas sociedades, portanto, parece ser mais fruto de uma disputa por poder que de uma verossimilhança inconteste. Nesse sentido, é comum que haja a essencialização do que se entende por Self, ou seja, parte da diversidade, da complexidade do material humano que de fato forma certo Estado é escamoteado. Ignora-se toda uma pluralidade de existências em prol da formação de uma identidade em específico que parece mais determinada pelas diferenças desta com o Outro do que pelas próprias características do Estado que a mantém. Promove-se um entendimento raso do real contexto social que forma o corpo estatal. A fim de promover a identificação a partir da alteridade, são definidas as narrativas que serão apresentadas como constituintes da identidade do “indivíduo” estatal. O silenciamento de vozes e de memórias, assim, é prática fundamental para que o conceito atual de identidade estatal se materialize. Para além do caráter prático que o esquecimento produz na organização da sociedade, contudo, há, também, efeitos de caráter mais profundo na dimensão afetiva (JACKSON, 2004; RINGMAR, 1996). O sistemático silenciamento produzido pela primazia da identidade nacional tem uma capacidade em potencial de dificultar processos reconciliatórios. Ao passo em que apartamos certa comunidade do seu direito à memória e à representação, a condenamos a manter suas vivências e sentimentos em círculos, via de regra, limitados e cuja legitimidade não se estende a todo o tecido social. As lutas, históricas ou recentes, afetividades, traumas e necessidades desses grupos, por conseguinte, não apresentam grande relevância perante a opinião da máquina estatal — e por vezes sequer são realidades cuja existência é reconhecida. Este silenciamento sistêmico, finalmente, tanto limita o horizonte de possibilidades de soluções práticas para problemas enfrentados endemicamente por grupos sociais, quanto corrobora comportamentos que podem violentar a existência dessas pessoas. O sentimento de unidade de uma nação pode, assim, ser comprometido à medida em que toda a sua diversidade populacional deixa de ser reconhecida e assistida (OLIVEIRA, 2019; SMITH, 2008). Ao tratar de países tão vastos e diversos como a Rússia, ou ainda como a URSS, estas possíveis clivagens entre narrativas identitárias oficiais e ontologias alternativas sustentadas por comunidades específicas são extremadas. Quando pensamos, por exemplo, no discurso 9 Considerando o caráter jurídico do conceito de Estado, que compreende como população todo o contingente humana que habita os limites fronteiriços do país. 29 defendido pelo Kremlin em relação à Ucrânia e aos povos eslavos10, podemos nos questionar por que razão são estes mais protagonistas da ideia de nação capitaneada por Putin do que, por exemplo, povos muçulmanos que se identifiquem com a cultura e com o povo do Tartaristão11. Segundo muitos dos habitantes desta região, haveria um esforço coordenado de Moscou para reprimir expressões culturais locais. A despeito da veracidade de tais afirmações, é correto afirmar que não há, do ponto de vista discursivo, uma posição equivalente entre o lugar das memórias e dos povos do Tartaristão e dos povos eslavos, muitos dos quais sequer fazem parte da Federação Russa. Esse breve exemplo parece não somente materializar os silenciamentos inerentes ao processo de formação de uma identidade nacional, mas, também, sugerir a luta discursiva que se trava dentro da Rússia (MAXIMOVA; BELYAEV, 2017). 2.3 Memória e trauma: a materialidade do afeto Ao tratar da relação entre memória e política, Jenny Edkins (2006) argumenta que a memória, sobretudo a memória traumática, cria temporalidades. Por meio de mecanismos de remembrance, como celebrações de datas históricas e ritos de passagem, a memória altera a percepção de tempo que a envolve. O contributo de Edkins (2006) encontra eco no trabalho de Karin Fierke (2006), cuja obra sugere que a criação de uma memória coletiva sustentada por um grupo é fruto de mecanismos de recordação e esquecimento que levam em consideração as preocupações da comunidade. Assim, não somente o que lembramos, mas como lembramos é uma questão definida por mecanismos socioideológicos e materiais, o que torna a memória coletiva, em geral, um elemento ahistórico à medida em que evoca a memória não como um evento passado e superado, mas como o presente com o qual precisamos lidar diariamente. Cria- se, dessa maneira, uma temporalidade que não se baseia na veracidade cronológica e factual, mas na narrativa que se cria a partir de memórias e das relações de pertencimento e proximidade criadas por ela. Assim, como diria William Faulkner: “o passado nunca está morto. Nem sequer é passado” (FAULKNER apud RAHMAN, 2015, p. 67, tradução nossa). 10Segundo posição oficial do governo russo, é responsabilidade do país zelar e proteger os povos eslavos, estejam eles localizados ou não em território nacional. Este assunto será melhor discutido doravante. 11República russa de maioria muçulmana. 