1 CAUÊ GOMES FLOR DIÁSPORA AFRICANA: POR UMA CRÍTICA TRANSNACIONAL DA POLÍTICA CULTURAL NEGRA A “Porta do Não Retorno” na Mansão dos Escravos na Gorée Ilha no Senegal 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS: CAMPUS DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA SOCIAIS CAUÊ GOMES FLOR DIÁSPORA AFRICANA: POR UMA CRÍTICA TRANSNACIONAL DA POLÍTICA CULTURAL NEGRA. Tese de Doutorado apresentada para o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus Marília, para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Andreas Hofbauer Marília-SP 2020 3 4 5 RESUMO Nos últimos vinte anos, observamos transformações substanciais tanto no lugar que é atribuído aos povos, às culturas e tradições de origem africana na formação da sociedade brasileira, quanto na maneira como a identidade nacional é abordada nos debates e discussões que se dedicam à investigação das relações raciais na contemporaneidade. Essas transformações trilham um caminho que reflete um novo olhar sobre a presença desses povos e culturas, muitas vezes, informado e influenciado por um conceito que tem ganhado destaque nas discussões tanto no mundo acadêmico quanto no da militância: a diáspora africana. O objetivo principal desta pesquisa é analisar, sob uma perspectiva construtivista, o impacto dos potenciais deslocamentos teóricos, epistemológicos e discursivos que a noção de diáspora africana produz no debate sobre a questão racial no Brasil. Propõe-se, nesse sentido, um estudo construtivo entre o Department of African and African American Studies, da Harvard University (notadamente o WEB Du Bois Research Institute) e o Núcleo de Estudos Afro- Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos. O objetivo específico é o de analisar construtivamente as produções/publicações em periódicos dos respectivos núcleos, procurando observar as semelhanças e diferenças na forma pela qual esses departamentos e núcleos concebem a presença e a influência africanas em suas respectivas sociedades nacionais. Tal pesquisa visa, portanto, investigar de que maneira emerge e se articula, teórica e discursivamente, a noção de diáspora africana nas diversas produções e atuações dessas instituições. Palavras-chave: Diáspora Africana, Racialização, Cultura, Identidade Negra, Política Cultural Negra Abstract 6 In the last twenty years, we have seen substantial transformations both in the place that is attributed to peoples, cultures and traditions of African origin in the formation of Brazilian society, and in the way in which national identity is addressed in the debates and discussions dedicated to the investigation of race relations in contemporary times. These transformations follow a path that reflects a new perspective on the presence of these peoples and cultures, often informed and influenced by a concept that has gained prominence in discussions both in the academic and in the militancy world: the African Diaspora. The main objective of this research is to analyze, under a constructivist perspective, the impact of potential theoretical, epistemological and discursive shifts that the notion of African diaspora produces in the debate on the racial issue in Brazil. It is proposed, In this sense, a constructive study is proposed between the Department of African and African-American Studies at Harvard University (notably the WEB Du Bois Research Institute) and the Center for Afro-Brazilian Studies at the Federal University of São Carlos. The specific objective is to constructively analyze how productions / publications in journals of the specific nuclei, seeking to observe similarities and differences in the shape by these departments and nuclei conceived of the African presence and influence in their national societies. Such research aims, therefore, to investigate how to emerge and articulate, theoretically and discursively, the notion of African diaspora in the various productions and actions of these institutions. Keywords: African Diaspora, Racialization, Culture, Black Identity, Black Cultural Policy 7 À Luana, pela Lealdade, Apoio e Amor Incondicional. À Iana, pela Esperança À Caroline Flor, Edvania Gomes e a José Flor. Fizemos do Atlântico um detalhe Quântico. 8 In Memorian de Tabáta Amaral Evaldo dos Santos João Pedro Mattos Pinto Miguel Otávio e de todos aqueles que foram massacrados pela Negação de sua Humanidade 9 Agradecimentos Não se trata de um romance, onde tudo o mais está centrado na figura do protagonista, mas de uma narrativa. Trata-se de uma história que é, necessariamente, compartilhada. Quando a gira girou... A sorte desapareceu, o céu de repente anuviou, o vento agitou as ondas do mar e o que o temporal levou foi tudo que deu pra guardar. Mas, na hora que a gente menos espera no fim do túnel aparece uma luz. A luz de uma amizade sincera para ajudar carregar nossa cruz. A sua mão me tirou do abismo e seu axé evitou o meu fim, e eu não teria chegado sozinho a lugar nenhum se não fosse você. Andreas, orientador em meio a isto tudo, a você digo: quem tem um Amigo tem tudo. Ao José Ricardo Marques dos Santos (Dom) agradeço pela amizade e pela intensa troca intelectual ao longo de toda a tese. A Alexandro Eleotério, amigo das lutas intestinais mais severas e das plenas realizações ontológicas. Obrigado Raquel Kritsch Ao Gersinho e Marcelo, com quem divide a vida em Marilia Agradeço a Érica Kawakami a nossa amizade ainda via longe. Agradeço aos Amigos do Grupo GEA: Talita Roin, Sabrina Del Sorto, Fabiana Silva, Adriano Aquino. Agradeço a Edilza Sotero pelo apoio Digo Obrigado ao Department of Africana Studies da Brown University. Em especial quero agradecer a Professora Keisha-Khan Perry por me receber e me ensinar tanto nesse momento sem igual da minha formação. Agradeço aos Amigos do Grupo de Estudos da Diáspora na UFSCar na especial figura de Carol do Anjos. Obrigado aos Professor@s do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp de Marilia, especialmente: Edemir de Carvalho, Maria Valéria Barbosa, Antônio Braga, Luís Antônio Francisco de Souza, Jose Geraldo Poker, Cristina Rubim e a Sergio Augusto Domingues (Crao – in memorian). Agradeço as amigas com quem compartilhei muito das radicais transformações desse momento na Brown Univeristy: Ana Carolina (pelo encorajamento) a Julia Abdala (pelo incentivo) e Ana Cesaltina. Obrigado Ramon pelo Carinho. Agradeço a Teófilo Reis pela acolhida e o corre junto em Nova Iorque e na Harvard University. 10 Agradeço a Professor e Amigo Deivison Mendes Faustino por participar de muitos momentos da minha formação e, agora, como membro dessa rito de passagem. Obrigado Professor Valter Roberto Silvério por ter inculcado em mim a necessidade do estudo do conceito de diáspora africana e pela continua orientação desde o Mestrado. Agradeço a Professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva Agradeço a Professora Ana Juvenal da Cruz Agradeço a Professora Tatiane Cosentino Rodrigues. Agradeço a Thiago Abrahão que durantes todos os anos desse trabalho prestou-se a revisar os meus textos. Agradeço com muita satisfação a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP – 2016/16742-4), cuja a bolsa foi imprescindível para realização dessa pesquisa. 11 SUMÁRIO Introdução - A opção pelo deslocamento ............................................................................. 13 PARTE I. ATRAVÉS DO ATLÂNTICO: A GENEALOGIA E OS MODELOS DE DIÁSPORA AFRICANA ....................................................................................................... 34 Nota etimológica e a semântica da palavra diáspora: uma controvérsia .......................... 36 Capítulo 1. A noção de “diáspora africana”: entre a filiação genealógica e o pensamento secular ...................................................................................................................................... 40 Os filhos de Ham e a nação: retornemos a África? .................................................................. 41 Du Bois e a dupla consciência: entre a África e a América ..................................................... 57 Capítulo 2. Os anos 60’s e 70’s: o conceito de diáspora africana ..................................... 64 Os negros do Novo Mundo: a África, os africanismos e o conceito de cultura(s) ................... 65 Uma abordagem africana: os African area studies, os Black Studies e o conceito de diáspora africana ..................................................................................................................................... 74 A consolidação da abordagem africana: o conceito de diáspora africana e o seu primeiro modelo ...................................................................................................................................... 84 Capítulo 3. O modelo descentrado de diáspora africana .................................................... 94 Diferença, différance: o pensamento da disseminação ............................................................ 96 O rizoma e o arquipélogo ....................................................................................................... 105 A racialização, a dissemi(nação) e a diáspora africana .......................................................... 109 PARTE II - NEAB-UFSCAR E W. E. B. DU BOIS RESEARCH INSTITUTE: NOTAS SOBRE REPRESENTAÇÃO, IDENTIDADE E (DISSEMI)NAÇÃO ........................... 141 Capítulo 4. Neab-ufscar: da desigualdade a diferença .................................................... 145 O Neab-UFSCar: entre raízes e rotas ..................................................................................... 154 Precedentes e a tomada da luta por representação ............................................................... 156 1974: da filiação genealógica e a reinvindicação de um sujeito negro ................................ 173 A institucionalização e a emergência da noção de diáspora africana .................................. 187 Transnacionalização: a (re)modelação da relação com o significante África ...................... 201 12 Um deslocamento implícito: articulação, racialização e o cânone sociológico ..................... 229 Historicismo ontológico e as ciladas do universalismo: pela diferença ................................. 258 O educar-se para relações étnico-raciais e as africanidades ................................................... 275 Capítulo 5. W. E. B. Du Bois Research Institute: da diferença ao cânone ..................... 300 African and African-American Studies Department, W. E. B. Du Bois Research Institute e a Harvard University ................................................................................................................. 305 O(a) negro(a) como sujeito significante ................................................................................. 318 Cânones, a literatura afro-americana e a (dissemi)Nação ...................................................... 335 Raça: um erro moral ............................................................................................................... 353 Não sem controvérsias: identidade negro/africana, multiculturalismo e cosmopolitismo ..... 365 Notas Finais - Entre e através de linhas de intensidade: o conceito de diáspora africana e o debate sobre a presença negra/africana no Brasil contemporâneo .............................. 392 BIBLIOGRAFIA E ENTREVISTAS ................................................................................. 