1 Solange Labbonia Falquete (Re) Inventando realidades: jogos espacio-temporais em três contos de Julio Cortázar Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de concentração: Teoria da Literatura). Orientadora: Profa. Dra. Roxana Guadalupe Herrera Álvarez São José do Rio Preto 2007 2 Falquete, Solange Labbonia. (Re) Inventando realidades: jogos espacio-temporais em três contos de Julio Cortázar / Solange Labbonia Falquete – São José do Rio Preto: [s.n.], 2007 139 f.; 30 cm. Orientador: Roxana Guadalupe Herrera Álvarez Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1.Literatura – História e crítica – Teoria, etc. 2. Teoria literária. 3. Literatura argentina. 4. Contos fantásticos. 5. Cortázar, Julio, 1914-1984 – Crítica e interpretação. I. Herrera Álvarez, Roxana Guadalupe. II. Universidade Estadual Paulista. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título. CDU – 82.0 3 (Re)Inventando realidades: jogos espacio-temporais em três contos de Julio Cortázar COMISSÃO JULGADORA Titulares Profa. Dra. Roxana Guadalupe Herrera Álvarez – Orientadora Profa. Dra. Sandra Regina Chaves Nunes (UNIFIEO e FAAP/SP) Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro (UNESP/SJRP) Suplentes Profa. Dra. Elaine Cristina Cintra (UFU/MG) Prof. Dr. Arnaldo Franco Junior (UNESP/SJRP) 4 AGRADECIMENTOS A Deus, que me presenteia todos os dias com o fôlego da vida, inteligência, saúde e força para alcançar meus objetivos. A Ele também por um sonho. Aos meus pais, que algumas vezes falaram bastante para me motivarem, outras que falaram somente o suficiente para que eu soubesse que estavam comigo e outras ainda que optaram pelo silêncio para que eu pudesse seguir. À Profa. Dra. Roxana Guadalupe Herrera Álvarez, pelo respeito a mim como aluna e como pessoa e pelo tempo e disposição dispensados a este projeto. Aos Profs. Drs. Arnaldo Franco Junior e Sônia Piteri, pelas críticas e sugestões pertinentes; e Álvaro Luiz Hattnher, pelas indicações bibliográficas e pelo entusiasmo. Ao Junio, que com suas sensibilidade e sensatez, foi sempre compreensível e me apoiou incondicionalmente. À Ellen, pela confiança, sinceridade e companheirismo. Aos amigos cronopianos: Ligia, Leandro e Denise, por permitirem que eu me encontrasse, mesmo sem ter a necessidade de um ponto fixo. Por serem leitores e escritores de um mundo cheio de estilo, povoado por sereias e pingüins. À Carol, essencial para a minha reorganização. À CAPES, pelo auxílio financeiro. 5 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..............................................................................................p. 09 CAPÍTULO I .................................................................................................p. 12 Grafias de um cronópio ...................................................................................p. 13 CAPÍTULO II ...............................................................................................p. 31 2.1 – O fantástico “puro” – e desvanecente – de Todorov .............................p. 32 2.2 – Metamorfoseando: mudanças no fantástico a partir de Kafka ..............p. 44 2.3 – O neofantástico ou uma teoria da desestabilização................................p. 48 2.4 – “Quanto ao mundo, quando saíres, em que se haverá convertido?” .....p. 55 CAPÍTULO III .............................................................................................p. 67 3.1 – De barriga para cima e de pernas para o ar: brincando de inverter.......p. 68 3.2 – Amores e fingimentos em linhas cruzadas.............................................p. 91 3.3 – Um choro que invade e deturpa a normalidade.....................................p. 114 FRÁGIL LIMITE........................................................................................p. 128 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................p. 133 6 FALQUETE, Solange Labbonia. (Re)Inventando realidades: jogos espacio- temporais em três contos de Julio Cortázar. São José do Rio Preto, 2007. 138 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Câmpus de São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. RESUMO O objetivo desta pesquisa é estudar como a manipulação do tempo e do espaço na narrativa contribui para a construção do efeito fantástico e para o questionamento do que é realidade em três contos do autor argentino Julio Cortázar (1914-1984): “A noite de barriga para cima” (1971), “Todos os fogos o fogo” (1975) e “A porta incomunicável” (1971). Em cada texto há dois espaços e dois tempos (passado e presente), um representando a realidade e outro, a ficção. No primeiro conto, temos duas narrativas independentes uma da outra, apesar de terem alguns pontos em comum. No final do conto, há uma inversão do que se acreditava ser a representação da realidade para o que se acreditava ser a representação da ficção, por meio de um deslocamento do tempo. O presente do leitor é transformado em um mundo absurdo para o personagem. No conto “Todos os fogos o fogo”, também podemos delimitar duas narrativas autônomas, constantemente intercaladas. Elas mantêm uma relação de analogias e isso proporciona uma sensação de simultaneidade, como se existissem dois mundos paralelos, ou seja, como se o passado e o presente, ambientados em dois espaços completamente distintos, estivessem acontecendo ao mesmo tempo. Portanto, os limites entre realidade e ficção vão atenuando-se mais, pois não se sabe qual dos ambientes representa uma ou outra. Já no conto “A porta incomunicável”, os dois tempos estão justapostos em um mesmo espaço e o insólito surge no ambiente normal do personagem. Os dois primeiros contos estão mais próximos do que Jaime Alazraki (1994) chama de literatura neofantástica, enquanto o último conto se aproxima mais da estética da literatura fantástica tradicional, explicada por Todorov (2003). Implicitamente, nos três textos as “realidades” representadas são deturpadas, causando com isto estranhamento no leitor. Palavras-chave: Julio Cortázar, literatura fantástica, neofantástico, realidade, tempo na narrativa. 7 FALQUETE, Solange Labbonia. (Re)Inventing realities: spatial and timing games in three short stories by Julio Cortázar. São José do Rio Preto, 2007. 138 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Câmpus de São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. ABSTRACT This research aims to study how the narrative’s manipulation of time and space contributes to the construction of the fantastic effect and to the questioning of what reality is in three short stories by the Argentinean author Julio Cortázar (1914-1984): “The night face up” (1967), “All fires the fire” (1973) e “Incommunicable door ” (1967). In each of these texts there are two spaces and two times (past and present), one representing reality and the other, fiction. In the first short story, there are two independent narratives, with some common points been considered. In the end of the short story, there is an inversion of what was believed to be the representation of reality to what was believed to be the representation of fiction, by means of a time displacement. The reader´s present is transformed into an absurd world for the character of the story. In the short story “All fires the fire”, we can also delimitate two autonomous narratives, constantly intercalated. They maintain an analogical relation that provides a feeling of concurrence, as if there were two parallel worlds or, in other words, as if past and present, placed in two completely different spaces, were happening at the same time. Therefore, the limits between reality and fiction be come weaker and weaker, because it is not known which of the spaces represent one or the other. Whereas in the short story “Incommunicable door”, the two times are juxtaposed in the same space and the uncommon appears in the character’s normal environment. The two first short stories are close to what Jaime Alazraki (1994) calls neofantastic literature, whereas the last short story is close to the traditional aesthetic of fantastic literature, explained by Todorov (2003). Implicitly, in the three texts, the represented realities are modified, causing a strangeness effect on the reader. Keywords: Julio Cortázar, neofantastic literature, neofantastic, reality, time in narrative. 8 FALQUETE, Solange Labbonia. (Re)Inventando realidades: juegos espacio- temporales en tres cuentos de Julio Cortázar. São José do Rio Preto, 2007. 138 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Câmpus de São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. RESUMEM El objetivo de esta investigación es estudiar como la manipulación del tiempo y del espacio en la narrativa contribuye para la construcción del efecto fantástico y para ell cuestionamento de lo que es realidad en tres cuentos del autor argentino Julio Cortázar (1914-1984): “La noche boca arriba” (1969), “Todos los fuegos el fuego” (1977) y “La puerta condenada” (1969). En cada texto hay dos espacios y dos tiempos (pasado y presente), uno representando la realidad y otro la ficción. En el primer cuento, tenemos dos narrativas independientes una de la otra, aunque tengan algunos puntos en común. En el final del cuento, hay una inversión de lo que se creía ser la representación de la realidad para lo que se creía ser la representación de la ficción, por medio de un despliegue del tiempo. El presente del lector es transformado en un mundo absurdo para el personaje. En el cuento “Todos los fuegos el fuego”, también podemos delimitar dos narrativas autónomas, constantemente intercaladas. Ellas mantienen una relación de analogías y eso proporciona una sensación de simultaneidad, como si existisen dos mundos paralelos, o sea, como si el pasado y el presente, ambientados en dos espacios completamente distintos, estuvieran ocurriendo al mismo tiempo. Así, los límites entre realidad y ficción van atenuándose más, puesto que no se sabe cual de los ambientes representa una u outra. Ya en el cuento “La puerta condenada”, los dos tiempos están yuxtapuestos en un mismo espacio y el insólito surge en el ambiente normal del personaje. Los dos primeros cuentos están más cercanos de lo que Jaime Alazraki (1994) llama literatura neofantástica, y el último cuento está más cerca de la estética de la literatura fantástica tradiccional, explicada por Todorov (2003). Implicitamente, en los tres cuentos las “realidades” representadas son alteradas, causando con esto extrañeza en el lector. Palabras-llave: Julio Cortázar, literatura fantástica, neofantástico, realidad, tiempo en la narrativa. 