DOUGLAS CRIVELARO PACHECO EDUCAÇÃO MENOR E A DESTERRITORIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO PRESIDENTE PRUDENTE 2020 DOUGLAS CRIVELARO PACHECO EDUCAÇÃO MENOR E A DESTERRITORIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO Texto apresentado ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia – FCT/UNESP/Campus de Presidente Prudente/SP, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Barbosa Lopes Linha de pesquisa: Desenvolvimento Humano, Diferença e Valores. PRESIDENTE PRUDENTE 2020 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus De Presidente Prudente CERTIFICADO DE APROVAÇÃO TÍTULO DA DISSERTAÇÃO: Educação Menor e a Desterritorialização Do Currículo AUTOR: DOUGLAS CRIVELARO PACHECO ORIENTADOR: RODRIGO BARBOSA LOPES Aprovado como parte das exigências para obtenção do Título de Mestre em EDUCAÇÃO, pela Comissão Examinadora: Prof. Dr. RODRIGO BARBOSA LOPES (Participaçao Virtual) Departamento de Educação / Unesp, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente Prof. Dr. DIVINO JOSÉ DA SILVA (Participaçao Virtual) Departamento de Educação / Unesp, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente Prof(a). Dr(a). RODRIGO PELLOSO GELAMO (Participaçao Virtual) Departamento de Didática / Unesp, Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Presidente Prudente, 25 de novembro de 2020 Faculdade de Ciências e Tecnologia - Câmpus de Presidente Prudente - Rua Roberto Simonsen, 305, 19060900, Presidente Prudente - São Paulo http://www.fct.unesp.br/pos-graduacao/--educacao/CNPJ: 48.031.918/0009-81. http://www.fct.unesp.br/pos-graduacao/--educacao/CNPJ Aos meus pais, Elzito e Célia AGRADECIMENTOS Tenho claro que esta pesquisa é fruto de encontros ordinários e fortuitos, que de algum modo lançaram-me a pesquisar, pensar tais temas e escrever algo, que mais do que qualquer coisa tem para mim um sentido de recomeço. Ainda que não possa identificar o número sem fim de encontros que me fazem escrever, alguns me são mais fáceis dizer e a estes me dedico a agradecer. Inicio, pois, pelos meus pais, Elzito e Célia, grandes motivadores e incentivadores desta etapa. Nas dificuldades foram amparo, nas ausências foram compreensíveis, cuidaram de cada detalhe para que eu pudesse passar muitos dias e muitas horas a ler e a tentar escrever, o que não seria possível sem estes cuidados. A cada traço de minha história vejo a presença de vocês, e por isso os agradeço. À Jéssica, minha irmã e amiga, quem primeiro fez brotar o desejo de lançar-se em uma pesquisa de mestrado. Você muito me inspira com sua dedicação. Agradeço- te de coração o companheirismo! Aos amigos que compartilharam alegrias e tristezas e que tornaram os dias mais leves. E aos membros da comunidade de pesquisa, pelos anseios, buscas, incertezas que compartilhamos. Nossos encontros me fazem ter esperança, apesar dos tempos que vivemos. Ao Professor Rodrigo Barbosa Lopes, que primeiro me acolheu como ouvinte em suas aulas, nas quais fui apresentado a Deleuze, e que depois viria ser orientador deste trabalho. Agradeço por me relembrar sempre que em cada obstáculo estava o real sentido de pesquisar. Agradeço o profícuo tempo de orientação, em que foram manifestas a sua generosidade e paciência. Agradeço as notáveis contribuições na elaboração desta dissertação. Sou muito grato por tê-lo tido como orientador! Ao professor Divino José da Silva, com quem muito aprendi, seja na sala ou nos corredores, pela simplicidade e pelo prazer que fala da vida, e nela de filosofia. Suas aulas e contribuições reverberam nestas páginas. Ao professor Rodrigo Pelloso Gelamo, que compõe desde o início do projeto o grupo de avaliadores. Agradeço suas incontáveis contribuições, desde a disciplina que pude fazer na UNESP/ Marília, no Seminário de Pesquisa, na Qualificação e Defesa. À UNESP, instituição que propiciou o ambiente, estrutura, oportunidade e meios necessários para a realização desta pesquisa. À UNIVESP, onde manifesta-se o meu ser professor, pelo fomento à prática docente. Por fim louvo-te, ó Sabedoria encarnada, que me encontrando destes luz aos meus dias, alento às minhas angústias, propósito às minhas incertezas. RESUMO O presente trabalho busca apresentar uma abordagem filosófica do currículo à luz da Educação Menor, como forma de superação da generalidade, da recognição e da representação que se manifestam de modo arborescente; e, concomitantemente a isso, busca o irrompimento da Diferença que traz consigo as singularidades, a multiplicidade e os acontecimentos, de modo a promover uma desterritorialização do currículo, subvertendo o senso comum e o bom senso em um processo de criação-educação. O currículo é pensado a partir de uma imagem dogmática do pensamento, de modo a adestrar o pensamento, destacando-se seu caráter normatizador, muito mais propenso ao ensinar e à reprodução de conteúdos, homogeneizando, assim, a experiência escolar. Posto isso, longe de pensar a essência da seleção de conteúdos de um currículo, ou um método melhor, busca-se promover uma noologia do pensamento curricular, que aponte para a possibilidade de um pensamento sem imagem, e a partir dela um modo de prover a educação. Tendo sido o pensamento um dos temas mais presentes nas obras de Gilles Deleuze, busca-se explorar alguns conceitos deleuzeanos que são relevantes para desenvolver o rompimento com o modo da representação, como, por exemplo, “nova imagem do pensamento” ou “pensamento sem imagem”, “signo”, “acontecimento” e “sentido”. Tem-se que a imagem dogmática do pensamento se vê conduzida por duas instâncias, o senso comum e o bom senso, a primeira responsável pela distribuição de conceitos e a segunda por apontar ao pensamento a direção do verdadeiro. E é por meio destas estruturas que o pensamento se submete a pensar por relações de identidade, e lança-se no campo da recognição. Isto posto, a crítica de Deleuze se dá à compreensão de que o pensamento e a verdade estão em uma ligação íntima e natural, em que se compreende que o pensar acontece quando busca a verdade. Para ele o pensamento acontece quando é violentado por um signo que força o pensamento a pensar, não mais estabelecendo relações de identidade, como são a semelhança, a analogia e a oposição, mas como um processo criativo. Este processo, por sua vez, se dá na produção de sentido, que se apresenta como quarta relação da linguagem, extrapolando as relações clássicas da designação, manifestação e significação; produzir sentido diz respeito a pôr o signo na ordem da linguagem, como forma de expressar um acontecimento. E, assim, pautados no par sentido-acontecimento, o pensamento deixa de seguir a única direção do bom senso, e lança-se no paradoxo, que afirma duas direções como possíveis. Entendendo, portanto, que o pensamento acontece quando se põe a pensar aquilo que ainda não pensa, já não é possível antecipar como alguém aprende, sendo esta antecipação uma pretensão própria do currículo. Aponta-se, por fim, algumas possibilidades para que se efetive uma Educação Menor, disposta a lidar com o paradoxo e com o devir e a traçar linhas de fuga às imposições da imagem dogmática do pensamento. Uma Educação Menor opera de modo rizomático, na produção de mapas, na valorização das singularidades que se manifestam na experiência escolar e na desterritorialização dos currículos, movendo as linhas de chegada, pois entende-se que seja mais importante o percurso, e que seja possível aprender sem ensinar. Portanto, a solução para os problemas inerentes a uma imagem dogmática pensamento que domina os currículos não se trata um outro currículo, mas um simulacro que destituído de qualquer semelhança já não reproduz um modelo idealizado. Palavras-chave: Educação Menor, desterritorialização, currículo, sentido, rizoma. ABSTRACT The present work seeks to present a philosophical approach to the curriculum in the light of Minor Education, as a way of overcoming the generality, the recognition and representation that manifest themselves in an arborescent structures; and, concomitantly, the eruption of Difference, which brings with it the singularities, the multiplicity, the events, in order to promote a deterritorialization of the curriculum, subverting common sense and good sense in a process of creation-education. The curriculum is thought from a dogmatic image of thought, in order to train the thought, highlighting its normative character, much more prone to teaching and reproduction of content, thus homogenizing the school experience. Having said that, far from thinking about the essence of the selection of contents of a curriculum, or a better method, it seeks to promote a noology of curriculum, which points to the possibility of a thought without image, and from it a way of providing education. Having Gilles Deleuze's thought as one of the most present themes in his works, it seeks to explore some Deleuzean concepts that are relevant to develop the break with the mode of representation, such as, for example, "new image of thought" or "thought without image", "sign", "event" and "sense". The dogmatic image of thought has to be led by two instances, common sense and good sense, the first responsible for the distribution of concepts and the second for pointing the thought in the direction of the true one. And it is through these structures that thought submits itself to thinking through relations of identity, and launches itself into the field of recognition. This being said, Deleuze's criticism is given to the understanding that thought and truth are in an intimate and natural connection, in which one understands that thinking happens when one seeks truth. For him, thinking happens when it is violated by a sign that forces thought to think, no longer establishing relations of identity, as similarity, analogy and opposition are, but as a creative process. This process, in turn, takes place in the production of sense, which presents itself as the fourth relation of language, extrapolating the classical relations of designation, manifestation and meaning; making sense is about putting the sign in the order of language, as a way of expressing an event. And, thus, guided by the pair sense-event, the thought no longer follows the only direction of good sense, and launches itself into the paradox, which affirms two directions as possible. Understanding, therefore, that thinking happens when one begins to think what one does not yet think, it is no longer possible to anticipate how one learns, this anticipation being a proper claim of the curriculum. Finally, some possibilities are pointed out for a Minor Education to be effective, willing to deal with the paradox and the becoming, and to draw lines of escape from the impositions of the dogmatic image of thought. A Minor Education operates in a rhizomatic way, in the production of maps, in the appreciation of the singularities that are manifested in the school experience and in the deterritorialization of the curricula, abandoning the lines of arrival, because it is understood that the path is more important, and that it is possible to learn without teaching. Therefore, the solution to the problems inherent to a dogmatic image of thought that dominates the curricula is not another curriculum, but a simulacrum that devoid of any similarity no longer reproduces an idealized model. Keywords: Minor Education, deterritorialization, curriculum, sense, rhizome. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 8 1. O CURRÍCULO ............................................................................................... 27 1.1 Currículo: Diferentes perspectivas .................................................................. 36 1.2 Pesquisa curricular no Brasil ........................................................................... 44 1.3 Problematizando o Currículo .......................................................................... 47 2. O QUE DELEUZE TEM A DIZER? .................................................................... 