400 13 Introdução - A opção pelo deslocamento Não há muito tempo me dei conta de que esta tese começou em razão do Professor Milton Santos. Questionado — durante documentário Encontro com Milton Santos: o mundo visto do lado de cá, acerca do seu último livro que veio a publicar, chamado Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal (2002), pouco meses antes de sua despedida no ano de 2001 — do porquê havia optado por seguir aquela carreira, o maior geógrafo brasileiro respondeu: “Acho que foi a opção pelo movimento. O fato de eu ter, quando garoto, me impressionado com as populações que mudavam de lugar, que se transportavam de um lugar para outro, acho que talvez isso tenha me dado uma dimensão da disciplina”. A Milton, gostaria de dizer que essa tese é antes uma opção pelo movimento, ou, melhor, pelo deslocamento (em diversos graus e sentidos) e, sem ele, esta pesquisa nem ao menos viria a existir. Impactado, desde então, por Milton Santos, o primeiro intelectual negro que conheci e o único que me foi apresentado no conjunto da grade curricular regular (o núcleo comum) do curso de graduação em Ciências Sociais da UNESP de Marília-SP, onde hoje concluo esta tese, me imbuí do interesse em investigar aquilo que o geógrafo chamou, genericamente, de impactos culturais da globalização (SANTOS, 2002). Assim, ainda na graduação, iniciei uma pesquisa com um conjunto específico de interlocutores: os estudantes angolanos que residiam na instituição/cidade Centro Universitário de Lins (UNILINS), no interior de São Paulo. Entre 2008 e 2013, a cidade de Lins (interior de São Paulo) recebeu, proporcionalmente, o maior fluxo de africanos do interior paulista. Lá, residiram e estudaram na UNILINS um fluxo contínuo de 140 africanos e africanas naturais dos mais diversos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop): Angola, Cabo Verde, São Tomé & Príncipe, Moçambique e Guiné-Bissau. No entanto, eram preponderantes os jovens remanescentes de Angola, cerca de 120, sendo os únicos que se enunciavam enquanto comunidade angolana. Ao verbificar esse discurso, os estudantes africanos agenciavam e manobravam um conjunto de representações, afirmavam diferenças e promoviam processos de identificação. Em síntese, o objeto principal da reflexão teórica desta pesquisa foi o de analisar os marcadores sociais de diferença (TOMAZ, 2003) utilizados pelos estudantes angolanos que residiam na cidade de Lins-SP. Foram essas diferenças que me ajudaram a entender melhor as suas narrativas sobre as tensões e as dificuldades que vivenciavam no contexto brasileiro, mas também a maneira 14 como, neste contexto de deslocamento e dispersão, eles construíram e reconstruíram as suas identidades culturais. As, sobretudo, leituras dos textos de referência e o efeito etnográfico de um dado acontecimento em campo tornaram essa experiência algo que jamais deixaria de me cativar. Ao questionar um estudante angolano (um “jovem negro como eu”) acerca de como ele pensava a sua identidade negra depois de sua vinda para o Brasil, o mesmo, despretensiosamente, respondeu: “Não sei, eu não sou Negro, esse foi um nome que vocês deram para Nós” (Bernardo, Marília-SP, 2009). Afetado desde então por essa locução, a identidade negra tornou-se para mim uma problemática irresoluta (e penso que é bom que permaneça assim), academicamente e pessoalmente. Ser Negro não é para mim algo natural, aliás, não há nada de natural em qualquer nomeação, sobretudo naquelas inscritas a partir de relações de poder e conhecimento. Penso que desde o momento em que escutei essa frase, as pesquisas que persegui, os referenciais teóricos que estudei com mais afinco, enfim, o projeto intelectual que desempenhei tenta, em última análise, tornar tão mais inteligível quanto possível a radicalidade dessa breve afirmação. Há na frase do jovem um ruído profundo. Problemas de raça? A meu juízo, sim. Refere-se ao princípio de um posicionamento político e, em um sentido mais desafiador, também epistemológico. Mas, sobretudo, é a exigência do reconhecimento de sua atividade negadora. Dito de outro modo, “Eu não sou negro. Negro é um nome que vocês deram para nós” diz respeito a um posicionamento ontológico relativo à ação de má-fé, ao drama da cena colonial compelida sorrateiramente a ele por minha indagação. Ao questioná-lo sobre uma suposta identidade negra, justamente em função da cor de sua pele, recolocava violentamente a relação colonial e, portanto, a negrura, o aprisionamento e a castração de sua diferença como horizonte ontológico. Ao passo que o jovem responde: “Eu não sou Negro, sou sujeito”. Como estudante, este trabalho é em parte reativo. Reação à atribuição adscrita da negrura, histórica e cotidianamente, aos povos de origem africana em sua experiência coletiva. Pois, a despeito de ser um caso muito específico, reivindico a sua generalidade a partir de Fanon (2008), pois o autor não fala apenas do caso do homem negro no Fort de France (na Martinica), mas em “A experiência vivida do negro” (The fact of blackness) escreve sobre a historicidade do homem negro, sobre a temporalidade da modernidade dentro da qual aquilo que é considerado “humano” é permitido. Fanon (2008 [1952]) denuncia essa temporalidade a partir de sua percepção do caráter tardio do homem negro — que chegou muito tarde ao mundo, tarde demais. Sempre haverá um mundo — branco — entre vocês e nós... (FANON, 2008, p. 113). A expropriação, a razia, 15 o assassínio objetivo, desdobram-se numa pilhagem dos esquemas culturais ou, pelo menos condicionam essa pilhagem” (FANON, 1970 [1956], p. 37). A negação da humanidade do Homem Negro se dá através de uma doutrina da hierarquia cultural, que não é mais do que uma modalidade de hierarquização sistematizada e prosseguida de maneira implacável com o objetivo de destruição dos seus sistemas de referência (racismo cultural) (FANON, 1970 [1956], p. 38). Impõe-se um novo conjunto, um outro sistema de referência, com todo o peso de canhões e de saberes, condição que não apenas torna a questão da ontologia problemática à identidade negra, mas de certa forma impossível para a própria compreensão da humanidade em um mundo marcado pela modernidade e pela relação colonial (BHABHA, 2013, p. 374). Fanon (2008), assim, opõe-se àquela ontologia do mundo branco, precisamente: “Eu não sou negro”. A negação da negação da negrura significa também um sim. Isto é, esta pesquisa também tem o caráter propositivo. Ao demonstrar a liminaridade da ontologia do homem branco, destroem-se também as formas pelas quais se pensa a historicidade do humano. E neste processo o “homem negro” se recusa a ser o passado do qual o homem branco é o futuro. Abre-se outro tempo. Põe-se em movimento a possiblidade de introduzir o novo na existência (FANON, 2008, p. 119). Perante essa expansão do significado da liberdade e da possibilidade de existir, é necessário pensar primeiramente que se trata de um processo, que em sua particularidade e seu desdobramento não seguiu, necessariamente, uma metáfora de transformação tradicional, ou seja, esse movimento não se deu a partir de uma ruptura revolucionária. É certo que o momento paradigmático de cisão é fundamental. No entanto, como Hall (2011, p. 219) sugere, talvez não seja mais profícuo pensar a transformação a partir da noção de “ruptura”, mas de “deslocamentos”. Em especial, aqueles capazes de deslocar disposições de poder. É possível perceber esse deslocamento a partir da correlação entre, por um lado, determinados marcos históricos ligados à história dos povos de origem africana: a escravidão, o movimento por direitos civis, as lutas de libertação nacional em África e, por fim, a migração voluntária de africanos nos anos de 1980. E, por outro, o fluxo e as mudanças das categorias utilizadas pelos africanos e seus descendentes, em sua dispersão e experiência coletiva, como signos de identidade (para citar alguns exemplos): escravo, preto, negro e afro. Cada uma dessas inflexões históricas desloca e, ao mesmo tempo, (re)posiciona a compreensão da natureza do pertencimento, condição e presença dos povos, das tradições e das culturas que se estabeleceram (voluntaria e involuntariamente). No caso do Brasil, desde as primeiras publicações do Projeto UNESCO (MAIO, 1999), protagonizadas, na década de 1950, por Florestan Fernandes, Roger Bastide e Virgínia 16 Bicudo1, o ideário de nação brasileira, elaborado por Gilberto Freyre (2008), propagado pelo Estado Novo (1937-1945) e em vigor até o final da ditadura militar (1964-1985), vem sendo questionado. Durante as décadas de 1980 e 1990, coube ao “movimento negro”, como o Movimento Negro Unificado (GUIMARÃES, 2002), organizado em torno de uma solidariedade política pautada na consciência da racialização da experiência coletiva e fundamentada na ideia de uma identidade e de uma cultura comuns, denunciar a íntima relação entre desigualdades sociais e adscrições raciais presentes na sociedade brasileira. Esses movimentos sociais negros, por meio desse modelo de identidade e de cultura, não só lutaram por direitos, mas contribuíram para a desconstrução da suposta natureza homogênea, harmônica e não conflituosa da sociedade brasileira (COSTA, 2006; HOFBAUER, 2006). Todavia, a mudança do contexto social e de posturas políticas das duas últimas décadas, incluindo a ascensão de novas ideias paradigmáticas a respeito das diferenças humanas, como o multiculturalismo2, tem repercutido significativamente na reformulação de tal modelo de identidade e de cultura. Esse fenômeno vem causando transformações profundas no debate sobre a questão racial e sobre o lugar que os povos de origem africana ocupam atualmente na sociedade brasileira (TRINIDAD; SILVÉRIO, 2012; SILVÉRIO, 2015). Segundo alguns estudiosos, como o teórico cultural Stuart Hall (2006) e o antropólogo Thomas Eriksen (2004), o fenômeno que vem sendo chamado de globalização, que tem funcionado como uma força ao mesmo tempo fragmentária e homogeneizadora, deve ser reconhecido como um importante fator para a emergência e (re)definição de novos padrões de identidade, cultura e pertencimento. Desse modo, embora aparentemente contraditória, a globalização tem contribuído não apenas para induzir processos de hibridismo e cosmopolitismo, mas também para criar e/ou fortalecer laços entre grupos separados uns dos outros por processos históricos desagregadores. Além disso, de acordo com Hall (2006) e Gilroy (2007), a identidade cultural tem sido cada vez mais articulada no interior dos Estados Nacionais como um veículo para o estabelecimento de políticas, de direitos culturais e de questionamento das narrativas de formação das sociedades nacionais, na maioria das vezes descritas como homogêneas, cultural e racialmente. Segundo Costa (2006), foi durante a participação brasileira na “III Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata”, realizada pela ONU em Durban, na África do Sul, em 2001, que os 1 Embora não amplamente citado, mas também de competência do Projeto UNESCO, Estudo de atitudes raciais 2 Ver: HONNET, A. A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003. 