9 INTRODUÇÃO O objetivo que temos com este trabalho é, a partir das análises de três contos do autor argentino Julio Cortázar (1914-1984), verificar como a coexistência de dois espaços narrativos e duas perspectivas temporais geram estranhamento nesses textos e como esta estrutura aponta para o neofantástico. No primeiro capítulo, traçaremos um breve panorama sobre a vida e a obra de Cortázar. O intuito, porém, não é escrever uma biografia ou uma fortuna crítica, mas refletir sobre como essas grafias (biografia e bibliografia) podem se interferirem e se relacionarem, como as percepções do homem motivam e se refletem no escritor... mas o homem que observa é o escritor. Então não seria o modo como as percepções do escritor motivam e se refletem no homem? No segundo capítulo apontaremos algumas diferenças entre o fantástico tradicional e o neofantástico, pois os contos selecionados aproximam-se do “neofantástico”, termo criado por Jaime Alazraki (1994) para referir-se às peculiaridades das narrativas de Cortázar, que se diferenciam das narrativas fantásticas tradicionais em diversos aspectos. Para pensar o conceito de neofantástico, recorreremos a alguns de seus ensaios (Hacia Cortázar: aproximaciones a su obra, 1994), de David Roas (Teorías de lo fantástico, 2001) e do próprio Cortázar em alguns dos ensaios organizados e reunidos por Davi Arrigucci Jr. e Haroldo de Campos no livro Valise de cronópio (1993). Já como representante das teorias do fantástico tradicional, tomaremos por base a obra 10 Introdução à literatura fantástica (2003), de Tzvetan Todorov, publicada pela primeira vez em 1968. Não pretendemos fazer um estudo comparativo nem exaustivo das duas tendências literárias, apenas demonstrar como os contos selecionados geram estranhamento valendo-se de recursos mais próximos dos usados no fantástico não tradicional. A inquietude que eles nos causam advém principalmente da maneira como o texto está articulado e não tanto pelo enredo como normalmente ocorria no fantástico tradicional. Dois dos contos que selecionamos têm dois núcleos espacio- temporais que são intercalados durante toda a narrativa. Trata-se dos contos “La noche boca arriba” (1969) [A noite de barriga para cima] (1971) e “Todos los fuegos el fuego” (1977) [Todos os fogos o fogo] (1975) aos quais dedicaremos os itens 3.1 e 3.2 do terceiro capítulo desta dissertação. O terceiro conto é “La puerta condenada” (1969) [A porta incomunicável] (1971) que causa estranhamento pela presença do sobrenatural no mundo normal, ou seja, pela justaposição dos dois núcleos espacio-temporais. À análise desse conto será dedicado o item 3.3 do terceiro capítulo. O que os três contos têm em comum é, portanto, a representação, em cada um deles, de dois espaços e dois tempos. E o que os diferencia é a maneira como esses elementos são articulados no texto. Cada núcleo espacio- temporal (abreviado como net nas próximas páginas) representa um mundo dentro do texto. Isso significa que temos dois mundos representados em cada conto: um que representa a realidade e outro a ficcionalidade, mas com algo que os une, ou 11 seja, com pontos de intersecções entre as duas representações. Pretendemos verificar como essas alterações são realizadas, isto é, quais os recursos usados para inverter/ confundir as representações desses dois mundos. Por isso, houve necessidade de se estabelecer os conceitos de “realidade” e “real”, explicados no último subitem do segundo capítulo. 12 CAPÍTULO I Muito do que tenho escrito ordena-se sob o signo da excentricidade, posto que entre viver e escrever nunca admiti uma clara diferença. (CORTÁZAR). 13 Grafias de um cronópio A apresentação do autor não é necessária para que sua obra seja analisada, pois, autor e homem devem ser vistos separadamente. No entanto, as visões de mundo do homem, adquiridas a partir de suas experiências reais ou ficcionais, interferem no modo como ele representará esse mundo, ou seja, reflete- se de maneira mais ou menos indireta em sua escrita. Portanto, o que pretendemos não é fazer uma análise biográfica dos textos selecionados, mas simplesmente apresentar ao leitor uma breve biografia de Julio Cortázar acompanhada de uma rápida descrição de seus livros, para, depois, independentemente dessa apresentação, analisar alguns de seus textos. Será uma visão panorâmica que, ao longo da dissertação, irá ficando mais restrita. A história começa quando Julio José Cortázar e María Herminia Descotte casam-se em Buenos Aires em 1912 e, no ano seguinte, embarcam para a Europa com Victoria Gabel de Descotte (mãe de María Herminia) a fim de estender os negócios do pai de María, Luis Descotte Jourdan. Em 24 de agosto de 1914 nasce Julio Florencio Cortázar em Bruxelas (Bélgica). E em 1915, a Segunda Guerra Mundial e um governo alemão em Bruxelas fazem com que a família se mude para Zurique (Suíça), onde nasce a irmã de Cortázar, Victoria Ofelia Mercedes. A partir de então, Cocó (como era chamado Cortázar em sua infância) passa muito mais tempo em companhia de sua avó, já que Memé (Victoria) sofria de epilepsia e precisava de cuidados especiais de sua mãe. Nessa 14 época, Zurique é um centro político e cultural, onde encontros e festivais literários são freqüentes. Com a morte de Luis Descotte, em 1916, o “projeto Europa” começa a desmoronar. Em 1917, María Hermínia e Victoria se mudam para Barcelona e Julio José regressa sozinho a Buenos Aires com o intuito de conseguir um cargo político com velhos amigos, e, desde então, Cocó viverá só entre mulheres: avó, mãe e irmã, pois seu pai não regressa mais. Assim, aos quatro anos de idade, Cortázar (e de agora por diante, “Cortázar” sempre se referirá a Julio Florencio) vai morar na Argentina, precisamente em Banfield, um povoado ao sul de Buenos Aires. Não se sabe ao certo se o pai volta a viver com a família por mais alguns anos, pois em algumas versões da história, a separação definitiva ocorre em 1920, outras, em 1922 ou em 1924. O fato é que Cortázar crescerá longe da figura paterna. Mais tarde, todas as mulheres da família se casam e Juan Carlos Pereyra passa a ser o padrasto de Cortázar. Super protegido pela família, Cortázar passa a maior parte de seu tempo lendo, e aos nove anos de idade escreve seu primeiro romance. Aos 13 anos, escreve poemas involuntariamente plagiados de um de seus escritores preferidos: Edgar Allan Poe. Era um garoto muito sensível e observador como pode ser visto no trecho de uma entrevista que dá em 1984, quando lhe perguntam quando e por que começou a escrever: Digamos que desde os seis, sete anos, eu me vejo aceitando a realidade que meus pais me ensinavam, que meus sentidos me ensinavam. Quero dizer, aceitando-a plenamente e, ao mesmo tempo, traduzindo-a 15 continuamente para chaves do tipo verbal. Quero dizer que o fato de que um objeto tivesse um nome não anulava o nome na utilização realista do objeto, como geralmente faz uma criança. Um menino aprende que isto aqui se chama cadeira e então depois pede ou procura uma cadeira, mas para ele a palavra “cadeira” já não tem sentido separada daquela coisa. Tornou-se um valor simplesmente funcional de utilização. Curiosamente, minhas primeiras recordações são de diferenciação. Ou seja, uma espécie de suspeita de que se eu não explorasse a realidade no seu aspecto de linguagem, seu aspecto semântico, a realidade não seria completa para mim, não seria satisfatória. E inclusive – isto um pouco depois, aos oito ou nove anos – entrei numa etapa que poderia ter sido perigosa e desembocado na loucura: quer dizer, as palavras começavam a valer tanto ou mais que as coisas (PREGO, 1991, p. 20 – 21). O trecho acima mostra como a linguagem já fascinava Cortázar desde criança: a ludicidade das palavras, ou seja, as possibilidades de combinações de sons e sentidos, a fragmentação, a criação de anagramas (como o do conto “Lejana” [“A distante”], publicado em seu primeiro livro de contos Bestiario, em 1951, em que o nome da protagonista “Alina Reyes” se transforma em “es la reina y...”). Quando Cortázar diz que uma palavra não servia simplesmente para designar um objeto mostra bem uma das características mais marcantes de sua literatura: a palavra que não deixa de manter a relação usual com seu referencial, mas vai além disso. Deste modo, por exemplo, no conto “Bestiário”, o tigre que freqüenta a casa não deixa de ser um tigre mesmo, mas também passa a representar a quebra da estabilidade, a ameaça à “normalidade”. As palavras mantêm seu referencial padrão ao mesmo tempo em que ganham um caráter de “diferenciação” dentro do conjunto da narrativa. 16 Em 1928, Cortázar ingressa na escola “Mariano Acosta” para formar-se como professor primário e logo começa a fazer traduções. Chega a cursar o primeiro ano do curso de Letras, mas, diante da dificuldade econômica de sua família, abandona os estudos universitários e começa a exercer a profissão que já havia conseguido. Assim, em 1937 começa a lecionar geografia na única escola de ensino médio de uma comunidade agropecuária de Buenos Aires chamada Bolívar. Nessa época, ocorre o golpe militar que seria seguido por freqüentes intervenções militares. Cortázar já demonstrava seu posicionamento esquerdista e já era leitor e admirador de escritores como García Lorca, Rafael Alberti e Pablo Neruda. Em 1938 publica seu primeiro livro, Presencia [Presença], formado por 43 sonetos e assinado com o pseudônimo Julio Denis. Dirá mais tarde que eram sonetos "muy mallarmeanos" e que o livro "felizmente" foi esquecido. Em 1939 começa a lecionar em Chivilcoy, cidadezinha que ficava a duzentos quilômetros da capital, mas a mentalidade das pessoas interioranas o sufoca. Em 1943 o general Edelmiro Ferrell decreta intervenção nas universidades e no ano seguinte Cortázar é convidado a lecionar literatura francesa e literatura da Europa Setentrional na Universidade de Cuyo. O quadro docente da Universidade havia passado por uma profunda reformulação: vários professores foram forçados a se aposentarem ou foram expulsos abertamente e 17 muitos de seus lugares eram ocupados por membros nacionalistas católicos. Era de se esperar que a carreira docente de Cortázar seria efêmera em tal ambiente. De 1946 a 1955 Perón assume o poder. Pela primeira vez, se escuta falar sobre desaparecimentos e execuções. As manifestações estudantis começam a surgir em todo o país. Nessa época, apoiando os estudantes, Cortázar suspeita que suas correspondências são interceptadas e começa a ter cuidado com o que escreve. Como ato de recusa ao governo peronista, não assume o cargo universitário que havia conseguido legitimamente por meio de um concurso. Regressa, então, a Buenos Aires, onde trabalha na Cámara del Libro. A guerra já havia acabado e retornar à Europa volta a ser um sonho possível. O sonho seria concretizado se conseguisse ter uma profissão em que ele fosse seu próprio patrão e que lhe desse liberdade para viajar. Após cursar, em apenas nove meses, estudos que normalmente levariam três anos, torna-se tradutor público nacional de inglês e francês. O esforço lhe provoca sintomas neuróticos, como, por exemplo, procurar moscas na comida. Cortázar diz que vários contos de seu primeiro livro foram, sem que ele soubesse, “auto-terapias, do tipo psicanalítico” (PREGO, 1991, p.170). Diz, ainda, que escrevia esses contos sentindo sintomas neuróticos que o incomodavam. É o caso da escritura do conto, “Circe”, que narra a história de “uma mulher muito linda e muito jovem, mas da qual todo mundo desconfiava e odiava porque achava que fosse uma espécie de bruxa, pois dois de seus noivos tinham se matado...” (PREGO, 1991, p. 171). Os noivos se matavam porque comiam bombons com baratas que ela fazia. Mas o narrador do conto se salva porque abre um dos bombons, vê a barata e 18 escapa. Sobre esse conto Cortázar diz o seguinte: “Acho que é um dos contos mais horrorosos que escrevi. Mas foi um exorcismo, porque me curou do temor de encontrar uma barata na minha comida” (PREGO, 1991, p. 171). Vemos, com isso, a relação de Cortázar com a psicanálise: “[...] enquanto era professor em Chivilcoy, li as obras completas de Freud [...] e fiquei fascinado. Então, comecei, de maneira muito primária, a auto-analisar meus sonhos. Dos meus sonhos saiu boa parte de meus contos” (PREGO, 1991, p. 170- 171). Nessa época, também escreve duas peças teatrais que farão parte do livro Adiós, Robinson y otras piezas cortas [Adeus, Robinson e outras peças curtas] (1997), publicado somente em 1984: “Peça em três cenas”, escrita em 1948 e “A temporada das pipas”, escrita em 1950, unidas por um segundo nome: “Jogo de palavras” e influenciadas pelo experimentalismo de Jean Cocteau. O livro ainda é formado por uma peça escrita nos anos 70, intitulada “Nada para Pejuajó”, que se aproxima do teatro do absurdo, e por um texto radiofônico: “Adeus, Robinson”, em que os protagonistas da famosa história de Defoe voltam à ilha do naufrágio, mas Crusoé surpreende-se com o isolamento que lhe impõem. Em 1949, publica Los reyes (1996) [Os reis], no qual assina seu verdadeiro nome pela primeira vez. Trata-se de um poema dramático em que a história mitológica do Minotauro é inovada, pois Ariadne apaixona-se pelo monstro e deseja