56 2.1 Imagem dogmática do pensamento ................................................................. 56 2.2 A produção de sentido....................................................................................... 68 3. POSSIBILIDADES PARA UMA EDUCAÇÃO MENOR .................................. 77 3.1 Para além do currículo ..................................................................................... 79 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 93 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 95 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ............................................................................ 99 8 INTRODUÇÃO Esta pesquisa busca desenvolver uma abordagem filosófica sobre o currículo à luz de uma educação menor, tendo-a como pano de fundo. Não se trata de discutir políticas públicas, este ou aquele plano de ensino, analisar diretrizes etc. O que se promove aqui é um ponto de vista sobre o currículo a partir da Filosofia, mais especificamente a partir da Filosofia de Gilles Deleuze. O conceito de educação menor é pensado a partir de um deslocamento do conceito de literatura menor, resultado do encontro de Deleuze e Félix Guattari com a obra de Kafka, para o campo da educação. Grosso modo, pode-se entender por literatura menor a ação de “subverter uma língua, fazer que ela seja o veículo de desagregação dela própria.” (GALLO, 2002, p. 172). Neste sentido, toda língua está ligada a uma cultura, de modo que “a literatura tem menos a ver com a história literária do que com o povo.” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 27). Assim, quando uma minoria se utiliza de uma língua dita maior, para se fazer expressar nos seus desejos, aí se encontra uma literatura menor. É na literatura de Kafka que encontramos uma expressão deste modo menor de se expressar. Tendo sido judeu-tcheco em um período de dominação alemã e ocupação de Praga, onde então residia, ele se apropriou da língua alemã como meio de romper com o modo estabelecido. Ao fazer uso desta língua como forma de estabelecer esse corte, apresentou uma literatura revolucionária – politicamente falando, de uma minoria – apesar de os tchecos serem maioria numérica. As minorias e as maiorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é um modelo ao qual é preciso estar conforme: por exemplo, o europeu médio adulto macho habitante das cidades... Ao passo que uma minoria não tem modelo, é um devir, um processo. Pode-se dizer que a maioria não é ninguém. Todo mundo, sob um ou outro aspecto, está tomado por um devir minoritário que o arrastaria por caminhos desconhecidos caso consentisse em segui-lo. (DELEUZE, 1992, p. 214). O que importa é romper com um modo representativo, que se caracteriza “pela distinção e pela complementariedade de um sujeito de enunciação, em relação com o sentido, e de um sujeito de enunciado, em relação com a coisa designada, diretamente ou por metáfora.” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 31). E é deste modo que Kafka opera, eliminando toda significação e designação, e renunciando às metáforas. Em seus escritos não há mais significado próprio ou figurado, mas há devir que compreende o máximo de diferença. 9 O que a literatura produz na língua já aparece melhor: como diz Proust, ela traça aí precisamente uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que arrasta, uma linha de feitiçaria que foge ao sistema dominante. (DELEUZE, 1997, p. 15). Deleuze e Guattari, por meio da análise feita da chamada literatura menor, “provocam um novo olhar não somente nos estudos literários, mas sobretudo colocam a literatura como uma das formas de deslocamento e rearticulação das esferas políticas e da própria representação dos sujeitos no mundo.” (ROSA, 2016, p. 690). Deleuze se utiliza muito da literatura para formular seus pensamentos. Foi assim com Kafka, Proust, Carroll e outros, que desempenharam na obra deleuzeana o papel de intercessores, encontros que moveram o pensamento do filósofo. Destes encontros, especialmente com Kafka, resulta que a literatura dita menor possui três características, a desterritorialização, a ramificação política e o valor coletivo. Mas “vale dizer que ‘menor’ não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida).” (DELEUZE; GUATTARRI, 1977, p. 28). Por dizer respeito às condições, e não às qualidades, é importante tornar possível o seu deslocamento, e assim permitir experienciar também a educação por minoração. O rompimento com a representação por meio da desterritorialização é a primeira característica de uma literatura menor. A desterritorialização não é exclusiva de Kafka, mas um movimento de sua época. Destacam-se “Einstein e sua desterritorialização da representação do universo; os dodecafonistas austríacos e sua desterritorialização da representação musical; o cinema expressionista e seu duplo movimento de desterritorialização e reterritorialização da imagem.” (DELEUZE; GUATTARI,1977, p.38). Até mesmo: as primeiras obras literárias escritas no Brasil após a colonização, por brasileiros, eram literatura menor, pois faziam da língua portuguesa (já como uma literatura maior estabelecida, tradicional) um uso novo, sob novos parâmetros, na busca de uma nova literatura "com o cheiro de nossa terra". À medida que o país se torna "independente", nossa literatura vai se desenvolvendo e acaba por se tornar, ela também, uma literatura maior, pois aquele uso novo que fazia do português deixa de ser inovador e vira tradição. (GALLO, 2002, p. 173). Esta característica é o que marca de fato uma minoração, como o emprego que se faz de determinado elemento fora do uso padrão, melhor dizendo, do seu território. É fazer uso do territorializado, dando-lhe outro uso; um uso menor instaurado a partir de dentro. Por sua vez, a desterritorialização da língua se subdivide em dois modos de ação: o primeiro é inserir símbolos da minoria na língua dita maior, o que leva a um processo de enriquecimento e 10 reterritorialização da língua; e, segundo, a desterritorialização levada à sua mais alta potência, tal qual a operada por Kafka, uso da língua maior no pouco domínio que se tem sobre ela, como um migrante. O uso que Kafka faz da língua alemã é um uso marginal, que aceitando este espaço permite-se guaguejar, permite-se causar estranhamento por um “sotaque”, um modo de falar, que não é o da maioria. Este é o desafio de uma literatura menor, “encontrar seu próprio ponto de subdesenvolvimento” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 28), ainda que inserido em contexto maior, ainda que dentro de sua própria língua. Ao analisar o alemão falado em Praga, Deleuze e Guattari (1977) destacam o uso incorreto de preposições, o abuso do pronominal, problemas de concordância. Mas isto mais do que um erro, constitui-se como expressão de criação de um povo. Ainda sobre Kafka, o uso do iídiche, como união do hebraico, alemão e certas influências eslavas, manifesta este estranhamento: “trata-se de uma língua sem gramática e que vive de vocábulos roubados, mobilizados emigrados, tornados nômades, que interiorizam ‘relações de força’; [...] só se pode compreender o iídiche, ‘sentido-o’, e com o coração.” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 39). O mesmo ocorre com o uso do alemão de Praga, que desterritorializando-se percorre linhas de fuga, e encontra seus pontos de subdesenvolvimento, seu uso menor. Outra característica é que nela tudo é político. As literaturas maiores têm como pano de fundo o ambiente social, já a menor se liga ao econômico, jurídico, comercial, burocrático etc. A literatura torna-se uma forma de intervenção nas práticas da sociedade. “O espaço exíguo faz com que cada caso individual seja ligado à política, abolindo assim as distinções entre o privado e o público, o íntimo e o social.” (SCHOLLHAMMER, 2001, p. 63). Uma terceira característica é o valor coletivo. Ela não surge dos “mestres” que dão certa autoridade à fala, mas encontra seu valor no coletivo, contaminada pelo campo político, manifestando-se como uma comunidade em vias de desagregação. Quem a enuncia não é um sujeito, mas uma enunciação coletiva, um agenciamento. Portanto, fazer uma literatura menor é renunciar ao lugar de autor, bem como “ao exercício individual para se fundir na enunciação coletiva da ‘inumerável’ multidão dos heróis de [seu] povo” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 27). Enunciado, portanto, a partir de um “fora” da literatura: Na leitura de Deleuze e Guattari, o “Fora” é o lugar da multidão, isto é, de uma vitalidade anônima e de intensidades sem sujeito, constituído de puras hecceidades, blocos de perceptos e afetos, como um avesso a partir do qual e em direção ao qual a língua e as práticas culturais e sociais se articulam. Dito de outra maneira, é no “neutro” que sujeito e objeto se fundem, no sentido em que a escrita aqui não é um 11 resultado da intenção de um sujeito mais do que o sujeito é resultado da escrita, possibilitando que uma comunidade se expresse na des-individualidade de um escritor levado pelos agenciamentos da sua própria máquina expressiva. (SCHOLLHAMMER, 2001, p. 64). Silvio Gallo, inspirado pela filosofia deleuziana, sobretudo pela obra Kafka: por uma literatura menor, desloca o conceito de “menor” para o campo da educação, abordando-a por este viés. E é neste sentido que propõe uma Educação Menor: A educação maior é aquela dos planos decenais e das políticas públicas de educação, dos parâmetros e das diretrizes, aquela da constituição e da LDB, pensada e produzida pelas cabeças bem-pensantes a serviço do poder. [...] A educação maior é aquela dos grandes mapas e projetos. Uma educação menor é um ato de revolta e de resistência. Revolta contra os fluxos instituídos, resistência às políticas impostas; [...] Sala de aula como espaço a partir do qual traçamos nossas estratégias, estabelecemos nossa militância, produzindo um presente e um futuro aquém ou para além de qualquer política educacional. Uma educação menor é um ato de singularização e de militância. (GALLO, 2002, p. 173). O modelo maior da educação, portanto, trata-se de um modelo de controle, agindo na subjetivação do aluno, criando identidades e limitando diferenças, constrói a escola do “comum”, do “padrão”, do normatizado. Prioriza alguns saberes em detrimento de outros, pois define alguns como essenciais e outros como desnecessários, ou mesmo, perigosos. Modelo da homogeneidade, avesso ao heterogêneo. Este modo maior de fazer educação se manifesta de diferentes formas, inclusive nas diversas formas de currículo, mediante às quais se busca estabelecer meios de controle e subjetivação. Uma educação maior pressupõe que as ações, segundo as definições propostas pelos textos oficiais, sejam capazes de gerar a aprendizagem; todavia, este pressuposto, de que a uma forma de ensinar corresponde um aprender, parece-nos equivocada. Todavia, vivenciamos um momento de reafirmação da educação maior, como podemos observar, por exemplo, com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), “um ‘currículo maior’ expresso em termos de uma macropolítica idealizada por burocratas e sustentada por uma perspectiva empresarial” (FERRAÇO, 2017, p. 534), além de consistir em uma tentativa de eliminar toda chance de escape. Neste contexto, entendemos que fazer uma educação menor é ainda mais necessário, como ato de criação de possibilidades e de fuga do modelo instaurado. Deleuze (2006, p. 237) afirmou que “nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender”, e é neste sentido que propomos problematizar essa forma de ensinar da educação maior, e “desterritorializar os princípios, as normas da educação maior, gerando possibilidades de aprendizado insuspeitadas naquele contexto.” (GALLO, 2002, p. 175). Em suma, “Fazer um 12 uso menor da pedagogia significa, antes, adotar o devir como regra: tudo vale, exceto aquilo que impede o desejo de circular.” (GAUTHIER, 2002, p. 153). Note-se