unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP PRISCILA APARECIDA MARTINS ANDRADE MULHERES E TATUAGENS: valores e intenções impregnados na construção do corpo feminino ARARAQUARA – S.P. 2015 PRISCILA APARECIDA MARTINS ANDRADE MULHERES E TATUAGENS: valores e intenções impregnados na construção do corpo feminino Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara , como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Sexual. Linha de pesquisa: Sexualidade e educação sexual: interfaces com a história, a cultura e a sociedade. Orientador: Prof. Dr. Fábio Tadeu Reina ARARAQUARA – S.P. 2015 Andrade, Priscila Mulheres e Tatuagens: valores e intenções impregnados na construção do corpo feminino / Priscila Andrade — 2015 112 f. ; 30cm Dissertação (Mestrado Profissional em Educação Sexual) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara). Orientador: Fábio Tadeu Reina 1. Tatuagem. 2. Preconceito. 3. Mulher. 4. Corpo. 5. Classes Sociais. I. Título. PRISCILA APARECIDA MARTINS ANDRADE MULHERES E TATUAGENS: valores e intenções impregnados na construção do corpo feminino Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-graduação em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de mestre em Educação Sexual. Linha de pesquisa: Sexualidade e educação sexual: interfaces com a história, a cultura e a sociedade. Orientador: Prof. Dr. Fábio Tadeu Reina Data da defesa: _06_/_07_/_2015_ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Fábio Tadeu Reina Universidade Estadual Paulista - UNESP - Faculdade de Ciências e Letras - Araraquara - SP Membro Titular: Profª. Drª. Luci Regina Muzzeti Universidade Estadual Paulista - UNESP - Faculdade de Ciências e Letras - Araraquara - SP Membro Titular: Profª. Drª. Vivian Patrícia Oliveira de Moraes Manécolo Universidade Estadual de Londrina - UEL - Londrina - PR Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara A todos que ajudaram na construção do meu sonho, essa dissertação. A todos os tatuadores e tatuadoras, uma das profissões mais encantadoras que existem, verdadeiros artistas que realizam sonhos. A todos os modificados corporais pela ousadia de transformar e colorir o mundo, de não aceitar imposições sociais e não se importarem com os preconceitos. “Vocês riem de mim por eu ser diferente, eu rio de vocês por serem todos iguais”. AGRADECIMENTOS Leve na sua memória, para o resto da vida, as coisas boas que surgiram nas dificuldades. Elas serão uma prova de sua capacidade, e lhe darão confiança diante de qualquer obstáculo. Chico Xavier. Para iniciar cito as palavras de um homem que para mim é um mestre em sabedoria, bondade e humildade. Começo meus agradecimentos comparando todas as pessoas que estiveram comigo às estrelas, cada pessoa tem um céu particular e nesse céu há diversas estrelas e as minhas iluminaram o caminho para a chegada do que sempre almejei, o Mestrado. Primeiramente agradeço a Deus pela oportunidade de estar evoluindo aqui na Terra, ele acreditou em mim e me deu essa nova chance. Agradeço aos espíritos iluminados, ao meu mentor espiritual que esteve o tempo todo comigo nessa caminhada, me influenciando com bons pensamentos, me dando força para nunca desistir dos meus sonhos. Agradeço ao meu orientador Dr. Fábio Tadeu Reina por esses dois anos de ensinamentos, amizade e por sempre acreditar em mim e permitir que um dos meus sonhos se tornasse realidade, a pesquisa sobre tatuagem. Agradeço a minha família: Minha mãe Conceição pelo esforço em sempre me fazer estudar, apesar das dificuldades em viver na área rural e sempre ter um obstáculo que me impedisse de ir à escola. Ao meu pai, Pedro que mesmo com pouco estudo sempre me mostrou a importância de ler, qualquer coisa, um livro, uma revista, mas sempre ler. A minha cunhada Cecília e ao meu irmão Paulo que mesmo a distância sempre me mandaram bons pensamentos e torceram por mim. Ao meu cunhado Fernando que sempre tinha uma palavra de incentivo para me dar. Vocês são estrelas lindas no meu céu. Agradeço a minha professora doutora Andreza Marques de Castro Leão por ter me incentivado desde o início, ter me apresentado ao curso de sexualidade e enxergar naquele momento o que eu gostaria de fazer por toda a minha vida. Agradeço por ter me incentivado a fazer o mestrado em Educação Sexual, se não fosse por ela talvez eu não estivesse aqui. Andreza, muito obrigada, você é uma das estrelas que estão no meu céu e iluminam minha vida. Agradeço ao professor doutor Paulo Rennes Marçal Ribeiro por ter acreditado em mim e me permitir assistir as aulas sobre sexualidade antes mesmo do mestrado, seus ensinamentos foram primordiais para eu trilhar esse caminho. Agradeço a todos os professores que trilharam esse caminho comigo, cada disciplina agregou um conhecimento novo e pertinente a minha vida e que fez toda a diferença. Agradeço a todos os amigos que fiz nesse Mestrado, alguns levarei por toda a vida, agradeço cada risada partilhada, cada conhecimento transmitido, foi muito bom conhecer todos. Obrigada. Agradeço ao grupo de Estudo sobre Modificações Corporais (GESMC) que me ajudaram com os vários estudos e conhecimento sobre as mais diversas formas de modificação corporal, em especial agradeço ao Thiago Soares por toda a ajuda que ele me prestou, você é um querido e mora em meu coração. Agradeço a cada amigo da vida que de alguma forma me ajudou nessa pesquisa, cada artigo, foto ou matéria sobre tatuagem que foi enviado, ou mesmo palavras de incentivo, me fizeram sentir especial ao ser lembrada e ajudada. Vocês foram sensacionais. Obrigada. Agradeço a minha querida irmã gêmea Patrícia, que desde o início esteve comigo, fez coisas que não cabem nessas folhas, me ajudou no projeto, na proficiência e no decorrer de todo o processo. Amo você minha irmã, obrigada por existir, essa dissertação é sua também, obrigada por estar ao meu lado em todos os momentos. Agradeço a irmã que Deus me deu, Fabiana, agradeço simplesmente por sua existência, fizemos graduação juntas e o mestrado também, uma caminhando ao lado da outra. O que seria de mim se não fosse sua companhia, sua risada, sua alegria, seu incentivo e sua persistência em nunca desistir dos sonhos por mais difíceis que pareciam. Obrigada por estar comigo, obrigada por me permitir compartilhar da sua energia positiva, obrigada por ter concluído esse nosso sonho comigo. Amo você. E por fim, para finalizar as estrelas do meu céu, a estrela mais especial de todas, meu amor, meu namorado, meu companheiro Amsterdam, sem você nada disso teria acontecido, você abriu mãos dos seus sonhos para realizar o meu, mudou-se do Rio de Janeiro e veio para cá me ajudar nessa dissertação. Você aguentou meus medos, anseios e crises. Todos os méritos são seus. Obrigada meu pequeno, por ter me escolhido e feito com que meus sonhos se tornassem realidade, você ilumina a minha existência. Eu te amo. Quero ficar no teu corpo Feito tatuagem Que é para te dar coragem Pra seguir viagem Quando a noite vem... Corações de mãe, arpões Sereias e serpentes Que te rasbicam O corpo todo Mas não sentes Tatuagem - Chico Buarque Menino do Rio, Calor que provoca arrepio Dragão tatuado no braço Calção, corpo aberto no espaço Coração de eterno flerte Adoro ver-te... Menino do Rio- Caetano Veloso RESUMO A tatuagem é uma marcação corporal utilizada há séculos, desde a idade antiga até a contemporaneidade. O novo paradigma em que ela se encontra se dá pela maneira como é reconhecida e