que ele escape do labirinto. Durante o verão, escreve seu primeiro romance, intitulado Divertimento (2003), que só será publicado postumamente em 1986. Em 1950 19 escreve outro romance: El examen (1996) [O exame], que também só será publicado em 1986. Neste livro, os personagens Andrés Fava e Stella são amigos de Juan e Carla e os estão acompanhando durante um dia inteiro em Buenos Aires para que estes últimos prestem um exame. Durante o caminho, conversam sobre literatura, cinema, cultura e realidade, e evitam o encontro com uma personagem misteriosa chamada Abel, que procura Carla. O personagem Andrés vai dar origem ao livro constituído de pequenos textos que podem ser lidos aleatoriamente: Diario de Andrés Fava (1995) [Diário de Andrés Fava], escrito praticamente junto com El examen, mas só publicado em 1995. O livro é uma espécie de monólogo em que Andrés faz observações, questionamentos e explora seu mundo intrínseco. Em 1951 publica Bestiario [Bestiário] (s.d), seu primeiro livro de contos, dentre os quais estão “Circe” e “Casa Tomada”. Nessa época, Cortázar traduz poemas, romances, ensaios, artigos e contos e junta dinheiro com o intuito de viajar para a Europa, o que ocorre em outubro de 1951, quando obtém uma bolsa de estudos do governo francês e viaja a Paris, com intenção de não regressar mais a Buenos Aires. Terminada a bolsa, começa a trabalhar como tradutor da UNESCO. Casa-se com a tradutora argentina Aurora Bernárdez por volta de 1954. E em 1956 publica Final del juego [Final do jogo] (1971), livro com 18 contos. Nessa segunda série de contos, Cortázar se diz mais maduro e mais exigente, devido às experiências vividas nos últimos cinco anos em Paris. A experiência européia mudou-o profundamente: 20 Foram anos de experiência humana que eu não tivera na Argentina, onde sempre vivi muito solitário, enfiado, por um lado, em uma espécie de carreira docente, e, por outro, em bibliotecas. Paris foi um pouco o meu caminho de Damasco, a grande sacudida existencial (BERMEJO, 2002, p. 15). A mudança entre os contos de Bestiario e os de Final del Juego está principalmente no deslocamento do enfoque no elemento fantástico do enredo para a estrutura, ou seja, para a sintaxe do relato. Como diz Alazraki, exceto os contos “Una flor amarilla” e “El ídolo de las Cícladas”, em que o estranho ainda é evidente no fato narrado, os demais contos se concentram “na sintaxe do relato como o meio gerador de um sentido que transcende os feitos narrados” (1994, p. 146, tradução nossa)1. A observação dessa mudança será essencial nesta dissertação, já que é na estrutura, mais do que no enredo, que pretendemos encontrar os elementos geradores de estranhamento nos contos selecionados. Inclusive, dois dos contos selecionados fazem parte desse livro: “La noche boca arriba” e “La puerta condenada”. Em 1959 publica Las armas secretas (1991) [As armas secretas], no qual aparecem quatro contos, entre eles “El perseguidor”, inspirado no trompetista de jazz Charlie Parker. Este conto marca uma nova fase da escrita de Cortázar, pois o enredo cede enfoque para a psicologia do personagem: [...] era a primeira vez em que eu escrevia uma tentativa maior com os homens como seres humanos. Até aquele momento, minha literatura tinha se servido dos personagens, que estavam lá para que 1 “en la sintaxis del relato como el medio generador de un sentido que transciende los hechos narrados”. 21 um ato fantástico ocorresse, uma trama fantástica. Os personagens não me interessavam muito [...] (PREGO, 1991, p. 120). Em 1960 viaja aos Estados Unidos e publica seu primeiro romance: Los Premios [Os Prêmios] (1975). Trata-se de uma viagem no navio Malcom, que algumas pessoas ganham como prêmio de loteria. Ao embarcarem, porém, não sabem para onde vão nem quanto tempo durará a viagem. Tais elementos também são desconhecidos para o leitor. Além disso, são proibidos de freqüentarem uma parte do navio e se revoltam, motivo pelo qual voltam às suas casas e descobrem que, depois de três dias que se estendem por mais de 450 páginas, não haviam sequer saído do porto de Buenos Aires. A viagem, então, ocorre dentro do próprio navio, na psicologia dos personagens. Em 1961 Cortázar visita Cuba, e, a partir desse momento, expressa sua fidelidade à Revolução Cubana e se compromete em ser mais ativo politicamente. Em 1965 escreve o conto “Reunión” [“Reunião”], dedicado a Che Guevara e, em 1966, afirma publicamente seu compromisso com a luta pela liberdade latino-americana. Em uma de suas viagens a Cuba, conhece a lituana Ugné Karvelis, que será sua segunda esposa e com quem viverá durante uma década em Paris. Em 1962 publica Historias de cronopios y de famas [Histórias de cronópios e de famas] (1972), um livro estruturado em quatro partes: “Manual de instruções”, “Ocupações raras”, “Material plástico” e “Histórias de cronópios e de famas”. “Histórias de cronopios e de famas” é uma espécie de classificação humorística dos tipos humanos. Cortázar explica-os da seguinte maneira: os cronópios têm um pouco a conduta de poetas e são anti-sociais. Os 22 famas são o oposto dos cronópios, defendem a ordem, são pragmáticos e assumem cargos como, por exemplo, de gerentes de bancos. Já as esperanças são seres intermediários, que, de acordo com as circunstâncias, são influenciadas pelas famas ou pelos cronópios. O termo “cronópio”, portanto, passa a ser uma referência à literatura de Cortázar e será retomado em vários artigos e livros, como é o caso de Valise de cronópio (1993), livro organizado por Haroldo de Campos e Davi Arrigucci Junior, em que vários ensaios fundamentais de Cortázar são reunidos. Em 1963 publica a obra que o tornou conhecido em toda a América e que causou grandes repercussões na história da literatura: Rayuela [O jogo da amarelinha] (2002), um romance inovador que transgride a ordem tradicional de leitura e exige uma participação ativa do leitor. Em uma espécie de introdução, chamada “Tabuleiro de direção”, Cortázar explica ao seu leitor as possibilidades de leituras da obra: À sua maneira, este livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros. O leitor fica convidado a escolher uma das seguintes possibilidades: O primeiro livro deixa-se ler na forma corrente e termina no capítulo 56, ao término do qual aparecem três vistosas estrelinhas que equivalem à palavra Fim. Assim, o leitor prescindirá sem remorsos do que virá depois. O segundo livro deixa-se ler começando pelo capítulo 73 e continua, depois, de acordo com a ordem indicada no final de cada capítulo (O jogo da amarelinha, 2002, p. 5). Em 1964 reúne em um só livro chamado Cuentos, algumas narrativas de Bestiario, Final del Juego, Las armas secretas e Historias de cronopios y de famas. Em 1966 publica seu livro de contos Todos los fuegos el 23 fuego [Todos os fogos o fogo] (1975), constituído de oito narrativas, dentre elas a que recebe o mesmo nome do livro, e que será analisada nesta dissertação. No ano seguinte aparece La vuelta al día en ochenta mundos (s.d) [A volta ao dia em oitenta mundos], livro que reúne contos, ensaios, poemas e crônicas, além de textos não verbais, mas pictóricos, gráficos e fotográficos, ou seja, é uma mescla de textos e gêneros que se assemelha aos livros “almanaques”. Em 1968 publica outro de seus livros “almanaque”: Último Round (s.d), dividido em dois volumes, nos quais se encontram ensaios, contos, poemas, crônicas e textos humorísticos. No mesmo ano publica Ceremonias, uma seleção de contos de Las armas secretas e Final del juego. Em 1969 publica uma antologia com alguns contos de Bestiario, Final del Juego, Las armas secretas e Todos los fuegos el fuego, intitulada Relatos. Publica também outro romance: 62, modelo para armar (1973), livro que é a realização de uma idéia de romance que o personagem Morelli expõe no capítulo 62 de Rayuela, o qual não é lido caso o leitor siga a ordem de leitura dos capítulos estabelecida pelo autor. Sobre essa obra que gerou tanta polêmica, Cortázar diz o seguinte: “Achei que era positiva a eliminação sistemática e deliberada do comportamento psicológico previsível e usual nos personagens, essa presença de todo um repertório de sentimentos, paixões e mecanismos lógicos” (PREGO, 1991, p. 85). Em 1970 aparece Viaje alrededor de una mesa [Viagem ao redor de uma mesa] e no ano seguinte publica Pameos y meopas, que inclui poemas escritos entre 1944 e 1958. Em 1972 publica Prosa del observatorio (1986)[Prosa 24 do observatório], com fotografias tiradas por Antonio Gálvez e pelo próprio Cortázar. Miguel Reyes Sanches, em um de seus artigos, diz: Na Prosa do observatório, Julio Cortázar apresenta um livro de corte experimental com a formulação de problemas de índole metafísica, partindo de três elementos determinantes: 1. Os observatórios astronômicos sob a lua de Júpiter e Delhi, com seu cósmico simbolismo; 2. O Mar dos Sargazos, com os curiosos costumes das enguias; e, por último, 3. O narrador, o homem, que incluído na prosa, combina os elementos (tradução nossa)2 Disponível em: . Acesso em 01 mai 2006 Em 1973 publica Libro de Manuel (1973) [Livro de Manuel], que obtém o Prêmio Médicis em Paris e cujos direitos autorais são doados aos presos políticos da Argentina. O espaço da narração novamente é Paris, e os protagonistas são um grupo de latino-americanos que tentam sobreviver. O enredo “fictício” é intercalado com notícias de jornal e outros documentos que retratam a ação de "La Joda”, um grupo que pretende lutar contra as ditaduras na América Latina. Seus inimigos são as formigas, com todas as hierarquias: “horminidos”, “hormigocratas” e “hormigachos”, comandados pelo “Hormigón”. Segundo Cortázar, é nesse livro que ele tenta fazer convergir alguns aspectos da história contemporânea com a literatura: 2 En la Prosa del observatorio, Julio Cortázar presenta un libro de corte experimental con planteamientos de índole metafísica, partiendo de tres elementos determinantes: 1. Los observatorios astronómicos bajo la luna de Jupiter y Delhi, con su cósmico simbolismo; 2. El Mar de los Sargazos, con las curiosas costumbres de las anguilas; y, por último, 3. El narrador, el hombre, que incluido en la prosa, combina los elementos. 