que a proposta de uma educação menor não é propor modelos, paradigmas ou métodos que substituam o modelo de uma Educação Maior, não sendo, todavia, alheio a este risco. Não se trata de fazer escolha entre uma e outra, pois não se trata de uma lógica binária; não se trata tão pouco de erigir um novo currículo tendo como base uma educação menor. A educação menor existe em relação a uma maior, e não se trata definitivamente de uma relação pacífica. Aprendemos com Deleuze a apostar na “disjunção inclusiva”, numa lógica da diferença, que faz proliferar: e, e, e... Educação maior e educações menores. Há como que uma justaposição de espaços, em que uns não substituem os outros, mas coexistem, com mais ou menos conflito, dependendo da situação. (GALLO, 2015, p. 95). O que interessa é operar pelas rachaduras, pela ação de indivíduos, não de forma solitária, mas interligada, por relações imprevistas. Não mais ser um espaço de reprodução, mas de criação. “Sobretudo, a educação desenvolvida em uma educação menor, é aquela que abraça o desenvolvimento da subjetividade enquanto singularidades dos sujeitos envolvidos, assim como desdobra a atividade do professor como sujeito que desloca e oferece mecanismos para que se produza o novo, o por vir.” (ROSA, 2016, p. 694). Assim sendo, não há uma tentativa de composição de outro currículo, mas a problematização da ação no âmbito escolar. A educação menor é aquela da sala de aula e não das grandes mudanças e das alterações de políticas públicas. É neste contexto que se explicitam as três condições de uma minoração, “saberes-fazeres dos praticantes das escolas como fluxos, como redes de ‘currículos-docências menores’ tecidas em meio às ações micropolíticas cotidianas.” (FERRAÇO, 2017, p. 534). Observamos na experiência de uma educação menor as condições supracitadas. A primeira delas consiste na desterritorialização do processo educativo, uma vez que nele se opera afirmando como se ensina e como se aprende. Fazer uma educação menor consiste, então, no desenvolvimento de estratégias que permitam aprender sem ensinar e produzir as diferenças. Neste intuito a experimentação ganha importância como forma de buscar linhas de fuga que nos permitam escapar ao modo territorializado de fazer educação. A segunda é a sua ramificação política, visto que se constitui como ato de resistência. 13 A educação menor cria trincheiras a partir das quais se promove uma política do cotidiano, das relações diretas entre os indivíduos, que por sua vez exercem efeitos sobre as macro-relações sociais. Não se trata, aqui, de buscar as grandes políticas que nortearão os atos cotidianos, mas sim de empenhar-se nos atos cotidianos. (GALLO, 2002, p. 175). E, por fim, a terceira característica é o seu valor coletivo. “Na educação menor, não há a possibilidade de atos solitários, isolados; toda ação implicará em muitos indivíduos. Toda singularização será, ao mesmo tempo, singularização coletiva.” (GALLO, 2002, p. 176). Trata- se, portanto, de um agenciamento, da busca por uma consciência minoritária. Há uma figura universal da consciência minoritária, como devir de todo o mundo, e é esse devir que é criação. Não é adquirindo a maioria que se o alcança. Essa figura é precisamente a variação contínua, como uma amplitude que não cessa de transpor, por excesso e por falta, o limiar representativo do padrão majoritário. Erigindo a figura de uma consciência universal minoritária, dirigimo-nos a potências de devir que pertencem a um outro domínio, que não o do Poder e o da Dominação. É a variação contínua que constitui o devir minoritário de todo o mundo, por oposição ao Fato majoritário de Ninguém. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 53). Tendo exposto as condições de uma minoração, entendemos necessário problematizar o modo representativo presente nos currículos, por meio do qual a educação maior se instaura. Sendo características deste modo a instauração da generalidade e a renúncia da diferença. Assim sendo, neste intuito, propomos pensar o campo da educação em uma composição com a filosofia de Gilles Deleuze, em um movimento de crítica e clínica no campo da teoria curricular. Deleuze tem sido apresentado como de grande valia para muitas áreas de estudo, inclusive a Educação, apesar de não a ter investigado diretamente. “A filosofia de Deleuze traça percursos que justificam a variação de seus estímulos em estudos filosóficos e no campo das ciências humanas, da educação e das artes, bem como nos combates pela dignificação do viver.” (ORLANDI, 2009, p. 26). Vale ainda ressaltar a célebre frase de Foucault: “um dia, talvez, o século será deleuziano.” (FOUCAULT, 2015, p. 240). Sua importância se dá, sobretudo, pelo rompimento com uma tradição que acreditava se orientar em direção à verdade, a um único caminho a ser seguido. Ao romper com tal tradição, trouxe à superfície a chamada Filosofia da Diferença. “Em resumo, a problemática da diferença se impôs de tal modo que forçou o pensamento a alargar visões, bocas, poros e até cloacas, incluindo aquelas que se julgavam higienizadas em universos tão só linguageiros.” (ORLANDI, 2009, p. 9). O tema da diferença se contrapõe ao lugar, até então consolidado, que a identidade ocupava na história do pensamento. Deleuze compreende: 14 que a identidade não é primeira, que ela existe como princípio, mas como segundo princípio, como algo tornado princípio, que ela gira em torno do Diferente, tal é a natureza de uma revolução copernicana que dá à diferença a possibilidade de seu conceito próprio, em vez de mantê-la sob a dominação de um conceito em geral já posto como idêntico. (DELEUZE, 2006, p. 73). Desse modo, há um rompimento com a filosofia da representação, a qual tinha como ponto de partida o primado da identidade, estabelecendo um momento de crítica que não se dissocia do movimento de clínica, que aponta para o irrompimento da diferença. A obra de Gilles Deleuze compreende um esforço de crítica a um tipo de pensamento designado de representação e entendido como constituição de uma filosofia da diferença. Tanto a crítica à representação quanto a construção de uma filosofia da diferença são duas faces de um mesmo movimento de pensamento; a crítica e a clínica são indissociáveis em Deleuze. (VASCONCELLOS, 2005, p. 1219). Tomando as armas de Deleuze, queremos também alargar visões, romper paradigmas, criar... Neste sentido, é preciso avançar para além da generalidade, entendida como: “ponto de vista segundo o qual um termo pode ser trocado por outro, substituído por outro” (DELEUZE, 2006, p.19), como ocorre nas ciências em geral, em que sem maiores problemas um objeto estudado pode ser substituído por outro idêntico. A generalidade é pensada por semelhanças e equivalências, ciclos e igualdades. Todavia, é a falsa compreensão de que estamos sempre diante do mesmo que instaura a generalidade na ordem do pensamento, instituindo assim o modo representativo. Submete-se a vida à lei, seja da natureza ou da moral, o que nos leva sempre a fazer de modo semelhante ao hábito e ao dever. “A generalidade só representa e supõe uma repetição hipotética: se as mesmas circunstâncias são dadas, então... Esta fórmula significa: em totalidades semelhantes, poder-se-á sempre reter e selecionar fatores idênticos que representam o ser-igual do fenômeno.” (DELEUZE, 2006, p. 22). Já a repetição, como meio de manifestação da diferença, fora de sua significação comum, mas como conceito, diz respeito a uma singularidade, àquilo que não pode ser substituído por outro, que não pode ser pensado como semelhança ou equivalência sem perder- se. De modo que a troca da generalidade é substituída pelo roubo da repetição. “Ela põe a lei em questão, denuncia seu caráter nominal ou geral em proveito de uma realidade mais profunda e artística.” (DELEUZE, 2006, p. 21). Repetir não é trazer de novo, mas o meio de elevar a primeira vez à “enésima” potência; muito mais literatura do que ciência. Enquanto a 15 generalidade é marcada pela igualdade e pelo ordinário, a repetição é trazida pelo insubstituível e pelo notável, meio pelo qual se insere a diferença. Quando se eleva a singularidade à ordem do pensamento, propõe-se pensar a diferença pura. Desta forma, falar de uma filosofia da diferença a partir de Deleuze é pensar a relação do diferente com o diferente, não em relação a uma identidade pré-estabelecida, mas como diferença em si mesma. Estamos a falar que “de uma lógica do ser e do saber, a filosofia tende rumo a uma lógica da relação e da crença.” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 30), na qual não se concebe a diferença como “falta de”, ou em “relação a”, mas como uma diferença positiva presente em todos os seres. “Para ele [Deleuze], não existe um ser, mas múltiplos seres. Assim, unívoco quer dizer, especificamente, uma ‘só voz’ para toda uma multiplicidade de seres. Em outras palavras, todos se ‘dizem’ da mesma maneira, isto é, em sua própria diferença.” (SCHÖPKE, 2004, p. 15). Desse modo: Se a univocidade do ser implica que os entes só se distinguem pelo grau de potência, e se esse grau de potência, antes de comparar a outros, está inicialmente submetido à jurisdição de uma prova intrínseca, na qual ele só se mede a si mesmo (ir ao extremo do que se pode – de modo que a opressão consiste menos em sofrer o jugo do mais potente do que em ser “separado do que se pode”, inapto, assim, a exercer qualquer resistência), então um ente só se deixa definir da declinação singular de seus afetos (mais do que pelo gênero e diferença específica); e essa ontologia evanescente, que só conhece devires, acoplamentos transversais ou desvios mútuos, coincide com a descrição de um campo de experiência liberto da tutela do sujeito (pois ninguém sabe de antemão “o que pode um corpo”). Efetua-se aí, igualmente, a passagem de um regime do sentido próprio e da metáfora regrada a um regime da “literalidade” anárquica, na qual, de direito tudo se comunica com tudo. (ZOURABICHVILI, 2016, p. 31). Portanto, ao falarmos de um regime no qual tudo se comunica e se relaciona com tudo, deparamo-nos com a possibilidade de relações inéditas e problemáticas no campo das experiências, que nos permitem um recorte no caos, de modo a produzir signos que, por sua vez, nos levam além da reprodução, nos levam a conceber o pensamento como criação. Por sua vez, o modo representativo trata da produção de imagens e modelos que são tomados como apreensão do mundo. Todavia se trata, na verdade, apenas de um conhecimento parcial, já que se restringe à busca das semelhanças, confundindo pensar e reconhecer, e rejeitando a diferença. Nesse sentido, “o conceito é o instrumento, por excelência, da generalidade e, por isso mesmo, abarca sob um mesmo signo todos os objetos que se assemelham, ficando a diferença aí anulada em sua força singular.” (SCHÖPKE, 2004, p. 41). A este modo de captura da diferença chamamos de diferença conceitual. É ela que faz com que a diferença possa ser pensada, não em sua forma pura, mas representada, já que só a 16 representação, imagem ou modelo, é que pode ser pensada segundo a recognição. Estabelece- se, então, a confusão entre o conceito de diferença e a diferença conceitual, a qual seleciona quais diferenças podem ser inscritas no conceito em geral, de modo a torná-las predicativas. Pensar a diferença trata-se, então, de se opor não só às generalidades do hábito, mas também às particularidades da memória, à reminiscência e à recognição, romper com uma forma de pensar estática e inserir nela o devir. Passar da mediação para os atos imediatos, em que a representação e a mediação são ultrapassadas, abrindo-se a possibilidade de um pensamento criativo. Não mais imitar, reconhecer, explicar; mas pensar e interpretar. Portanto, trata-se de substituir a representação por signos diretos, que são os únicos que nos permitem sair da inércia da representação. A reprodução do Mesmo não é um motor dos gestos. Sabe-se que até mesmo a mais simples imitação compreende a diferença