17 efeitos dessas novas formas de identidade, cultura e agenda política, induzidas pela globalização, ganharam força no debate sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo. Os movimentos sociais negros, por meio de “uma compreensão da história nacional muito distinta daquela alardeada pelos nacionalistas mais contundentes” (COSTA, 2006, p. 145), produziriam um solo fértil para o desenvolvimento e a difusão de uma plataforma antirracista. Um dos maiores efeitos, se não o maior, dessa plataforma foi a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), em decorrência da Lei nº 10.639/03 e seu desdobramento prático, presente nas Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das Relações Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (BRASIL, 2003, 2004; SILVÉRIO; TRINIDAD, 2012). Desde então, com a fundação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), sob o status de Ministério, e da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), vinculada ao Ministério da Educação, observamos o aprofundamento do debate sobre o antirracismo na esfera pública nacional (COSTA, 2005). À demarcação de terras de comunidades remanescentes quilombolas (MATTOS, 2006), e ao comprometimento da política educacional no combate ao racismo, por meio das ações afirmativas direcionadas à população negra ao longo dos anos 2000 (MUNANGA, 2006; SEGATO, 2005), somam-se importantes mudanças no interior do movimento negro, tais como a profissionalização acadêmica dos militantes3 (HOFBAUER, 2016) e a construção de um amplo diálogo binacional (Brasil e Estados Unidos), envolvendo fundações voltadas para financiar projetos de estudo de estudantes, pesquisadores e ativistas norte-americanos e brasileiros (COSTA, 2005). Para alguns estudiosos, como Costa (2006) e Silvério (2015), esse conjunto de fatores tem contribuído para a ascensão de novas formas de pertencimento/identificação, propagadas por meio de movimentos transnacionais de (re)construção de vínculos com a África. Tal contexto levou alguns autores, como Silvério (2014; 2015), a defender a ideia de que estaríamos vivendo um momento de transição entre “um modelo de integração racial baseado na ideia fundacional de nação mestiça para um modelo no qual se busca reconhecer identidades étnicas e raciais distintas presentes na formação social brasileira e que passaram a questionar o seu ‘apagamento’” (SILVÉRIO, 2015, p. 40). Guardadas as devidas proporções entre as diferentes abordagens e campos disciplinares, pode-se afirmar que existe entre intelectuais, como os sociólogos Sergio Costa 3 Exemplos candentes desse processo, durante as décadas de 1990 e 2000, foram os Núcleos de Estudos Afro- Brasileiros (NEAB’s), disseminados em todas as regiões do país. 18 (2005, 2006), Valter R. Silvério4 (2015) e o antropólogo Kabengele Munanga5 (2012), certo consenso de que essas transformações deslocaram irreversivelmente o ethos nacional brasileiro. Nesse contexto de mudanças empíricas, tanto conceituais quanto institucionais, um novo olhar sobre a presença africana e de seus descendentes no Brasil estaria surgindo e se tornando cada vez mais aparente. E seria em virtude da necessidade de novas formas de pensar a relação entre sociedade nacional e presença africana (no que diz respeito às questões de ordem cultural e política) que a noção de diáspora africana emerge, ganhando significado e força no Brasil, pelo menos no discurso de alguns cientistas e militantes. A noção de diáspora africana é cada vez mais recorrente nos trabalhos acadêmicos preocupados em analisar as relações raciais no Brasil contemporâneo, por exemplo o trabalho de Pinho (2004) — As reinvenções da África na Bahia —, porém raramente é explicitado o modelo ou a perspectiva de diáspora africana que está sendo articulada nessas investigações. Podemos dizer que, desde o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990, passamos a observar uma maior recorrência do termo no vocabulário da teoria social. Dentro dos currículos universitários, o eventual elogio a temas como “identidade e diferença”, efeito do atual contexto globalizado, tem proporcionado um terreno fértil para a valorização do conceito de “diáspora” (TÖLÖLYAN, 2012, p. 7). Ademais, o entendimento da crescente necessidade de categorias mais adequadas para descrever as substanciais mudanças causadas pelas novas tecnologias de comunicação e pelas massivas migrações em um mundo cada vez mais globalizado (COHEN, 2008; DUFOIX, 2011) vem contribuindo para a disseminação desse conceito. Diáspora passou, portanto, a ser utilizada para qualificar a condição social e a experiência cultural de expatriados, exiliados, da “fuga de cérebros”, de refugiados políticos ou imigrantes (COHEN, 2008; DUFOIX, 2011). Recorrentemente, cita-se como ponto de partida para o estudo do conceito de diáspora o ensaio de William Safran, intitulado Diasporas in Modern Societies: Myths of Homeland and Return [Diásporas na Sociedades Modernas: Mitos de Pátria e Retorno], publicado originalmente em 1991, além do texto de Robin Cohen, Global diasporas: an introduction [Diáspora Globais: uma introdução], originalmente publicado em 1997 (CHARIANDY, 2006; MOREHOUSE, 2007; ZELEZA, 2009). Segundo os autores, o uso clássico do termo, normalmente escrito com letra maiúscula e no singular (Diáspora), esteve intrinsecamente 4 Representante brasileiro na comissão científica da UNESCO para a elaboração do 9º volume da História Geral da África (HGA). 5 Um dos idealizadores do projeto promovido pela UNESCO para uso pedagógico da HGA (Brasil e África: uma histórica cruzada) Ver: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/education/inclusive-education/brazil-africa- project/about-brazil-africa-crossed-histories/#c1098725. 19 associado à experiência judaica. A principal característica da noção de “diáspora” consistiria na “ideia de dispersão seguida de um evento traumático na terra natal, para dois ou mais destinos” (COHEN, 2008, p. 2; tradução minha). Essa ruptura traumática com a terral natal seria, segundo os autores, fonte de memória coletiva e forneceria uma forma narrativa para uma experiência comum àquela vivida pelo povo judeu; projetando o retorno à terra natal e um vínculo especial, simbólico e étnico com a terra prometida. Safran (2015 [1991]), tomando como referência a dispersão judaica, define um conjunto de características que qualificam uma comunidade diaspórica. Ao atribuir grande centralidade à ideia da dispersão traumática da terra de origem e ao cultivo de uma memória coletiva (ou uma narrativa mítica) desse cisma, o autor destaca a importância do sentimento de exílio, exclusão e não aceitação dos povos dispersos na sociedade hospedeira. A presença do sentimento de comprometimento com a manutenção, a reconstrução e frequentemente também com o retorno à terra de origem torna-se, então, característica básica constitutiva de uma comunidade diaspórica. A partir da narrativa da ruptura traumática e das dimensões apontadas por Safran (2015), Cohen qualifica como diaspórica a experiência dos africanos, armênios, irlandeses e palestinos, denominando-as diásporas prototípicas (prototypical diaspora) (COHEN, 2008, p. 2). Fora do Brasil, a noção de “diáspora”, e, mais especificamente, de “diáspora africana”, não é, portanto, recente. Desde o fim do século XIX esteve presente nos Estados Unidos, tendo importante papel como locus de pertencimento, contribuindo para a construção de solidariedades e de agendas políticas dos movimentos sociais negros norte-americanos. Além disso, a noção de “diáspora africana” foi essencial para a construção, institucionalização e postulação dos paradigmas teórico-metodológicos para o que hoje (recentemente) é denominado disciplinarmente African-American Studies (MANNING, 2003; ROBINSON, 2009; ZELEZA, 2009). Autores como W. E. B. Du Bois, Carter G. Woodson, Alexander Crummell, Martin Delany e Edward Blyden aproximaram a dispersão violenta da terra de origem, causada pelo tráfico de escravos, e a experiência dos africanos escravizados no novo mundo, à narrativa judaica da dispersão e do exílio. A relação entre êxodo, sofrimento, memória coletiva e redenção tornar-se-iam os elementos responsáveis por fornecer os primeiros recursos semânticos (narrativa comum) para a elaboração da identidade e da historicidade dos escravizados, possibilitando-os se conceberem enquanto povo (SHEPPERSON, 1994). Esse senso de pertencimento, baseado em uma suposta origem racial e cultural comum e na luta contra o racismo e o colonialismo, foi o fundamento sobre o qual diversos historiadores da África e da escravidão racial atuantes no Novo Mundo resolveram, 20 durante as décadas de 1950 e 1960, voltar-se para o, e apropriar-se do, termo “diáspora africana” (WILLIAMS, 1999; MANNING, 2003). Nesse sentido, embora seja possível observar a presença da noção de “diáspora africana” no pensamento de importantes intelectuais negros do século XIX, há uma espécie de consenso entre os estudiosos (WILLIAMS, 1999; MANNING, 2003; DAVIES, 2008) de que a noção de “diáspora africana” apenas nos anos 1950 passou a ser utilizada e adquiriu o status de conceito. Em um contexto marcado pelas orientações políticas pan-africanistas, desencadeadas pela luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e pelas lutas de libertação nacional na África (MANNING, 2003; DAVIES, 2008), foram os historiadores Joseph E. Harris e George Shepperson os responsáveis por apresentar o conceito de “diáspora africana” durante duas conferências patrocinadas pela UNESCO: uma delas realizada no First International Congress of Negro Writers and Artists (Primeiro Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros), em Paris, 1956; e outra no International Congress of African Historians (Congresso Internacional de Pesquisadores Negros), em Dar es Salaam, Tanzânia, outubro de 1965. Todavia, a discussão semântica do conceito ocorreu apenas em 1979, no First African Diaspora Institute (Primeiro Instituto da Diáspora), organizado por Joseph E. Harris, na Howard University. Esse seminário deu origem à primeira edição da clássica coletânea Global dimensions of the African Diaspora (Dimensões Globais da Diáspora Africana), na qual Harris (1994 [1982]) define o conceito de “diáspora africana” da seguinte maneira: “A dispersão global (voluntária e involuntária) de Africanos através da história; a emergência de uma identidade cultural no exterior com base na origem e condição social; e o retorno psicológico ou físico à pátria, África”6 (HARRIS, 1994, p. 3-4; tradução minha). A coletânea de trabalhos apresentados sob a supervisão de Harris (1994) não apenas atribui profundidade e um escopo global à diáspora africana, exibindo estudos sobre a presença africana na Europa, Ásia, África e América, mas, ao cruzar fronteiras nacionais e disciplinares, também observa as articulações que influenciaram um conjunto de eventos culturais, políticos e históricos nas comunidades negras, sobremaneira aquelas inscritas ao longo do Atlântico. No artigo de encerramento, Diaspora Studies and Pan-Africanism, o sociólogo St. Clair Drake (1994) reconhece a importância do pan-africanismo na formulação da noção de “diáspora africana”, salientando que, a despeito dos diferentes temas e estudos 6 “The global dipersion (voluntary or involuntary) of Africans throughout history; the emergence of a cultural identity abroad based on origin and social condition; and the psychological or physical return to homeland, Africa”. 21 apresentados ao longo dos textos, a agenda de luta contra o racismo e contra o colonialismo e a percepção de uma identidade articulada a partir de uma origem comum embasam o conjunto dos artigos da coletânea. O trabalho da historiadora Ruth Simms Hamilton, que dois anos após a publicação da coletânea organizada por Harris fundaria, junto com Leslie Rout Jr., o African Diaspora Reasearch Program, na Michigan State University, também foi de suma importância para sedimentar o conceito nesse contexto (ROBINSON, 2009, p. 263). Hamilton (1990, 2006) investiu em uma abordagem histórico-comparativa no que diz respeito à conceituação da diáspora africana, concebendo-a também como um fenômeno global pautado pela construção de uma identidade coletiva, efeito da ruptura provocada pelo tráfico escravocrata e pela dolorosa memória desse cisma. O modelo elaborado por Hamilton tornou-se importante na medida em que considerava as dinâmicas globais de ordem econômica, política e social da diáspora africana. Diferentemente dos Estados Unidos, que desde o início do século XX já contava com movimentos sociais (p. ex., o pan-africanismo) e intelectuais negros (como W. E. B. Du Bois), que elogiavam e valorizavam a origem africana; no Brasil, a identificação com a África é bem mais recente. O “regime de representação” (HALL, 2010), elaborado por Gilberto Freyre, estabeleceu, como aponta Munanga (1999), uma tensão entre identidade nacional e identidade negra, que foi eficaz em escamotear a presença africana sob o signo da mestiçagem e da brasilidade. Vale lembrar que, na primeira metade do século XX, no Brasil (diferentemente de outros lugares para onde foram levados escravizados africanos), a militância negra buscava, num primeiro momento, distanciar-se do pertencimento à África, inclusive de boa parte das