30 Quando encarada por um ponto de vista sistemático e mais ampliado, a temporalidade criada pela memória pode ser entendida como um elemento que guarda íntima relação com a criação e a sustentação de uma autoridade política. É graças aos laços de solidariedade criados pela memória e pela ahistoricidade da mesma que é organizada a forma de autoridade política que se encarregará da organização da sociedade em questão. Se aplicarmos este entendimento ao Estado, entenderemos que ao passo em que são legitimadas determinadas memórias, cria-se uma certa temporalidade narrativa a nível nacional e, por conseguinte, uma forma de autoridade política específica. Como demonstrará Peter Verovsek (2020) a partir da análise da obra de Hannah Arendt, o Estado se vale da capacidade de definir as narrativas de memória que sustentarão a identidade nacional, mas também a própria constituição da autoridade estatal é fruto da temporalidade sugerida pelas memórias enaltecidas. A Alemanha nazista, como bem salienta o autor, é representativa desta definição: ao passo em que foram promovidas políticas de retomada de memórias acerca da origem ariana alemã e da supremacia da mesma criou-se uma temporalidade tal que permitiu a organização de um tipo de autoridade política totalitária (EDKINS, 2006). Nas palavras de Hannah Arendt, “a política é um tipo de lembrança organizada” (ARENDT apud VEROVSEK, 2018, p. 5, tradução nossa). Se pensarmos na Rússia gerida por Putin, cujas características serão mais bem tratadas no próximo capítulo, teremos um contexto semelhante: exaustivamente exaltando o lugar do país na política internacional durantes os períodos imperial e soviético, o presidente cria uma noção compartilhada de que este mesmo prestígio internacional habita o horizonte político russo. Cria- se, a partir dessa narrativa, um Estado cujo principal objetivo é voltar a ser admitido pelos demais como uma grande potência. A noção de memória aqui esboçada guarda, ainda, inúmeras relações com o conceito de trauma. Também segundo Edkins (2006), a memória traumática, em especial, tem uma particular capacidade de modelação da noção de tempo que influi sobre a definição da autoridade política que organizará uma sociedade. Ao passo em que o trauma afeta de forma intensa e indelével é esperado que a criação de uma temporalidade específica venha à tona de forma urgente. O evento traumático, assim, tem a ver com a noção de preservação e sobrevivência da comunidade e, por isso, mais que uma memória qualquer, exerce um peso especialmente grande sobre a organização política. Neste contexto, a constatação de Freud parece ganhar certo sentido quando tirada do âmbito individual para o coletivo. Segundo o psicanalista, o trauma é a todo momento reencenado como uma forma de constatação da vida. A partir da repetição de gestos, acontecimentos, sentimentos, entre outros elementos que 31 remontam ao evento a que se faz referência, “celebra-se” a vitória, a superação da ameaça, reitera-se a vida e o desejo de viver. Assim, tal como diz Edkins (2006), o passado, à medida em que é a todo momento reencenado, deixa de ser passado e se perpetua como presente, tendo impacto direto sobre a definição da temporalidade que moldará poder, política, autoridade e, em última instância, existência (CARUTH, 2001). Um elemento importante acerca da persistência, ou ressignificação, do passado e da memória (sejam traumáticos ou não), é seu poder de perpetuação. Em muitas comunidades políticas é comum que a temporalidade criada por certa lembrança crie um ordenamento político que se mantém mesmo após a troca de gerações. Ainda que não haja mais indivíduos que tenham vivenciado de fato aquilo que agora se sustenta como memória viva, esta se perpetua entre os mais jovens, os quais a reproduzem muitas vezes com a mesma naturalidade daqueles que as viveram. Sobre essa questão é importante mencionar dois fatores. De início, é preciso que entendamos o papel da memória na definição de valores e, além disso, é importante salientar que, para que se possa falar em memória social, é preciso considerar a capacidade de transmissão da memória em questão. A perenidade dos efeitos da memória e do trauma, assim, são mais bem compreendidos quando percebemos que os comportamentos daqueles que vivenciaram os eventos que agora são tratados como uma memória são, em grande medida, moldados por esta. À medida em que a memória cria sua temporalidade, ela torna-se capaz de definir valores e atitudes transmissíveis que serão a base para a definição daquilo que consideramos a identidade de um grupo (FIERKE, 2006). O Estado tem nas memórias um poderoso elemento para se organizar politicamente, e para tanto incorre em um projeto de lembrança e esquecimento que legitima determinados grupos ao passo em que silencia outros negando-lhes não somente representatividade, mas, de certa forma, o próprio direito ao passado. Se é o Estado nosso objeto central e hegemônico de