entre o exterior e o interior. Mais ainda, a imitação tem apenas um papel regulador secundário na montagem de um comportamento, permitindo não instaurar, mas corrigir movimentos que estão sendo feitos. A aprendizagem não se faz na relação da representação com a ação (como reprodução do Mesmo), mas na relação do signo com a resposta (como encontro com o outro). (DELEUZE, 2006, p. 48). Face ao exposto, pensamos que os currículos estão mais alinhados ao modo representativo. Enquanto a aprendizagem posta pelos currículos representativos são da ordem da lei que compreende como semelhantes aqueles a ela submetidos, por sua vez, “a aprendizagem torna-se, em Deleuze, o modelo de toda experiência, uma vez que ela se confunde com a inventividade do desejo.” (ZOURABICHIVILLI, 2005, p. 1310). Outro ponto que nos parece ser importante pensar neste momento é a forma pela qual se organiza o currículo, fruto de um pensamento estrutural, representativo e que se pretende Uno. Isto é, “uma imagem de pensamento arborescente, segundo Deleuze e Guattari (1995a), dá forma a este modo de pensar o aprender pelo reconhecimento.” (ELIAS; AXT, 2004, p. 25). Gallo também concebe este modelo de educação pelo reconhecimento como reflexo de um modelo arborescente. Como ele mesmo aponta, esta imagem já havia sido exposta por Descartes como modelo para representar o conhecimento. Nesse pensamento, as raízes da árvore representariam o mito, como conhecimento originário; o tronco representaria a filosofia, que dá consistência e sustentação para o todo; os galhos, por sua vez, representariam as diferentes disciplinas científicas, que se subdividem em inúmeros ramos. Interessante notar que a imagem da árvore, por mais que dê vazão ao recorte, à divisão e às subdivisões, remete sempre de volta à totalidade, pois há uma única árvore, e para além do conhecimento das partes, podemos chegar ao conhecimento do todo, isto é, tomando distância podemos ver a árvore em sua inteireza. (GALLO, 2007, p. 3). 17 Da mesma forma, um currículo pensado em um modelo arborescente é aquele no qual um conhecimento se torna fundamento para o outro, como pré-requisito, de maneira hierarquizada, e que de alguma forma pressupõe uma ligação necessária entre eles. Trata-se, portanto, de um currículo-árvore, que busca refletir uma imagem do mundo, pressupondo uma unidade, que como veremos é artificial e exclui a multiplicidade. Utilizando aqui alguns termos da botânica, também usados por Deleuze, fazemos uma pequena distinção entre dois tipos de raízes: a raiz-pivotante e a raiz-fasciculada. A primeira corresponde a um tipo em que facilmente se identifica uma raiz principal; já a segunda diz respeito àquelas entre as quais, em meio a uma ramificação, não é possível distinguir uma que seja a principal. De toda forma, o que nos interessa aqui é compreender que ao falar de um pensamento arborescente estamos falando de um pensamento que se pretende enraizado, ou seja, pensamento do fundamento e da profundidade, e que a partir de seus pressupostos constitua-se uno. Todavia, “há uma posição filosófica que ousa investir no contrário, isso é, afirmar que a realidade é multiplicidade, é diferença. No século vinte, Deleuze foi um dos filósofos a investir nessa posição.” (GALLO, 2007, p. 5). Com Deleuze, entendemos que “o pensamento não é arborescente” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 34), ele é antes erva daninha, que cresce nas frestas e nos lugares indesejados. Dentro de um projeto de pensar a diferença, como delineou-se acima, temos que o modo arborescente é ainda marcado pela generalidade, como estrutura que opera como sobrecodificação do pensamento, limitando as linhas de fuga e de desterritorialização. “Não se sai, assim, do modelo representativo da árvore ou da raiz-pivotante ou fasciculada.” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 29). Assim, em termos de conhecimento, não há uma fragmentação artificial da unidade que precisa ser resgatada, mas é a unidade que é artificial, uma fábula criada por nossas ilusões. Em termos de currículo, não há “religação dos saberes” a ser perseguida, pois não há como “religar” o que nunca esteve ligado. Ao contrário, o que precisamos buscar são formas de diálogo na diferença, diálogo na multiplicidade, sem a intenção de reduzir os diferentes ao mesmo, ao uno. (GALLO, 2007, p. 6). Temos, então, que o currículo não cumpre seu objetivo quando se pretende uno, já que não é possível conquistar esta unidade, uma vez que só há multiplicidade. Pensar um pensamento não enraizado inclui envolver-se da multiplicidade: “uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza.” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 23), o que não é 18 possível fazer a partir de um modelo, mas somente por um processo de mapeamento, ou seja, de experimentação. Entretanto, “toda lógica da árvore é uma lógica de decalque e da reprodução” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 29). De modo tal que fazer currículo é fazer decalque, estruturar um mapa, transformar rizoma em raiz. Disso decorre uma experiência de aprendizagem que se considera ideal, generalizada, a qual toma o diferente pelo mesmo, decalcando o mapa de uma experiência singular. Todavia, não é exato que um decalque reproduza o mapa. Ele é antes como uma foto, um rádio que começaria por eleger ou isolar o que ele tem a intenção de reproduzir, com ajuda de meios artificiais, com a ajuda de colorantes ou procedimentos de coação. É sempre o imitador que cria seu modelo e o atrai. O decalque já traduziu o mapa em imagem, já transformou o rizoma em raízes e radículas. Organizou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos de significância e subjetivação que são os seus. Ele gerou, estruturalizou o rizoma, e o decalque já não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa. (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 31) Em algumas correntes curriculares se elege uma raiz principal, o aluno ou o conteúdo, e a partir dela se elabora o planejamento dotado de raízes secundárias, em que a pretensa unidade é bastante explícita. Ou, ainda, propostas de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade que, vislumbrando o uno, afirmam-no perdido em um modelo de currículo divido em disciplinas, mas que alegam ser capazes de poder reavê-lo. Ainda estas são uma forma de currículo-raiz, raiz-fasciculada, mas raiz. São pseudomultiplicidades arborescentes, que se pretendem pôr como imagem para a teoria curricular. “Toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação. Os abortadores da unidade são aqui fazedores de anjos, doctores angelici, posto que eles afirmam uma unidade propriamente angélica e superior.” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 21). Parafraseando Deleuze e Guattari: “Estamos cansados de árvores” (2011, p. 34), afirmamos que estamos cansados de currículos. O modo representativo do currículo é aquilo que queremos combater, e não ratificar, ou fazê-lo melhor. E não se trata de propor outro modelo, já há modelos demais. Temos então que: Uma das coisas mais fascinantes e mais difíceis de fazer na pesquisa em educação talvez seja, mesmo, multiplicar as formas de conexão, de linguagens, de abordagens. Subtrair, de um conjunto dado, a unidade que o totaliza, aquilo que vem territorializando as forças que movimentam seu campo de investigação e a própria pesquisa em educação. (OLIVEIRA; PARAÍSO, 2016, p. 163). 19 Cumpre-nos, portanto, inventariar algumas tentativas de composição entre Deleuze e o currículo. A partir desta proposta de pensar possibilidades para o currículo a partir do pensamento deleuzeano, encontramos autores como Silvio Gallo (1995, 2002, 2007), Kaustuv Roy (2002), Tomaz Tadeu (2002), Sandra Corazza (2002), entre outros. Alguns dos quais inventariamos aqui, como forma de adentrarmos a discussão e conhecermos algumas experiências de currículo. Silvio Gallo, a quem já nos referimos anteriormente, dentre outros temas no campo da educação, participa também de pesquisas sobre o currículo. Dentre suas diversas contribuições, além do conceito de educação menor, o conceito de transversalidade nos parece relevante. Posta a discussão, anteriormente apresentada, de conceber a educação segundo um modelo arborescente, o autor expõe ainda a problemática da disciplinarização: “uma vez que modernamente o conhecimento tenha sido produzido de forma compartimentalizada, novos saberes acabam já circunscritos a tal ou qual compartimento, ou mesmo ensejando novos compartimentos.” (GALLO, 1995, n.p.). O que nos leva a pensar o advento de propostas de reunificação, como são as interdisciplinaridades já apresentadas. A resposta de Gallo (1995, 2007) se dá ainda em uma outra imagem para o currículo, a do rizoma, que substitui a arborescente; e a transversalidade, que se opõe à verticalidade da árvore e à horizontalidade da interdisciplinaridade. Roy (2002), por sua vez, pensa um currículo que abandona as relações óticas em favor de um espaço háptico. A opção por um espaço háptico implica em ver as coisas de perto, o que é óptico se transforma em “tátil”. Diferentemente do espaço óptico, que é marcado por uma teleologia, o espaço háptico está aberto ao inesperado, ao impensável, à criação. Um currículo que se dá em espaço háptico é aquele que está disposto a produzir encontros, espaço do acontecimento e do sentido, enquanto o óptico é o modelo da representação e da identidade. “Nessa rede de proximidades, observador e observado estão em estreito contato, que chega a ser de fusão, não no sentido de produção de uma identidade entre eles, mas no sentido de produção de novas multiplicidades.” (ROY, 2002, p. 98). A partir desta diferenciação, entendemos que o “pensamento curricular convencional, podemos dizer que, em geral, tem sido governado pela opticidade.” (ROY, 2002, p. 101). E isto se dá principalmente por duas razões: em primeiro lugar, ao reproduzir a crença na competição individual como o principal meio de devir nas sociedades modernas, as práticas curriculares, ao invés de tentarem imaginar as possibilidades de um espaço diferente, têm contribuído para construir um 20 espaço no qual a exploração eficaz da atual perspectiva tem sido o objetivo principal; em segundo lugar, os objetivos de aprendizagem têm permanecido estranhos aos reais processos da própria aprendizagem, o que se expressa em uma demanda obsessiva por um processo de medição e avaliação que é concebido de forma separada da aprendizagem. (ROY, 2002, p. 101). Este currículo, que se dá no espaço óptico, tem se limitado a uma missão de reproduzir o já conhecido, numa fragmentação entre o observador e o observado, entre o professor e o aluno, entre o conteúdo e a vida, operando de modo a tapar as brechas, desejáveis num espaço háptico, e rejeitadas pelos currículos convencionais. Roy busca fazer com que, a partir do encontro do currículo com Deleuze, as rachaduras não sejam mais fechadas, mas sim que se permita, por meio delas, que o devir se insira no contexto educacional, transformando relações visuais em táteis. Neste espaço tátil, parece-nos muito potente a substituição do verdadeiro pelo notável, pelo interessante ou pelo importante, como já apontava Deleuze (1997), de modo a propor uma educação que instigue o aluno a desejar o objeto de estudo, como um dos elementos que nos parecem apropriados para um currículo menor. Para além do conteúdo essencial, um currículo do conteúdo importante, não para o mercado, mas para o próprio aluno. Isto é trazido por Tadeu (2002), o qual busca compor um conceito de “professor’ que não está preocupado com o ensinar (que ainda se encontra muito ligado à ordem da representação), mas com o aprender, que por sua vez se liga à ordem pensamento. Um professor que, antes de mais nada, tem horror à pedagogia da pergunta da resposta na manga. Um professor que não tem menos horror a uma pedagogia da solução de problemas. Em vez disso, um professor da pedagogia do problema que é a pedagogia do pensar. Mas não o pensar entendido como a boa conduta do raciocínio, como a regra do bem-pensar. Todo homem é mortal, etc. O princípio do terceiro excluído. Se A, então B. O cálculo das proposições. Falso e verdadeiro é igual a falso etc. Nada disso. O pensamento, nessa pedagogia, tem pouco a ver com aquilo que já tem forma. Tem tudo a ver, por outro lado, com aquilo que, em uma zona que não é a da atualização, das coisas já determinadas e já formadas, faz saltar o impensável. (TADEU, 2002, p. 49). Esta falta de preocupação com o ensinar, não tem “Nenhum parentesco, aqui, com o bom-mocismo ou o cristianismo das pedagogias do diálogo, da comunicação, do ‘ninguém ensina ninguém’, etc.” (TADEU, 2002, p. 49). O que se busca é evidenciar que o pensamento, apresentado como movimento problemático das ideias que acontece por encontros fortuitos, é sempre fruto de uma violência, de um encontro com um signo que violenta o pensamento e o força a pensar; e se pensar é criar, trata-se de pensar o impensável, o que ainda não foi pensado. 