25 Convergência particularmente difícil, porque na maioria dos livros ditos comprometidos com a política – a parte política, da mensagem política – anula e empobrece a parte literária e se converte numa espécie de ensaio dissimulado, ou a literatura é mais forte e apaga a mensagem, deixando-a numa situação de inferioridade. Então, esse dificílimo equilíbrio entre um conteúdo de tipo ideológico e um conteúdo de tipo literário, que é o que quis fazer em Libro de Manuel, acaba sendo um dos problemas mais apaixonantes da literatura contemporânea (PREGO, 1991, p. 123). O trecho acima demonstra que para Cortázar a literatura não deve ser usada como pretexto para falar de outros assuntos como a política, por exemplo. Cortázar sabia separar bem sua participação nas causas sociais de sua literatura ficcional. Chegou a dizer, sobre a literatura cubana, que os escritores seriam mais revolucionários se não escrevessem sobre a revolução, ou seja, se exercessem sua liberdade de expressão, sem ter o comprometimento com o momento histórico. A liberdade de criação e o uso da imaginação sem precisar seguir regras seria o ato mais revolucionário de um escritor. Em 1974 aparece o livro de contos Octaedro (2000), novamente com oito narrativas, e em 1975 publica Fantomas contra los vampiros multinacionales (2002) [Fantomas contra os vampiros multinacionais], um livro com formato de gibi, em uma edição popular para ser vendido nas bancas, justamente para informar a população sobre os trabalhos e as sentenças do Tribunal Russell e sobre as ditaduras do Cone Sul. No mesmo ano surge Silvalandia, livro com pinturas de Julio Silva. Em 1977 aparece mais um livro com onze contos: Alguien que anda por ahí (1996) [Alguém que anda por aí]. Sobre esse livro, Cortázar diz que “os personagens vivem situações que, com algumas variantes lógicas, poderiam 26 ter sido vividas por muita gente. Ou seja, a relação entre personagens e leitores – como eventuais protagonistas – é maior agora que no começo” (BERMEJO, 2002, p. 29). Diz ainda que o livro está formado da seguinte maneira: Há uma porcentagem de relatos fantásticos, uma porcentagem (que vai aumentando) de contos de indagação psicológica nos quais não acontece nada de fantástico, e dois ou três contos que são mais uma tentativa de demonstrar, de fato, a coincidência entre literatura e política abordada no Livro de Manuel (BERMEJO, 2002, p. 122). Em 1978 publica Territorios (1978) [Territórios], livro que aborda o tema da pintura. Nele, Cortázar visita os territórios de alguns de seus artistas prediletos como Pierre Alechinsky, Rita Renoir, Alois Zötl, Leopoldo Novoa, Jacobo Borges, Guido Linás, Julio Silva, Antonio Saura, Jean Thiercelin, Sara Facio, Alicia D´Amico, Leo Torres Agüero, Leonardo Nierman, Luis Tomasello, Adolf Wölfli, Hugo Demarco e Fréderic Barzilay. Cada obra de arte é vista como um país e, segundo Agnaldo Farias (2002), “visitá-lo significa abandonar a confiança cega nos guias de viagem para abrir-se às surpresas, previsíveis quando se percorre um território único, ainda que dotado de aspectos semelhantes a outros territórios”. Em 1979 Cortázar separa-se de Ugné Karvelis, e casa-se com Carol Dunlop, escritora canadense que havia tido problemas sérios nos Estados Unidos, país em que viveu, por sua oposição à guerra do Vietnã. Nesse mesmo ano, Cortázar viaja até Nicarágua e decide apoiar de todas as formas possíveis a Revolução Sandinista. 27 Em 1979 lança Un tal Lucas (1996) [Um tal Lucas], livro formado por textos curtos que não são propriamente contos, mas relatos sobre vários aspectos da vida do personagem, como, por exemplo, “Lucas y sus compras”, “Lucas y su patriotismo”, “Lucas y sus meditaciones ecológicas”, entre outros. Em 1980 publica outra coletânea com dez contos: Queremos tanto a Glenda, que, no Brasil, também recebeu um novo título na tradução de Remy Gorga Filho: Orientação dos gatos (1981). Em 1981 consegue a cidadania francesa e lhe diagnosticam uma leucemia. Em 1982 surge Deshoras (1996), livro cujos contos têm elementos autobiográficos bastante perceptíveis, como diz o próprio autor: é perfeitamente possível que agora, nos últimos contos que escrevi, os que estão em Deshoras, eu me situe com maior facilidade, com maior intensidade, em períodos da minha vida já muito distantes: a época de estudante, a época das recordações da infância. (PREGO, 1991, p. 24) Em 1983 aparece o livro Los autonautas de la cosmopista (1996), nascido de uma viagem realizada por Cortázar (“El lobo”) e Carol (“La osita”), em 1982, de Paris a Marselha. A regra era parar em dois estacionamentos por dia. Como havia 66, a viagem feita normalmente em dez horas, durou 33 dias. O livro, assim, é uma espécie de diário de viagem, escrito a duas mãos, com fotos e desenhos (feitos pelo filho de 14 anos de Carol, que nem sequer participou da viagem). Cortázar diz que 28 [...] para que o livro fosse divertido deveria ser um pouco uma paródia, não exasperada, das expedições ao Pólo ou da viagem de Colombo [...]. Éramos dois personagens que pretendiam explorar a rodovia Sul, coisa que ninguém tinha feito. (PREGO, 1991, p. 131) O jogo de palavras do título indica, porém, algo quase “transcendental”: “autonautas” ganha o prefixo de “autopista” (estrada), e “cosmopista” ganha o prefixo de “cosmonauta” (astronauta). Deste modo, os protagonistas são astronautas que dirigem (uma Kombi) em uma pista “paralela”, revelando um sentido profundo e oculto nas coisas aparentemente banais. Os direitos autorais do livro são doados à Revolução Nicaragüense. No mesmo ano, publica Nicaragua tan violentamente dulce (1984) [Nicarágua tão violentamente doce], sobre a revolução e a vida cotidiana nicaragüenses. Ainda em 1983 publica Negro el diez [Negro o dez], sobre serigrafias de Luis Tomasello. Em 1984 surge seu último livro publicado em vida: Salvo el crepúsculo (1996) [Salvo o crepúsculo], uma antologia pessoal de poemas escritos anteriormente. Em 1984 escreve ainda Alto el Perú e Argentina, años de alambrados culturales (1984), livro que reúne notas e artigos publicados por Cortázar entre 1974 e 1983, enquanto estava exilado. Está dividido em duas partes: a primeira, “Del exilio con los ojos abiertos” [Do exílio com os olhos abertos], em que o eixo central é o exílio como denúncia dos crimes militares. A segunda parte, “Del escritor de dentro y de fuera” [Do escritor de dentro e de fora], fala sobre o papel do intelectual naquele momento. 29 Esse é o ano da despedida de Cortázar, pois morre de leucemia e é enterrado no cemitério de Montparnasse, em Paris, junto com Carol Dunlop, que havia falecido em 1982. Não se pode deixar de fazer referência à relação de Cortázar com a música. Ele diz: “Se lamento alguma coisa, é não ter sido músico. Teria sido mais feliz do que sendo escritor. Tenho a nostalgia da música, mas não sou dotado para ela, salvo como ouvinte, como aficcionado” (Bermejo, 2002, p. 86). A musicalidade está presente em sua literatura, tanto em menções a obras musicais em vários de seus textos, como na busca de um ritmo: Quando comecei a escrever, a noção de ritmo se instalou em mim paralelamente à escrita [...] Se você ler os meus primeiros contos – “Bestiário”, por exemplo – verá que o último parágrafo de todos os relatos [...] é sempre armado sobre um esquema rítmico inflexível. A colocação das vírgulas, o encontro do substantivo com o adjetivo, as quedas da frase até o ponto final acontecem, mutatis mutandi, em uma partitura musical (BERMEJO, 2002, p. 87). Disso advêm alguns problemas para os tradutores de Cortázar. Ele diz que “mesmo que a idéia, a informação esteja perfeitamente traduzida, se ela não tem swing, se não tem aquele movimento pendular que faz a beleza do jazz, perde para mim toda a eficiência. Morre” (BERMEJO, 2002, p. 87). Daí, também, a importância de se ler os contos de Cortázar em voz alta, para que o ritmo seja melhor percebido. Essa rápida passagem pela biografia e pela bibliografia de Cortázar nos permitiu visualizar uma imensa diversidade de formas e um rico repertório de criatividade e experimentalismos. A maioria de suas obras 30 desnorteia o crítico ou o leitor que tentam encaixá-las em definições de gênero, em estruturas bem delimitadas. Um homem-menino profundamente sensível com as pessoas, com a vida, extremamente exigente com sua escrita e totalmente comprometido com a liberdade (física, intelectual, moral e estética) não se submete às regras fixas do mundo chamado “racional” e cria/recria um mundo lúdico, convocando o leitor a participar do jogo. 31 CAPÍTULO II Muni-me de paciência e desmontei o universo. Desviei todas as coisas do seu caráter, arranquei todas ao seu curso ou ao seu uso, para construir novas hipóteses. (GERSÃO) 32 2.1 – O fantástico “puro” – e desvanecente - de Todorov O homem do século XVIII via-se, por um lado, influenciado pelos dogmas do Catolicismo e, por outro, pelos ideais do Enciclopedismo e do Iluminismo, que se afastavam das superstições e crenças de caráter religioso3. Nesta época, a hesitação do homem entre o que era explicável pela razão e o que era obscuro e desconhecido configura-se em uma nova expressão estética que viria a caracterizar a literatura fantástica. Isso não significa que os elementos insólitos apareçam apenas nos textos do século XVIII. Ao contrário, sempre estiveram presentes de maneira difusa em toda a história da literatura. No entanto, há um momento em que esses elementos aparecem de tal forma articulados que criam uma espécie de “escola literária” do fantástico, cujos textos têm características formais e temáticas semelhantes. Ccomumente se usa o termo “fantástico” para referir-se a todo tipo de texto que transgrida os princípios do realismo, ou seja, que não imite o 3 Luiz R. Salinas Fortes (1987) afirma que nos dois últimos decênios do século XVII até mais ou menos 1780, a Europa Ocidental, principalmente França, Inglaterra e Alemanha, é dominada por um movimento cultural filosófico chamado “Iluminismo” ou “Filosofia das Luzes” ou ainda “Ilustração”. Montesquieu, Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, Diderot e D’Alembert são exemplos de nomes vinculados ao movimento. O autor explica que o pensamento dominante nesse período, além da valorização do homem, “é uma profunda crença na Razão humana e nos seus poderes” (p. 9). Segundo o autor, é nessa época que ocorre a “aceleração do lento e complexo processo de transição do modo de produção feudal para o modo capitalista de produção, esboçado desde o século XV” (p.15). A aristocracia rural, sempre ao lado da Igreja, perde seus poderes econômico e político para uma nova classe, a burguesia, e “na medida exata em que o senhor feudal vai sendo suplantado, a Igreja vai perdendo seu poder absoluto, passando, deste modo, por uma crise profunda. A crítica sistemática e tenaz do espírito teológico e dos dogmas da tradição religiosa constituirá precisamente uma das grandes frentes de batalha para homens como os enciclopedistas” (p.15). Quanto aos enciclopedistas, confeccionaram e apoiaram a Enciclopédia, “publicada na França entre 1751 e 1780, com 35 volumes. Era uma revisão completa das artes e das ciências da época, explicando os novos conceitos físicos e cosmológicos, e proclamando a nova filosofia do humanismo” (NOVA ENCICLOPÉDIA ILUSTRADA FOLHA, v. 1, p. 296). 33 modo de funcionamento explicado pelas ciências naturais. O termo, assim usado, torna-se extremamente abrangente e passa a ser definido não por suas características específicas, mas sim por sua “não definição”: tudo o que não é realista, é fantástico. Neste trabalho, não nos interessa esse uso lato e não criterioso, mas sim sua conceitualização como gênero literário, que, portanto, se define pela presença, e não pela ausência, de características. Mesmo porque, como veremos mais adiante, a concepção de fantástico na qual nos basearemos não se opõe ao realismo, pois pode ser considerada como mais uma maneira de enxergar e/ou mostrar a realidade. Surgem, então, vários estudiosos4 que tentam sistematizar os mecanismos de criação desse novo gênero. Nesta dissertação, usaremos a obra Introdução à literatura fantástica, de Tzvetan Todorov, como base para pensar sobre alguns dos procedimentos característicos do fantástico. Segundo o teórico, “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2003, p.31). Essa hesitação pode referir-se ao personagem (que geralmente é também o narrador) e, praticamente quase sempre, também ao leitor. A hesitação deve estar presente em todo o texto, e é vista como a oscilação entre aquilo que é definido como realidade e aquilo que desafia ou distorce essa realidade. Se os acontecimentos parecem sobrenaturais durante toda a história, mas recebem uma explicação racional no final da narrativa, o texto insere-se, segundo Todorov, no gênero fantástico-estranho. Se, no entanto, os 4 Irène Bessière, Rosalba Campra, Louis Vax, Roger Caillois, Pierre- Georges Castex, Howard Philips Lovecraft, Roberto Reis, etc... 34 acontecimentos podem ser explicados pela razão desde o começo da narrativa, mas são incríveis e extraordinários, estamos no gênero estranho puro. Se durante toda a narrativa hesita-se entre aceitar novas leis e manter as do mundo natural, temos o fantástico-maravilhoso. Outra possibilidade é a aceitação, desde o início da narrativa, de novas leis, diferentes das estabelecidas no mundo natural. Isto caracterizaria o gênero maravilhoso puro. No fantástico-estranho, inicialmente temos situações cujas explicações oscilam entre racionais e sobrenaturais. Todavia, no final da narrativa, essas situações, na verdade, não existiram, pois