tradições culturais e religiosas de forte influência africana. As lideranças, como no caso da “Frente Negra Brasileira” (1931-1938), afastavam-se deliberadamente de ideias e projetos pan-africanistas, gestados em outros lugares naquele momento (HOFBAUER, 2006). Foi apenas a partir das décadas de 1960 e 1970 que as culturas de origem africana passaram a ser ponto de referência para a construção e (re)elaboração de um senso de pertencimento das comunidades negras do Brasil (COSTA, 2005). No contexto nacional, esse modelo de identidade foi estimulado não apenas pelo diálogo e pela influência dos movimentos negros americanos (SILVA, 2013), mas também por meio de reflexões críticas realizadas por uma tradição de pensamento que viria então a ser denominada Sociologia das Relações Raciais. Como exemplo, observamos a utilização da categoria sociológica “raça como construção social”, que, influenciada em termos metodológicos pela Escola de Chicago, 22 possibilitou vincular a delimitação de “grupos raciais” diretamente à análise de assimetrias socioeconômicas. Em sintonia com perspectivas marxistas, os Estudos das Relações Raciais, foram essenciais para a produção de um senso de pertencimento baseado em uma condição social comum (COSTA, 2006; HOFBAUER, 2006b). Em vista disso, foi só recentemente que a África, e consequentemente a ideia de “diáspora africana”, se tornou, de fato, um recurso semântico para a construção e afirmação de novas etnicidades negras (COSTA, 2006; SILVÉRIO, 2015). Diferindo também dos Estados Unidos de meados dos anos 1970, quando já ocorria a institucionalização de intelectuais negros, e por conseguinte a institucionalização de suas preocupações teóricas e agendas políticas (ROBINSON, 2009; ZELEZA, 2009), no Brasil foi somente a partir da década de 1990 (com algumas exceções), como apontam Hofbauer (2016) e Ferreira (2010), que ocorreu uma efetiva institucionalização de profissionais acadêmicos negros. Tal fato é importante ser ressaltado, pois foi também nesse período que a noção de “diáspora africana” começou a se tonar cada vez mais relevante no contexto nacional — um processo que finalmente conferiu visibilidade ao tema. Com essa abordagem comparativa, não queremos, evidentemente, imputar um suposto atraso aos intelectuais e militantes negros brasileiros em relação ao modelo norte-americano de identificação e agência política, nem acusar de tardia a popularização do conceito de “diáspora africana” no contexto nacional. O objetivo é, muito mais, explicitar que o fenótipo não possui um sentido anterior aos contingentes processos históricos e culturais. Significa dizer, por um lado, que cada um desses contextos possui suas tradições de pensar a relação entre povos de origem africana e o estado nacional, e que o reconhecimento desse caráter contextual exige uma investigação da forma vernácula que a noção de “diáspora africana” assume no âmbito nacional. Por outro lado, cabe salientar que a emergência da noção de “diáspora africana”, enquanto novo horizonte analítico para pensar as relações raciais no Brasil contemporâneo, aponta para o reconhecimento da influência que os deslocamentos históricos e paradigmáticos amplos — inclusive, na maneira de pensar as diferenças (fenotípicas e culturais) e desigualdades (discriminação, racismo) — tiveram sobre as reelaborações e os (re)posicionamentos da identidade negra no Brasil. O efeito desses deslocamentos tem gerado uma exigência crescente de categorias mais adequadas para descrever as novas formas de relação entre raça, racismo, cultura, identidade e nação. Dito de outro modo, refletir sobre a emergência da noção de “diáspora africana”, enquanto novo horizonte de análise das relações raciais no Brasil contemporâneo, resulta na investigação do impacto de um conjunto de deslocamentos teóricos, epistemológicos e 23 discursivos que se sucederam em decorrência dos novos modelos de pertencimento e de cultura, especialmente nas duas últimas décadas; e tal investigação é o principal objetivo dessa tese. A África está se convertendo em significante, em metáfora que torna inteligível uma dimensão de nossa sociedade e de nossa história que tem sido sistematicamente suprimida e negada. Como sugere Hall (2009, p. 40), isso se deve à forma como a África está sendo produzida por essas novas formas de pertencimento. Nesse sentido, essa pesquisa também trata de interpretar e reler o que a África está se tornando atualmente no Brasil. Nessa ordem de ideias, muito se pode ganhar na análise da produção dos intelectuais preocupados em investigar as atuais relações raciais em seus respectivos contextos. Segundo apontam Silvério & Trinidad (2012), os Núcleos de Estudo Afro-Brasileiros/Neab’s (nesse caso, especificamente o Neab da Universidade Federal de São Carlos) possuem valor heurístico na medida em que registram em suas produções (dissertações, teses e artigos), com maior ou menor intensidade, o efeito dos deslocamentos que mencionamos anteriormente. Isto posto, nos propomos a realizar um estudo construtivista entre as produções do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos e do Department of African and African American Studies, da Harvard University, notadamente, o W. E. B. Du Bois Research Institute (DBRI). Mais especificamente, dispomo-nos a analisar construtivamente as produções/publicações em periódicos dos coordenadores dos respectivos núcleos, procurando observar as semelhanças e diferenças na forma pela qual esses departamentos e núcleos concebem a presença e a influência africanas em suas respectivas sociedades nacionais. Por sua vez, a predileção por uma posição construtivista em vez de uma perspectiva comparativa7, quero argumentar, nos possibilita compreender de que forma emerge e se articula teórica e discursivamente a noção de “diáspora africana” nas formulações desses departamentos e núcleos, sem, a princípio, supor uma linguagem de prática teórico-política ou disciplinar em detrimento de outra. Mas, não só, uma perspectiva construtivista também nos possibilita deslocar a ideia de que há um vetor, um sentido, um protagonismo de onde provém o conceito de “diáspora africana”. Isso não significa negar que o conceito não tenha uma genealogia, ou, melhor dizendo, uma história, mas, sim, nos dá a oportunidade de privilegiar as práticas de trocas (teóricas e políticas) e os trânsitos transnacionais, essenciais para a constituição do próprio conceito. Dito de outro modo, é evidente que há uma recepção e uma apropriação do conceito de “diáspora africana” no contexto brasileiro contemporâneo, 7 Tal lógica de análise, desde o início do século XX, tem ocupado um lugar de destaque entre os intelectuais que dedicam-se a pensar a presença africana no Brasil e nos Estados Unidos. Ver: PINHO, P. Descentrado os Estados Unidos nos estudos sobre negritude no Brasil; In: RBCS, v. 20, n. 59, outubro de 2005. 24 entretanto, a sua emergência para o debate nacional é mais o resultado, como veremos, da ativa agência teórico-política transnacional dos intelectuais negros que abordaremos. A, portanto, produção de um estudo construtivista entre esses dois núcleos nos possibilitaria cartografar (BRAH, 2006) as problemáticas que circundam a emergência da noção de “diáspora africana” em cada contexto. Ou seja, nos possibilita, por um lado, formular uma espécie de história intelectual do conceito de diáspora. Como o conceito emerge, como é incorporado e como vai ganhando amplitude e importância, até ser o conceito que nós usamos hoje, sem, evidentemente, eliminar os contrassensos e indecisões do próprio conceito. De outro, passamos verificar quais os usos da noção de “diáspora africana”. Entendemos que tal análise significou, em última instância, explicitar o que está “por trás” das noções de “diáspora africana” mobilizadas. A escolha dos núcleos, por seu lado, justifica-se pelo protagonismo que ocupam em esfera nacional e internacional. No caso do Department of African and African American Studies, da Harvard University, além de oferecer programas de Graduação e Pós-Graduação (PhD), sua formação e institucionalização atravessa toda a segunda metade do século XX, desde os estudos hegemônicos e exclusivos sobre a África (1950 e 1960) aos estudos sobre a diáspora africana a partir das últimas décadas (FERREIRA, 2010). Ademais, o Department of African and African American Studies passou por uma mudança significativa a partir de 1991. Após duas décadas de declínio no campus, o Department of African and African American Studies e o W. E. B. Du Bois Research Institute passaram a ser presididos por Henry Louis Gate Jr. em 1991, o responsável, alega Roja (2007), por reabilitá-los. Como um destacado administrador, Gates contratou alguns dos mais conhecidos “acadêmicos afro-americanos” que lecionariam no programa, como Kwame Anthony Appiah (filósofo treinado em Cambridge), Cornel West (filósofo e ativista), Larry Bobo (sociólogo especialista em atitudes raciais), William Julius Wilson, Michael C. Dawson (talvez o mais proeminente estudioso da opinião pública negra) e Evelyn Books Higginbotham (ROJAS, 2007, p. 237). Intelectuais que, por suas reflexões teóricas e sua proeminência política, tornaram-se referências no cenário norte-americano (ROBINSON, 2009; ZELEZA, 2009). Já o Neab da UFSCar (fundado em 1991), além ser um centro de referência nacional, apresenta-se como marco na implementação do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, bem como de Educação para as Relações Étnico-Raciais, desenvolvendo atividades de pesquisa, ensino e extensão desde a sua fundação. Em sua trajetória de formação e institucionalização, é preciso destacar o papel de dois de seus coordenadores: a professora Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva (1991; 2007) e o professor Valter Roberto Silvério 25 (1991; 2013). O protagonismo de ambos se estende para muito além dos muros da universidade. Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva teve contribuição decisiva na aprovação da Lei 10.639/2003, e sobremodo na redação do parecer que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) e do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Além disso, a professora Petronilha teve um papel central na formação de educadores para a ERER, desde a fundação do Neab da UFSCar até sua aposentadoria (2015). Valter Roberto Silvério teve papel considerável no Ministério da Educação, trabalhando na área de Educação e Ações Afirmativas; atuou na tradução para o português da obra História Geral da África; e, mais recentemente, vem contribuindo para o uso dessa obra como material didático-pedagógico. Partindo do universo empírico descrito acima, os eixos teórico-metodológicos compreendem os dois seguintes pontos principais de análise: o recorte histórico e a identificação. A começar pelo primeiro (o recorte histórico), do ponto de vista mais geral, compreendemos que o período compreendido entre 1991 e 2014 nos proporciona realizar uma intersecção entre momentos importantes da formação, institucionalização, ação e produção dos respectivos núcleos. Isso porque será possível, ao mesmo tempo, analisar, por uma lado, a emergência da noção de “diáspora africana” enquanto perspectiva de pensamento preponderante no discurso acadêmico americano e a chegada e as implicações da presença de Henry Louis Gates Jr. e Kwame Anthony Appiah no Department of African and African American Studies, da Harvard University (ROBINSON, 2009; ZELEZA, 2009; FERREIRA, 2010). Por outro lado, foi também possível investigar as diversas ações e estratégias desenvolvidas por Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva e Valter Roberto Silvério que levaram à criação de um espaço institucional (tanto dentro quanto fora dos muros da universidade) para o desenvolvimento adequado de seu trabalho. Neste contexto, analisaremos ainda as mudanças causadas no debate sobre as relações raciais após uma década de implementação da Lei 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a ERER e do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. O segundo eixo diz respeito à relação, que ao longo da tese ganha o nome de política cultural, entre identificação e elaboração teórica. A partir de Hall (2009), é lícito dizer que a noção de “identificação” posiciona o conceito de “identidade” sob rasura, o que significa enunciar dois deslocamentos: o primeiro, o entendimento de que o próprio processo de identificação, por meio do qual projetamos nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático (HALL, 2009); cada vez mais passamos a compreender o sujeito como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. 