estudos, portanto, debruçamo-nos muito mais sobre determinadas definições. Negamos, em alguma medida, a importância de outras existências, de outros comportamentos. Algumas noções de identidade estatal reforçam essa mecânica pois nos levam a encarar o Estado como um indivíduo, como uma pessoa limitada a um corpo (ou a um território). Assim, outras coletividades que não são representadas nas narrativas que constituem o sujeito estatal deixam de ser compreendidas em sua complexidade e em sua relevância política. Por outro lado, se tomamos como objetos de investigação a memória e o trauma, temos maior capacidade de acessar realidades apartadas pela visão tradicional. Não que pensar o 32 Estado aos moldes tradicionais seja irrelevante, mas compreender outros elementos que extrapolam as visões clássicas nos permite uma apreensão diferenciada de outras formações sociais e políticas, trazendo maior complexidade a diversas discussões. Nesse sentido, é indispensável entender que memória, trauma e identidade são vértices de um mesmo triângulo à medida em que sustentam, juntos, a construção de uma organização comunitária que não necessariamente se resume ao Estado como o conhecemos. Se pensarmos na Grande Guerra Patriótica12, evento hoje deveras mobilizado pelo Kremlin como um marco da história russa, veremos como o conceito de memória nos ajuda a desvelar diferentes níveis de um discurso. Para Putin e seus aliados, que determinam em boa parte a identidade nacional da Rússia, o conflito é exemplo da superioridade do povo e do Estado russos. Trata-se de uma lembrança ainda latente que se liga a sentimentos de euforia e patriotismo. Para alguns grupos que estiveram no front, porém, a história parece mudar. Ela adquiriu tons de melancolia e luto pelas vidas perdidas a mando de Stalin. Cada uma dessas perspectivas embasa uma interpretação diferente da Rússia: de um lado temos o vigor da imagem de um Estado poderoso, do outro, temos o pesado retrato da realidade de um país conflituoso que valoriza mais as grandes batalhas do que a vida dos seus. A plasticidade da memória, aqui representada por sua capacidade de criar uma temporalidade específica, determina a partir de que elementos uma coletividade irá estabelecer suas características definidoras, as quais vão desde valores até a própria arquitetura política que dita o funcionamento das instituições que a formam. O trauma, nesse contexto, pode ser compreendido como um elemento de agudização do ímpeto pela existência. É a partir das experiências traumáticas que uma sociedade, de certa forma, aprofunda sua busca pela afirmação e pelo reconhecimento. Não se trata exatamente de superar o trauma, mas de reencená-lo como forma de reiterar que ele não acabou com a existência daqueles indivíduos. A memória traumática, assim, une ambos os elementos: (i) cria uma nova temporalidade na qual o trauma não é um passado esquecido e (ii) impulsiona os indivíduos a buscarem, como sociedade, a organização política que lhes permitirá continuar sobrevivendo e eliminar a ocorrência de um novo evento traumático. Ambos memória e trauma, assim, parecem contribuir com a expansão daquilo que entendemos a partir da identidade. Se esta é compreendida como um elemento discursivo que define papéis, então, certamente, os efeitos de lembrança, esquecimento e momentos 12Termo cunhado durante o período soviético e ainda hoje usado pelos russos para se referir às batalhas da Segunda Guerra Mundial conduzidas pelo front soviético. 33 traumáticos são essenciais para entender quais são os pilares que definem os elementos que irão “ancorar” uma identidade tanto do ponto de vista socioideológico quanto material/institucional. Ao passo em que o Estado passa a ser definido e se definir para além de mecanismos puramente legais, contudo, rompemos com o primado weberiano e entramos em outro contexto, um que se relaciona com a biopolítica, mas que, sobretudo, trata de afetos. 2.4 Novo Estado? Fernanda Alves (2018) argumenta que a memória não se constitui apenas a partir de dispositivos imateriais. Segundo a autora, a memória, e os processos de memorização, têm materialidade. Assim, a dicotomia entre esquecer e recordar que constitui a base da ação da memória no presente e no futuro não se sustenta nem se define apenas por mecanismos retóricos, discursivos e cognitivos que surgem da consciente racional e sobre ele incidem. Há, para além disso, um componente material e afetivo que também dialoga diretamente com a psique e que, por conseguinte, influencia a construção da memória. O que Fernanda Alves nos propõe é encarar a memória como um processo que se dá através de encontros e desencontros de elementos ideacionais/narrativos, materiais e afetivos. As contribuições da autora nos permitem tratar da memória, seja ela traumática ou não, como uma arena de incertezas, como um objeto mutável e fluido que se constrói e se reconstrói a partir da interrelação de matéria, mente e afeto. Há, evidentemente, um componente discursivo ligado à formação da narrativa historiográfica que irá fundamentar a ordem cronológica em que ocorreram os fatos dos quais trata a memorização. Por exemplo, a evolução linear de um conflito e seus efeitos. Contudo, há também um componente material que, em geral, está intimamente ligado à territorialidade e ao afeto. Os elementos que constituem o universo físico no qual se deram os eventos do qual se pretende recordar e o teatro no qual são estes resgatados têm efeito sobre o processo de memorização, ou de (re)constituição memorativa, são fundamentais pois interagem com os afetos dos indivíduos, resgatam sensações que trazem outra dimensão às memórias. 