adotada nas mais diversas culturas e épocas. A problemática desse estudo refere-se a esse ponto, compreender a tatuagem no seu todo para então discutir como ela se origina em mulheres das classes populares. Por ser uma marca que ainda sofre preconceitos, sendo assim estigmatizada, analisaremos por meio da condição de ser mulher, e o pertencimento a uma classe menos favorecida, se esse preconceito se torna maior ou não, se existe uma diferença no que tange o sexo masculino e uma classe mais abastada. Diante dessa realidade o presente estudo pretende realizar uma análise sobre a história da tatuagem, mostrando o seu surgimento no decorrer dos séculos, suas modificações, preconceitos e estigmas, para compreendê-la e entender através da história o porquê desse preconceito perpetuar até os dias de hoje. A abordagem dos indivíduos que fazem parte desse grupo e como eles são vistos também será discutido por intermédio de vários autores que abordaram essa temática. O corpo, lugar no qual a tatuagem é exibida para expressar sentimentos que muitas vezes são sonhos, realizações, desejos ou simplesmente modismo através da epiderme, também será analisado. Serão acrescentados a essa pesquisa os estudos de Pierre Bourdieu e colaboradores no que concernem as referências sobre a mulher e as classes populares. Para auferir esse intuito buscou-se por meio da metodologia qualitativa e como forma de coleta de dados a entrevista semiestruturada analisar o que as mulheres entrevistadas pensam e como vivem com as suas tatuagens. Os resultados obtidos nos mostraram que apesar da mulher ter autonomia e liberdade de usar o corpo para fazer uma tatuagem, essa liberdade é controlada nas escolhas dos desenhos e locais adotados para serem feitos, essa definição é realizada por vezes pelos namorados ou maridos, identicamente são reguladas por estarem a critério do julgamento da sociedade, ou seja, uma liberdade condicionada a uma aprovação de terceiros. Palavras-chave: Tatuagem. Preconceito. Mulher. Classes Sociais. Corpo. ABSTRACT Tattoo is a body marking used for centuries, since ancient age until the contemporary, the new paradigm in which it is, it happens due to the way how is recognized and adopted in many different cultures and ages. The problematics of this study refers to this aspect, to understand the tattoo as a whole and then discuss how the tattoo happens in working-class women. Being a mark that still suffers prejudices, so stigmatized, we will analyse through the condition of being a woman and belonging to a poor class if that prejudice becomes bigger or not, if there is a difference in male and wealthiest class. Before this reality this study intends to perform an analysis of the tattoo’s history, showing its appearance over the centuries, its modifications, prejudice and stigma, to understand it and understand through history why this prejudice perpetuate until today. The approach of the individuals who are part of this group and how they are seen will be discussed by various authors that boarded this theme too. The body, place where the tattoo appears to express feelings that are often dreams, achievements, wishes or simply fashion through the epidermis will also be reviewed. It will be added to this research Pierre Bourdieu’s studies and employees about to references on women and the working classes. To obtain this objective it was looked through the qualitative methodology and as and like the form of data collection of the semistructured interview, analyzes what women interviewed think, passed and how they live with their tattoos. The results showed us that although women have autonomy and freedom is controlled by the choices of designs and local adopted to be made, this setting is performed sometimes by boyfriends or husbands, identically are regulated by the discretion of the trial of society, a conditioned liberty to a third approvals. Keywords: Tattoo. Prejudice. Women. Social classes. Body LISTA DE QUADROS E TABELAS Quadro 1 - Os contextos da tatuagem no decorrer da história 37 Quadro 2 - Descrição das entrevistadas 56 Quadro 3 - Subcategorias formadas através da categoria “trajetórias de vida” 59 Quadro 4 - Subcategorias formadas através da categoria “corpos/visual/autonomia” 64 Quadro 5 - Relação de lugares e desenhos escolhidos para a tatuagem 65 Quadro 6 - Subcategorias formadas através da categoria “sociedade/influências/preconceito” 80 Tabela 1 - Idade da primeira tatuagem 61 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................14 1. A HISTÓRIA DE UMA ARTE MILENAR....................................................................20 1.1 Tatuagens: origem, lendas e mistérios...........................................................................21 1.2 As grandes navegações e a redescoberta da tatuagem...................................................23 1.3 A tatuagem em terras brasileiras....................................................................................31 1.4 A tatuagem contemporânea............................................................................................34 2. O CORPO TEM UMA HISTÓRIA.................................................................................38 2.1 O corpo pensado, cultuado, castigado, modificado.......................................................39 2.2 Corpos na contemporaneidade: a tatuagem como marca da individualidade................44 3. O RELATIVIZAR DA TATUAGEM E DO CORPO: A METODOLOGIA EMPREGADA........................................................................................................................49 3.1 Caracterização do estudo...............................................................................................50 3.2 Participantes...................................................................................................................51 3.3 Local...............................................................................................................................52 3.4 Instrumentos...................................................................................................................52 3.5 Procedimentos................................................................................................................53 3.6 Análise dos dados...........................................................................................................54 4. RESULTADOS E DISCUSSÕES.....................................................................................55 4.1 Dados pessoais...............................................................................................................56 4.2 As categorias da pesquisa..............................................................................................58 4.2.1 Trajetórias de vida: o porquê da tatuagem...........................................................59 4.2.2 Corpos/Visual/Autonomia...................................................................................64 4.2.3 Sociedade/Influências/Preconceitos.....................................................................80 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................93 REFERÊNCIAS......................................................................................................................97 ANEXOS................................................................................................................................105 