26 O segundo torna-se mais evidente em sua discussão quanto à emergência de novas etnicidades negras (HALL, 2010). No texto New Ethnicities, Hall (2010 [1989], p. 305) demarca duas fases que caracterizam a política cultural negra. A primeira fase caracteriza-se pela utilização do termo “negro” como uma forma de referenciar a experiência comum com o racismo. Um dos aspectos centrais desse momento é o combate à fetichização, objetificação e figuração negativa recorrentemente atribuída ao sujeito negro, por meio de uma imagem positiva. Segundo Hall (2010, p. 306), essa estratégia contribuiu de forma a transformar as relações de representação, embora sem deslocar o regime de representação estabelecido. A fase posterior, ou nova fase, se caracteriza pela emergência de novas etnicidades negras e pela mudança de relações de representação para políticas de representação. O principal aspecto dessa nova fase elabora-se, segundo o autor, sobre o reconhecimento de que a cultura, a ideologia e os regimes de representação — subjetividade, identidade e política — são também lugares de construção da vida social e da política, e não apenas uma expressão das relações de produção capitalista (HALL, p. 307). As formulações de Hall (2009, 2010) sobre a nova política de representação negra (new ethnicities) e o caráter não fixo da identidade cultural nos possibilitaram estabelecer um viés investigativo para a perspectiva construtiva, pois, ao estabelecer a conexão entre identificação, projeções teóricas e agendas políticas, o autor nos chama a atenção para a íntima relação entre identificação e produção de conhecimento. Em nossa pesquisa essa relação (identificação e elaboração teórica), que se expressa empiricamente nas publicações (periódicos acadêmicos) dos intelectuais dos respectivos núcleos, torna-se o eixo condutor para a análise construtiva. Esta tese está dividida em duas partes. Na primeira parte, intitulada Através do Atlântico: a Genealogia e os Modelos de Diáspora Africana, preocupamo-nos em elaborar, ante a aparente inexistência de trabalhos dessa natureza em nosso contexto acadêmico, uma história do conceito de “diáspora” e dos seus diferente modelos e perspectivas teórico- metodológicas. Por meio do conjunto de pressupostos anunciados, cada um dos três capítulos (o inicial com menor intensidade devido a seu recorte histórico) tem por objetivo explorar um modelo específico de diáspora e suas condições de emergência, respeitando os contextos social, histórico e intelectual sob os quais fora elaborado. A redação da pesquisa, entretanto, começa a partir de uma nota etimológica e semântica. Nesse breve texto exploramos a origem da palavra “Diáspora”, as suas inicias conotações gregas e religiosas, o seu estabelecimento em meio ao vocabulário especializado, bem como as controvérsias em torno da sua etimologia. 27 No primeiro capítulo, nomeado a A noção de “diáspora africana”: entre a filiação genealógica e o pensamento secular buscamos a princípio adentrar, em uma certamente precária e insatisfatória tarefa, nos pensamentos de Alexander Crummell e Edward W. Blyden. Sustentaremos que ambos os autores não só laçaram as bases para o que viria a ser denominado de “pan-africanismo”, mas entre as linhas de seus textos, orações que proferiram e intenso diálogo com a semântica de pertencimento calcada no antigo testetamento e na dispersão judaica, sedimentaram o modelo de identidade cultural e “racial” que seria fundamental para a emergência da noção de “diáspora africana”. O segundo tópico continua a explorar tal modelo de identidade cultural e “racial” e as suas implicações para a noção de diáspora africana. Entretanto, nessa seção nos preocuparemos em investigar o pensamento de W. E. B. Du Bois. Mais detidamente, reconheceremos que há em meio ao pensamento do autor a sedimentação de uma transição acerca do modo como a identidade cultural e “racial” negra é concebida. Du Bois seria aquele que haveria dado o passo seguinte em direção a uma mudança de percepção sobre a natureza do vínculo de pertencimento entre os africanos e seus descendentes, isto é, de uma concepção de filiação genealógica (religiosa) para uma concepção secular de pertencimento (racial), imbuindo tal identidade a outras narrativas semânticas e oferecendo os primeiros estudos científicos sistemáticos sobre a presença africana no Novo Mundo. Valer chamar atenção, desde essas linhas iniciais, que o estuto do pensamento de Du Bois, o seu lugar em meio a cânone sociológico ocidental e, de modo mais candente, a maneira como o histórico pensador afro-americano mobilizou a categoria raça ao longo de sua extensa carreira, são atualmente razão de intensas discussões no mundo acadêmica norte- americano. Tal debate não me era de todo conhecido no início dessa pesquisa, no ano de 2016. Entretanto, com o desevolvimento da tese e, sobremaneira, devido a meu períodos de intercambio no Africana Studies Department na Brown University, no período letivo de 2018- 2019, a minha compreensão desse debate tornou-se, suponho, um pouco mais familiar. Ante a essa mudança, ocorrida ao longo do trabalho, a minha leitura do lugar e dos textos do autor em meio a constituição do conceito de diáspora africana foram deslocados significatimente. Todavia, opotei por manter essa, digamos, primeira leitura presente aqui no início da tese, pois, em contraste com a leitura presente ao final da pesquisa, emerege uma diferença. E, se, como dirial Hall (2014[1996]), a diferença é essencial a produção do significado, em outras palavras, tal diferença no ajudará a compreender a história desse debate ao longo do tempo, tornando intelegivel os não poucos, deslocamentos e contrassensos que acompanham as 28 discussões acerca do pensador. Tal posição, acredito, é de maior importancia para o contexto acadêmico brasileiro, muitas vezes ao largo dessa fundamental discussão. No capitulo dois, Os anos 60’s e 70’s: o conceito de diáspora africana, a relação entre êxodo, sofrimento, memória coletiva e redenção ja haviam tornado-se os elementos responsáveis por fornecer os recursos semânticos (narrativa comum) para a elaboração da identidade e da historicidade dos escravizados, possibilitando-os se conceberem enquanto povo. Esse senso de pertencimento, baseado em uma suposta origem racial e cultural comum e na luta contra o racismo e o colonialismo, foi o fundamento sobre o qual diversos estudiosos da África e da escravidão racial atuantes no Novo Mundo resolveram, durante as décadas de 1950 e 1960, voltar-se para e apropriar-se do termo diáspora africana. Nesse primeiro momento, os modelos e perspectivas de diáspora africana, em meio ao seu íntimo diálogo com a dispersão judaica, articulavam as concepções de cultura e de identidade de sua época. Convergia-se, por um lado, para a utilização de uma noção sistêmica de cultura, compreendendo-a implicitamente como uma totalidade coesa, homogênea e hermética (HOFBAUER, 2009). Essa noção de cultura sugeria uma relação congruente entre as fronteiras do grupo (fronteiras étnicas) e as fronteiras do mundo dos valores e símbolos (fronteiras culturais); ou seja, supunha-se que existia uma relação direta entre espaço, grupo e cultura (GUPTA & FERGUSON 2000). E, por outro, postulava-se a ideia de uma identidade própria, de uma essência negra, um substrato ontológico comum a todos os negros. A África tonar-se, nesse sentido, lugar privilegiado desse senso de pertencimento8 (GORDON, 2009). Sob esses termos, nessse capítulo adentramos a esse profundo contexto de transformações das mais diversas ordens e escopos que, primeiro, atribui o estatus de conceito a diáspora africana e, ao mesmo tempo a transformou, não sem diversas disputas instituicionais, políticas, sociais, teórico-metodológicas e culturais, numa pedra central para os, estão chamados, black studies. De acordo com autores como Rodinson (2009) e Zeleza (2009), essa conjuntura de modelos e perspectivas de diáspora africana só mudaria, de fato, a partir de meados dos anos 1980. O impacto da luta pelos direitos civis, os ecos das lutas de libertação nacional, a descolonização da África e o declínio da Guerra Fria, por um lado, a institucionalização e a proliferação de trabalhos teóricos marcados por inspirações pós-estruturalista e pós-coloniais de importantes estudiosos, tais como Valentin-Yves Mudimbe, Achille Mbembe e Kwame Anthony Appiah, por outro, constituem os fatores centrais que requalificariam teórica, 8 Segundo Gordon (2009, p. 2), esse modelo de pertencimento seria de suma importância, para um conjunto de movimentos sociais negros desde “the Harlem Renaissance (1920s), Negritude (1930s), Black Power (late 1950s) into the 1960s),(...) the Black Consciousness movement of South Africa and Britain (1970s), e tradições de pensamento , mais significativamente, o Afrocentrism and Afrocentricity (1980s)”. 29 metodológica e epistemologicamente os African and African American Studies (ROBINSON, 2009; ZELEZA, 2009). Foi no bojo dessas mudanças empíricas, conceituais e de disputas de poder que a noção de diáspora africana tornou-se uma relevante categoria de análise e objeto de investigação dos African and African American Studies (MANNING, 2003; ROBINSON, 2009; ZELEZA, 2009). A partir da década de 1990, sugerem Cohen (2008) e Dufoix (2011), a noção de diáspora, e em especial a diáspora africana, começa, se não a mudar, pelo menos, a ser tensionada. Segundo Dufoix (2011, 325), mudanças mais amplas na filosofia e na teoria social repercutiram decisivamente nas formulações do conceito. As críticas pós-modernas e desconstrutivistas, protagonizadas por autores como Jaques Derrida, Michel Foucault Gilles Deleuze, deram origem a uma filosofia do pensamento descentrado (da dispersão, da disseminação e do rizoma) (DUFOIX, 2011, p.338), que colocou sob rasura qualquer elogio a identidades e culturas tidas como fixas ou enraizadas. As perspectivas contemporâneas de diáspora africana, e os modelos de cultura e de identidade nelas implícitos, deslocam e estabelecem uma tensão com as formas de identidade e de cultura percebidas como herméticas ou fechadas. Nessa nova narrativa contemporânea, em que a relação com a terra de origem não é mais entendida por metáforas ligadas a uma ideia linear de continuidade cultural, o retorno à terra natal deixa de ser um desejo. Essa nova semântica é, de certo modo, o reflexo de mudanças na maneira como diferença e diversidade cultural vêm sendo compreendidas9 (HOFBAUER, 2009, COHEN, 2008; DUFOIX, 2011). Assim, o capitulo três, tiuladado O modelo descentrado de diáspora africana, dá forma a essas transformações. O conceito de diáspora, desse momento em diante, não apenas descreve processos traumáticos de deslocamento e espalhamento de comunidades ao longo do tempo e espaço, como também se torna uma gramática comum, uma espécie de metáfora da condição subjetiva e da produção cultural no mundo contemporâneo (CHARIANDY, 2006). Segundo Williams (1999), muitos pesquisadores que trabalhavam com o conceito de diáspora africana enquanto categoria de análise fundamentaram demasiadamente sua perspectiva na ideia de “comunitarismo negro” (black communitarianism). Para o autor, esse procedimento epistemológico e político não atribui a devida importância ao fato de que o conceito de diáspora africana realçaria a questão de que a identidade negra (blackness) produzida por 9 Desde as primeiras publicações do antropólogo Barth (1997 [1969]), na coletânea Grupos étnicos e suas fronteiras, noções sistêmicas de cultura estão passando por um rigoroso crivo. Desde a década de 1970 e 1980, pesquisadores como Bourdieu (1972) e Sahlins (1981) começaram a trabalhar com usos estratégicos do reportório cultural dos sujeitos e grupos. É dessa forma que termos como prática, ação, interação, performance e agência começaram a cada vez mais fazer parte do vocabulário antropológico. 