34 A memória, portanto, como afirma a autora é uma “[...] fusão de corpos, lugares e práticas em encontros multissensoriais com materialidade semióticas13” (ALVES, 2018, p. 112). Portanto, se deve o Estado criar uma memória unificada para garantir estabilidade à sua identidade a à sua ideia de nação, então deve ele também se debruçar sobre o universo dos corpos e dos afetos envolvidos tanto nos eventos que constituirão a memorização quanto na psique das pessoas que devem partilhar deste mesmo projeto encabeçado pelo corpo estatal. O Estado, então, torna-se também um ente que, para além de normativo/institucional, é afetivo. O afeto, nesse sentido, deve ser compreendido com o um elemento fluido que se conecta com diversos níveis da nossa existência. Assim, ele se estende sobre o imaterial e também sobre a matéria. Como retrata a autora em uma breve passagem, ao contar ao um filho sobre a vida do falecido pai, uma mãe mobiliza seus afetos a partir do imaterial. Ao encarar o memorial de guerra que retrata o conflito que tirou a vida de seu pai, o filho se conecta aos seus afetos a partir da materialidade destes. O Estado, portanto, para legitimar e expandir seus próprios processos de memorização, preocupa-se, também, em expandir seu controle sobre os afetos daqueles que pretende manter sob a tutela das memórias que (re)cria. O Estado afetivo, portanto, define sua ação sobre os indivíduos para além da normativa territorialista e legalista que prevê que seu poder sobre o povo se limita às fronteiras de seu território; é o pertencimento a uma mesma rede de afetos e de memórias, ideacionais e localizadas espacialmente, que define a possibilidade da ação estatal. Assim, à luz das dimensões da relação território/Estado aqui tratadas, a noção de violência também parece ser modificada. Se, segundo o conceito estatal clássico14, o uso da força é monopólio do Estado e é ele por este exercida por meio de mecanismos formais (polícia, exército etc.) sobre seu próprio território ou externamente em defesa própria, o que ocorre se o elemento território é alterado? Ora, se a limitação geográfica não é mais determinante do espaço sobre o qual o Estado pode exercer poder, então o uso da força também se dilui em novos horizontes. Se tratamos, de certa maneira, da dominação da vida material e imaterial, então os elementos de coerção e violência devem também atuar em níveis diversos, não restritos simplesmente ao cárcere e à morte. O próprio entendimento de força, portanto, deixa de ser 13Do original: “makes memory a fusion of bodies, places, and practices in multi-sensual encounters with semiotic- materialities”. 14Aqui compreendido a partir das contribuições de Weber e da escola contratualista segundo os quais, de forma breve, o Estado tem o monopólio da força, é responsável pela organização política e pela segurança da sociedade e o faz a partir do estabelecimento de instrumentos jurídicos que lhe conferem o direito e o poder de legislar sobre a população e sobre o território. 35 suficiente, pois o domínio e/ou a repressão ocorrem de maneiras diversas. Diferentes expressões de força se sobrepõem de forma a gerar uma confusão entre aquilo que é formal e informal, externo e interno. Uma propaganda homofóbica, por exemplo, pode vir a ser tão ou mais violenta e efetiva do que a aplicação estrita dos mecanismos institucionais. Não há, nesse sentido, um Leviatã à espreita daqueles que infrinjam as regras ou que desafiem os interesses do soberano. Há uma amálgama de micro e macro-expressões de força que, por várias frentes e empreendidas por diversos agentes, garantem a obediência ao Estado. Nesse contexto, o horizonte de possibilidades de ação estatal é alargado pois passamos a considerar sua capacidade de ação sobre a formação de consensos e de obediência para além do típico léxico jurista. Dessa maneira, importarão as ideias, a criação de uma ideologia pró- Estado que sustente sua soberania, como já indica Robert Cox (1996) à luz das contribuições gramscianas. Além disso, importará também o controle sobre corpos e afetos. O poder, portanto, deixa de ser compreendido apenas por meio do uso da força bruta ou de instrumentos tradicionais de controle, como presídios e instâncias jurídicas. Ele é agora manifesto em diferentes níveis, passa a gozar de uma