ANEXO A - FOTOS DE TATUAGENS.............................................................................106 APÊNDICE............................................................................................................................111 APÊNDICE A-ROTEIRO DAS ENTREVISTAS.............................................................112 14 Introdução Naquela época, a tatuagem era um procedimento restrito aos prisioneiros e marinheiros, que se tatuavam entre eles a fim de registrar uma marca exclusiva no corpo ou, muitas vezes, para impor uma hierarquia. Os marinheiros ficam no mar 60/70 dias, isolados, sem documentação de identidade. Hoje, ela não é mais só uma identidade, é uma arte no corpo, é como uma joia exclusiva. Todo mundo quer ter uma. Tem muita gente investindo em si mesmo. Antônio Stoppa, tatuador em Florianópolis. (Ramos, 2001 p.133). Fonte- FB.com/astatuadas 15 O que leva uma pessoa a fazer uma tatuagem? O que uma marca no corpo significa e altera na vida de uma pessoa? Há alguma diferença das marcas contemporâneas para as marcas de tempos remotos? Por que a tatuagem causa tanto encantamento e ao mesmo tempo sofre tanto preconceito por parte de algumas pessoas ou setores da sociedade? O meu interesse pela tatuagem surgiu desde muito cedo, manifestou-se devido ao gosto precoce por um estilo musical, o rock n’ roll1 nos meus 10 anos de idade. Na década de 90 a tatuagem sofria preconceito, (apesar de hoje ser aceito em determinadas frações de classes ainda há percepções de alguns preconceitos) era estigmatizada, associada muitas vezes às classes marginais como, por exemplo, aos que gostavam do estilo musical em questão. O rock n’ roll estabeleceu essa aproximação com o universo da tatuagem, para me sentir inserida nesse meio musical fazia-se necessário possuir marcas e adereços que estivessem associados a esse estilo, e essas marcas e adereços eram as tatuagens e os piercings. A partir desse meu interesse pela tatuagem começou a surgir os primeiros enfrentamentos familiares, a proibição foi instantânea, só poderia optar por ter uma tatuagem quando atingisse a maioridade e fosse responsável pelos meus atos. A primeira tatuagem veio aos 21 anos e foi algo que representa uma paixão, um desenho que evidenciava minha banda musical favorita. Sempre ouvi dizer que ao fazer a primeira tatuagem a pessoa sente a necessidade de fazer outra e realmente isso aconteceu comigo, virou um “vício”. Elaborando uma reflexão acerca das proibições familiares e sobre a recepção da sociedade, (no qual era comumente ouvir frases como “isso é coisa de ‘maloqueiro’”, “isso é coisa de bandido”, “você nunca arrumará um emprego”), surgiram dúvidas do porquê a tatuagem era vista dessa forma, o que um desenho na pele pode modificar na personalidade e no caráter de alguém. Esses e outros questionamentos fizeram com que a curiosidade em abordar essa temática viesse à tona. O interesse por esse assunto surgiu da importância em compreender o que existe por trás da vontade de se fazer uma tatuagem, se há algum aspecto emocional, religioso, social ou mesmo estético. O que leva as pessoas a adquirirem uma marca que vai perdurar no corpo pelo resto da vida, mesmo que haja o processo de remoção dessa marca, pois o mesmo é caro e bem doloroso. A tatuagem sempre chamou a atenção e olhares de admiração, reprovação ou mesmo indiferença, uma particularidade que sempre fez parte da sua história. A partir de uma revisão 1 - Estilo musical que surgiu nos Estados Unidos no final dos anos 40. 16 bibliográfica, com estudos relacionados às marcas corporais antigas, à relação do corpo e relações de gênero tornou esse interesse em algo a ser pesquisado. Dessa forma, mediante os interesses demonstrados sobre a pesquisa, o objetivo do presente estudo está em averiguar o porquê de mulheres de algumas frações de classes populares optam por tatuar o corpo, visto o papel ativo que a mulher tem na evolução da sociedade (uma sociedade ainda considerada muito machista) e sua luta por igualdade de direitos. A partir disso, buscar compreender se por meio da tatuagem há alguma diferenciação no que se refere as relações de gênero, a mulher como modelo de feminilidade, “sexo frágil” que escolhe desenhos considerados femininos em lugares “discretos” para afirmar esse padrão que é visto como mais aceitável por nossa sociedade em detrimento ao modelo da mulher considerada fatal, sedutora, pelo qual as opções são por tatuagens com teor apelativo da sexualidade e lugares mais valorizados no corpo feminino e que por muitos é tido como vulgar. Ademais, compreender até que ponto a sociedade consegue reproduzir padrões que influenciarão quando uma mulher resolver fazer uma tatuagem. O interesse por pessoas de algumas frações de classes populares deu-se devido ao preconceito que essa classe social sofre, como tendência histórica mostra o baixo capital cultural legitimado, seja pela falta de conhecimento, ou, falta de poder aquisitivo, e tentar compreender se esse preconceito também se dá no âmbito das tatuagens, ou seja, se a marca corporal é vista da mesma forma pelas pessoas das classes mais privilegiadas ou se há alguma diferenciação. Sabe-se que desde o princípio da humanidade o homem imprime marcas em seu corpo, sendo elas de caráter temporário ou permanente. Em estudos relacionados à temática, há pesquisas que mostram que a marcação ocorre desde tempos antigos, ou seja, não é uma prática moderna, como trivialmente é relacionada. Em tempos atuais a prática foi aprimorada e a justificativa da marcação modificada. A tatuagem já foi utilizada como ritos de passagem, proteção, punição, pertencimento a algum grupo social, como forma de protesto ou tão somente como modismo e embelezamento estético. Atualmente a prática da tatuagem foi se reafirmando, se estruturando com outras características e com novas roupagens, algumas pessoas já a classificam como uma prática banal, mesmo assim ainda não é aceita por alguns segmentos da sociedade que as considera como algo pertencente à marginalização. 17 Claro que essa mudança de perspectiva e opiniões está atrelada a cultura e o papel que ela exerce em cada momento histórico. As culturas são célebres pela diversidade das interferências definitivas praticadas no corpo humano. Escarificação, tatuagem, ablação, plásticas estéticas – a mais recente – representam marcas que registram o prestígio, a agregação ou a exclusão do indivíduo ao grupo, assim como as crenças, as hierarquias, a jurisprudência e a estética de uma época. (Ramos, 2005, p.01) A oportunidade de desenvolvimento desta pesquisa permitiu uma penetração mais profundamente nesse universo da tatuagem, que até então era superficial, sendo que o contato com alguns tatuadores e alguns tatuados deu-se de uma forma tranquila. Ao longo do presente estudo, muitos autores foram utilizados, vou ressaltar alguns que tiveram maior relevância nessa pesquisa. No que concerne às tatuagens foram utilizados autores como o sociólogo David Le Breton (2004), que relata um pouco da história da tatuagem e faz relação dela na contemporaneidade, Célia Maria Antonacci Ramos (2001, 2005, 2006) que estudou as tatuagens não apenas na sua forma artística, mas também as “nazitatuagens” que foram utilizadas por nazistas como forma de exclusão e marcação. A antropóloga Débora Krischke Leitão (2000, 2004) aborda as tatuagens no contexto e no cenário urbano, já Beatriz Ferreira Pires (2001, 2005) em uma perspectiva da arte trabalha as modificações corporais em todo seu contexto. As tatuagens brasileiras foram vistas pelo jornalista Toni Marques (1997) que de uma maneira simples contou a história da tatuagem tanto no mundo como no Brasil. O jornalista e escritor João do Rio (1998) trabalhou a tatuagem na cidade do Rio de Janeiro, em meados do início do século XX. Foram utilizados também os escritos de Pierre Bourdieu (1983, 1999, 2003, 2007) e outros colaboradores para relacionar a condição da mulher nesse contexto, além das classes sociais, em especial, algumas frações das classes populares, compreender a relação que o corpo tem nesse âmbito, além da estrutura que o sujeito da tatuagem tem antes de obtê-la que é chamado de habitus. Assim, essa dissertação se constitui da seguinte maneira. No primeiro item foi abordada a história da tatuagem, sendo dividido em quatro subitens para melhor compreensão do estudo. 