30 meio da presença e interação entre os povos de origem africana ao redor do mundo é um processo marcado pela (re)criação e (re)invenção cultural, negociadas e articuladas por meio da experiência coletiva (WILLIAMS, 1999, p. 107). Modelos e perspectivas de diáspora africana passaram a investir cada vez mais em abordagens que reconhecem a proeminência do caráter aberto da produção cultural e identitária das comunidades negras nos lugares em que se estabeleceram. Nesse sentido, as noções de identidade e cultura afro-diaspórica, tão caras às perspectivas anteriores, são moldadas, não por vínculos imediatos com a terra de origem, mas a partir de lutas e posicionamentos articulados por meio de um passado muitas vezes imaginado (inventado). Uma contribuição importante para o debate foi dada pela perspectiva diaspórica pós-colonial (CLIFFORD, 2015 [1997]; CHARIANDY, 2006). Influenciados, por um lado, pelo pensamento pós-estruturalista, e, de outro, pelas elaborações de Fanon (2008), os autores pós-coloniais, como Stuart Hall (2010, 2011), Paul Gilroy (2002, 2007), Bhabha (2013) e Brah (2006), denunciaram a relação entre discurso, saber e poder, e criticaram os sistemas de representação (discursos) que, segundo os autores, constituíam a episteme ocidental/colonial (HOFBAUER, 2009). Ao investir no neologismo differánce10 para abordar a identidade e a cultura como sistemas abertos, os autores pós-coloniais não mais analisam a diferença cultural como fronteira entre dentro e fora. A fronteira é transposta para o interior das culturas, o que “transforma a cultura num lugar incerto de significação” (HOBAUER, 2009, p. 121). Nessa ordem de ideias, a noção de diáspora africana seria apta não só a rejeitar os esquemas epistemológicos e ontológicos do colonialismo, mas, ao supor que a formação de identidades e culturas sejam articuladas e negociadas por meio do fluxo de deslocamentos e dispersões, também possibilitaria questionar reinvindicações de pureza e integridade cultural (cf. HALL, 2009; GILOY, 2002). Trata-se de um deslocamento significativo da crítica da políca cultural negra. 10 Não se trata da forma binária de diferença, o que é absolutamente o mesmo e o que é absolutamente o “Outro”. É uma onda de similaridades e diferenças que recusa a divisão em oposição binária fixas. Différance caracteriza um sistema em que “cada conceito [ou significado] está inscrito em uma cadeia ou em um sistema, dentro do qual ele se refere ao outro e aos outros [significados], através de um jogo sistemático de diferenças” (Derrida, 1972). O significado aqui não possui origem nem destino final, não pode ser fixado, está sempre em processo e “posicionado” ao longo de um espectro. Seu valor político não pode ser tornado essencial, apenas determinado em termos relacionais. As estratégias de différance não são capazes de inaugurar formas totalmente distintas de vida (não funcionam segundo a noção de uma “superação dialética totalizante”) e não podem conservar as formas de vida tradicionais. Operam melhor dentro daquilo que Homi Bhabha denomina de “tempo liminar” das minorias (Bhabha, 1997). Contudo, a différance impede que qualquer sistema se estabilize em uma totalidade inteiramente saturada (COSTA, 2006, p. 60-61). 31 Na segunda parte da tese, nomeada Neab-Ufscar e W. E. B. Du Bois Research Institute: notas sobre representação, identidade e (dissemi)nação, iniciamos as nossas longas análises dos respectivos núcleos, concentrando a atenção da investigação na produção dos coordenadores dos seus respectivos núcleos. Tal divisão, que apresenta primeiro as formulações produzidas entre os intelectuais do Neab-UFSCar e posteriormente aquelas protagonizadas pelos coordenadores do DBRI não é, evidentemente, sem propósito. Compreendo que há uma lógica no desenvolvimento da análise a partir da abordagem construtivista entre os dois núcleos. Sugere-se que há um “sentido” da crítica (e com isso, caro leitor, não quero sinalizar para qualquer proprosição teleológico de desenvolvimento da cultura política e da política cultura negra) que percorre um caminho, que transncinacional, deloca-se das contestações à desigualdade racial para a crítica do cânone da teoria social. Essa lógica, esse “sentido” da crítica que acima sinalizo é uma unidade da multiplicidade. Ao transitar por diferentes instituições, campos disciplinares, tradições de pensamento e, sobretudo, pela produção de intelectuais específicos, tomei em consideração que o múltiplo faz parte dessa pesquisa. Toda essa multiplicidade, quase sempre dissonante entre si, constituiu problemáticas que são coextensivas umas as outras. Denominadas ao longo do texto de linhas de intensidade (assim, solicito, leitor, que atribua uma ligeira maior atenção quando deparar-se com essa locução ao longo dessa unidade do texto) tais problemáticas coextensivas compõe, quero argumentar/agenciar, um corpo, no entanto, sem órgãos (DELEUZE e GUATTARI, 2014b[1980]). Menos que um conceito, esse corpo sem órgãos, constrói-se, não por qualquer ordem interna, mas, por meio de conjunto de práticas críticas nem sempre, sendo um pouco efemista, hormônicas. Por tais razões e na medida em que a produção dos coordenares do respectivo núcleo e departamento expressam, justamente, essas diferentes de práticas críticas, que optamos por uma posição construtivista com o propósito de agenciar, mesmo que provisoriamente para os fins de uma tese, uma singularidade (uma unidade de multiplicidades). Apoiado no valor heurístico dessas produções (dissertações, teses, artigos e livros), na medida em que registram com maior ou menor intensidade o conjunto dos debates que fundamentaram a emergência e articulação do conceito de “diáspora africana” como categoria possível para se pensar a experiência coletiva dos povos e culturas de origem africana no Novo Mundo me volto à investigar, como anunciado, o que está “por trás” dos usos, as mobilizações do conceito. E, quando não articulado de modo central a reflexão do respestivo intelectual/coordenador, nossa atenção volta-se sob quais condições é evocado. Em outras palavras, continuamos a nossa história intelectual do conceito de diáspora africacana, mas não 32 só. A essa história intelectual, digamos mais tradicional, do conceito, acrecentamos, por um lado, a história de algumas trajetórias intelectuais e das tradições de pensamento que tais pesquisadores são signatários, por outro, a história da instituicionalização dos respectivos núcleos nos quais os mesmos tem atuado. Há, portanto, um triplo movimento cuja articulação foi a responsável por permitir analisar a incorporação e os “usos” do conceito. Com efeito, no capitulo quarto, Neab-ufscar: da desigualdade a diferença, me dedico a investigar especialmente as figuras de seus mais duradouros coordenadores, a educadora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e o sociólogo Valter Roberto Silverio. Entretanto, não perco de vista a importância de outros membros, coordenadores atuais Tatiane Consentido Rodrigues e Douglas Verrangia, bem como de discentes como, por exemplo, Luiz Fernando Costa Andrade e, hoje docente da UNIFESP, Deivison Mendes Faustino. O capítulo começa, entretanto, com a retomada dos precedentes ligados ao associativismo negro da cidade de São Carlos, o grande protagonista para o reconhecimento da importância do debate racial para a comunidade local e, sobretudo, para a UFSCar. O Club Flor de Maio e, posteriormente, o Centro de Cultura Afro Brasileira Congada, estabeleceram, históricmente junto a Universidade, a exigência da presença de intelectuais negros capazes lidar com os aportes políticos do associativismo negro e, ao mesmo tempo, cumprir com as demandas de excelência acadêmica atribuídas a tal posição. Como resultado, temos a contratação do histórico sociólogo negro Eduardo de Oliveira e Oliveira. Apoido nos documentos históricos do sociólogo arquivados na Unidade Especial de Informação e Memória (UEIM) da UFSCar e no importante trabalho de Rafel Trapp (2018), investigamos a redação por ele elaborada dos rascunhos das propostas iniciais do Núcleo Brasileiro-Africano de Estudos e Documentação (OLIVEIRA, 1977c, 1978), hora denominado também de: Centro para Estudo da – HISTÓRIA, VIDA E CULTURA DO NEGRO (1978). Correlacionados a experiência de transnacionalização de Eduardo durante o ano de 1974, quando visitou os Historically Black colleges and Universities (HBCU’s), o sujeito negro e o núcleo por ele desejado são bases históricas, para o que viria a ser o Neab- UFSCar Postos esses precedentes, avançamos para 1991, ano fundação e inincio da instituicionalização do Neab-UFSCar. Não diferente do que havia ocorrido com Eduardo, o protagonismo do associativismo negro de São Carlos junto a Universidade foi o resposavel por cativar a Professora Petronilha (concursada em 1989) e o Professor Valter R. Silvério (concursado em 1993) a compor, repectivamente, a Faculdade de Educação e o curso de Ciências Sociais da UFSCar. Nos tópicos, “A institucionalização e a emergência da noção 33 de diáspora africana e “Transnacionalização: a (re)modelação da relação com o significante África”, seguimos para, digamos, os fundamentos e para os trânsitos transnacionais encarregados, em grande medida, por delimitar, as linhas de intensidade, o idoma teórico por eles mobilizados e modo relacionam-se com o significante África. Como veremos, será a natureza da relação com esse significante, a semantica de pertencimento a ele atribuída (que atravessada por esses trânsitos), os aspectos decivicos para a maneira distinta como esses intelectuais evocarão e mobilizarão o conceito de diáspora africana em seu pensamento. As seções seguintes são um mergulho no pensamento desses intelectuais. Nos tópicos “Um deslocamento implícito: articulação, racialização e o cânone sociológico” e “Historicismo ontológico e as ciladas do universalismo: pela diferença”, adentramos as formulações do sociólogo Valter Silvério. A partir da sua experiência de socialização nas ciências sociais e do período que frenquentou Melville J. Herskovits Library of African Studies na Northwestern University, exploramos a posição/oposição relativa que o sociólogo, como intelectual negro, ocupa em meio ao seu processo de formação. Sustentamos, que tal posição/oposição tem proporcionado a Silvério, em sua trajetória intelectual, lidar criativamente com o lugar/representação atribuída ao negro pelo cânone sociológico brasileiro. O tópico que encerra o capítulo, “O educar-se para relações étnico-raciais e as africanidades”, dedica-se a produção formulada pela professora Petronilha, presto-me a compreender sob quais parametros a politica cultural por ela sintetizada - no Parecer do CNE/CP 003/2004 e nas DCN’s para ERER e Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – ganha forma. O quinto e último capítulo da tese, denominado W. E. B. Du Bois Research Institute: da diferença ao cânone, aborda, enfim, as produções dos coordenadores do respectivo departamento. Todvia, aparentemente, não diferente da maioria dos lugares onde os povos de origem africana se estabeleceram, especialmente, nos Estados Unidos, a relação entre associativismo negro, educação e política cultural é histórica. Desse modo, antes de adentramos as formulações dos Professores Henry Louis Gate Jr. e Kwame Anthony Appiah, redigimos a seção nomeada “African and African-American Studies Department (AAAS), W. E. B. Du Bois Research Institute e a Harvard University” a fim de recuperar o processo de luta pela institucionalizam do departamento e instituito de pesquisa. Assim, de modo semelhante ao movimento de estudantes negros da San Francisco State College (1968), ao movimento de estudantes Third World Liberation Front [Frente de Liberação do Terceiro Mundo] na Berkeley University também em San Francisco (1968) e a Black Student Walkout [A Marcha dos Estudantes Negros] na Brown University (1968), também em Havard (1968) 34 os estudantes negros organizados lutam a fim de cumprir com seus objetivos para a crição de departamentos de Black Studies. O AAAS é fundado em 1969 e o DRI em 1975. Isto posto, avançamos para a análise das produções dos coordenadores. Os tópicos “O(a) negro(a) como sujeito significante” e “Cânones, a literatura afro-americana e a (dissemi)Nação” abordam a produção de Henry Louis Gate Jr. Mais precisamente tais tópicos recuperam os argumentos para aquilo que o autor veio a chamar a política semanatica, isto é, o eforço que requalificar o cânone literário americano e afro-americano a partir de um posição teórico espefica. Já as seções “Raça: um erro moral” e “Não sem controvérsias: identidade negro/africana, multiculturalismo e cosmopolitismo” competem ao filósofo-político Kwame Anthony Appiah. Abordamos as expeculações e proprosições de Appiah acerca da natureza do vínculos históricamente resposaveis pela constituição de solidariedades políticas e éticas no mundo modern/colonial. Essa, em outras palavras, crítica da identidade, aqui adjetivada como negra, africana ou étnica, está intimamente associada, ou melhor dizendo, caminha a par e passo, com (re)avaliações do filósofo-político acerca da obra de Du Bois. PARTE I. ATRAVÉS DO ATLÂNTICO: A GENEALOGIA E OS MODELOS DE DIÁSPORA AFRICANA Desde o final dos anos 1980 e do início dos anos 1990, a noção de “diáspora africana” tornou-se cada vez mais recorrente no vocabulário dos intelectuais (DUFOIX, 2008; MANNING, 2003; ZELEZA, 2008), preocupados em compreender a experiência e a trajetória dos povos, das culturas e das tradições de origem africana nos lugares em que se estabeleceram ao redor do mundo. Como a história de todo conceito, a noção de “diáspora” 35 (seus diferentes modelos e perspectivas teórico-metodológicas) tem sido marcada pelo (re)posicionamento incessante de sua conceituação, situada no centro de um conjunto de disputas intelectuais e ideológicas acerca da interpretação mais adequada de sua natureza, de seu estatuto e de seu significado. O cerne dessas intensas controvérsias assenta-se, supomos, sobre conceitos que, assim como o conceito de “diáspora africana”, também estão no centro de disputas intelectuais e ideológicas, a saber, “raça”, “identidade” e “cultura”. Pode-se dizer que os diferentes usos e perspectivas de “diáspora africana” estão associados, inevitavelmente, à compreensão e ao lugar que esses conceitos ocupam no interior de cada modelo. “Preto”, “negro”, “afro- americano”, “afro-brasileiro”, “afrodescendente” e “africano”, todos esses termos conotam, ao mesmo tempo, o cerne das divergências e o mote dessas disputas. Todos esses termos foram e têm sido, de alguma forma, contestados; alguns intelectuais os recusam e os condenam, outros preferem aceitá-los e apropriá-los; outros, ainda, denunciam o seu caráter normativo. Imerso e dedicado a essa problemática em geral, e focando, em particular, na identidade daqueles povos descendentes de africanos, Hall (2010 [1988], p. 305) não apenas observa o fluxo e o movimento desses signos de pertencimento, mas também o seu caráter provisório e a sua radical historicidade. Algumas das mais importantes reflexões (HALL, 2010 [1988], 2006[1990], 2003 [1992], 2003) do sociólogo e crítico cultural de origem caribenha esforçaram-se em tornar inteligível o fato de que o fluxo e as mudanças das categorias utilizadas como modelos de pertencimento deslocam e, ao mesmo tempo, (re)posicionam a compreensão da natureza da condição e presença desses povos nos lugares que se estabeleceram (voluntária e involuntariamente). Nesses termos, a questão da identidade é, segundo Hall (2010), uma problemática de ordem evidentemente ontológica e, sobremaneira, também epistêmica, uma vez que há uma correlação necessária, uma conexão, entre a identidade cultural, as projeções teóricas e as agendas políticas negras (Hall, 2010). Essas considerações de Hall (2010) acerca da identidade fazem parte e estão intimamente ligadas ao modo como o autor trabalha com o conceito de diáspora africana. Não teremos a possibilidade de tratar tal perspectiva com toda a diligência nessa oportunidade; no entanto, evocamos as considerações de Hall nesse momento, uma vez que as mesmas nos oferecem um valioso recurso metodológico para o desafio que a seguinte questão nos coloca. Como abordar esses diferentes modelos de diáspora africana e suas perspectivas teórico- metodológicas sem nos tornarmos reféns dos conceitos e critérios históricos que foram articulados nas suas definições? Ao estabelecer tal relação contingente entre a identificação, 36 as projeções teóricas e as agendas políticas negras, Hall possibilita-nos, por um lado, minimizar esses problemas analíticos, uma vez que nos proporciona debater essas ideias não apenas sem cair nas armadilhas dos próprios conceitos (quer dizer, evitamos reificar os conceitos), pois, ao mesmo tempo, permite-nos reconhecer o conteúdo ideológico que lhes foi atribuído em contextos específicos. Por outro lado, ao posicionar a identidade e o pertencimento como elementos essenciais para as elaborações teóricas que organizam a política e a cultura política negra, Hall (2010) nos oferece uma profícua senda por meio da qual iremos abordar o conceito de “diáspora africana”. O objetivo desta primeira etapa da pesquisa é, portanto, o de apresentar uma visão sistemática da emergência dos modelos e das perspectivas de diáspora africana, orientada, sobretudo, a partir do reconhecimento da importância de três conceitos que são, em nosso entendimento, determinantes para a sua definição: “raça”, “identidade” e “cultura”. Supomos que, ao tomar como fio condutor a forma pela qual esses conceitos foram articulados, torna-se possível delinear o arcabouço teórico-metodológico de cada perspectiva de diáspora africana, como, também, tornar inteligíveis as características que as definem e analisar as mudanças de paradigma que, ao longo do processo histórico, as conformam. Nota etmológica e semântica da palavra Diáspora: uma controvérsia O debate sobre o significado semântico da palavra “diáspora” foi recentemente marcado por uma intensa controvérsia protagonizada pelo sociólogo francês Stéphane Dufoix (2003, 2017). A origem etimológica grega da palavra é inquestionável: “diáspora” (“διασπορά”) é uma palavra derivada do verbo grego “διασπείρω” (diaspeírô), que significa “dispersar” e “espalhar”. Diáspora é a princípio, no léxico grego, associada a ideia de colonização. Entretanto, o substantivo ganha proeminência correlacionada à história do povo 37 judeu, representando uma tradução equivalente da palavra hebraica “galuth-גלות” (“exílio”) (COHEN, 1997, p. XI). No entanto, se há uma espécie de consenso entre os estudiosos em relação à primeira afirmação (DUFOIX, 2003, 2017; COHEN, 1997, 2008), isto é, que “diáspora” é uma palavra derivada do verbo grego “διασπείρω” (diaspeírô), que significa “dispersar” e “espalhar”. De acordo com Dufoix (2017, p. 29), as duas últimas, entretanto, apresentam sérios problemas. Opondo-se ao sociólogo inglês Cohen (1997), que, desde seu seminal texto Global diaspora: an introducition (1997), tornou-se um iminente pesquisador no campo de estudos das diásporas, Dufoix afirma que, diferentemente do estabelecido pelo estudioso, a palavra “diáspora” nunca teria sido usada, “(...)nem antes ou após o estabelecimento de uma conexão semântica entre o termo e os judeus, para descrever a colonização grega do Mediterrâneo ou os gregos distantes de sua terra natal” (DOFOIX, 2017, p. 29 – trad. minha). Segundo Dufoix (2017, p. 30), os inúmeros pesquisadores, tais como Shuval (2000) e Reis (2004), que passaram a trabalhar com a narrativa etimológica da palavra diáspora elaborada por Cohen (1997, p. XI) estariam sujeitos a esse, segundo ele, equívoco. Ou seja, passariam, intencionalmente ou não, a reiterar que o original uso da palavra diáspora pelos gregos era imbuído de uma conotação positiva (evidentemente, segundo a visão do colonizador) e dizia respeito à imigração/colonização (“speírô”, “semear”, e “dia”, “por”) do mediterrâneo. Por outro lado, haveria também equívocos, segundo Dufoix11, mesmo entre pesquisadores, como é o caso de Münz & Ohliger, que discordam do uso positivo da palavra “diáspora”, para descrever a colonização do mediterrâneo. Münz & Ohliger (2005, p. 2), por exemplo, atribuem o uso da palavra diáspora às narrativas de historiadores, tais como Herodoto e Tucídides, para “para caracterizar o exílio da população egeia após a guerra do Peloponeso (MÜNZ & OHLIGER, 2005, p. 2 – trad. minha). Contudo, para Dufoix: Em primeiro lugar, se o uso do verbo grego διασπείρω (diaspeírô) foi atestado desde, pelo menos, o século V a.C., este não é o caso do substantivo. Não só o estudo do corpus grego disponível mostra que não há ocorrência de diáspora antes do século III a.C., época em que aparece na Septuaginta, mas, além disso, é um neologismo forjado por tradutores que redigem o texto em grego (DUFOIX, 2017, p. 29; grifo nosso). É inegável, nesse sentido, que a palavra “diáspora” está intimamente associada ao verbo “dispersar”, mas “não só a diáspora está ausente do grego original, mas o original também não inclui o verbo diaspeírô. O verbo usado é o verbo speírô conjugado na voz 11 DUFOIX, 2017 p. 29. 38 passiva” (DOFOIX, 2017, p. 30-31; trad. minha). Segundo o autor, historiadores como Heródoto, Sófocles, Platão e Isócrates utilizavam verbos como “distribuir”, “compartilhar”, “dissipar” e “difundir” como signos do verbo “speírô” (“semear”)12. Antes, porém, de investigar a utilização da palavra “diáspora” sob o domínio religioso, seja ele judeu ou cristão, Dufoix (2017, p. 31) encontra, ainda, outro uso para a palavra “diáspora” segundo as narrativas de Plutarco13. No seu relato da vida de Sólon14 no texto Vidas paralelas, Plutarco evoca a palavra “dispersão” para descrever o espalhar das cinzas da Sólon na ilha de Salamis, e, no texto Muralia, o historiador usa o termo “dispersão” em conexão com a teoria atomista de Epicuro, associando a palavra à “aniquilação”, correlação que vai de encontro ao posterior sentido atribuído ao termo (“link”, “continuidade”, “conexão”). “Dispersão” é, nessa ordem de ideias, signo de perda de contato e desaparecimento/esquecimento (DUFOIX, 2017, p. 31). O estabelecimento da correlação entre “diáspora” e a profundamente complexa noção judaica de “galuth-גלות” (“exílio”) não é, portanto, conforme Dufoix (2017, p.32), ilegítima em si, já entrando em reflexões sobre o Septuaginta15. A história dos dois termos é, sem dúvida, compartilhada. De acordo com o crítico literário Cheyette (2013), esse horizonte semântico foi estabelecido segundo a convergência das palavras hebraicas “galuth”, que denota o sentido trágico da dispersão, e “golah” que associada a vida em um país onde se é estrangeiro; ambas são reunidas, e “galuth” torna-se a tradução hebraica para “diáspora”. A grande maioria dos estudiosos das diásporas, como o próprio Cohen (1997), bem como Shuval (2000), Reis (2004) e Safran (2015), se não iniciam seus textos articulando essa correlação, reconhecem-na ao longo de suas elaborações, supondo uma relação indistinguível e de equivalência entre os dois termos (“galuth” = “diáspora”). Cohen, por exemplo, começa o seu texto não apenas salientado que diáspora, no pensamento grego, estava associada à migração e à colonização. Mas, “em contraste, para com os judeus, os africanos, os palestinos e os armênios, a expressão adquiriu um significado mais sinistro e brutal. A diáspora significava um trauma coletivo, um banimento, onde se sonha com a casa, mas vive-se no exterior” (COHEN, 1997. p. IX; trad. minha). 