foram frutos de um sonho, de loucura, da influência de drogas, de acasos e coincidências, de fraudes ou ilusões. Como exemplo desse tipo de narrativa, Todorov cita o livro Manuscrito encontrado em Saragoza, de Jan Potocki (1761-1815), que narra várias histórias, ao estilo de Decameron e As mil e uma noites. Uma delas intitula-se “As histórias do demoníaco Pacheco” (2004). Pacheco dorme com a cunhada e a madrasta e acorda ao lado de dois cadáveres. Durante toda a narrativa, ele não consegue explicar racionalmente tais acontecimentos e acredita serem milagres e mistérios sobrenaturais. No final da narrativa, porém, descobre que tudo fazia parte de uma séria de ações de outros personagens para enganá-lo: tudo não passava de fraudes. Portanto, todos os acontecimentos, que pareciam sobrenaturais, recebem uma explicação racional. O conto “Os assassinatos da rua Morgue” (1995), de Edgar Allan Poe (1809-1849), pode servir como exemplo do gênero estranho puro. Na história, duas mulheres são brutalmente assassinadas e não se sabe quem é o assassino nem 35 o motivo dos crimes. Durante toda a narrativa, o leitor é induzido a acreditar que os crimes não foram cometidos por um ser-humano, devido à barbárie, à falta de motivo, ao local em que os corpos foram encontrados, etc. Acredita-se, portanto, em uma espécie de maldição que tenha caído sobre as duas personagens, ou que algo sobrenatural as tenha matado. Somente no final da narrativa nos é revelada a identidade do assassino: um orangotango que havia fugido com uma navalha. O final surpreende porque é incrível, ou seja, tem uma explicação racional que, apesar de ser possível pelas regras das ciências naturais, é improvável. O conto, deste modo, é estranho, pois nada de sobrenatural acontece e as leis da realidade acreditada pelo leitor continuam intactas. Deste modo, a linha que separa o estranho puro do fantástico- estranho é muito tênue, pois nos dois casos, o que parecia sobrenatural durante a história, é explicado racionalmente no final. Porém, no primeiro gênero, a explicação racional é quase mais incrível que a própria aceitação do sobrenatural, enquanto que no segundo gênero, a explicação é aceitável facilmente. Como exemplo do fantástico-maravilhoso, Todorov cita o conto “A morte amorosa” (2004), de Théophile Gautier (1811-1872), em que um monge, no dia de sua ordenação, apaixona-se por uma cortesã: Clarimonde. Eles se encontram algumas vezes, mas ele assiste à morte da amada. A partir de então, ele sonha todas as noites com ela. No sonho – que, incrivelmente, continua de onde havia parado na noite anterior – Clarimonde mantém-se viva graças ao sangue que suga de Romuald (o monge) durante a noite. Romuald, então, começa a suspeitar que algumas coisas inexplicáveis estão lhe acontecendo, e atribui isso 36 ao diabo. No final da narrativa, ele vai ao cemitério, desenterra o corpo de Clarimonde e, para seu espanto, o corpo dela está fresco e intacto, com uma gota de sangue no canto de sua boca. Quando o abade que acompanhava Romuald joga água benta sobre a “defunta”, seu corpo se transforma e vira cinza. No conto de Gautier, tanto o personagem quanto o leitor hesitam entre explicar os fatos racionalmente (tudo era apenas sonho, impressão) ou sobrenaturalmente (diabo disfarçado, morta-viva, etc). Mas, no final, aceita-se a explicação sobrenatural, inserindo a narrativa no fantástico-maravilhoso. Como exemplos do maravilhoso puro, o sobrenatural é aceito desde o início da narrativa, e não causa assombro ou inquietação no leitor nem nos personagens. Todorov não cita nenhum exemplo desse gênero, mas o diferencia de outros tipos de maravilhoso: maravilhoso hiperbólico, maravilhoso exótico, maravilhoso instrumental e maravilhoso científico (ficção científica). Roas (2001), ainda distingue o maravilhoso cristão. Não é nosso objetivo estudar cada um desses gêneros. Portanto, apenas resumiremos as explicações dadas por Todorov a cada um desses gêneros, sem nos determos em exemplos. O maravilhoso hiperbólico é gerado pela dimensão exagerada dos fenômenos. Não viola excessivamente a razão, pois pode ser só uma “maneira de falar”, ou seja, pode ser entendido como uma figura de linguagem: a hipérbole. No maravilhoso exótico a narrativa se passa em mundos desconhecidos e por isso não há motivos para duvidar, já que não se conhecem as possibilidades das regiões em que os fatos são narrados. No maravilhoso instrumental, aparecem objetos e técnicas desconhecidos para uma época, mas não para outra, como, por 37 exemplo, o tapete voador representando o avião. É muito próximo ao maravilhoso científico. Neste, o sobrenatural é explicado de uma maneira racional, mas a partir de leis que a ciência contemporânea não reconhece. Em seu artigo “La amenaza de lo fantástico”, Roas (2001) explica que no maravilhoso cristão, o sobrenatural é compreendido e admirado como uma manifestação do poder de Deus, ou seja, é acreditado pelo leitor: os acontecimentos sobrenaturais entram no domínio da fé como extraordinários, mas não impossíveis. O autor distingue, ainda, o realismo maravilhoso, em que o real e o sobrenatural coexistem sem causar nenhum espanto, em um mundo parecido com o nosso, e cita o autor Gabriel García Márquez como um dos representantes desse gênero. O que nos interessa, neste trabalho, é o fato de o maravilhoso implicar na aceitação do sobrenatural, sem surpresa nem hesitação, em um mundo cujas leis diferem das leis naturais do mundo do leitor. Assim, personagens e leitores não estranham, por exemplo, um sono durar cem anos, uma árvore falar, uma abóbora virar cavalo, etc. Deste modo, o que diferencia o estranho do maravilhoso (baseia-se na) é a reação dos personagens e do leitor, como mostra o trecho a seguir: O estranho realiza, como se vê, uma só das condições do fantástico: a descrição de certas reações, em particular do medo; está ligado unicamente aos sentimentos das personagens e não a um acontecimentos material que desafie a razão (o maravilhoso, ao contrário, se caracterizará pela existência exclusiva de fatos sobrenaturais, sem implicar a reação que provoquem nas personagens) (TODOROV, 2003, p. 53) 38 Fizemos esse breve percurso comparativo entre os diversos gêneros que permeiam o fantástico, para tentar caracterizá-lo melhor. Na visão de Todorov, portanto, o fantástico “puro”5 está entre o fantástico-estranho e o fantástico-maravilhoso, ou seja, é um gênero sustentado pela hesitação constante do personagem e do leitor: em todo o texto não se sabe em que acreditar. No final do texto, a dúvida persiste e não há uma única solução para o enredo, pois oscila- se entre uma explicação baseada na realidade e outra que questiona ou desestabiliza essa realidade. Como exemplo do fantástico puro, Todorov cita a obra Aurélia (1986), de Gérard de Nerval (1808-1855), que narra as visões de um personagem durante um período de loucura, mas que mantém, até o final da narrativa, a ambigüidade dos fatos: o leitor não sabe se o que é contado, de fato, pode ser resultado da loucura. Além disso, há outros procedimentos narrativos, como um narrador em primeira pessoa, o uso do pretérito imperfeito e a modalização6, que tornam a narrativa fantástica, segundo Todorov. Deste modo, teríamos a seguinte tabela: estranho puro fantástico - estranho fantástico puro fantástico - maravilhoso maravilhoso puro 5 Parece-nos bastante complicado definir algum gênero como “puro”. Esta delimitação excessiva que Todorov realiza dos gêneros funciona quase como uma “camisa de força” para os textos, que fornecem muitas possibilidades de combinações sendo, muitas vezes, impossível e desnecessário classificá-los. Aqui, apontamos as terminologias usadas pelo teórico não com o intuito de encontrar somente características de um gênero nos textos, mas como formar de perceber e questionar algumas nuances constantes ou que escapam dos padrões classificatórios. 6 Esses procedimentos serão explicados a seguir. 39 Um conto que pode ser considerado fantástico, por apresentar os principais elementos elencados por Todorov, é “Thanatopía” (1997), de Ruben Darío (1867-1916), do qual faremos uma breve apreciação. O narrador do conto é em primeira pessoa. Para contribuir com a desconfiança em relação ao fato narrado por esse narrador-personagem, que se revela doente aos olhos de outrem, seu pai era membro da Real Sociedade de Pesquisas Psíquicas, muito conhecido por seus estudos sobre hipnotismo. Além disso, ele (o narrador) está bebendo, como se comprova no trecho: “James Leen esvaziou em seu estômago grande parte da cerveja”7 (todos os trechos desse conto serão de tradução nossa), o que também contribui para a desconfiança de sua sobriedade. O local na narração é uma cervejaria. O grupo de pessoas escutando James no bar são representantes dos dois tipos de leitores do conto: aqueles que acreditam na história narrada e o os incrédulos. Isso instaura a dúvida e a hesitação no leitor, pois não sabemos se seus medos são causas ou conseqüências do que narra, ou seja, se são causados pelos fatos sobrenaturais que lhe aconteceram, ou se ele imaginou esses fatos, justamente porque já os temia. Ele diz ter chegado à Argentina depois de ficar cinco anos presos no hospital psiquiátrico por seu próprio pai, pois este temia que o filho descobrisse a verdade de seu “plano macabro” (segundo a interpretação do 7 “James Leen vació en su estómago gran parte de su cerveza” (p. 31). 40 narrador–personagem). Para tentar garantir sua idoneidade, o narrador diz: “Advirto-lhes que não estou bêbado. Que não fui louco”8 . Há um outro narrador que aparece esporadicamente em alguns trechos do conto, mas sempre sua fala está entre parênteses. Como ele é um dos interlocutores, narra também em primeira pessoa, o que outra vez nos remete à dúvida, já que ele também está em um bar. Esse segundo narrador diz que James não é excêntrico na sua vida cotidiana, mas que às vezes tem esses raros acessos. Além disso, é um excelente professor e leciona em uma das principais escolas da cidade. Com essa descrição, a credibilidade de James ganha força, mas o interlocutor- narrador não se atreve a dizer se acredita ou não na história narrada e deixa a decisão para o leitor: “Deixamos para o leitor a apreciação dos fatos”9. James conta que perdeu sua mãe quando era criança e, por isso, foi enviado por seu pai a um colégio interno. Recebia a visita paterna apenas uma vez por ano, era muito solitário e carente. O leitor poderá se perguntar, assim como quem o escuta no bar, se isso não poderia tê-lo enlouquecido ou desenvolvido uma imaginação fértil. Ou ainda, se a invenção de uma história sobrenatural não foi a maneira encontrada de chamar a atenção dos outros e não sentir-se mais sozinho. James diz várias vezes que aprendeu a ser triste. Com o tempo, James começa a sentir repulsa pela figura paterna. Mas, quando aos vinte anos lhe avisaram que seu pai estava no colégio para visitá-lo, sentiu-se alegre, pois precisava desabafar com alguém sobre sua tristeza. 8 “Os advierto que no estoy borracho. No he sido loco” (p. 32) 9 “Dejamos al lector la apreciación de los hechos” (p. 32). 