21 Como bons alunos do professor Deleuze, nós não somos representacionistas, mas construcionistas [...] Um construcionista tem que acreditar em mundos co-possíveis. Não se trata de descrever o mundo, mas um mundo. Como numa ficção científica: desenvolver todas as implicações do "se ... " pra ver no que vai dar. (TADEU, 2002, p. 53). Ao se traçar características de um professor que permite aprender, e não ensinar, tem-se o professor do “faça comigo”. Não o professor que apresenta uma imagem do mundo e que leva os alunos a reproduzi-la, mas o professor que esteja disposto a criar o mundo, que permita interpretar os acontecimentos, que faça da sala de aula lugar de interpretação da vida, contra as limitações impostas pelo próprio currículo. Por meio deste ambiente de encontro, há o abandono de um modo de pensar e de fazer. Já não se quer pensar as essências, mas o entre das relações, para depois pensar qual a potência destes encontros; não mais em relação a critérios transcendentes, mas em relação à essa potência, definir se são bons ou maus encontros. Portanto, pensar o currículo a partir da sua potência de aumentar ou diminuir a nossa capacidade de vida e de aprendizado. Aqui já não se quer pensar o currículo como o modelo de uma educação maior, nem operá-lo a fim de delimitar conteúdos, métodos de transmissão, meios de avaliação etc., pois “Não se trata, como na ciência, de controlar a vida nem de prevê-la, mas de inventá-la.” (TADEU, 2002, p. 56). Pois o currículo já “Não se trata apenas de uma questão de soma, mas de encontro ou de composição. Não apenas a simples justaposição assinalada pela conjunção ‘e’, mas a complexa combinação implicada pela partícula ‘com’. ‘Isto e aquilo’ é bom, mas ‘isto com aquilo’ é ainda melhor.” (TADEU, 2002, p. 56). Isto é, se isso ainda é um currículo. Além destas proposições a partir da influência de Deleuze na concepção de currículo, Tomaz Tadeu da Silva é um dos pioneiros desta articulação e possui vasta obra sobre o tema. Como exemplo citamos: “O currículo como fetiche: A poética e a política do texto curricular” (2001), “Documentos de identidade: Uma introdução às teorias do currículo” (2010), “Currículo e cultura: uma visão pós-estruturalista” (1997), e “Identidade e diferença: impertinências” (2002). Destacamos, ainda, Sandra Mara Corazza, que também possui vasta produção sobre currículo e filosofia deleuzeana, dentre as quais citamos; “O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação” (2001), “Currículos alternativos-oficiais: o(s) risco(s) do hibridismo” (2001), e “Diferença pura de um pós-currículo” (2002). Aqui destacamos um artigo de Corazza (2002), “Noologia Do Currículo: Vagamundo, O Problemático, E Assentado, O Resolvido”. Nele, o inimigo para Corazza é um currículo assentado sobre o dogmatismo das políticas curriculares, dos currículos já desenvolvidos e dos 22 aparatos culturais. O embate se dá por meio do estudo da imagem do pensamento presente na teoria curricular, que ela intitula de noologia do currículo. Esta imagem assentada se apresenta como uma imagem universal, que define matéria e forma, conteúdo e método. Opera codificando e descodificando o pensamento do currículo, e apesar de querer se mostrar como resistência, se trata apenas de uma resistência institucionalizada e regrada, já que as suas operações são hierarquizadas e métricas. Posto isto, para a autora, na passagem de uma vertente para a outra, entre o currículo do “pensar-verdadeiro” e este outro currículo, inevitavelmente haverá uma fissura, espaço este em que é possível o “pensamento-acontecimento”, que não é capturado pela imagem assentada, mas que se constitui como um pensamento sem imagem. É esse pensamento acontecimento que faz com que surja o “currículo-vagamundo”. Esta “vagamundagem” é possível quando se desestrutura o núcleo do currículo tradicional: da potência extrínseca de surgir em qualquer ponto e de traçar qualquer linha, ele está sempre às voltas com forças exteriores de experimentações e intensidades, velocidades e lentidões do pensamento do Fora, não de um fora refletido ou representado no pensamento, mas dum outro do pensamento, como uma violência que se abate destrutiva sobre os saberes já sabidos ou já consolidados, como um estranhamento recíproco entre o pensamento racional e a realidade do objeto expresso, e que irrompe nas águas mansas da sabedoria adquirida, de modo involuntário, imprevisto, incompreensível e inassimilável. (CORAZZA, 2002, p. 133). Trata-se, portanto, de um rompimento com aquilo que é valioso para o currículo assentado – planos homogêneos, métodos, objetivos, projetos, didática, avaliações –, uma vez que estes elementos se assentam sobre os pressupostos do bom senso e do senso comum. E assume-se como elemento de um currículo a versatilidade, que traça percursos à medida que os percorre, em constante movimento, sem uma linha de chegada. Não que tenha interesse em tomar o poder simplesmente substituindo o assentado, o que interessa é justamente estar neste lugar de rejeição. É neste jogo, de tentativa de captura da “vagamundagem” pelo assentado e capacidade de esquiva de um “currículo-vagamundo”, que a potencialidade deste último se manifesta. Ele “é projetivo e é projétil, projeta armas para rasgar o equilíbrio e ferir a conservação dos Assentados.” (CORAZZA, 2002, p. 135). Corazza identifica, neste “currículo-vagamundo”, uma ciência menor, marcada por um conjunto de singularidades e agenciamentos, que até se constituem como disciplinas, mas que coexistem, rompendo fronteiras. Trata-se de um currículo rizomático, inventivo, de infinitas conexões variáveis, e não convencionadas como no Assentado. 23 Um Eros curricular-vagamundo promove a sua ciência como descarga rápida da emoção, múltipla e heterogênea, oposta às bagagens culturais, aos conhecimentos estáveis, aos valores eternos, aos sujeitos idênticos, às essências constantes dos Assentados. Trata-se de um modelo científico afectivo, inseparável das gerações e criações, inimigo da ordem das razões. (CORAZZA, 2002, p. 136). Outra característica que merece destaque é a pretensa neutralidade do Assentado, que inexiste no “Vagamundo”. Este tem na intervenção no mundo a sua produção, como inventivo que é, inventa problemas mais do que dá soluções. Currículo que não define de antemão como se aprende, até porque não se sabe como aprender, prefere ser ignorante. Não quer transmitir saberes, transmitir conteúdos objetivos, não deseja assimilações, não é soberbo a ponto de dizer “faça como eu”. Currículo do “faça comigo”. Assim se constitui uma trama, um jogo, em que o “Vagamundo” cria problemas e o Assentado apressa-se em resolver. Há sempre uma tentativa de captura da “vagamundagem”, de submetê-la à identidade, de apreender as essências, de transmiti-las, representá-las. Mas, mesmo que se tape um buraco aqui, ele se abrirá acolá. A “vagamundagem” transborda toda tentativa de aprisionamento, pois é própria da experiência de aprender, e ainda que não se saiba, ela está lá. Ainda há outros autores. Citamos por exemplo: Clermont Gauthier (2002), Jacques Daignault (2011, 2008), Wen-song Hwu (1993); entre os brasileiros, Carlos Ferraço (2017), Marlucy Paraíso (2004, 2012,) Antônio Carlos Amorim (2006), Alfredo Veiga Neto (2002, 2017). Portanto, não há, por assim dizer, uma raridade neste encontro entre Deleuze e o currículo. O filósofo francês vem sendo pontualmente buscado como referencial teórico neste campo, tal qual evidenciou Lou Guimarães Leão Caffagni (2017), na tese intitulada “Entre Deleuze, Guattari e o currículo: uma cartografia conceitual (2000-2015)”, quando mapeou os artigos publicados tendo esses filósofos por referenciais. No trabalho em questão, Caffagni (2017, p. 85) apresenta o número de publicações em periódicos de Educação avaliados com Qualis A1 e A2 que tomam Deleuze e Guattari como referencial teórico, entre os anos de 2000 e 2015, evidenciando a relevância destes pensadores para o campo da Educação. 24 Gráfico 1 – Artigos publicados por ano Fonte: Caffagni (2017) Outro dado relevante da pesquisa de Caffagni (2017, p. 89) é a divisão temática desses artigos publicados, na qual se observa que o currículo é tema recorrente, contando com 81 publicações no período analisado, correspondendo a mais de 18% do total de publicações, ocupando o quarto lugar entre os assuntos mais abordados. Quadro 1 – Distribuição dos artigos por tema Fonte: Caffagni (2017) 25 Por fim, traçado alguns dos nossos pontos de entrada, passamos ao corpo desta pesquisa. E “como escrever senão sobre aquilo que não se sabe ou que se sabe mal?” (DELEUZE, 2006, p. 18). Esta é a pergunta posta por Deleuze e é a isto que nos propomos nesta pesquisa. Desse modo, na tentativa de traçar uma solução para o problema da generalidade e do modo arborescente e maior manifesto nos currículos, esta dissertação foi desenvolvida em três capítulos, tendo respectivamente por temas: o currículo e o seu desenvolvimento histórico; a imagem dogmática do pensamento e as relações proposicionais que dela decorrem, bem como alguns apontamentos para um pensamento sem imagem; e, por fim, as possibilidades de pensar a educação e a desterritorialização do currículo a partir de uma concepção menor da educação. De início, no primeiro capítulo, pareceu-nos relevante compreender do que se fala ao se falar do currículo, uma vez que se trata de um conceito polissêmico. Do mais, apresentamos as diferentes perspectivas de propostas curriculares, não obstante a semelhança das estruturas e dos modos de ação, e o desenvolvimento dos estudos acerca do tema no campo brasileiro, a fim de bem situar a filiação teórica desta pesquisa. Findamos este primeiro capítulo problematizando o currículo como baliza da prática educadora. O segundo capítulo, por sua vez, trata de traçar um percurso no pensamento deleuzeano identificando como se estrutura uma imagem dogmática do pensamento. Nesse sentido, elegemos quatro obras escritas por Deleuze na década de 1960 que, direta ou indiretamente, desenvolveram um dos temas mais caros a este filósofo, o pensamento. Estas obras são: “Nietzsche e a filosofia”, publicado originalmente em 1962; “Proust e os signos”, obra de 1964; “Diferença e repetição”, publicado em 1968; e “Lógica do sentido”, um ano mais nova que esta última. Neste capítulo, buscamos evidenciar algumas relações possíveis entre a análise do pensamento que Deleuze desenvolve e a Educação, mais especificamente se elas são úteis ao estudo do currículo. Destacam-se a exposição das relações proposicionais e como a transmissão de conteúdos no processo de ensino aprendizagem se estrutura através delas, priorizando, por fim, as contribuições que a quarta relação, a relação de sentido, pode ter neste processo. No último capítulo da pesquisa, buscamos articular elementos da filosofia deleuzeana na busca de engendrar uma solução para os problemas observados no currículo erigido sobre modelo representacional de educação. Esta solução passa pelo conceito de rizoma e pela ideia de mapas, que são possíveis a partir das experiências e dos signos que as brechas de um currículo em ação promovem. Por fim, acompanhando o projeto deleuziano de repensar a forma com que se cria o pensamento, temos por objetivo repensar o processo educativo apresentado nos currículos 26 educacionais, desterritorializando o currículo, subvertendo o senso comum e o bom senso em um processo de criação, promovendo uma minoração da educação. 