18 No primeiro subitem foi discutida a história da tatuagem desde seus primeiros vestígios, que inclui a pré-história, perpassando pelas civilizações antigas, pela era cristã, até chegar à Idade Média, visando mostrar como era a tatuagem, se era aceita ou não, e qual a razão dela ter se tornado o que é hoje. No segundo subitem foi exposta a redescoberta da tatuagem no Ocidente por meio das grandes navegações (redescoberta pelo fato de já existir em outras civilizações) e como passou a ser utilizada por classes menos favorecidas como marinheiros, prisioneiros e prostitutas, mais adiante por grupos sociais que viviam a margem da sociedade, como roqueiros, punks2, hippies3 e skinheads4, o que contribuiu para que essa prática viesse a tornar-se exótica e até mesmo discriminada e analisando quais fatores que levaram a essa constatação. A abordagem do terceiro subitem vem relatar como foi a descoberta da tatuagem em terras brasileiras. Os nativos que aqui se encontravam já tinham marcas que podiam ser associadas a uma tatuagem primitiva, relacionando-se ao momento que a tatuagem se encontrava no Ocidente e como essa marca corporal se popularizou no Brasil e tornou-se moda nos tempos atuais. Por último, no quarto subitem como se situa a tatuagem na contemporaneidade, o que mudou desde seu surgimento até as práticas mais refinadas de fazê-la, como o cenário dessa marca mudou, transcorrendo de algo que era visto como exótico para algo pelo qual exista uma possibilidade de ser aceito na sociedade e a tendência de ser considerada por algumas frações de classes como algo artístico. No item dois a abordagem se dá por meio da relação que o corpo exerce nesse processo, sendo o corpo a matéria essencial para que essa prática aconteça. Esse item foi divido em dois subitens. No primeiro é relatado a história do corpo, de como ele foi visto e aceito em seu contexto geral, a partir da pré-história até os tempos atuais. No segundo é argumentado o corpo na contemporaneidade, as mudanças que houve no decorrer do tempo, a importância que é dada para ele nos tempos atuais, atrelado às marcas corporais que nele são adquiridas. 2 Movimento cultural que surgiu em meados da década de 70, que tem como característica ideias políticas anarquistas e revolucionárias. 3 Movimento cultural que surgiu em meados da década de 60 pregava o amor livre e a não violência. 4 É uma subcultura originada dos jovens da classe operária no Reino Unido, em meados dos anos 60. 19 No terceiro item foi empregada a metodologia que será utilizada nesse estudo. Esse item foi dividido em seis subitens. No primeiro foi explorado a caracterização do estudo, ou seja, qual a metodologia foi empregada e o porquê dela ter sido utilizada nessa pesquisa, por meio de autores que abordaram essa temática. No segundo subitem são discutidos quais os participantes do estudo, ou seja, a escolha por mulheres de algumas frações de classes populares. No terceiro subitem foi definido o local da pesquisa. Já no quarto subitem foi mostrado o porquê da utilização da entrevista semiestruturada para instrumento desse estudo. O quinto subitem foi exposto quais foram os procedimentos adotados para que a pesquisa viesse a acontecer. E para findar, no sexto subitem foi feita a análise dos dados, por meio das entrevistas e como elas foram analisadas e interpretadas. No quarto item foram trabalhados os resultados e discussões obtidos por meios das entrevistas. Através de categorias e subcategorias foram interpretadas as entrevistas com mulheres de algumas frações de classes populares com ajuda da bibliografia vigente nessa pesquisa. Para finalizar foram expostas as conclusões finais a partir do que foi relatado na pesquisa, acompanhado das referências e anexos que auxiliaram o entendimento e compreensão desse estudo. 20 1- A História de uma arte milenar No calor da festa, exibiu sobre o balcão a sua masculinidade inverossímil, inteiramente tatuada num emaranhado azul e vermelho de letreiros em vários idiomas. Às mulheres que o assediavam com a sua cobiça, perguntou quem pagava mais. Disso vivia. Deu sessenta e cinco vezes a volta ao mundo, metido numa tripulação de marinheiros apátridas. As mulheres que se deitaram com ele naquela noite, na taberna de Catarino, trouxeram-no inteiramente nu ao salão de baile, para que vissem que não tinha um milímetro do corpo sem tatuar, na frente e nas costas, e desde o pescoço até os dedos dos pés. (Márquez, 1967, p.85). Site: Hypeness, http://www.hypeness.com.br/2013/05/como-eram-as-mulheres-tatuadas-do-inicio-do-seculo-xx/ 21 1.1 Tatuagens: origem, lendas e mistérios A tatuagem é uma arte milenar que traz consigo muitas histórias, lendas e superstições. A data correta do seu surgimento é uma incógnita, o que se pode utilizar são os vários relatos e pesquisas de historiadores e geólogos que buscaram algum estudo nesse campo. Exemplifica assim Marques (1997) “das duas, uma: a tatuagem nasceu uma única vez e se espalhou pelo mundo ou nasceu mais de uma vez, filha de muitos pais em todos os continentes” (p.13). A tatuagem nunca foi específica de um grupo ou condição social, sempre migrou de acordo com a época e situação, já foi considerada símbolo de poder ou insígnia da marginalidade. Atualmente em nossa sociedade é vista com traços da cultura vigente e por muitos como modismo, embora seu caráter de diferenciação de facções ainda permaneça. Os primeiros indícios do que viria a ser a tatuagem se dá na Pré-História, nas pesquisas de estudiosos dos períodos Paleolítico, Mesolítico e Neolítico há descobertas de desenhos, instrumentos pontiagudos, agulhas feitas de pedras e chifres, assim como pigmentos utilizados para pintar o corpo. De acordo com estudiosos para os trogloditas5 as cicatrizes que eles obtinham em brigas eram sinais de valentia e sentiam orgulho delas e com isso passaram a fazê-las intencionalmente, pois quanto mais cicatrizes, mais valentia eles teriam. A partir daí começaram a surgir o que viriam a serem as tatuagens. As civilizações antigas, como Egito, Grécia e Roma também tem resquícios da tatuagem em sua história. No Egito a múmia da Princesa Amunet de Tebas, datada por volta de 2000 a.C tinha desenhos na barriga, “exibia uma grande espiral no baixo ventre – possivelmente relacionada a um ritual de fertilidade” (Rodrigues, 2008, p.16). Na Grécia segundo Marques (1997) sabe-se algo relacionado a modificações corporais através de Heródoto, em seu livro História ele relata histórias dos Citas, Trácios e Tebanos, nos quais faziam ou tinham marcas e estigmas, sendo essas marcas de nobreza ou forma de castigo. Contudo, essas não eram modificações corporais tão radicais, pois os gregos respeitavam a perfeição estética dos corpos. Elucida Marques (1997) que, 5 -Homens que habitavam as cavernas. 