41 O pai, informado pelo reitor de que James não comia nem dormia bem, vai buscá- lo para levá-lo embora e apresentá-lo à madrasta. A idéia de ter uma madrasta deixa-o completamente atordoado. Ele começa a criar hipóteses de quão terrível deve ser a substituta de sua querida mãe, chamando-a de cruel e de bruxa. Termina por pedir desculpas aos interlocutores alegando que às vezes não sabe bem o que diz, ou talvez que o saiba demais. Ou seja, a ambigüidade volta retorna: não sabemos se ele exagerou ao imaginar a madrasta ou se ela realmente era tão terrível como em sua descrição. Essa dúvida será o eixo central do conto. Ele é levado à mansão e, ao apresentar-lhe a madrasta, os olhos do pai, segundo sua descrição, eram vermelhos e aterrorizantes, como de coelho, e olhavam de uma maneira especialmente penetrante. Quando James se aproxima da mulher, escuta a mesma voz misteriosa que havia escutado uma vez no colégio, chamando por ele. Porém, a voz parecia vir do quadro que retratava sua mãe. Ao cumprimentar sua madrasta, sentiu a pele da mulher muito fria, percebeu-a extremamente pálida e notou a ausência de brilho em seus olhos. Nesse instante, James teve uma clara idéia e começou a sentir um cheiro horrível. Quando a madrasta falava, sua voz soou soava “[...] como se saísse de um cântaro gemente ou de um subterrâneo” (grifo nosso)10. Nesse trecho entrevemos aparece a modalização: a certeza expressa por um verbo no modo indicativo é substituída pela abertura de possibilidade proporcionada pelo modo subjuntivo. Segundo Todorov, a modalização é uma das técnicas para garantir a 10 “[...] como si saliese de um cántaro gemebundo o de um subterráneo” (p. 36). 42 hesitação e a ambigüidade. James começa a gritar desesperado e o pai tenta acalmá-lo em vão, pois ele ameaça ir embora daquela casa e dizer a todos que seu pai assassinou a esposa e casou-se com uma vampira, com uma morta. O conto, portanto, não tem oferece uma solução, pois não é possível dizer o que realmente ocorreu. Uma das possibilidades é a de que James ficou psicologicamente alterado devido à morte de sua mãe, motivo pelo qual não aceitou uma madrasta, criou ilusões e foi internado pelo pai. Nesse caso, o conto traria o tema da loucura. Uma segunda leitura é acreditar na possibilidade de o pai de James, por ser cientista, ter ressuscitado a mãe que seria, portanto, uma morta- viva e então não duvidaríamos da razão de James. O conto, nesse caso, teria como temática a necrofilia. Poderíamos pensar, ainda, que o pai matou a mãe para casar- se com uma vampira. A narração de James pode, ainda, ser puramente ficcional: uma maneira de seduzir e encantar aqueles que o escutavam, uma maneira de ser o centro das atenções, embora ele próprio soubesse que tudo não passava de invenção. O enigma permanece até o final, reforçado principalmente pela narração em primeira pessoa, pela modalização de algumas expressões, pelo ambiente em que a história é narrada (um bar), pela falta de testemunhas que confirmem a versão de James, etc. Não há, portanto, possibilidade de solução para o conto: a hesitação entre explicações racionais e sobrenaturais se mantém até o final da narrativa. Por esses motivos, o conto “Thanatopía” pode ser considerado fantástico, de acordo com a concepção de Todorov. 43 Além desses elementos que caracterizam o fantástico, Todorov também ressalta a importância do aspecto semântico dos textos, ou seja, dos temas. Eles diz afirma que “o fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranho” (2003, p. 100). A percepção já foi aqui explicada: personagem e leitor hesitam acerca dos acontecimentos e o narrador não tem certeza de suas percepções. Falta-nos, todavia, falar um pouco sobre o que se percebe, ou seja, os acontecimentos. Segundo Todorov “[....] sem ‘acontecimentos estranhos’, o fantástico não pode nem mesmo aparecer. O fantástico não consiste, certamente, nestes acontecimentos, mas estes são para ele uma condição necessária” (2003, p. 100). Há, portanto, a necessidade de que algo extraordinário, inabitual, seja contado de uma maneira que garanta a hesitação até o final da história. Percebemos que os exemplos analisados por Todorov em sua obra resumem-se, principalmente, ao século XIX, e são, em sua maioria, de origem francesa. Mesmo limitando-se a um curto período da história da literatura, a definição de fantástico de Todorov é “desvanecente”, pois fica entre dois gêneros, quase tendendo para um ou para outro. É uma definição, portanto, tão rigorosa que corre o risco de ter poucas obras e textos que a possam exemplificar e sustentar. No século XX, com o aparecimento de escritores como Gabriel García Márquez (1928- ), Carlos Fuentes (1929- ), Jorge Luis Borges (1899- 1986), Julio Cortázar (1914-1984), José J. Veiga (1915-1999), Murilo Rubião (1916-1991), entre outros, a definição de fantástico dada por Todorov torna-se 44 insuficiente, dada a natureza e a peculiaridade das obras desses autores11. O próprio Todorov percebe uma mudança na literatura fantástica a partir das obras de Franz Kafka (1883-1924). É sobre essa mudança e sobre a insuficiência da definição utilizada de fantástico até aqui que falaremos a seguir. 2.2 – Metamorfoseando: mudanças no fantástico a partir de Kafka Todorov observa que a noção de “realidade” se transforma de acordo com o contexto histórico e, justamente por isso, segundo o autor, hoje não existe mais literatura fantástica nos moldes da literatura do gênero fantástico dos séculos XVIII e XIX, porque não se acredita mais em uma realidade imutável como consideravam os positivistas daquela época. Não há mais um único conceito de realidade12 e devido a essa mutabilidade “a literatura fantástica, ela mesma, que subverteu ao longo de todas as suas páginas, as categorizações lingüísticas, recebeu com isto um golpe fatal; mas desta morte, deste suicídio, nasceu uma nova literatura” (TODOROV, 2003, p.177). Todorov percebe uma inovação na narrativa fantástica do século XX a partir de A metamorfose (1976), de Franz Kafka, publicada pela primeira vez em 1912, e aborda sucintamente o que a diferencia do fantástico 11 Não é nosso intuito discutir se as obras desses autores são ou não semelhantes ou se podem ou não serem inseridas no gênero fantástico. Citamos autores que, comumente, são classificados pela crítica como escritores de literatura fantástica ou algum gênero próximo ao fantástico, como o realismo maravilhoso, por exemplo. 12 Na verdade, Todorov usa o termo “real”, e não “realidade”, mas preferimos usar “realidade” por motivos que serão explicados no próximo item desta dissertação. 45 anteriormente cultivado. Segundo o teórico, o fantástico exige uma certa maneira de leitura “que se pode por ora definir negativamente: não deve ser nem ‘poética’ nem ‘alegórica’” (2003, p. 38). Nesse contexto, o texto poético é entendido apenas como uma seqüência verbal, que não faz alusão a um referente, ou seja, que não significa outra coisa além dela mesma. Quanto à leitura alegórica, Todorov explica que: É preciso insistir no fato de que não se pode falar de alegoria a menos que dela se encontrem indicações explícitas no texto. Senão, passa-se à simples interpretação do leitor; por conseguinte, não existiria mais texto literário que não fosse alegórico, pois é próprio da literatura ser interpretada e reinterpretada infinitamente por seus leitores (TODOROV, 2003, p. 81). Encontrar “indicações explícitas no texto” significa que todas as figuras do texto tenham um correspondente no plano da alegoria. O texto “A” deve se sobrepor perfeitamente ao texto “B”, ao qual se faz referência. Se essa correspondência não existe, não é possível pensar em alegoria, segundo Todorov. Para o crítico, se o leitor começa encontrar relações não explicitadas no texto, força uma leitura alegórica e, conseqüentemente, faz com que todos os textos se tornem alegóricos, posto que são interpretados. O que nos resta, portanto, é fazer realizar uma leitura literal do texto fantástico, ou seja, interpretar os acontecimentos tais como são narrados, sem recorrer a alegorias ou metáforas. Caso contrário, o estranhamento, primordial nesse tipo de narrativa, deixaria de existir, e isto a descaracterizaria. Porém, como dito, o estranhamento não é o único elemento que caracteriza o 46 gênero fantástico. No trecho a seguir, Todorov, ao falar sobre A metamorfose, compara-a com os principais elementos da literatura fantástica dos séculos anteriores e, assim, podemos, de uma só vez, mostrar as características cultivadas anteriormente e as mudanças ocorridas a partir da obra de Kafka: Se abordarmos esta narrativa [A metamorfose] com as categorias anteriormente elaboradas, vemos que ela se distingue fortemente das histórias fantásticas tradicionais. Em primeiro lugar, o acontecimento estranho não aparece depois de uma série de indicações indiretas, como o ponto mais alto de uma gradação [...]. A narrativa fantástica partia de uma situação perfeitamente natural para alcançar o sobrenatural, “A metamorfose” parte do acontecimento sobrenatural para dar-lhe, no curso da narrativa, uma aparência cada vez mais natural [...]. Qualquer hesitação torna-se de imediato inútil: ela servia para preparar a percepção do acontecimento inaudito, caracterizava a passagem do natural ao sobrenatural. Aqui é um movimento contrário que se acha descrito: o da adaptação, que se segue ao acontecimento inexplicável e caracteriza a passagem do sobrenatural ao natural. Hesitação e adaptação designam dois processos simétricos e inversos. Por outro lado, não se pode dizer que, pelo fato da ausência de hesitação, até mesmo de espanto, e da presença de elementos sobrenaturais, nos encontramos num outro gênero conhecido: o maravilhoso. O maravilhoso implica que estejamos mergulhados num mundo de leis totalmente diferentes das que existem no nosso; por este fato, os acontecimentos sobrenaturais que se produzem não são absolutamente inquietantes. Ao contrário, em “A metamorfose”, trata-se de um acontecimento chocante, impossível; mas que acaba por se tornar paradoxalmente possível. Nesse sentido, as narrativas de Kafka dependem ao mesmo tempo do maravilhoso e do estranho, são a coincidência de dois gêneros aparentemente incompatíveis. O sobrenatural se dá, e no entanto não deixa nunca de nos parecer inadmissível [...]. Somos, à primeira vista, tentados a atribuir um sentido alegórico a “A metamorfose” [...] pode-se certamente propor várias interpretações alegóricas do texto; este, porém, não oferece nenhuma indicação explícita que confirme esta ou aquela (TODOROV, 2003, p.179-180). Na narrativa de Kafka, o acontecimento estranho está presente logo no início da narrativa e torna-se naturalizado ao longo do texto, mas isso não impede a inquietação do leitor, então não se trata de um texto maravilhoso. A 47 inquietação surge, principalmente, pelo fato de algo tão “incomum” (um homem transformado em inseto) ser tratado de forma tão natural, como se fosse algo banal e corriqueiro. Entendemos que quando Todorov fala sobre o fantástico partir de uma situação normal para “alcançar” o sobrenatural”, esteja referindo-se ao momento em que a hipótese da aceitação do sobrenatural é explicitada pelo personagem, como ocorre, por exemplo, no conto “Thanatopía”: durante todo o texto, ficamos em dúvida se James está louco ou se algo sobrenatural aconteceu em sua vida. Há uma gradação na narrativa que prepara o leitor para um desfecho surpreendente (que, no entanto, não tem uma única solução). Além disso, a hesitação do personagem central (Gregor Samsa) entre uma explicação racional do acontecimento estranho e a aceitação de elementos que não estão subjugados ao racionalismo cede lugar à adaptação. No início da narrativa, Gregor se sente-se incomodado com sua nova situação, mas sua preocupação é saber quais serão as conseqüências da transformação (uma das coisas que mais o atormenta é saber que seu chefe irá procurá-lo, querendo saber o motivo de ele não ter ido trabalhar). Em nenhum momento ele duvida de estar mesmo transformado em um inseto. Não há hesitação. E, finalmente, apesar de sugerir leituras alegóricas (da condição de homem reduzido a algo insignificante, por perder sua função na sociedade, por exemplo), o acontecimento sobrenatural não pode ser lido alegoricamente, já que não existe no texto nenhuma indicação explícita disso. Portanto, talvez seria mais coerente dizer que se trata de um texto passível de interpretação, levando o leitor a pensar em um significado além da história narrada, que representa ou simboliza 48 um estado da personagem, mas que, com tudo isso, deve ser lido literalmente: Gregor não deixa de ser visto como um inseto, e isso mantém o estranhamento durante toda a narrativa. Apesar de Todorov referir-se apenas a A Metamorfose, e este não ser o objeto de nosso estudo, achamos conveniente trazer essa narrativa como ponto de partida para a reflexão sobre um novo conceito de literatura fantástica, com características que a diferenciam de textos de séculos anteriores. No entanto, a obra de Kafka aproxima-se de escritores como J. J. Veiga e Murilo Rubião, ao mesmo tempo em que se distancia de escritores como Julio Cortázar. Isso mostra, também, que a palavra “fantástico” assume diferentes matizes ao longo do tempo e que, portanto, é necessário explicitar de qual fantástico estamos falando ao nos referirmos aos contos de Cortázar. 