27 1. O CURRÍCULO Iniciamos definindo nosso objeto de estudo, ou seja, o currículo. Como afirma Tomaz Tadeu da Silva (2010, p. 14): “Todo livro de currículo que se preze inicia com uma boa discussão sobre o que é, afinal, o currículo”. Embora não se trate de um livro propriamente dito, faz-se imprescindível uma definição. Assim sendo, partiremos de uma definição habitual, que, todavia, se demonstra restritiva, a qual caracteriza o currículo como: O elenco e sequência de matérias ou disciplinas propostas para todo o sistema escolar, um ciclo de estudos, um nível de escolaridade ou um curso, visando a graduação dos alunos nesse sistema, ciclo, nível ou curso. O currículo (nesta acepção) confunde-se com “plano de estudos”, consistindo num conjunto estruturado de matérias de ensino com peso relativo diverso, que se traduz, concretamente, na distribuição variada de tempos letivos semanais ou de “unidades de crédito” a cada uma das disciplinas que fazem parte de tal plano de estudos. Neste sentido se fala, por exemplo, do currículo do ensino secundário, do 1º ciclo do ensino básico ou do curso de economia. (RIBEIRO, 1990, p. 11, apud BIANCHI, 2001, p. 34). Tomas Tadeu da Silva (2001, p.13) manifesta-se de modo semelhante sobre o currículo tradicional, ao afirmar que se trata de um conjunto de conteúdos selecionados e que devem ser transmitidos aos alunos: O currículo é pensado como um conjunto de fatos, de conhecimentos e de informações, selecionados do estoque cultural mais amplo da sociedade, para serem transmitidos às crianças e aos jovens nas escolas. Na perspectiva convencional, trata- se de um processo nada problemático. Esta definição inicial se baseia meramente na definição dos conteúdos a serem ensinados, dividindo-os de acordo com as etapas e séries. Assim está delineada uma das principais características do currículo, sua preocupação em definir conteúdos, sendo que esse processo de escolha pode se basear em diversos critérios, sejam eles de desenvolvimento de necessidades básicas, de necessidades do mercado, de desenvolvimento de uma reflexão crítica, conteúdos entendidos como clássicos ou essenciais, entre outros. Uma definição um pouco mais ampla é dada ao incluir-se a experiência da criança nessa interação com o conteúdo selecionado, e é o que apresenta Pinar (2004, p. 20, tradução nossa): A teoria curricular é, então, o campo interdisciplinar comprometido com o estudo da experiência educacional, especialmente (mas não apenas), pois essa experiência é 28 codificada no currículo escolar, ela própria uma estruturação altamente simbólica e institucional da experiência educacional (potencialmente).1 Entendemos que tais definições são insuficientes, principalmente por se limitarem ao ambiente escolar, deixando de evidenciar os demais condicionamentos que estão relacionados ao processo de desenvolvimento dos currículos. Nesse sentido caminha a proposta de José Gimeno Sacristán (2000, p. 34): Propomos definir o currículo como o projeto seletivo de cultura, cultural, social, política e administrativamente condicionado, que preenche a atividade escolar e que se torna realidade dentro das condições da escola tal como se acha configurada… se nutre dos conteúdos que compõe os currículos; mas a concretização qualitativa do mesmo não é independente dos formatos que o currículo adota nem das condições nas quais se desenvolve. Tem-se, ainda, que ele é o instrumento pelo qual se organiza o processo educacional, desde a limitação de conteúdos e metodologias, até especificações do contexto escolar. “Por isso, o interesse pelos problemas relacionados com o currículo não é senão uma consequência da consciência de que é por meio dele que se realizam basicamente as funções da escola como instituição.” (SACRISTÁN, 2000, p. 17). Desse modo, temos esquematicamente que: Figura 1 – Esquema de currículo Fonte: (SACRISTÁN, 2000). 1 Para a consulta ao texto em inglês, leia-se: “Curriculum theory is, then, that interdisciplinary field committed to the study of educational experience, especially (but not only) as that experience is encoded in the school curriculum, itself a highly symbolic as well as institutional structuration of (potentially) educational experience.” 29 A seleção cultural aqui apresentada consiste em mais do que a seleção de conhecimentos elaborados, mas “costuma refletir um projeto educativo globalizador, que agrupa diversas facetas de cultura, do desenvolvimento pessoal e social, das necessidades vitais dos indivíduos para seu desempenho em sociedade” (SACRISTÁN, 2000, p.55), e estes elementos selecionados se unem à “peça” de conteúdos do currículo. Tal seleção é feita a partir de quatro características, sendo a primeira delas o consenso em relação ao conteúdo selecionado para o currículo; a segunda consiste na crença de que a natureza da cultura geral e do conhecimento escolar sejam a mesma, diferenciadas por grau e quantidade; a terceira é a passividade do aluno frente ao conhecimento que lhe deve ser transmitido; e por fim o caráter estático destes elementos, uma vez que são dissociados do seu processo de produção. Nessa perspectiva, o trabalho incerto e indeterminado da linguagem e da cultura, o processo aberto e vulnerável da criação simbólica, tende a ser fixado, imobilizado, paralisado. A prática humana de significação fica reduzida ao registro e à transmissão de significados fixos, imóveis, transcendentais. (SILVA, 2001, p. 15). Por sua vez, as concepções curriculares são orientações teóricas que definem posições filosóficas, epistemológicas, pedagógicas, científicas e valores sociais, a fim de orientar a prática docente e o processo de ensino-aprendizagem. Este movimento de concepções curriculares tem se desenvolvido de forma bastante complexa, sobretudo a partir da década de 1970, incluindo cada vez mais visões filosóficas e epistemológicas, como veremos a frente. Por “códigos” compreende-se os “elementos que dão forma ‘pedagógica’ aos conteúdos, os quais, atuando sobre alunos e professores, acabam modelando, de alguma forma, a prática.” (SACRISTÁN, 2000, p. 75). Eles são derivados das opções políticas e sociais, das concepções epistemológicas e dos princípios pedagógicos, portanto, derivados das concepções curriculares que tiveram influência sobre aquele determinado currículo. Esta seleção do que virá a compor os currículos é feita por órgãos que detêm o poder de decisão a respeito de tais temas, e é este elemento que chamamos de “condições institucionais”. São elas que definem a política curricular, estruturam o sistema educativo e organizam a escola. Porém, muitas das vezes, isso é feito de forma distante da realidade da escola e do contexto dos alunos. “Os mestres pensadores oficiais e oficialistas, instalados nos escritórios governamentais, nos institutos de pesquisa, na mídia, na academia, entregam-nos pronto e embalado o sentido e o significado do social, do político e do educativo: é o pensamento prêt- à-porter.” (SILVA, 2001, p. 9). Sacristán (2000, p. 9) corrobora tal afirmação, ao dizer que: “as 30 decisões sobre currículo têm sido patrimônio de instâncias administrativas que monopolizaram um campo que, nesta sociedade, sob a democracia, deveria ser proposto e gestionado de forma bem diferente da qual se tem conhecimento.” Nesse sentido, surge o que se chama de currículo oculto, como aquilo que não está posto nos planos e nos objetivos da escola, mas que se faz presente nas maneiras de ensinar, modelado a partir das condições institucionais próprias de cada escola, orientando a experiência de alunos e professores. Obviamente nem tudo o que acontece na escola pode ser controlado ou previsto pelas instituições que desenvolvem o currículo, todavia muitos dos resultados almejados não precisam estar explícitos por já fazerem parte de um discurso mais amplo e de um controle ainda mais abrangente que o próprio currículo e o próprio ambiente escolar (BIANCHI, 2001). O currículo oculto nas escolas serve para reforçar as regras que cercam a natureza e os usos do conflito. Estabelece uma rede de suposições que, quando interiorizadas pelos estudantes, determinam os limites de legitimidade. Esse processo é realizado não tanto pelos exemplos explícitos que mostram o valor negativo do conflito, mas pela ausência quase total de exemplos que mostrem a importância do conflito intelectual e normativo em áreas de conhecimento. [...] Pelo próprio fato de serem tácitas, de se fundamentarem não no topo, mas na base de nossa mente, aumenta sua potência como aspectos da hegemonia. (APPLE, 1982, p. 132) Sendo assim, o currículo oculto só tem valor dentro de um contexto particular, em condições reais, dentro do qual é possível identificar os pressupostos e os valores que estão atrelados ao ensino. Dessa forma, o currículo é construído sobre pressupostos, tanto do ponto de vista sociopolítico, quanto do ponto de vista técnico, ou seja, dos métodos e do conteúdo. E, portanto, [...] iniciar qualquer análise de escolarização, aceitando sem questionar – ou seja, como pressuposto – uma forma e conteúdo de currículos debatidos e concluídos e em situação histórica particular e com base em outras prioridades sociopolíticas, é privar- se de toda uma série de entendimentos e insights em relação a aspectos de controle e operação da escola e sala de aula. É assumir como dados incontestáveis a mistificação de anteriores episódios de controle. (GOODSON, 2013, p. 77). Posto isto, cabe questionar a composição curricular, de seus métodos até a seleção de seus conteúdos, uma vez que o modelo vigente reproduz o mesmo a bastante tempo, tomando- o como pressuposto. Para tanto, “não será fácil melhorar a qualidade do ensino se não se mudam os conteúdos, os procedimentos e os contextos de realização dos currículos.” (SACRISTÁN, 2000, p. 10). Note-se que é pelo currículo que se define o que é conhecimento válido, e quais devem ser retidos pelo aluno em um nível satisfatório. 