capilaridade que o permite se entremear nas mentes e na vida daqueles que estão sob seu domínio. Portanto, se o Estado era antes compreendido como uma estrutura político-burocrática que exercia sua função por meio sobretudo da coerção, agora, como dirá John Rigi (2007), a dominação dar-se-á por meio da “dominação caótica”, que combina coerção e biopolítica, aqui compreendida, à luz das contribuições de Fernanda Alves (2018), como a amálgama entre a dimensão civil, física e afetiva de um indivíduo. Há, assim, um transbordamento das limitações jurídicas, territoriais e sociais do ente estatal à medida em que este passa a exercer seu poder para além do horizonte de ação previsto na compreensão política clássica. Os mecanismos de dominação estatal não são mais restritos por fronteiras que definem povo e território nem tampouco são definidos unicamente pelo léxico jurídico. Surge, portanto, um Estado que vai além do Estado weberiano ou contratualista. É um Estado cuja capacidade de ação se dilui desde as instâncias mais tradicionais, como aquelas previstas pelas noções clássicas, até o cotidiano dos cidadãos, as microrelações, as pequenas decisões diárias. 2.5 Novas fronteiras para a dominação? 36 Se temos um novo Estado baseado em uma nova forma de dominação, qual será, então, sua nova forma de comportamento? A resposta que buscaremos apresentar nesse trabalho está na mobilização de memórias e afetos, fato que se torna, nesse contexto, fundamental para a construção de uma narrativa que embase uma identidade nacional que não se restringe a um tipo específico de Estado, mas que pode apresentar efeitos distintos a depender do contexto em que são empregadas e da maneira com que são utilizadas. “O que sabemos é uma gota; o que ignoramos, um oceano”. As exatas razões que levaram Isaac Newton a imortalizar sua declaração dificilmente — quiçá nunca — serão compreendidas, em sua totalidade, por qualquer pessoa que não o próprio. Talvez estivesse se referindo à infinidade de leis naturais que ainda haviam de ser descobertas pela Física e pela Matemática. Talvez tratasse da finitude de suas próprias contribuições. Debater as reais motivações de Newton, ainda que não seja o objetivo deste trabalho, muito nos serve como ponto de partida para importantes reflexões acerca da capacidade de conhecer. Podemos imaginar que, enquanto humanos, nossa percepção objetiva do mundo é limitada por nossos sentidos. Contudo, pura e simplesmente distinguir cheiros, sons, sabores, toques e formas parece não bastar para que possamos nos proclamar dotados de raciocínio. É preciso que haja algo para além da percepção física. Razão, moral, fé, intelecto e muitos outros podem ser entendidos como este “sexto elemento” que nos distingue, que nos permite, à nossa maneira, superar aquilo que captamos de forma mecânica a fim de criarmos uma consciência a partir da qual decodificamos o mundo e com ele interagimos (BORDIEU, 1990; FOUCAULT, 2000). Este processo de formação do conhecimento, por sua vez, ancora-se em um arcabouço ideacional que necessita do universo externo e que é também influenciado pelas particularidades de cada pessoa. Logo, aquilo que julgamos conhecer como realidade está sujeito à incidência da amálgama formada pelo entrecruzamento das nossas constatações físicas (dos nossos cinco sentidos), da nossa própria psique e do contexto em que estamos inseridos. Este, em especial, é particularmente caro às humanidades pois é basicamente constituído pelas nossas interações sociais com o meio em que estamos. Cultura, política, religião e diversos fenômenos coletivos estão, pois, considerados nesse conglomerado que é o aspecto comunal do conhecimento (BOURDIEU, 1990; FOUCAULT, 2000). Assim, podemos concluir que aquilo que entendemos como verdade, o mundo que julgamos conhecer, está sujeito às nossas intersubjetividades, às diferentes e moldáveis noções que construímos acerca do universo que nos cerca. Por conseguinte, nossos entendimentos 37 podem mudar à medida em que temos contato com diferentes estímulos. Ao tensionarmos esta percepção, podemos induzir que, então, o conhecimento é fruto de um processo de construção que não se dá dissociado do contexto em que vivemos. Portanto, retomando a colocação newtoniana: o que sabemos é uma gota pois apenas somos capazes de entender o mundo a partir do lugar15 em que estamos, e os lugares em que podemos estar são tão infinitos quanto o oceano. Ora, se aceitamos que nossa apreensão do universo se dá a partir da sobreposição de elementos materiais e subjetivos, coletivos e particulares, parece plausível considerarmos que aquilo que julgamos entender é na realidade um simulacro. Mas, afinal, quais seriam as ferramentas que nos permitem acessar o mundo para além dos nossos sentidos? Alguns dirão que esse papel é desempenhado pelo discurso (LACLAU; MOUFFE, 1985; DERRIDA, 1995; STRAVAKAKIS, 1999). De acordo com a abordagem adotada pelos autores citados neste trabalho, é por meio de mecanismos