2.3 - O neofantástico ou uma teoria da desestabilização A partir do estudo das diferenças entre o fantástico tradicional e o fantástico de alguns contos de Julio Cortázar, Jaime Alazraki (1994, 2001) cria o termo “literatura neofantástica”. Segundo o crítico, o neofantástico caracteriza-se por suscitar no leitor perplexidade e inquietude devido ao insólito das situações narradas. Deste modo, em nossa dissertação, o termo “fantástico” passa a referir- se ao modelo de literatura que expressa, em maior ou menor medida, as 49 características gerais referidas por Todorov em sua obra (principalmente a hesitação). Tal termo, portanto, será entendido como um fantástico tradicional. O termo criado por Alazraki não se refere propriamente a um novo gênero, pois o termo “fantástico” se mantém no novo termo e indica que, apesar das diferenças, existirão alguns pontos em comum entre o fantástico tradicional e o neofantástico, como se este fosse um subgênero daquele. Na obra Hacia Cortázar: aproximaciones a su obra (1994), Alazraki diz explica que o fantástico diferencia-se do neofantástico por sua visão, sua intenção e seu modo13. No que diz respeito à visão, enquanto o fantástico assume a solidez do mundo que corresponderia à realidade palpável e tangível, para depois rompê-la, o neofantástico vê esse mesmo mundo como uma máscara a esconder uma outra realidade. No segundo caso, não há a ruptura com o mundo “real”, apenas sua desestabilização. Em relação à intenção, o relato fantástico tende a provocar medo no leitor. O medo é o resultado da falta de certeza, do embate com o desconhecido e o inexplicável. Como o fantástico está justamente na dúvida entre o explicável e o inexplicável, o leitor se sente incomodado e, às vezes, amedrontado. Desse modo, quando Alazraki se refere ao medo causado no leitor de literatura fantástica, é um medo gerado pela incerteza, ou seja, pela ambigüidade dos acontecimentos narrados. Isso o diferencia do gênero terror, em que o medo é causado pela certeza de ameaça de seres sobrenaturais. 13 O modo, aqui, tem o sentido de “maneira de narrar”. 50 Já no neofantástico, o medo deixa de existir porque as situações remetem a um outro contexto que não o explicitado, ou seja, ganham dimensões metafóricas. Mas pensamos que é preciso ter muito cuidado ao dizer isso, pois o conto ganhará um aspecto metafórico por expressar, por meio de suas imagens e situações lidas literalmente, o questionamento da realidade. Em outras palavras, o que acontece no conto neofantástico “acontece mesmo”, não precisa ser interpretado como metáfora de alguma outra coisa. Isso, no entanto, não impede que o relato neofantástico extrapole o próprio relato, pois impele o leitor a pensar e a questionar a sua realidade. Mas isso só é possível porque o relato é lido de maneira literal. Deste modo, por exemplo, o tigre que invade a casa do conto de Cortázar, intitulado “Bestiário”, não deixa de ser a representação de um tigre mesmo durante toda a narrativa. Mas, além disso, esse tigre representa algo que vai além do tigre, ou seja, representa o insólito, o invasivo. Nas palavras de Alazraki, as situações narradas são, geralmente, metafóricas, pois indicam “[...] entrevisões ou interstícios de não-razão que escapam ou resistem à linguagem da comunicação que não cabem nos alvéolos construídos pela razão, que vão em direção oposta do sistema conceitual ou científico com o qual lidamos diariamente” (tradução nossa)14, (ALAZRAKI, 2001, p. 277). As situações narrativas do neofantástico são metafóricas no sentido de darem abertura a esses pequenos espaços onde a razão não predomina, onde é 14 “[...] entrevisiones o intersticios de sinrazón que escapan o se resisten al lenguaje de la comunicación, que no caben en las celdillas construidas por la razón, que van a contrapelo del sistema conceptual o científico con que nos manejamos a diario” (p. 277) 51 possível vislumbrar - e “vislumbrar” no sentido de “alumiar frouxamente” e “conhecer imperfeitamente” novas possibilidades de realidades. Quanto ao modo, o fantástico tradicional geralmente segue uma gradação: no início do texto o relato segue as leis da verossimilhança externa (a do mundo do leitor), para, aos poucos, introduzir sensações dos personagens que “julgavam perceber” algo estranho. As certezas do início do texto começam a ser substituídas por expressões modais que indicam incerteza, como “talvez”, “parecia que”, “tive a sensação de”, “acreditei”, etc, e isso significa que a hesitação do personagem é constante durante todo o texto, como explica Todorov (2003). O elemento sobrenatural só se torna mais evidente no final da narrativa, mas, ainda assim, continuamos duvidando se aquilo que é narrado realmente aconteceu ou se não passa de pensamentos e impressões do personagem. Para reforçar essa ambigüidade, geralmente o relato fantástico é narrado em primeira pessoa, posto que “nas histórias fantásticas o narrador diz habitualmente ‘eu’” (TODOROV, 2003, p.90). Além disso, esse narrador conta sua história, muitas vezes, em ambientes que nos fazem duvidar ainda mais de sua idoneidade, como, por exemplo, um bar (em que sua sobriedade é posta dúvida), ou ele acabou de sofrer um grande trauma, como a perda de alguém querido, ou acabou de sair de um manicômio (e as razões pelas quais estava internado são sempre infundadas e injustas, segundo o seu próprio ponto de vista), entre outras situações que aumentam ainda mais a incerteza dos fatos narrados. Já no relato neofantástico essa gradação é prescindível, já que o insólito pode aparecer já no início da narrativa, inclusive como algo naturalizado. 52 Isso não significa que o texto se torne maravilhoso, pois ainda se mantém a perplexidade do leitor, mesmo que o personagem e/ou o narrador não se surpreendam. Deste modo, por exemplo, no conto “Carta a una señorita en París” (s.d), um dos mais conhecidos de Cortázar, o personagem/narrador está tomando conta do apartamento de sua amiga e lhe escreve uma carta, para contar-lhe como está sendo sua estadia e para dizer-lhe que, de quando em quando, ele vomita um coelhinho. E conta-lhe de forma tão natural, que a naturalidade do fato insólito surpreende o leitor tanto quanto o próprio fato insólito. Apesar de existirem diferenças entre as narrativas fantástica e neofantástica, muitos críticos e escritores continuam usando o termo “fantástico” ao se referirem às narrativas contemporâneas. Julio Cortázar é um deles, pois, apesar de não estar satisfeito com o termo “fantástico”, usa-o “por falta de nome melhor”, como afirma em seu ensaio “Alguns aspectos do conto” (1993, p. 148). Isso não indica, porém, que ele iguale seus contos às narrativas fantásticas tradicionais. Nos contos selecionados para nosso estudo, não há mais a hesitação explícita dos personagens e narradores dos contos fantásticos tradicionais, nem a construção de um ambiente, como um castelo mal- assombrado, por exemplo, que sugira a presença de algo sobrenatural. O estranhamento ocorre principalmente devido à manipulação do tempo e do espaço nas três narrativas, que gera o efeito de passagem entre um mundo que representa a realidade e outro que representa (ou representaria) a ficção na narrativa. 53 Basear-se em elementos “comuns” (e não sobrenaturais), como tempo e espaço, para gerar o estranhamento nos textos, coincide com a visão que Cortázar tem de um bom texto fantástico. Para o escritor, o bom fantástico exige uma irrupção da anormalidade na normalidade. Para que haja estranhamento, é necessário basear-se no que é normal, cotidiano e esperado. Só dentro desse mundo ordenado é possível haver quebra da ordenação e grandes surpresas, já que estas estão “[...] onde tivermos aprendido por fim a não nos surpreender com nada”, como expõe em seu ensaio “Do sentimento do fantástico” (1993, p.179). A partir disso, é uma conseqüência concluir que se não há vínculo com a normalidade, não há, nos termos de Cortázar, boa literatura fantástica. Para Cortázar, na má literatura desse gênero, há dois extremos: ou os perfis sobrenaturais são introduzidos momentânea e efemeramente, ou transbordam no cenário sem equilíbrio entre o normal e o estranho. Ele diz que “[...] somente a alteração momentânea dentro da regularidade delata o fantástico, mas é necessário que o excepcional passe também a ser a regra sem deslocar as estruturas ordinárias entre as quais se inseriu” (1993, p. 235). Os padrões ordinários, portanto, não são excluídos do texto, mas apenas deslocados. Se fossem excluídos, o texto tenderia para outro gênero diferente do neofantástico15 (seja para o maravilhoso, o absurdo, o surreal, etc.). Deste modo, no neofantástico é preciso que haja desestabilização do mundo ordenado e comum a que o leitor está acostumado. 15 Como já dissemos, Cortázar utiliza o termo “fantástico” ao referir-se à sua própria obra, embora o achasse insuficiente e o fizesse “por falta de nome melhor”. No entanto, para não confundir tal termo com o fantástico tradicional de Todorov, preferimos sempre substituí-lo por “neofantástico” ao nos referirmos aos contos de Cortázar. A mesma substituição ocorrerá quando outros autores (como Roas) usarem o termo “fantástico” e o entendermos por “neofantástico”. 54 Cortázar afirma, ainda, que [...] o verdadeiro fantástico não reside tanto nas estreitas circunstâncias narradas, mas na sua ressonância de pulsação, de palpitar surpreendente de um coração alheio ao nosso, de uma ordem que pode nos usar a qualquer momento para um de seus mosaicos [...] (1993, p. 179). O neofantástico, portanto, não depende exclusivamente dos elementos que aparecem no enredo, mas, sim, do impacto causado pelo insólito no leitor. Portanto, se se acredita totalmente no insólito, se o inesperado já é esperado, o fantástico não ocorre, pois ele não pode ser tão natural a ponto de eliminar a surpresa. Em linhas gerais, neste capítulo tentamos nos aproximar do fantástico característico dos textos de Cortázar. No entanto, nossa intenção, como explicado anteriormente, não é a busca exaustiva por uma definição, pois nos basta tentar encontrar alguns aspectos dos textos de Cortázar, mesmo porque estamos lidando com um gênero que vai justamente contra as definições e categorizações. Não queremos, portanto, encaixar os relatos de Cortázar em um gênero, pois isso seria tolher sua liberdade, sua imaginação, sua ludicidade. Assim, este capítulo valida sua existência por traçar alguns matizes dos contos que selecionamos, mas não por definir limites. Dentre as características dos textos de Cortázar, pudemos destacar: a falta de hesitação do personagem/narrador frente ao insólito e o impacto que essa aceitação do inexplicável causa no leitor, tirando- lhe a estabilidade das certezas e com isso fazendo-o questionar-se sobre seus conceitos de realidade e ficção; a manifestação do insólito no mundo normal, para 55 que este último seja desestabilizado; o estranhamento não é gerado não pela presença de elementos sobrenaturais na narrativa, mas, sim, muitas vezes, pela estrutura da narrativa, por meio de deslocamentos que não podem ser explicados racionalmente. Para que haja deslocamento, no entanto, vimos que é preciso basear-se em algo que era (ou se julgava) ser estável, e, por isso, o neofantástico necessita do conceito de realidade. 