12 DOFOIX, 2017, p. 31. 13 Plutarco (46 d.C.-120 d.C.) foi um historiador, biógrafo e ensaísta, conhecido principalmente por suas obras Vidas paralelas e Moralia. 14 Sólon (638 a.C.-558 a.C.) foi um legislador, estadistas e poeta grego antigo, responsável, junto com Drácon, pelo que ficou conhecido como as reformas estruturais droconiana. . 15 Septuaginta é o nome dado a tradução grega da Bíblia hebraica, realizada entre os séculos III a.c e o século I a.C. 39 Poucos pesquisadores vêm confrontando-se, desse modo, com as problemáticas semânticas levantadas por Dufoix (2017) sobre o uso da palavra “diáspora” na Antiguidade: a não identificação/equivalência de “galuth” e a palavra “diáspora”; a ausência do termo na linguagem grega antes da Septuaginta; a sua não utilização para descrever a colonização grega; e, finalmente, a inexistência de uma conotação positiva ou negativa para o verbo “diaspeírô” (conjugado na voz passiva). O sensível deslocamento elaborado por Dufoix (2017) em relação ao(s) significado(s) semântico(s) da palavra “diáspora” é fundamental para desnaturalizar dois sentidos que acompanham a noção de “diáspora” atualmente — a conexão entre a diáspora e a palavra hebraica “galuth-גלות” (“exílio”) e a colonização grega (processo histórico que a princípio que a palavra não era necessariamente usada para descrever). 40 Capítulo 1. A Noção de “Diáspora Africana”: entre a filiação genealógica e o pensamento secular O discurso/texto The English Language in Liberia, do afro-americano de nascimento, radicado liberiano e padre episcopal Alexander Crummell, proferido no dia 26 de Julho de 1860 para os cidadãos de condado de Maryland, Cape Palmas (Libéria), e o texto Ethiopia Stretching Out Her Hands unto God: or, Africa’s Service to the World [A Etiópia estende suas mãos para Deus: ou, o serviço da África para o Mundo] (1888), do afro-americano (e também liberiano por adoção) Edward W. Blyden demarcam não só o surgimento do “nacionalismo negro” e do “pan-africanismo”, como, também, estabelecem as bases semânticas para a emergência da noção de “diáspora africana” (HARRIS, 1994; DAVIES, 2008; SHEPPERSON, 1994). Estudar a emergência da diáspora africana em suas bases semânticas é, sem dúvida, buscar compreender as linhas gerais do pan-africanismo. Mas é, sobretudo, também confrontar-se com temas fundamentais que atravessam experiência coletiva dos africanos e de seus descendentes nos lugares em que se estabeleceram, a saber: pertencimento, identidade e cultura (HARRIS, 1994; GILROY, 2002; ZELEZA, 2008) Isso significa dizer que, de modo semelhante ao que se sucedeu com os judeus no final século XIX com surgimento o sionismo (DUFOIX, 2017; COHEN, 1997), a emergência de uma solidariedade política e moral voltada para a reabilitação do ser negro encontrou no nacionalismo e, sobremaneira, na noção secular de “raça”, seu centro de gravidade. Esse modelo de identidade e, portanto, também de cultura emerge, não eventualmente, em um contexto profundamente marcado pela centralidade do conceito de raça, “como uma nova referência conceitual possível para pensar as diferenças humanas” (HOFBAUER, 2006, p. 99). W. E. B. Du Bois (2005 [1915], 2010 [1897]), Edward W. Blyden (2013 [1888]) e Alexander Crummell (1861) escreveram e elaboraram suas reflexões num tempo e espaço em que “raça” não só se sedimentava como categoria cientifica (secular), biologizando as diferenças humanas, como, também, foi elemento constitutivo do Iluminismo e organizou todo o projeto moderno (HOFBAUER, 2006; GILROY, 2004). 41 Enquanto expressão de um conjunto de disputas intelectuais e ideológica pela interpretação mais adequada da realidade, o significado semântico de “raça”, segundo Hofbauer (2006, p. 99-100), acompanhava as grandes transformações econômicas, políticas e sociais do mundo ocidental. A categoria genérica “raça”, utilizada pelos intelectuais pan- africanistas, não foi, portanto, uma mera importação europeia, pois respondeu a condições impostas por circunstancias históricas reais (HERNANDEZ, 2005, p. 138). Responsáveis por não apenas fundarem o pan-africanismo, como, também, por estabelecerem os pilares da moderna filosofia africana (GORDON, 2008), Du Bois, Alexander Crummell e Edward E. Blyden tiveram, intencionalmente ou não, o seu pensamento decisivamente marcado por essas ideias. Se, por um lado, a sua apropriação (embora não indiscriminada) de categorias como “nação”, “progresso”, “civilização”, “história” e, sobretudo, “raça” refletia a influência de ideias calcadas no mundo e no pensamento iluminista europeu da época, por outro, “raça” também conferia voz aos negros, oferecendo recursos para a elaboração de uma narrativa e de uma identidade coletiva contra as injustiças e as violências protagonizadas pela escravidão e pelo colonialismo (HERNANDEZ, 2005, p. 140). É esse modelo de “identidade” e de “cultura” (efeito desse senso de pertencimento racial) tanto o cerne de um ethos comum incorporador de todos os africanos e seus descendentes (que constitui as bases político-ideológicas do pan-africanismo) quanto aquilo que vai oferecer os primeiros recursos semânticos para a noção de “diáspora africana” (WILLIANS, 1999; MANNING, 2003; DAVIES, 2008). Portanto, cabe explorarmos, utilizando como roteiro a linhas essências das elaborações de Du Bois, Alexander Crummell e Edward E. Blyden (tarefa que exige precaução e que será, certamente, provisória e insatisfatória), o modo como esses intelectuais articulavam “raça” como um núcleo gravitacional capaz de unir os africanos e os seus descendentes em torno de uma solidariedade política e ética, baseada em uma origem comum. Com esse itinerário, parece-nos ser possível tornar inteligíveis os fundamentos sobre os quais (após a Segunda Guerra Mundial, durante as décadas de 1950 e 1960), diversos historiadores da África e da escravidão racial atuantes no Novo Mundo resolveram se voltar para termo “diáspora africana”. Os filhos de Ham e a nação: retornemos a África? O já evocado texto/discurso The English Language in Liberia [A Lingua Inglesa na Libéria] é recorrentemente retomado como ponto de partida e marco histórico das ideias pan- 42 africanista (DECREANE, 1962; HERNANDEZ, 2005; ALMEIDA, 2007). Mas, mais do que uma justificava cronológica, a razão de nossa análise ter como ponto de partida as elaborações de Crummell (1860) é, pois, que o pensamento de Crummell ao elabora-se entre a noção secular de pertencimento e a concepção religiosa genealógica (relação, através de um ancestral comum, com Deus) de filiação. Nesse sentido, enseja uma importe dimensão para a emergência da noção de diáspora africana, a saber, a semiótica religiosa e o paralelo com a história do povo Hebreu (especialmente, no Antigo Testamento) É sob a maldição16 e redenção de Ham (Cam), episódio da Escritura Sagrada utilizado para a justificação religiosa da escravidão, que a noção genealógica de “filiação”, articulada por Crummell é estabelecida (DUFOIX, 2017, p, 186; HOFBAUER, 2006, p. 68-69). Dentro da tradição cristã, foi Santo Agostinho (354-430), aquele a fadar os filhos de Ham a um destino amaldiçoado (HOFBAUER, 2006, p. 68 – 69). Adepto de uma interpretação literal da Bíblia, Agostinho defendia a ideia de que todos os seres humanos eram filhos de Adão — tese que ficaria conhecida como a origem única dos seres humanos (monogênese). A escravidão, segundo o clérigo, teria surgido como consequência direta do pecado. “Santo Agostinho (1990, II, livro XIX, cap. XV, p. 406) explica que inicialmente Deus “quis que o homem racional, feito à sua imagem, dominasse unicamente os irracionais, não o homem ao homem, mas o homem irracional” (HOFBAUER, 2006, p. 68). Agostinho lembraria que a palavra escravo (servus), aparece na bíblia pela primeira vez no contexto da maldição de Ham, e refletindo sobre a etimologia da palavra servus, chega à conclusão que servir, significaria também merecimento do pecado. “Santo Agostinho faria mais duas afirmações cruciais a respeito da figura bíblica que teria causado a escravidão. Primeiro o beato igualou a atitude de Ham à culpa de Caim; em seguida, transformou Ham no pai fundador dos hereges” (HOFBAUER, 2006, p. 69). Santo Agostinho, no entanto, em nenhum momento estabelece uma relação entre Ham e a cor de pele negra (HOFBAUER, 2006, p. 69). Embora, os teólogos cristãos abordassem a cor de pele por meio de convicções religiosas desde a Idade Média, muitas vezes inspirados pela origem etimológica semítica da palavra “Ham”: quente, queimado pelo sol, escuro/negro (HOFBAUER, 2006, p. 45; GOLDENBERG, 2003, p. 141). A consolidação da relação de 16 Conta a narrativa que, um dia, Ham encontra seu pai, Noé, bêbado e nu, dormindo em sua cama. Ham, então, chama o seus irmãos Shem e Iafet para vê-lo. Ambos os irmãos, de cabeça virada para não ver a nudez do pai, cobrem a nudez de Noé. Ao acordar e saber do acontecido, Noé amaldiçoa Canaã, filho de Ham, à escravidão. “Exclamou: Maldito seja Canaã, que ele seja o último dos servos dos seus irmãos! Depois disse: Bendito seja o Senhor, o Deus de Shem; que Canaã seja servo dele. Que Deus seduza Iéfet, mas que ele permaneça nas tendas de Shem e que Canaã seja servo dele!” (GENESIS, 9: 25 -27). 43 significação entre a maldição designada a Ham e a inferioridade e escravidão atribuída à pele negra dos africanos ocorreria concomitantemente à intensificação do processo colonial na África e nas Américas. No entanto, contraditoriamente, a maldição endereçada aos filhos de Ham e à filiação genealógica que estabelece, tornou-se uma narrativa capaz de oferecer os elementos a partir dos quais autores negros, no final do século XIX, argumentariam em favor do fim da escravidão e por uma melhor apreciação da história desses povos. Supõe-se que o princípio dessa argumentação está presente na fala de Ottobah Cugoano17 (1757-1791), que, em 1787, escreveu: “todos os habitantes presentes neste mundo surgiram da família de Noé, e eram todos de uma só aparência, não há dúvida, mas as diferenças que encontramos agora aumentaram muito rapidamente depois que eles se dispersaram e se estabeleceram nas diferentes partes do globo”18 (CUGOANO apud DUFOIX, 2017, p. 186). Cugoano desloca e reinterpreta a pretensa verdade do texto bíblico, insistindo na leitura de que a maldição endereçada aos filhos de Ham concerne, especificamente, a Canaã e aos seus descendentes, e não a Cush (Cuxe), seu primeiro filho. Os negros são, nessa leitura, descentes de Ham, e filhos do bem-aventurado Cush. Esses dois fatos — o deslocamento da origem genealógica da raça negra e a enganosa maldição atribuída a cor da sua pele — foram, por exemplo, um dos os principais argumentos utilizados por abolicionistas negros, nos séculos XVIII e XIX, em defesa do fim da escravidão (DUFOIX, 2017, p. 186-187). Dentro desse quadro, a África em geral, e particularmente o Egito e a Etiópia ganham lugares e significados proeminentes nas narrativas de pertencimento daqueles dispersados pela trafico de escravos. O Antigo Testamento, assim, torna-ne um fértil terreno para analogias sobre a liberdade, o exílio, o êxodo e a redenção entre a história dos negros escravizados no novo mundo e a do povo hebreu. Contudo, segundo Dufoix (2017, p. 188), certa distinção precisa ser levada em consideração entre as diferentes apropriações das referências bíblicas no interior dessas comunidades. A consciência religiosa e étnica dos escravizados está associada, argumenta o autor19, ao tipo de doutrina cristã de seus mestres e à sua localização geográfica nas Américas. Nas terras católicas da América Latina (colonização portuguesa e espanhola), as origens 17 Ottobah Cugoano foi um abolicionista, nasceu em 1757, na região da África onde, hoje, é o território de Gana, e se tornou um dos pri