31 A princípio, esta forma de composição curricular possui motivações nobres, tendo como intuito uma boa formação de cidadãos, com bons valores, com uma base de saberes úteis e uma pretensa emancipação: [...] atuando em espaços fechados, codificando e descodificando o pensamento do currículo, estriando-o com cintas, muros, aramados, tapumes, de modo que até pode ser compreendida e praticada como sendo de resistência contra a exploração de classe, o monoculturalismo, o fracasso escolar, a exclusão, as dominações de gênero e de raça, embora se trate apenas de uma resistência institucionalizada e regrada, já que suas operações são hierarquizadas e métricas, monopolizam um poder ou uma função. (CORAZZA, 2002, p. 132). Todavia, entendemos que este processo de institucionalização e de significação se corrompe em um processo de subjetivação que captura as singularidades, subjugando-as ao mesmo. Talvez seja este o intuito do currículo, exprimir-se em caráter normativo, negar as diferenças, formar uma identidade comum, formar cidadãos. Desse modo, constatamos que “Quando as formas tradicionais de conceber o conhecimento e a cultura entram em crise e são radicalmente questionadas, o currículo não pode deixar de ser atingido.” (SILVA, 2001, p. 12). Mas, perguntamo-nos: As diretrizes, por si só, são capazes de regular e fazer acontecer tal subjetivação? Não. É preciso mais um passo. A partir das orientações das instituições administrativas, são compostos os materiais didáticos e são estes o que de fato chegará ao aluno e ao professor. Os materiais didáticos são a encarnação das diretrizes definidas, que são transformadas em tarefas e divididas de acordo com os anos escolares. Não são apenas recursos para serem usados pelo professor e pelos alunos, mas passam a ser os verdadeiros sustentadores da prática pedagógica. Assinalam o que deve ser ensinado, dão ênfase a uns aspectos sobre outros, ressaltam o que deve ser lembrado ou memorizado, dirigem a sequência de ensino durante períodos longos ou mais curtos de tempo, sugerem exercícios e atividades para os alunos que condicionam processos de ensino, assinalam critérios de avaliação, etc. Observamos que neste modelo de ensino o professor adquire um papel secundário, como mediador daquilo que está selecionado e definido pelo material didático que lhe é dado. “Tendo como função básica a reprodução do saber, não pode participar da elaboração pedagógica do mesmo, pelo que se limita ou à dependência em relação a agentes exteriores que lhe dão modelado o currículo, ou a reproduzir o conhecimento por ele adquirido.” (SACRISTÁN, 2000, p. 96). Por sua vez, isto influencia a forma com que alunos e professores se relacionam com os conteúdos, e como aqueles se relacionam entre si. As atividades propostas são parte de um 32 núcleo geral, que não traduz a realidade própria daqueles alunos, mas que se apresenta como conteúdo necessário e de retenção obrigatória. Desse modo, não se pode dizer que a chance de êxito escolar se equipara a todas as realidades, quando o conteúdo diz respeito a algumas realidades e não a outras. Faz-se necessário, portanto, extrapolar os limites impostos, a fim de fazer do currículo um lugar de criação e de possibilidade do aprender. Desde sua gênese como macrotexto de política curricular até sua transformação em microtexto de sala de aula, passando por seus diversos avatares intermediários (guias, diretrizes, livros didáticos), vão ficando registrados no currículo os traços das disputas por predomínio cultural, das negociações em torno das representações dos diferentes grupos e das diferentes tradições culturais, das lutas entre, de um lado, saberes oficiais, dominantes e, de outro, saberes subordinados, relegados, desprezados [...] Mesmo que apareça em nossa frente como produto acabado, como matéria inerte, o currículo, como outros conjuntos de matéria significante, é submetido a um novo trabalho de significação, que só pode ser, outra vez, realizado no contexto de relações sociais. Essas relações sociais são necessariamente relações de poder. (SILVA, 2001, p. 22). Assim, tem-se que: Figura 2 – Desenvolvimento Curricular Fonte: (SACRISTÁN, 2000). Currículo Prescrito Currículo Apresentado aos professores Currículo moldado pelos professores Currículo em Ação Currículo Realizado Curriculo avaliado Campo econômico, político, social, cultural e administrativo Condicionamentos escolares 33 Então, temos o currículo prescrito que consiste na “sua própria definição, de seus conteúdos e demais orientações relativas aos códigos que o organizam, que obedecem às determinações que procedem do fato de ser um objeto regulado por instâncias políticas e administrativas.” (SACRISTÁN, 2000, p. 109). Ele é o que estabelece o mínimo que deve conter um currículo, encontrando uma expansão e uma melhor organização nas etapas seguintes. Já que as prescrições costumam ser genéricas, o currículo prescrito, antes de ser apresentado aos professores, deve ser desenvolvido, papel este que cabe, sobretudo, aos materiais didáticos, os quais foram aludidos acima. Na etapa seguinte o professor é, de fato, o elemento ativo desta estrutura, uma vez que é ele quem põe em ação o currículo. Dessa forma, cabe a ele a “tradução” do material didático dentro do contexto da sala de aula, sobretudo na elaboração do planejamento de aula, na linguagem adotada etc. Todavia, muitas vezes o professorado se abstém de seu poder de intervenção. De modo que “A ação numa sala é tão previsível, em certo sentido, como é a que ocorre numa sala de cirurgia ou em qualquer outro âmbito de ação regulado institucionalmente por padrões estabelecidos de profissionalização.” (SACRISTÁN, 2000, p. 210). O currículo em ação, por sua vez, é considerado o momento decisivo, para o qual o currículo foi pensado, pois é neste momento que se manifestam os espaços de decisão autônoma entre professores e alunos. Aqui se manifestam as experiências reais que os alunos têm em sala de aula, aqui acontecem as atividades que foram anteriormente planejadas a fim de preencher o tempo de aula, e é aqui que se expressam as intenções e os conteúdos do currículo. A prática, no entanto, é o momento de excelência de escape dos limites do currículo, pois é onde a multiplicidade se manifesta. É onde as limitações da escola, dos professores e alunos exigem que se manifeste o poder de criação, não permitindo que o currículo idealmente planejado seja perfeitamente reproduzido. O currículo realizado é a consequência da prática, que atinge seus efeitos nas mais diversas áreas, no campo cognitivo, afetivo, social, moral, entre outros. Entretanto, dentre os diversos efeitos da ação educadora, o considerado mais valioso é a aprendizagem, entendida, muitas vezes, como mera retenção de conteúdo. Evidencia-se isto nas avaliações que reiteradamente se restringem a este parâmetro. E, como última etapa, o currículo é avaliado, o qual embora: Mantenha uma constância em ressaltar determinados componentes sobre outros, acaba impondo critérios para o ensino do professor e a aprendizagem dos alunos. [...]. O controle do saber é inerente à função social estratificadora da educação e acaba por configurar toda uma mentalidade que se projeta inclusive nos níveis de escolaridade 34 obrigatória e em práticas educativas que não têm uma função seletiva nem hierarquizadora. (SACRISTÁN, 2000, p. 106). Entretanto, pensando na necessidade de uma formação que vise à inserção do aluno no mercado de trabalho, torna-se evidente que há a necessidade de uma formação básica que permita ao estudante a interação com novas tecnologias e suas rápidas evoluções, que desenvolva uma boa capacidade de comunicação etc.; não obstante o processo de educação escolar devesse dizer algo à realidade do aluno, o qual passe não apenas acumulando saberes, mas criando ideias e aprendizados. O fracasso escolar, a desmotivação dos alunos, o tipo de relações entre estes e os professores, a disciplina em aula, a igualdade de oportunidades, etc. São preocupações de conteúdo psicopedagógicos e social que têm concomitâncias com o currículo que se oferece aos alunos e com o modo como é oferecido. Quando os interesses dos alunos não encontram algum reflexo na cultura escolar, se mostram refratários a esta sob múltiplas reações. (SACRISTÁN, 2000, p. 34). Tudo isso deveria ser levado em conta na avaliação dos alunos, bem como na avaliação do currículo. Mas os critérios adotados desconsideram a percepção do aluno em relação ao conteúdo que foi transmitido, exigindo apenas que ele saiba, e se ele souber, a metodologia funcionou, os objetivos foram atingidos; e os conteúdos, a priori, são os necessários para aquele nível escolar. Pensando em elementos para uma mudança deste modo de pensar a educação, tem-se que “o desenvolvimento do saber em geral e o de cada campo especializado não supõe apenas o incremento quantitativo, mas também mudanças profundas nos paradigmas científicos e de criação que guiam a geração do saber, isto é, muda o conceito do que se entende por saber.” (SACRISTÁN, 2000, p. 70). O que implica, por sua vez, em um processo de desestruturação, questionando até mesmo os pressupostos, ou aquilo que se encontra aceito de forma tácita. Dessa forma, inclusive os saberes entendidos como clássicos, entendidos como valiosos ao longo da história, devem ter revista sua necessidade. Ora, se o currículo em certa medida se trata de uma seleção cultural, e sendo a cultura elemento em constante movimento, o currículo deve ser da mesma forma dotado de vida e dinamismo, de modo a manter a conectividade com o presente e com a vida daqueles que atinge. O modelo que estamos analisando se apoia em uma estrutura conceitual, que orienta os questionamentos propostos esperando resultados já antecipados, sendo estes correspondentes a generalizações amplamente aceitas, que geram assim um processo de memorização. Todavia, o processo de aprendizagem está muito além da memorização, consistindo na relação com o 35 outro, com a linguagem e com os signos, que são capazes de gerar significações próprias, ou sentido. Desta forma, identifica-se que “Boa parte de dificuldades no ensino provém de se pretender aproximar esses significados precisos à linguagem comum dos alunos, para que sua aquisição não resulte numa aprendizagem de memória.” (SACRISTÁN, 2000, p. 69). A aceitação de uma escola que ensina por memorização é explícita do modelo avaliativo, sendo que os resultados das avaliações são os principais quesitos para se atribuir sucesso, ou não, ao processo de ensino-aprendizagem. Tudo tem como objetivo um bom resultado nas avaliações, que, por sua vez, são uma exigência do controle sobre o processo escolar. Isto traz a ideia de que tudo deve ser avaliado e só é importante se expresso nestes resultados, o que em muito difere da vida em que as aprendizagens mais importantes não serão as expressas em resultados avaliativos. Dado o exposto até aqui, entendemos o currículo como este modelo que condiciona o ensino à reprodução de significados tidos como essenciais, manifestados através de materiais didáticos em atividades que, por sua vez, designam modos de relação social, tendo por objetivo a normatização de condutas dos alunos. Nota-se que este paradigma curricular se estrutura em uma linguagem representativa, que limita a capacidade criativa, proporcionando, assim, uma educação de reprodução de saberes, de transmissão de conceitos gerais, na tentativa de desenvolver uma boa conduta do raciocínio, pela busca do verdadeiro em detrimento do falso, adestrando o pensamento ao modelo da representação. O papel reprodutor do sistema educativo reside, em boa medida, na constância de uma série de padrões de comportamento, no quão estável são as situações de trabalho para professores e alunos; condições que contribuem para configurar atividades, formas de pensar e atitudes. Os estilos didáticos reproduzem, dessa forma, uma prática profissional e através desta os condicionamentos que dão significado ao currículo. Os conteúdos podem mudar, mas se mantém a estrutura da prática dentro da qual eles são transmitidos e aprendidos. (SACRISTÁN, 2000, p. 214). Portanto, pretendemos o rompimento com estes pretensos pressupostos, que viabilizam a reprodução de um saber pré-determinado para os alunos, de modo a não existir conteúdos desligados da experiência própria daqueles alunos, iniciando assim um processo criativo. “Na episteme moderna, é a relação entre os elementos, mais que sua identidade e diferença, que se torna importante. Com a episteme moderna, torna-se possível construir novos objetos de conhecimento, impossíveis de serem concebidos no espaço limitado da episteme da representação.” (SILVA, 2001, p. 42). Uma vez que: 36 os processos de aprendizagem dependem de fatores externos e internos escolares, anteriores e simultâneos a tal processo. Circunstância que explica por que as funções da educação escolarizada são mais amplas que as expressadas em qualquer currículo, por amplo que este pretenda ser: reprodução, seleção, hierarquização, controle, etc. (SACRISTÁN, 2000, p. 90). Este protagonismo do conteúdo frente ao processo de aprendizagem é o que nos parece equivocado. O saber escolar tem se distanciado da aprendizagem experiencial, que é substituída por um ritualismo vazio e obsoleto. Pois é justamente esta forma de organização que faz com que haja na educação uma negação da diferença. O saber se constitui objeto a ser transmitido a um sujeito-educando, e ponto. O professor é elemento mediador, enquanto o aluno é passivo neste processo. “A instituição escolar, enquanto máquina sedentária, racionaliza e codifica de acordo com um modo de pensar dominante. Isso significa que ela elabora um modelo global e homogeneizador do social, que se institui com a onipotência do logos.” (RIOS, 2002, p. 115). Ou ainda, “A educação obtura os acontecimentos, é o reino dos dualismos, dos modelos, da disciplina, do controle. Há muita história e pouca geografia em educação.” (KOHAN, 2002, p. 126). Esta forma de propor o currículo vem sendo bastante questionada, e têm surgido diversas formas de contorná-la. E nesta proposta de rompimento com este currículo homogeneizador, Deleuze ganha notória importância. Todavia, para falarmos de uma abordagem a partir da filosofia de Deleuze, faz-se necessário conhecer outras abordagens e o lugar histórico em que nos situamos. 