2.4 – “Quanto ao mundo, quando saíres, em que se haverá convertido?” 16 A noção de fantástico de Todorov já dependia, em partes, do conceito de realidade, pois, segundo o teórico, a literatura fantástica deixou de ser escrita como nos séculos XVIII e XIX porque agora, diferente daquela época, sabe-se que há mais de um conceito de realidade. Além disso, como vimos anteriormente, o neofantástico distingue-se do fantástico tradicional, entre outros aspectos, pela maneira como vê a realidade: ela é uma máscara que esconde uma segunda realidade, ou seja, é uma aparência. Além disso, o neofantástico desestabiliza o mundo ordinário do leitor, o que só é alcançado porque existe um conceito de realidade no qual apoiar-se. Por esses motivos, faz-se necessário saber sobre qual realidade estamos nos referindo e se os termos “realidade” e “real” são ou não sinônimos. 16 Jeunesse, citado por Cortázar (1993, p.177). 56 A intenção do relato neofantástico também tem relação com a concepção que se tem de realidade, já que, diferentemente do fantástico, que causava medo no leitor pela incerteza das ações narradas, o neofantástico não causa medo porque o texto ganha dimensões metafóricas. Como explicado anteriormente, não se trata propriamente de uma metáfora, mas de uma maneira de questionar a realidade, por meio de imagens e situações que são lidas literalmente. As definições de real e realidade passaram por diversas mudanças de acordo com cada linha de pensamento ao longo da história da filosofia. A filosofia, como é sabido, ramifica-se em duas grandes vertentes: a Ontologia (teoria do ser) e a Gnosiologia (teoria do saber). Os estudos ontológicos tentam responder a duas perguntas fundamentais: “quem é o ser?” e “que é consistir?”. Da primeira pergunta, ocupa-se a Metafísica e, da segunda, a Teoria dos Objetos. A seguir, traçaremos algumas linhas sobre a Metafísica que serão relevantes para se entender os conceitos de real e de realidade que nos interessa nesta dissertação. A Metafísica está dominada pela pergunta “quem é o ser?”, que é o mesmo que perguntar “quem existe”. Tal pergunta, segundo o que Manuel Garcia Morente expõe em sua obra Fundamentos de filosofia (1967), “supõe, pois, a distinção entre o ser que o é de verdade e o ser que não o é de verdade; supõe uma distinção entre o ser autêntico e o inautêntico ou falso” (p. 59). Significa, deste modo, dividir o “ser” em “ser em si” e “ser em outro”. 57 A resposta mais natural, imediata, óbvia e fácil à pergunta “quem existe” é a seguinte: “esta lâmpada, este copo, esta mesa, estas campainhas, este giz, eu, esta senhorita, aquele cavalheiro, as coisas e dentre as coisas, como outras coisas, como outros entes, os homens, a terra, o céu, as estrelas, os animais, os rios; isso é o que existe” (MORENTE, 1967, p. 65). E é esse senso comum que será questionado nos contos que selecionamos de Cortázar. No conto “A noite de barriga para cima”, por exemplo, cria-se todo um ambiente “real”, concreto, com cheiros, sensações e objetos, mas que, depois, ganhará o caráter de ilusório, de ficção, pois não passava de um sonho. Cortázar questiona, portanto, se aquilo que pensamos ser realidade, de fato o é. Todas as coisas, no senso comum, passam a designar o real. E a palavra latina que designa “coisas” é “res”, da qual advém a palavra “realismo”. Morente diz: “À pergunta: quem existe? Responde o homem naturalmente: existem as coisas – res – e esta resposta é o fundo essencial do realismo metafísico” (p.66). No entanto, Morente explica que nenhum filósofo, seja ele antigo ou moderno, pensa dessa forma, pois [...] é demasiado evidente, quando refletimos um momento, que nem todas as coisas existem; que há coisas que cremos que existem, mas quando nos aproximamos delas vemos que não existem, seja porque realmente se desvanecem, seja porque imediatamente as decompomos em outras (1967, p.66). Os gregos foram os primeiros a se preocuparem em distinguir aquilo que tem uma existência aparente e aquilo que tem uma existência real. A existência real significa encontrar algo que não possa ser reduzido a outras coisas, 58 que não pode ser decomposto. Muitos filósofos tentaram encontrar esse ser primordial, de existência em si, do qual partiam os demais seres. Durante o século VII antes de Cristo, Tales de Mileto e Anaxímenes determinaram que esta coisa era a água; Anaximandro pensou que esse ser fosse o apeíron, uma espécie de protocoisa indefinida; Empédocles inventou a teoria dos quatro elementos, segundo a qual as coisas não tinham uma origem única, como diziam os filósofos anteriores, mas sim uma origem plural: todas as coisas se derivavam da água, do ar, da terra e do fogo. Essa foi a teoria que vigorou até o início da Renascença. Durante a mesma época de Empédocles, dois grandes nomes surgiram na filosofia: Pitágoras e Heráclito. Para Pitágoras, o verdadeiro ser do qual derivam os demais era o número (e é a primeira vez que alguém dá uma idéia abstrata para esse ser primordial). Então, após tantas tentativas de resposta, Heráclito questiona todas elas e acha que nenhuma está correta. Propõe, então, uma nova teoria que pregava o fluir da realidade, em que todas as coisas estão mudando constantemente. De acordo com a teoria de Heráclito: “nada existe, porque tudo o que existe, existe um instante e no instante seguinte já não existe, antes é outra coisa a que existe” (1967, p.69). Depois de Heráclito, surge, no século 5º a. C., um filósofo que muda por completo a Metafísica e lança as bases que seguimos até hoje: Parmênides de Eléia. “Parmênides acaba de descobrir o princípio lógico do pensamento, que formula nestes termos categóricos e estritos: o ser é; o não ser não é” (1967, p.70). Os lógicos atuais chamarão o princípio de Parmênides de “princípio de identidade”, que pode ser melhor esclarecido por meio da seguinte 59 fórmula: x é x (por exemplo, você é você). O princípio de identidade é, portanto, tautológico, ou seja, o sujeito e o predicado do enunciado são formados pelo mesmo conceito. De acordo com Parmênides, é possível afirmar algumas características do ser: ele é único, eterno, imutável, infinito e imóvel. Ele é único, pois, supondo que houvesse dois seres, só podemos distingui-los por aquilo que um tem e o outro não tem, ou seja, o que “é” no primeiro, “não é” no segundo, mas isso seria ilógico, pois definiríamos algo pelo que ele não é, seria uma definição pela ausência e não pela presença. Portanto, o ser verdadeiro, segundo Parmênides, é único. É eterno, pois, se não fosse, teria começo e fim e, antes do começo, seria um “não ser”, e dizer isso equivaleria a afirmar a existência desse não ser, o que seria absurdo. É imutável porque toda mudança é deixar de ser o que era e isso também estaria afirmando a existência do não-ser. É infinito, pois não tem limites, ou seja, não está em parte alguma. Se tivesse limites, ao ultrapassarmos esses limites encontraríamos o não–ser. Ele é imóvel, já que mover-se significaria mudar de lugar e, como vimos, ele não está em nenhum lugar: Estar em um lugar supõe que o lugar onde está é mais amplo, mais extenso que aquilo que está no lugar. Por conseguinte, o ser, que é o mais extenso, o mais amplo que há, não pode estar em lugar algum, e se não pode estar em lugar algum, não pode deixar de estar no lugar; ora, o movimento consiste em estar estando, em deixar de estar em um lugar para estar em outro lugar. Logo o ser é imóvel (MORENTE, 1967, p.71-72). 60 Porém, Parmênides sabia que o mundo sensível no qual estamos inseridos era repleto de coisas completamente diferentes desse ser único, eterno, imutável, infinito e imóvel. Ao contrário, era óbvio que as coisas do mundo tinham características opostas a essas, pois se movem, nascem, morrem, mudam. Parmênides, então, conclui o seguinte: Este mundo heterogêneo de cores, de sabores, de cheiros, de movimentos, de subidas e descidas, das coisas que vão e vêm, da multiplicidade dos seres, de sua variedade, do seu movimento, de sua heterogeneidade, todo este mundo sensível é uma aparência, é uma ilusão dos nossos sentidos, uma ilusão da nossa capacidade de perceber. Assim como um homem que visse forçosamente o mundo através de uns cristais vermelhos diria: as coisas são vermelhas, e estaria errado: do mesmo modo quando dizemos; o ser é múltiplo, o ser é movediço, o ser é mutável, o ser é variadíssimo, estamos errados (MORENTE, 1967, p.72). Assim, surge a teoria dos dois mundos que perdura até hoje: um mundo sensível, acessível, ilusório e falso, outro inteligível, compreensível, autêntico e inacessível. O primeiro, que conhecemos pelos sentidos, é absurdo porque as características dos “seres” que o habitam são incompreensíveis do ponto de vista lógico, já que eles são marcados pela pluralidade, pela temporalidade, pela mutabilidade, pela limitação e pelo movimento, características opostas à razão, uma vez que contam sempre com a contraditória “hipótese inadmissível de que o não-ser é, ou de que o ser não é” (p.72). Para Parmênides, portanto, tudo o que for absurdo pensar, não existirá na realidade, então, para conhecer a autêntica realidade do ser não é preciso sair de si mesmo, 61 pois “ser e pensar é uma coisa só” (p.73). Podemos sintetizar o princípio de identidade da seguinte maneira: algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo. É importante observar, no entanto, que esse pensamento deveria ser coerente, isto é, estar em conjunção com a lógica metafísica. Os gregos acreditavam que conseguiriam decifrar os mistérios do universo e da realidade por meio do uso da razão. Mas, essa confiança extrema na racionalidade leva-a a exaustão, pois é puramente formal e abstrata, ou seja, não tem conteúdo específico. Assim, só podemos explicar os “conteúdos” do princípio de identidade com palavras indefinidas como “algo”, “isto”, “aquilo”, mas não podemos nos referir a algum elemento do mundo sensível. É, portanto, uma lógica quase mais absurda que a falta de lógica. As idéias de Parmênides e de seus seguidores confundem as “condições simplesmente formais e lógicas da possibilidade com as condições reais, materiais, existenciais do ser humano” (p.83). Apesar disso, Parmênides influenciou muito o pensamento de outros filósofos. Entre eles, um que muito nos interessa aqui é Platão. Ele também acredita na racionalidade como caminho para alcançar a verdade e na teoria dos dois mundos. Platão também é influenciado por Sócrates, que descobriu o que chamamos hoje de “conceito”: tentou reduzir as inúmeras ações e modos de conduta a um certo número de formas particulares e concretas, ou seja, a um certo número de virtudes, como a justiça, a coragem, etc. E depois, tentou explicar o que era cada uma delas. E essa explicação é chamada de logos em grego e de verbum em latim. O logos, deste modo, é uma definição, é um conceito. 62 Platão, então, une as idéias de Parmênides e de Sócrates, isto é, une a idéia do conceito, do logos, com a idéia do ser parmenídico, resultando em sua teoria das idéias. Segundo tal teoria “as idéias são as essências existenciais das coisas do mundo sensível. Cada coisa no mundo sensível tem sua idéia no mundo inteligível” (p.87). As “idéias” de Platão têm as mesmas características que o ser de Parmênides: uma idéia é sempre única, imóvel, eterna, imutável e infinita, mas há muitas idéias. Isso demonstra que as coisas do mundo sensível não se ajustam perfeitamente às suas respectivas idéias: “a relação entre as coisas e as idéias é uma relação em que as coisas participam das essências ideais, porém, não são mais do que uma sombra, uma imperfeição dessas essências ideais” (p.87). Platão, em A República (livros VII e X), oferece elementos para que se pressuponha que o simulacro pode passar-se por realidade, inclusive para uma coletividade. Ele usa a imagem da caverna para explicar sua teoria: o