discursivos que formamos nossa identidade e nosso conhecimento. Tal conclusão resulta de uma conceituação que, influenciada por Michel Foucault, confere ao discurso a alcunha de ato político à medida em que é produto da articulação entre saber e poder, entre o local de fala do sujeito e a comunidade que o legitima ou não. Neste contexto, a narrativa pode ser encarada como um processo social que nos permite transformar estímulos em símbolos revestidos de nexo, de sentido. Ou seja, são as narrativas que permitem a associação de signos e o desencadeamento deles; é por meio delas que sistematizamos os estímulos discursivos que recebemos e construímos nosso conhecimento. Assim, tal qual o discurso, a narrativa é também uma forma de constituição das nossas realidades, das nossas identidades e das nossas interações com o meio que habitamos (BAITELLO JUNIOR, 1997; DERRIDA, 1995). Narrativas, assim como o discurso, estão em todo lugar já que são elementos indispensáveis para que possamos acessar o mundo. Considerando que ambos não possuem sentidos absolutos, ainda que diferentes pessoas possam ter entendimentos semelhantes, é de se esperar que a repetição ou a exclusividade de certos estímulos favoreça a construção de significados específicos para cada indivíduo. Dessa forma, é possível concluir que se um grupo de pessoas está sujeito à influência de uma(s) mesma(s) narrativa(s) o conhecimento de todas será semelhante. Os efeitos desta constatação, se levados a cabo em dimensões mais alargadas, 15Lugar aqui é considerado como o conjunto das particularidades individuais (como experiências de vida, escolaridade, saúde, valores morais etc), do momento histórico, do local geográfico e do contexto social/político/cultural/econômico em que está um indivíduo. 38 podem surtir efeitos particularmente profundos na vida de pessoas e até mesmo na organização de sociedades inteiras. Neste contexto, a História pode ser entendida como uma arena de disputa potencialmente influente. Ao relatar um evento passado, um historiador também está sujeito às vicissitudes da relação intersubjetiva que orienta a formação do discurso e da narrativa, por isso, antes de aceitar uma produção historiográfica enquanto verdade absoluta, é preciso que nos atentemos a algumas questões. Primeiramente é preciso considerar o local de fala do historiador. Ainda que inconscientemente, é preciso que ele faça escolhas que surtem efeito sobre seu trabalho. É preciso que ele escolha, por exemplo, a partir de qual perspectiva irá analisar e retratar o momento histórico sobre o qual pretende estudar. Podemos entender a Grande Guerra Patriótica a partir da posição do Partido Comunista ou atualmente pelos pronunciamentos de Putin ou a partir das famílias que perderam entes queridos em batalha. Cada uma dessas ópticas levarão a diferentes conclusões e entendimentos acerca do Estado. Não queremos, com isso, atribuir juízos de valor à escolha — deliberada ou não — feita pelo estudioso de História. É precisamente esta a profundidade com que as narrativas nos afetam: após sermos influenciados por elas podemos naturalmente ignorar a existência de diferentes abordagens do mundo, e nosso local de fala está absolutamente relacionado à nossa capacidade de considerar todo o leque de possibilidades, de narrativas, a partir das quais podemos acessar uma realidade similar (BLANCO; DELGADO, 2019; MUÑOZ, 2015). Também devemos considerar os interesses em jogo no fazer da História em um sentido mais amplo, e, para tanto é fundamental não perder de vista o debate sobre hegemonia e legitimidade. Já elucidamos os impactos do local de fala do sujeito para a construção do conhecimento, contudo, há também consequências que extrapolam o âmbito do indivíduo e se alastra para um universo maior. Se cada indivíduo é capaz de apreender a História à sua própria maneira por que, então, há narrativas que se sobrepõem a outras e, ainda que sofram mínimas “distorções” vindas de diferentes interpretações, galgam uma posição hegemônica destarte sua factualidade perante certas comunidades? Para melhor ilustrar o debate, pensemos por que a História do Brasil é narrada a partir da chegada dos portugueses. Ou ainda, por que aprendemos a História a partir de marcos temporais europeus (Feudalismo, Renascença, Iluminismo etc)? Será que essa versão de História é realmente aderente às histórias de negros e indígenas e seus descendentes? Será que esse modelo representa minimamente o Brasil ou a América Latina? Por que, mesmo que a resposta às perguntas anteriores pareça negativa, a narrativa da nossa História “oficial” é feita a partir da ótica das elites europeias? Transferindo a mesma lógica por 39 trás destas perguntas para nossa análise, podemos nos questionar por que Kremlin parte do pressuposto que o Estado russo nasceu da Rus Kievana enquanto a Ucrânia diz que esta é o marco de sua existência, não da Rússia? Por que durante a URSS foi essa a versão ensinada nas escolas apesar de não