22 Não se podia esperar dos gregos qualquer tipo de modificação radical do corpo, uma vez que este obedecia a uma ideia de perfeição estética natural, por assim dizer. O corpo do grego devia ser o corpo idealizado pelo pensador e pelo artista. (p.21). Segundo Ramos (2001) ainda na Grécia a tatuagem era utilizada para marcar os escravos com os nomes dos seus donos, assim esclarece que, Na Grécia clássica, por exemplo, os escravos eram tatuados com o nome de seu Senhor. Ou ainda, alguns chefes de Estados gregos raspavam a cabeça dos escravos, tatuavam-na com mensagens secretas e, quando o cabelo crescia, os enviavam como mensageiros secretos em missões arriscadas. (p.40). Araújo (2005) ainda vai dizer que em Roma o costume de tatuar escravos também foi adotado, os prisioneiros exibiam na testa os seus crimes “os gladiadores prisioneiros entravam na arena exibindo na testa a marca de seus crimes” (p.32). No entanto a mais famosa referência que temos da antiguidade relacionada a marcas corporais é da múmia que leva o nome de Ötzi (o homem do gelo) 6 que foi encontrado em terras italianas em 1991 que viveu em 5300 a.C. Segundo Marques (1997) “o Homem do Gelo tem linhas paralelas ao longo da região lombar da coluna, uma cruz abaixo do joelho esquerdo, e faixas no tornozelo direito. São tatuagens” (p.16). O homem de gelo tinha 50 marcas de tatuagem entre as costas e joelho. Na era cristã, a tatuagem foi utilizada tanto por cristãos tementes a Deus, quanto por aqueles considerados pecadores. Na época das Cruzadas os cristãos precisavam de códigos e sinais para que eles se reconhecessem entre si, esses sinais eram marcas corporais, nas mãos ou braços e na maioria das vezes com símbolos representando uma cruz ou coisas associadas a Deus. Rodrigues (2008) refere que “os seguidores de Cristo se reconheciam e se protegiam da submissão aos pagãos tatuando peixes ou letras gregas em seus corpos” (p.16). Já Idade Média, também conhecida como Idade das Trevas, a representação da tatuagem se modificou, foi banida, pois fora vista como associação ao Diabo, e quem as obtinha eram os pecadores. “Cicatriz, marca de nascença, qualquer má formação à flor da pele – o corpo alterado virava automaticamente, a moradia do Cão. Acreditava-se que a assinatura do pacto se dava no corpo da alma perdida – ai daqueles que ousassem uma tatuagem”. (Marques, 1997, p. 34). Com isso a tatuagem começou a ser vista como símbolo da infâmia. 6 - A foto encontra-se nos anexos. 23 1.2 As grandes navegações e a redescoberta da tatuagem As grandes navegações que contribuíram para a descoberta de novos continentes, novas nações e povos, redescobriram a tatuagem que até então havia sido banida na Idade Média. Foi devido ao que os navegadores viram e relataram em seus diários de bordo que podemos saber que a tatuagem nunca foi extinta, só ficou adormecida no velho continente. Foi a partir desses povos ainda desconhecidos que a tatuagem voltou para manter-se até os tempos atuais. “Enquanto a civilização cristã não se decidia quanto ao destino da tatuagem, sua extinção ou não no Velho Continente, o mundo primitivo continuava a repetir desenhos à tinta e em alto-relevo na pele de suas tribos e nações.” (Marques, 1997, p.37). Um dos relatos sobre modificações corporais foi escrito por Marco Polo que passou algum tempo de sua vida percorrendo a Ásia e essa viagem foi descrita em seu livro chamado “Livro das Maravilhas” nele relatou o que viu, Os varões e as mulheres pintam a pele, quer dizer, desenham na pele, com agulhas em brasa, leões, dragões, pássaros e outras imagens; logo lhes passam cores por cima e gravam- nas tão bem que a cor nunca mais desbota. Fazem isso na cara, no peito, no ventre, nas mãos, nas pernas e em todas as partes do corpo; e isto, neles, é distintivo de nobreza. Quanto mais pintados estão, por mais formosos passam e mais consideração merecem. (Polo, n. d., citado por Marques, 1997, p. 37). Navegadores como Cristovão Colombo e Américo Vespúcio também relataram marcas e pinturas corporais nos nativos que encontraram em suas navegações. Onde os navegadores estiveram encontraram algo relacionado a marcas corporais. Para esses povos os significados de pinturas corporais e tatuagens tinham um significado contrário do que foi pregado na era cristã, para eles muitas vezes significava proteção, mudanças de fase da vida como puberdade e casamento. Rodrigues (2008) comenta sobre isso. Os índios Sioux, da América do Norte, diziam que depois da morte uma divindade exigia ver as tatuagens para permitir a entrada no paraíso. Na Índia e no Tibet, uma das intenções de ter a pele desenhada é dar força às pessoas nos períodos difíceis da vida, como puberdade e gravidez. Isso também ajudaria a superar doenças e desgraças. (p.17) 24 Para Araújo (2005) as marcas corporais serviam como identidade, memória, poder e beleza, estandarte de bravura e ao mesmo tempo oferecer proteção a quem utiliza. Nascimento, casamento e guerras também eram motivos para se experienciar as marcas corporais. No dia do casamento, as mulheres indianas, nepalesas e de outras regiões da Ásia se enfeitam com tatuagem de hena, tinta extraída da flor de uma árvore que floresce três vezes por ano [...] Nativos havaianos tatuam a língua em sinal de luto. É uma maneira de impor um silêncio temporário, até que a ferida se cure. A marca da perda, no entanto, fica para sempre. (Araújo, 2005, p.22) De acordo com Marques (1997) muitos outros navegadores e exploradores relataram em seus diários de bordo as experiências que tiveram com novas tribos e populações que encontravam em seus caminhos, Gonzalo Fernandez de Oviedo na América Central e Nicarágua, Sir John Hawkins na Flórida, o francês Sagard no Canadá, Fernão Magalhães nas Filipinas e muitos outros encontraram povos, com tatuagem ou marcas corporais. Marques (1997) explica que, O sujeito primitivo carregava todas as informações importantes para si mesmo e para sua gente, de maneira a não deixar dúvida quanto a seu papel social e seu estágio biológico. O cadastro da tatuagem e da escarificação nas sociedades que o Velho Mundo ignorava é um misto de bandeira, atestado de nascimento, carteira de identidade, certificado de alistamento militar, diploma de honra ao mérito, melancia no pescoço, vestimenta, lingerie sexy, aliança de casamento, crachá, joia, amuleto, imagem de santo, remédio, roupa de luto, biografia. (pp. 37-38). Cabe fazer um comentário no que diz respeito ao desaparecimento das tatuagens na Era Cristã, não havia desaparecido por completo, ela havia tomado um caráter religioso, ou seja, sua presença era velada. De acordo com Osório (2006), a tatuagem era relacionada às peregrinações em locais sagrados. O que navegadores e marinheiros fizeram foi torná-la popular. O renascimento da tatuagem no Ocidente é um fenômeno que diz respeito a sua disseminação entre camadas sociais determinadas, a partir do contato entre marinheiros e nativos do Pacífico, fora de seu escopo anterior de prática religiosa cristã (Osório, 2006, p. 20). Grifo do autor. 