1.1 Currículo: Diferentes perspectivas Nesta seção, mapearemos as principais abordagens sobre currículos, entendendo que é importante compreender os movimentos deste campo de estudo ao longo de sua breve história. Em efeito, os conflitos sobre a definição do currículo escrito oferecem a evidência palpável, pública e documental da perpétua luta sobre as aspirações e objetivos da escolarização. [...] Para o caso do currículo, a relação entre as definições anteriores e o presente potencial tem uma enorme importância para o estudo do currículo. (GOODSON, 1991, p. 7, tradução nossa).2 2 Para a consulta ao texto em espanhol, leia-se: “Em efecto, los conflitos sobre la defininición del currículum escrito ofrecen la evidencia palpable, pública y docccumental de la perpetua pugna sobre las aspiraciones y objetivos de la escolarización [...] Para el caso del currículum, la relación entre las deficiones anteriores y el potencial presente tiene uma enorme importância para el estúdio del currículum.” 37 A abordagem a respeito do currículo, como campo de estudo independente, surgiu no início do século XX e está dividida historicamente em diferentes perspectivas. Dentre elas destacam-se a perspectiva tradicional, a crítica e a pós-crítica. A teoria tradicional surgiu nos Estados Unidos com a expansão da educação escolar para um número maior de pessoas. Tal expansão exigiu uma preocupação com a organização, de forma a delimitar o que deveria ser ensinado, tendo como intuito uma escola eficiente. Destacam-se duas formas de abordagem: a primeira delas de cunho tecnicista e a segunda chamada progressivista. A abordagem tecnicista seguia um modelo industrial, estabelecendo objetivos e métodos para se chegar ao resultado desejado. Tem como marco inicial a obra “The Curriculum”, de John Franklin Bobbitt, publicada em 1918. Ele foi o responsável por pensar o currículo em termos de eficiência econômica, entendendo a escola como uma espécie de preparação para o que ele chamava de “mundo adulto”, do qual é necessário buscar as características desejáveis, e a partir delas construir um currículo, em uma visão utilitarista da educação. (SILVA, 2010; PINAR, 1995). Apesar de Bobbitt ter iniciado o campo de estudo sobre o currículo, encontramos sua melhor expressão no pensamento de Ralph Tyler (2013), que foi um grande influenciador da pesquisa brasileira (MOREIRA, 2012). Destaca-se sua obra “Basic Principles of Curriculum and Instruction”, que viria a ser conhecida como os princípios de Tyler. Estes princípios buscam responder a 4 perguntas. São elas: “1. Que objetivos educacionais a escola deve procurar atingir? 2. Quais experiências educacionais podem ser oferecidas para que seja possível atingir esses objetivos? 3. Como podem essas experiências educacionais serem organizadas de modo eficiente? 4. Como podemos determinar se esses objetivos estão sendo alcançados?” (TYLER, 2013, p. 1, tradução nossa)3. Dentre estas perguntas, sem dúvidas a mais importante para o desenvolvimento do currículo é a primeira, uma vez que é dela que decorrem as demais. Para Tyler, os objetivos devem ser definidos a partir de 3 fontes: “estudos sobre o aluno, estudos sobre a vida contemporânea e sugestões oferecidas pelos especialistas no conteúdo, bem como um relato de 3 Para a consulta ao texto em inglês, leia-se: “1. What educational purposes should the school seek to attain? 2. What educational experiences can be provided that are likely to attain these purposes? 3. How can these educational experiences be effectively organized? 4. How can we determine whether these purposes are being attained?” 38 como os dados provenientes dessas três ‘fontes’ devem ser ‘depurados’ através dos ‘crivos’ filosófico e psicológico.” (KLIEBARD, 2011, p. 25). Em seus estudos, Tyler (2013) coloca a educação como instrumento para a transformação do comportamento humano, em que os estudos sobre o aluno serviriam não para a partir deles definir os objetivos, mas ao contrário, para identificar o que precisava ser alterado no corpo de alunos para formatá-los aos padrões que se queria. Processo este que se dava em duas fases: “Primeiro, descobrir o status atual dos alunos e, depois, comparar esse status com normas aceitáveis, a fim de identificar as lacunas ou necessidades” (TYLER, 2013, p. 8, tradução nossa)4 Contrapondo-se a esta primeira abordagem, que tinha um claro objetivo de enquadrar o aprendiz na norma estabelecida, apresentamos a segunda abordagem que é chamada “progressivista”, tendo como principal expoente John Dewey (2002). Esta abordagem consistia na ideia do estabelecimento de diálogo entre aluno e professor a fim de selecionar o conteúdo a ser estudado, renunciando a objetivos prefixados, dando ênfase a uma formação moral, uma vez que entendia a escola como uma pequena sociedade. A crítica estabelecida pelo progressivismo à educação da época tinha como principais pontos: “o seu incentivo à passividade, a sua massificação mecânica das crianças, a sua uniformidade de programas e métodos de estudo. Aquilo que a caracteriza pode ser resumido se dissermos que o seu centro de gravidade é exterior à criança.” (DEWEY, 2002, p. 40). Dewey apresenta em sua obra “A Criança e o Currículo” uma tentativa de síntese entre estes termos (PINAR, 1995). Há uma busca por incorporar os desejos das crianças no currículo, contrapondo-se à posição utilitarista que o currículo vinha tomando. Acostumamo-nos às grilhetas que usamos e sentimos a sua falta quando são retiradas. É a velha história de que através do uso acabamos por aceitar o que de início tinha um ar desprezível. Desagradáveis, por falta de sentido, as actividades podem tomar-se agradáveis se nelas se persistir o tempo suficiente. A mente pode desenvolver um interesse por uma rotina ou um procedimento mecânico se forem continuamente dadas as condições que exigem esse modo de funcionamento e impedem qualquer outro. Ouço frequentemente serem defendidos e louvados artefactos estupidificantes e exercícios vazios porque “a criança adquire um tal ‘interesse’ por eles.” Sim, e isso é o pior; a mente, impedida de ter uma utilização com valor e de saborear um desempenho adequado, desce ao nível em que é tudo o que lhe resta saber e fazer e é forçada a ganhar interesse por uma experiência estreita e limitada. (DEWEY, 2002, p. 175). 4 Para a consulta ao texto em inglês, leia-se: “First, finding the present status of the students, and second, comparing this status to acceptable norms in order to identify the gaps or needs.” 39 Este teórico do currículo entendia que a experiência das crianças na escola deveria ser sempre ativa e não passiva. Para tanto, o ambiente escolar deveria ser um ambiente de exercício da democracia, por excelência, de modo que deveriam ser incentivadas a comunicação e a livre expressão de ideias. E assim a experiência desta escola democrática levaria à construção de uma sociedade também democrática: "Educação, portanto, é um processo para a vida futura." (DEWEY, 1964, p. 430 apud PINAR, 1995, p. 108, tradução nossa).5 A perspectiva tradicional do currículo não tinha preocupação com colocar questões sobre a organização social, ou mesmo questionar a função que a educação exerce na sociedade em que está inserida. Já, para a teoria crítica, que se desenvolveu nas décadas de 1970 e 1980, “o importante não é desenvolver técnicas de como fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo faz.” (SILVA, 2010, p. 30). Esta perspectiva tem como influenciadores Louis Althusser, Pierre Bourdieu, Christian Baudelot, Basil Bernstein, Michael Young, Michael Apple, entre outros. Nesta abordagem, compreende-se que a escola se constitui como um aparelho ideológico capaz de atingir muitas pessoas, por um longo período de tempo, atuando de modo a inclinar “as pessoas das classes subordinadas à submissão e à obediência, enquanto as pessoas das classes dominantes aprendem a comandar e controlar” (SILVA, 2010, p. 32). Fortemente influenciados por Marx, os teóricos críticos buscam entrecruzamentos da economia com o modelo escolar, uma vez que a escola é reflexo das relações sociais, com o intuito de fazer com que a escola seja um lugar para gerar consciência de classe. Nesse sentido, entendem que o currículo desempenha um papel importante, tanto para o estabelecimento da opressão quanto para a possibilidade de uma reforma. A estrutura das relações sociais na educação não apenas atrai o aluno para a disciplina do local de trabalho, mas também desenvolve os tipos de comportamento pessoal, modos de auto-apresentação, autoimagem e identificação de classe social que são os ingredientes cruciais da adequação ao trabalho. Especificamente, as relações sociais da educação – as relações entre administradores e professores, professores e alunos, e estudantes e estudantes e estudantes e seu trabalho - replicam as divisões hierárquicas do trabalho. As relações hierárquicas são refletidas nas linhas de autoridade verticais dos administradores aos professores e aos alunos. O trabalho alienado se reflete na falta de controle do aluno sobre sua educação, na alienação do aluno do conteúdo do currículo e na motivação do trabalho escolar através de um sistema de notas e outras recompensas externas, em vez da integração do aluno com o processo (aprendizado) ou o resultado (conhecimento) do “processo de produção” educacional. (BOWLES & GINTIS, 1976, p. 131 apud PINAR, 1995, p. 245, tradução nossa). 6 5 Para a consulta ao texto em inglês, leia-se: “Education, therefore, is a process preparation for future living.” 6 Para a consulta ao texto em inglês, leia-se: “The structure of social relations in education not only inures the student to the discipline of the workplace, but develops the types of personal demeanor, modes of self-presentation, self-image, and social class identifications which are the crucial ingredients of job adequacy. Specifically, the social relationships of education- the relationships between administrators and teachers, teachers and students, and 40 Para Bourdieu e Passeron (1975), a reprodução destas estruturas sociais passa por um processo de reprodução cultural, em que a reprodução da cultura dominante leva à manutenção destas estruturas. Portanto, o domínio do currículo, enquanto elemento de seleção da cultura a ser posta no ambiente escolar, também está submetido à lógica capitalista, na qual encontra sua plena realização dentro das condições específicas dos dominantes. Assim “fundamentalmente, sua proposta pedagógica consiste em advogar uma pedagogia e um currículo que reproduzam, na escola, para as crianças das classes dominadas, aquelas condições que apenas as crianças das classes dominantes têm na família.” (SILVA, 2010, p. 36). Ainda que seja possível identificar um determinismo nas ideias de reprodução da estrutura social e da cultura, elas tiveram forte influência no desenvolvimento das teorias críticas do currículo. A partir destas compreensões, desenvolveu-se o caráter conteudista do currículo, que sofreria com a desaprovação do próprio movimento crítico, em que destacamos Apple (1982), por ser simplista ao ponto de crer que o oferecimento desta cultura, ou de conteúdos que se entendam importantes, seriam cap