ser hegemonicamente aceita? (HANSEN, 2006; OLIVEIRA, 2019 A). Para pensar os questionamentos levantados é preciso que entendamos a História e as narrativas que sustentam suas muitas versões possíveis como uma arena de disputa. Sendo uma narrativa um mecanismo socialmente e intersubjetivamente formado que nos permite acessar o mundo é certo supor que, então, a sustentação de narrativas específicas legitima, ou não, valores, atores e decisões. À medida em que uma narrativa sobre a História é tida como oficial e é reproduzida sistematicamente, portanto, é possível moldar a opinião da sociedade no sentido de legitimar os interesses em jogo por parte das elites que comandam a narrativa hegemônica (ÇAPAN, 2017). Podemos melhor elucidar essa questão a partir do conceito de soft power proposto por Joseph Nye (1990). Se o poder de controlar os elementos imateriais que orientam a relação dos indivíduos com o meio permite moldar consensos, então o controle da narrativa histórica hegemônica permite, também, legitimar valores como a liberal-democracia, eventos como a sustentação de laços de colonialidade entre sociedades e outros. Este controle sobre narrativas específicas, por sua vez, pode se dar por uma série de maneiras, que vão desde (i) a concessão de incentivos a pesquisadores que obedeçam, deliberadamente, os parâmetros determinados pela História “oficial”; a sustentação de (ii) um ciclo de retroalimentação segundo o qual os indivíduos, devida e inconscientemente embebidos na racionalidade da narrativa oficial a reproduzem naturalmente. Destarte as claras deficiências apresentadas pelas narrativas ditas “oficiais”, sua centralidade segue inabalável graças não somente ao poder dos discursos que assim as rotulam, mas, também ao positivismo impregnado na Academia e na própria sociedade como um todo. Ainda influenciados pelas aspirações racionais iluministas, temos sido, ao longo de séculos, condicionados a acreditar na Razão em seu sentido mais absoluto: o da verdade. Desta maneira, esperamos que aquilo que nos diz a Ciência seja a mais pura representação da realidade, sendo a contestação da mesma uma impossibilidade e a justificativa da sua pureza uma tautologia. Somado esse positivismo à dimensão do poder que o discurso tem sobre nossa psique temos uma conjuntura que reforça sistematicamente o lugar de destaque ocupado pelas narrativas que nos são apresentadas (MUÑOZ, 2015; SMITH, 2008). 40 O status de inquestionabilidade e de imparcialidade que envolve a narrativa oficial de História que prevalece nas sociedades, portanto, é mais fruto de uma disputa por poder que de uma verossimilhança inconteste. Neste contexto, é também crucial que nos alertemos que, se é verdade que a historiografia “oficial” de uma nação é cunhada a partir de fontes de dados específicas, então estas fontes, conforme já discutimos, também devem ser questionadas. Documentos de Estado, relatórios de agências governamentais, depoimentos de atores “notáveis” (como políticos, generais, chefes de organizações entre outros), e demais fontes “oficiais” de pesquisa padecem de limitações que podem potencialmente enviesar um estudo e tolher sua acuracidade (POLLAK, 1989; SMITH, 2008). Em Estados comandados por regimes autoritários, por exemplo, é comum que haja consistentes mecanismos de censura como a manipulação de dados oficiais e a ocultação de acontecimentos em entrevistas. Claro que mesmo países que convivem com o mais democrático dos governos também não devem se contentar apenas com informações consideradas oficiais uma vez que são elas formadas por processos intersubjetivos. Ademais, sobre a evidência sistemática das vozes de “grandes homens” no fazer historiográfico, para além da clara limitação imposta pela não inclusão de diferentes pontos de vista, Jordão Horta Nunes (2016) nos alerta para o seguinte: Os “grandes homens”, como reis, administradores, generais etc., têm menor liberdade para agir, pois seus papéis na estrutura social já são fixados, legitimados e culturalmente reconhecidos. A rede de expectativas sociais a respeito de suas ações, institucionalmente inscritas, limitaria o leque de escolhas, constrangendo-os. Estes seriam, paradoxalmente, menos “agentes”, em menor grau responsáveis pelos resultados históricos efetivos, quando comparados, por exemplo, a soldados que, no final da cadeia causal, matam ou são atingidos, saqueiam ou desertam. Não se justificaria, portanto, uma história guiada pelos feitos de “notáveis” (NUNES, 2016, p. 37). Dos efeitos que a hegemonia do uso da História produz um dos mais potencialmente violentos é o já mencionado silenciamento de indivíduos e/ou comunidades. À medida em que nenhum conhecimento é imparcial dado o seu próprio processo de construção é particularmente problemático nos atermos apenas às narrativas “oficiais” pois iremos necessariamente excluir um universo de perspectivas da análise. Neste contexto, por “silenciamento” podemos entender: (i) o esquecimento, que está ligado