25 Porém o marco da redescoberta da tatuagem e a origem do nome vai acontecer através do navegador e capitão James Cook que em 1769 em uma de suas viagens, precisamente ao Taiti ele vê como as tatuagens são produzidas. Foi a partir do som produzido ao se fazer a tatuagem que se originou o nome que é usado até hoje. Foi ele o primeiro ocidental a ouvir tattoow (tatau) – palavra utilizada pelos nativos para a arte de pintar o corpo de modo que não saísse mais da pele. ‘Tatau’ repetia o som do cabo de madeira batendo num ancinho7 de dentes afiados, usado para picar a pele e introduzir- lhe a tinta. Conforme a madeira batia no ancinho vinha o som tac tac ta tau”. (Araújo, 2008, p. 37). Grifo do autor. O capitão James Cook também esteve na Nova Zelândia, onde conheceu o povo Maori8, lá descobriu a famosa tatuagem Maori as quais ele chama de Moko, segundo Araújo (2008) consiste em “desenhos impressionantes: espirais tão profundas na pele que mais pareciam entalhe de madeira. Os dolorosos rituais duravam anos para cobrir o rosto dos homens nobres e guerreiros9 (p.38)”. Ao retornar para a Europa, Cook leva com ele um polinésio chamado Omai, que tem o corpo todo tatuado, juntamente com os marinheiros pertencentes às tripulações dessas navegações que passaram a se tatuar e aprender a técnica da tatuagem expandindo essa prática para a Europa. De acordo com Leitão (2000) é nesse momento que a tatuagem retorna a Europa, para pertencer à aristocracia. “A conversão dos europeus é o início do modernismo na tatuagem mundial, com a entrada dos temas brancos” (Marques, 1997, p.42). As tatuagens no Oriente, mais precisamente no Japão de acordo com Marques (1997), ocorreram nos séculos XVII ao XIX, durante o período que ficou conhecido como Edo10. As tatuagens faziam referência a palavras de amor e de sexo (tatuagens amorosas), que foram proibidas, porém segundo Araújo (2005) essa proibição foi inútil, pois logo em seguida os povos do Edo começaram a acompanhar as aventuras dos heróis do Suikoden11, e como esses heróis tinham tatuagem em seus corpos, a tatuagem reapareceu. Os 108 heróis desta espécie de romance de cavalaria chinês lutavam em favor do povo e contra a corrupção burocrática do governo. Entre os bravos guerreiros, pelo menos dezesseis são tatuados, como Shishim, com nove dragões no corpo; Rochishin, todo coberto de flores, e Busho, com um tigre nas costas. (Araújo, 2005, p. 58). 7 - Ferramenta agrícola constituída por uma travessa dentada de madeira ou de ferro. 8 -Povo nativo da Nova Zelândia, o termo na língua Maori significa “natural” ou “normal”. 9 - Foto encontra-se nos anexos. 10 - Período em que o Japão mudou sua capital para Edo (hoje Tóquio) e se fechou para o mundo Ocidental (1660-1867). 11 - Como foi chamada no Japão novela chinesa Shuihu Zhuan, do século XIV. 26 Quando os Europeus chegaram ao Japão essas tatuagens estavam para ser banidas do país, e foram proibidas em 1870, mas de acordo Marques (1997) já haviam conquistados marinheiros ocidentais. As técnicas utilizadas pelos japoneses para criar a tatuagem consistem em um cabo de bambu afiado com agulha na ponta12. Contudo a tatuagem não entrou no Ocidente de uma forma tão aceitável, nessa época a tatuagem tornou-se algo exótico “um novo imaginário sobre a tatuagem a associou ao exótico e ao selvagem, minimizando o uso europeu da técnica. Este novo imaginário foi construído a partir de uma determinada percepção britânica sobre os habitantes do Pacífico Sul” (Osório, 2006, p. 20). Com isso a tatuagem restabeleceu-se nos espetáculos circenses, pessoas tatuadas passaram a se apresentar juntos com atrações consideradas anormais como o bezerro de cinco pernas, gigantes, anões13. O tatuado mais famoso da época segundo Araújo (2005) era o Capitão Constantino, que tinha no corpo 388 imagens de animais fantásticos, fora tatuado em Burna na Índia, era grego e dizia ter sido tatuado a força pelos Mongóis. Podemos citar também o caso do homem zebra, Great Omi14, que inicia uma época de tatuagens com desenhos que imitam animais. Esse mercado não era apenas do público masculino, mulheres tatuadas também fizeram sucesso como Betty Broadbent, Trixie e La Belle Irène15. “La Belle Irene entrou para o circo em 1890. Embora suas tatuagens tenham sido executadas por dois famosos tatuadores da época, seguia a tradição do circo e dizia ter sido tatuada no Texas, um lugar selvagem” (Osório, 2006, p.21). Na maioria das vezes conforme Osório (2006) relata, as mulheres tatuadas passaram a fazer parte desse mundo que até então era masculino, algumas se relacionavam com os homens tatuados dos circos ou se casavam com eles, assim puderam aprender o ofício da tatuagem. Nas mulheres as tatuagens passaram a ter um caráter erótico. Assim evidencia Osório (2006) que “as tatuadas passaram sutilmente à prostituição quando a concorrência aumentou. A exposição dos corpos teria, sugere o autor, um elemento erótico, enquanto a tatuagem se tornara um fetiche” (p.22). 12 - Foto encontra-se nos anexos. 13 - Foto encontra-se nos anexos. 14 - Foto encontra-se nos anexos. 15 - Foto encontra-se nos anexos. 27 Como foi dito anteriormente a tatuagem entrou no ocidente pelo cais, ou seja, marinheiros16 e suas tripulações trouxeram seus corpos tatuados e a técnica de como produzi- la. “Em um primeiro momento, os tatuadores se encontravam fundamentalmente em dois locais: o porto e o circo” (Osório, 2006, p. 23). Exprime assim Araújo (2005) “Os marinheiros trazem nos braços os símbolos do mar – sereias, peixes, âncoras e estrelas. No coração, o nome do cais, da mulher amada, e uma frase para protegê-los da morte e dos castigos corporais que sofriam nos navios” (p.52). Como os marinheiros viajavam por todas as partes começaram a levar a tatuagem por todos os lugares, na época pessoas que viviam à margem da sociedade se interessaram por essas práticas, como prostitutas, soldados e criminosos. Nas prostitutas a prática pode ter começado, de acordo com Araújo (2005), pelo contato com os marinheiros, mas não há comprovação de como essa prática surgiu entre esse público. Já os soldados tinham os mesmos sentimentos dos marinheiros, a ida para guerra, ficar longe de casa era motivo para se marcar a pele “Na partida para a guerra, tatuam as próprias iniciais, o símbolo do regimento e até mesmo de sua pátria para ser reconhecido em qualquer parte do mundo” (Araújo, 2005, p.53). O contrário também ocorria, caso o homem se recusasse a servir como soldado recebia uma tatuagem com a letra D de desertor, isso ocorreu na Primeira Guerra com os ingleses, (Araújo, 2005). Nos criminosos17 a tatuagem mostrava o crime cometido ou a quantidade de tempo que permaneceram na cadeia, conforme Araújo (2005), Cada imagem na pele pode revelar o tipo de punição e de vida que o preso levou dentro e fora da cadeia: um cadeado ou molho de chaves denunciam os maus tratos sofridos na cadeia; o revólver na perna significa assalto seguido de morte, e assim por diante. (p.32). Fica claro que nessa época a tatuagem era vista e usada por pessoas que viviam à margem da sociedade, com isso levando consigo um caráter marginalizado, Marques (1997) pontua que, O vínculo com o crime não se explica pelo ato de o criminoso se tatuar, e, portanto ser tatuagem coisa de criminoso. Como sinal distintivo de grupo social, historicamente, no Ocidente, ela é, com frequência, coisa de homens apartados do mundo, confinados numa cela, num convés, na trincheira da batalha ou do picadeiro. (p.63). 16 - Nessa época os marinheiros não tinham patentes. 17 - Foto encontra-se nos anexos. 28 Complementa Osório (2006) que “A tatuagem não seria consequência desta marginalização, mas da estrutura de funcionamento destes grupos, em termos de controle, corporalidade e identidade” (p.25). As tatuagens também foram utilizadas pela nobreza europeia, sendo assim divulgada cada vez mais por todos os segmentos da sociedade, Marques (1997) afirma que os duques de Clarence e York, eram irmãos e foram tatuados por um tatuador japonês Hori Chiyo, que era famoso na época, “os ocidentais consideravam a tatuagem uma das grandes artes japonesas, opinião da qual não compartilhavam os próprios japoneses, ou pelo menos suas autoridades” (p.53), os duques foram influenciados pelo pai que também era tatuado, Eduardo VII, filho da rainha Vitória. Mas as tatuagens da realeza eram diferentes, pois sempre traziam significados orientais (Osório, 2006). Com isso muitos outros nobres também começaram a se tatuar como, por exemplo, o arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria. Observa-se que o papel da nobreza foi elaborar a tatuagem como um sinal de bom gosto, elegância e distinção. Uma ideia de gosto que utilizava o elemento exótico em tatuagens elaboradas pelos tatuadores mais famosos da época. Mesmo assim, a tatuagem só ganhou a classe média ocidental no final do século XX. (Osório, 2006, p. 27). Com a tatuagem em voga, foi necessário o aprimoramento do material utilizado para fazê-la. Assim em 1891 o então irlandês Samuel O’ Reilly patenteou a máquina elétrica de tatuar. Segundo Marques (1997) “O’ Reilly batizou sua invenção de tattaugraph, qualquer coisa como tatuógrafo [...] coube ao tatuador Paul Rogers dar a forma final ao aparelho, tal como é conhecido hoje” (p. 58), grifo do autor. Consequentemente, a tatuagem começou a virar negócio, surgindo assim várias lojas de tatuagem, a princípio nas cidades portuárias, pois os tatuadores eram os ex- marinheiros. Durante a Primeira e Segunda Guerra mundial a tatuagem também foi utilizada por soldados e marinheiros que delas participaram, mais precisamente na Segunda Guerra mundial, a tatuagem foi utilizada pelos nazistas para marcarem o tipo sanguíneo dos soldados e assim facilitar a identificação. Também foi utilizada de uma forma muito cruel, pelos judeus que foram tatuados com números para identificações, e assim perdendo sua própria identidade, cruéis também segundo Ramos (2006) no sentido que os judeus não se permitiam tatuar, principalmente os judeus ortodoxos “a tatuagem é vedada pela lei mosaica18 [...] e os 18 - Lei criada por Moisés, composta por um código de leis formado por ordens e proibições. 29 nazistas certamente sabiam disso. Assim, para os judeus ortodoxos, a tatuagem era experimentada como uma dupla ofensa, já que infringia também um tabu religioso” (p.44). A Alemanha nazista numerou os judeus, tatuando algarismos na pele dos prisioneiros. E, nas experiências de utilização da pele humana como revestimento, em substituição ao couro, oficiais recostaram-se em sofás feitos de pele humana tatuada e iluminaram salas com abajures cuja cúpula era feita de pele de tatuado. (Marques, 1997, p. 65). A tatuagem no contexto dos campos nazistas foi concebida como matrícula na sociedade dos excluídos, signo de controle político dos segregados da cultura dominante. Entretanto, nos subsequentes à libertação dos campos, essa marca tatuada comunicava, e ainda comunica a vivência nos campos, transformando o corpo dos ex-deportados em um documento político, e a tatuagem, impressa nesse corpo, um símbolo de autenticidade da deportação (Ramos, 2006, p.107). Como vimos anteriormente marcar a pele do outro, sejam eles escravos ou marginais não foi uma invenção nazista. Depreende-se que tatuar como marca de exclusão não foi uma invenção do sistema nazista e nem da SS19, particularmente. Era um ato já bastante recorrente, especialmente no meio prisional e marginal. (Ramos, 2006, p. 16). Nos anos 40 e 50 surge uma nova categoria de tatuagens as famosas pin up20. Esse tipo de desenho fez sucesso entre mulheres em forma de tatuagem, mulheres essas que muitas vezes eram casadas e escondiam a tatuagem para sociedade não ver, ficaram conhecidas como atomic ladies (mulheres com muitas tatuagens). (Mifflin, 1997). Com o movimento de Contracultura21, a tatuagem mais uma vez fará parte desse ideário. Segundo Osório (2006) “Disseminada entre a juventude de camadas médias na década de 1960, a contracultura teria alguns pontos de expressão nos festivais de música, como o de Woodstock e nas rebeliões estudantis como a de Maio de 1968, na França” (p. 29). Assim o movimento hippie e o rock n’ roll deram seguimento à tatuagem, tatuagem que se modificou, agora eram tatuagens menores como, borboletas, símbolos de paz e amor, sol, lua, a partir desse momento pessoas famosas começaram a se tatuar como a cantora Janis Joplin e o ator Peter Fonda, essas tatuagens ficaram conhecidas como Little tattoo era, 19 - Schutz Stafflel, guarda para a proteção de Adolf Hitler, expandindo-se e tornando-se uma força militar. 20 -Fotos de modelos em imagens sensuais, pelo qual era normal pendurá-las na parede, na década de 40 e 50. 21 - Movimento que questionava a cultura ocidental, surgiu nos Estados Unidos. 30 (Marques, 1997). No festival Woodstock, Janis Joplin, Jimmy Hendrix e outros cantores já exibiam suas tatuagens, o que influenciou os roqueiros que estavam surgindo na época. A pintura corporal ou as tatuagens dos hippies animam os movimentos do desejo, mimam a aproximação sexual, o erotismo, a aliança com o mundo, proclamam a alegria de voltar as costas aos valores puritanos da América e ser um jogador com a sua existência [...] o corpo é um manifesto. Grifo do autor. (Le Breton, 2004, p. 76). Na mesma década há o surgimento de outros movimentos, os punks e skinheads, opostos ao movimento hippies, punks são jovens totalmente contrários ao sistema imposto são revoltados com a sociedade, com a moda e com aquilo que é dito como correto, eles vestem roupas rasgadas, cabelos com penteados extravagantes e mostram através de seus corpos a revolta que sentem, também pela tatuagem que exibem. Já os skinheads segundo Le Breton (2004) são revoltados, machistas, racistas, cabelos raspados e usam da violência em estádios de futebol, e aderem à tatuagem principalmente na cabeça. Em meados dos anos 70 os punks, com uma vontade de zombar das convenções sociais no que respeita a aparência física e de vestuário, furam muitas vezes o corpo com alfinetes, prendem na pele cruzes gamadas, símbolos religiosos [...] o corpo é queimado, furado, golpeado, arranhado, escarificado, tatuado, apertados em roupas inapropriadas. A raiva do social volta-se para uma raiva do corpo que simboliza justamente a ligação forçada com o outro [...] o uso da tatuagem e do piercing é corrente nos skinheads bem como os diversos sinais para a posteridade: caveiras, emblemas nacionalistas, divindades antigas [...] o crânio raspado é voluntariamente tatuado com desenhos agressivos. (Le Breton, 2004, p. 78). Surgem nessa época igualmente os motociclistas que desejavam uma vida livre, assim aparecem várias gangues de motociclistas, uma das mais famosas que foi tema de filme são os Hell’s Angels22. De acordo com Araújo (2005) “passaram então a formar clubes de motoqueiros e a usar insígnias bizarras, como caveiras, abutres, tanto nas jaquetas de couro como tatuadas na própria pele” (p. 66). Em 1967, tribos urbanas – roqueiros, motoqueiros, hippies e, de maneira mais radical, os punks e skins foram apropriando-se dessa prática, adotando a tatuagem como uma marca corporal através da qual tornavam visível e publicamente sua vontade de romperem com as regras sociais e de situarem-se deliberadamente à margem da própria sociedade. (Freitas, 2012, p.09) 22 -Fundado em 1948 na Califórnia, é o maior e mais polêmico motoclube do mundo, ganhou fama por prestar serviços a bandas de rock famosas, como Beatles. 