às memórias, às vivências passadas e seus significados; e (ii) o silenciamento de fato, ou seja, a não inclusão de diferentes pontos de vista, de realidades vividas no presente. Ambos os significados são elementos que preservam claras relações entre si especialmente naquilo que diz respeito à negação à representatividade que grupos apartados 41 da História “oficial”, silenciados, enfrentam na criação de políticas públicas, na identidade nacional e/ou na formação da elites nacionais (OLIVEIRA, 2019 B; SMITH, 2008). A somatória de forças que corrobora a construção de narrativas absolutistas que apartam vozes da própria realidade coletiva nada mais é que um processo de deliberada dominação que é mais facilmente institucionalizada por meio dos aparatos estatais. Uma vez que o Estado tem controle, mesmo que não integral, sobre a produção de conhecimento do país e baseia suas políticas, e sua identidade, sobre suas próprias concepções de História e sobre seus próprios afetos e memórias, podemos dizer que a coerção clássica serve à biopolítica nesse novo Estado “afetivo”. Esta afirmação fica particularmente clara quando nos damos conta de que muitas das narrativas que assumem lugar privilegiado no imaginário coletivo vem sendo constituídas há muito tempo e foram iniciadas no seio de regimes fechados, politicamente mais próximos dos autoritarismos. Uma destas muitas narrativas que aceitamos com naturalidade é o orientalismo. Seja na nossa concepção daquilo de que se trata do internacional, seja na concepção que temos acerca de outros países que não o nosso, há sempre um silenciamento de certos Estados que norteia nossa codificação do mundo. Nações são desprovidas de sua capacidade de agência e são, assim, concebidas sempre a partir do parâmetro de países ocidentais, seja em termos de catch up ou de afastamento dos mesmos. Há um referencial ético e moral, de superioridade, que ainda reveste o mundo ocidental. Há uma lógica niilista, de oposição, que embasa a comparação deste com o restante do mundo: avançado/atrasado, moderno/feudal (ÇAPAN, 2017). 2.6 Conclusões do capítulo Para o Estado memórias são imprescindíveis para que possa ele se organizar politicamente. Para tanto, incorre, o agente estatal, em um projeto de lembrança e esquecimento que legitima determinadas narrativas ao passo em que silencia outras, negando a certos grupos não somente representatividade, mas, de certa forma, o próprio direito ao passado. Se é o Estado nosso objeto central de estudos, portanto, debruçamo-nos muito mais sobre determinadas cosmologias. Negamos, em alguma medida, a importância de outras existências. Algumas noções de identidade estatal reforçam essa mecânica pois nos levam a encarar o Estado nação como um indivíduo, como uma pessoa definida pela normativa jurídica. Assim, outras 42 possibilidades de interpretação de fenômenos políticos e sociais deixam de ser compreendidas em sua complexidade e em sua relevância. Por outro lado, se tomamos como objetos de investigação a memória e o trauma, temos maior capacidade de acessar realidades apartadas pela visão tradicional. Não que pensar o Estado nos termos weberianos seja irrelevante, mas compreender outros elementos nos permite uma apreensão diferenciada de outras formações sociais e políticas, trazendo maior complexidade a diversas discussões. Nesse sentido, é indispensável entender que memória, trauma e identidade se interrelacionam à medida em que sustentam, juntos, a construção de uma organização comunitária que não necessariamente se resume ao Estado como o conhecemos. Essa primeira reflexão é central para o nosso trabalho pois trataremos em boa medida do embate entre formações identitárias. A Rússia, quando tenta justificar sua ação sobre a Crimeia, por exemplo, argumenta que as identidades de ambas é a mesma ou pelo menos parecida o suficiente para que possam ser entendidas como pertencentes a um mesmo corpo político. Kiev, no entanto, não compactua da narrativa usada pelo Kremlin. As memórias que são celebradas pelos russos são, em muitas ocasiões, lembradas com luto pelos ucranianos. Nesse sentido, não só a Ucrânia promove uma identidade com a qual a Crimeia não se identifica, mas também a Rússia tenta impor suas próprias narrativas sobre um povo sem considerar completamente os desejos e afetos deste. Antes de prosseguirmos para um novo ponto, é importante, porém fazer um esclarecimento. Apesar de reconhecermos os perigos da antropomorfização do Estado, iremos recorrer a um recurso que pode, se não conscientemente considerado, incorrer neste mesmo processo que criticamos há pouco. Ao nos referirmos à Rússia, a Moscou, ao Kremlin ou aos russos estaremos aqui falando das visões, ideias e discursos endossados pela elite no poder, ou seja, por Vladimir Putin e a coalizão da Rússia Unida, seu partido, e da elite econômica que corroboram das ideias do presidente. Por limitações diversas não é possível que consideremos mais de um setor da extensa população