31 Dessa forma a tatuagem continuaria com seu sentido estigmatizador, inicialmente vista como uma arte exótica, usadas por marinheiros, soldados e circenses e posteriormente usada por grupos sociais que viviam as margens da sociedade, hippies, roqueiros, motociclistas, punks e skinheads, essa classificação só começaria a mudar a partir da década de 80, quando a tatuagem começou a se profissionalizar, nos quais atores e cantores famosos começam a aderir à moda. Atores como Charlie Chaplin, Sean Connery, Gérard Depardieu, Melanie Griffith, Johnny Deep são alguns nomes de celebridades que fizeram tatuagem, no mundo musical, nomes como Steven Tyler, Axl Rose, Ozzy Osbourne, também adotaram a moda, (Marques, 1997). A tatuagem concebe-se na literatura, cinema e teatro. Obras como Rosa Tatuada de Tenesse Willians, Na Colônia Penal de Kafka, em Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Márquez abordam de alguma forma a tatuagem. A peça de Tenesse Williiams, Rosa Tatuada é um exemplo disso. Também em Flaubert as tatuagens cartaginesas aparecem no romance Salambô, no corpo de guerreiros e prisioneiros. Kafka em, Na Colônia Penal traz a máquina fantástica que tatua a sentença no corpo do acusado, de acordo com o crime que este cometeu. Este não sabe, entretanto, qual é seu crime e menos ainda seu destino. Em momento algum isso deve ser dito através de palavras. É na pele, nos desenhos que a máquina fará em suas costas, que ele saberá. Em Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Márquez um dos personagens, um dos José Arcádios que povoam a Buendía e o romance, vai embora de Macondo com os ciganos e, quando volta, traz o corpo todo bordado de tatuagens, encantando as mulheres da cidade. Grifo do autor. (Leitão, 2000, p. 06). Assim como nas áreas culturais, no cinema encontramos o filme Tattoo, no qual um tatuador sequestra uma modelo e faz tatuagens nela e no filme O pecado mora ao lado conta a história de um marido que se tatua na ausência de sua esposa, (Marques, 1997). Já nos desenhos animados podemos encontrar referência das tatuagens nos desenhos do marinheiro Popeye que tem uma âncora tatuada no braço e fez muito sucesso na época que surgiu e nos Cavaleiros do Zodíaco, no qual o personagem Shiryu tinha nas costas tatuado um dragão. 1.3 A tatuagem em terras brasileiras 32 A descoberta da tatuagem no Brasil também se remete às grandes navegações, mais precisamente às expedições de Cabral e os relatos aconteceram através das cartas do escrivão Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Manuel em 1500, que relata o que viu no Brasil em relação aos índios que aqui habitavam, e escreveu, E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que muitas mulheres da nossa terra, vendo lhes tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela (Vaz de Caminha, 1500/1994). De acordo com Marques (1997) esse relato de Pero Vaz de Caminha pode significar que essa índia estava ingressando em uma nova etapa da vida, ou condições transitórias. No século XIX com a abertura dos portos no Brasil para a Inglaterra, fez com que os marinhos ingleses trouxessem a tatuagem, “em algum ponto do vasto século XIX, a tatuagem apareceu nas cidades portuárias; tatuagens inglesas e escandinavas, inicialmente, seguidas das americanas. A tatuagem branca23 veio parar aqui como de resto parou em todos os portos” (Marques, 1997, p.139). A princípio a tatuagem causou espanto, curiosidade, fascínios, iniciando por meio dos marinheiros, percorrendo pelas prostitutas e assim se dissipando entre as camadas pobres. A tatuagem vira febre mundo afora; o brasileiro não índio e pobre adota a tatuagem. O povo a recebe intermediada pelo sexo, pelo trabalho braçal, pela marginalidade, pela marinha, pelos imigrantes. Tendo sido recepcionada e difundida na cama, a tatuagem, em seguida, se muda para as páginas policiais, o presídio e o hospital (Marques, 1997, p. 141). Com o aumento da tatuagem e de sua prática, a palavra tatuagem entrou no dicionário brasileiro, segundo Marques (1997) o primeiro dicionário a registrar a palavra foi o Novo dicionário da língua portuguesa, de Cândido de Figueiredo, de 1899. Ainda não havia tatuadores profissionais nessa época, as tatuagens eram feitas muitas vezes da pouca técnica que conheciam. Rio (2008) assim relata que no fim do século XIX e início do século XX, na cidade do Rio de Janeiro, havia quatro tipos de pessoas que se tatuavam: os negros, turcos, prostitutas e pobres, com isso popularizou-se e virou comércio, existiam várias formas de se fazer esse trabalho. 23 - O autor fala em tatuagem branca para se referir à entrada da tatuagem não nativa no Brasil. 33 Os tatuadores têm várias maneiras de tatuar: por picadas, incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre nós são incisivas nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente, as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador trabalha como às senhoras bordam. (Rio, 2008, p.19). Assim como aconteceu na Europa e nos Estados Unidos, no Brasil não foi diferente, a tatuagem surgia na pele dos menos favorecidos e era vista como sinal de marginalidade. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada — tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs24, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que influência do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país. (Rio, 2008, p. 19). Com a popularização, a tatuagem começa a se destacar em livros, crônicas, poesia, os exemplos são nas crônicas de Machado de Assis de 1895 que ele escrevia para o jornal carioca Gazeta de Notícias, nas poesias de Leão de Vasconcelos que em 1925 escreveu o livro Tatuagens Sentimentais, Jorge Amado com os livros Mar Morto de 1936 e os Velhos Marinheiros de 1961 e Graciliano Ramos com Insônia de 1947, (Marques, 1997). As cidades portuárias do Brasil recebiam muitos tatuadores estrangeiros, muitos vinham e iam embora, mas em 1959, um dinamarquês chamado Lucky se estabeleceu em terras brasileiras, mais precisamente na cidade de Santos, foi marinheiro em outrora, aprendeu a prática de fazer tatuagem e foi nessa cidade onde começou a se popularizar e criar fama, no qual recebeu o apelido de Mr.Tattoo, (Leitão, 2000). De acordo com Leitão (2000) é na década de 70 que a tatuagem começa a se configurar da maneira como ela é vista hoje, começa a estabelecer-se entre os jovens da Zona Sul do Rio de Janeiro, jovens surfistas, com os corpos bronzeados, ligados à natureza, influenciados pelo movimento hippie, ficaram conhecidos como a “juventude dourada”. “Lucky passa a ter outra freguesia, porque os tatuadores profissionais por muito tempo continuam nos portos, não se aventurando a ganhar as cidades. Muitos jovens do Rio iam até Santos para se tatuar com Lucky” (Leitão, 2000, p.08). A tatuagem se estabeleceu no Brasil, engendrando-se na população brasileira. Em 1979, através da música “Menino do Rio” de Caetano Veloso e interpretada por Baby Consuelo25, Caetano pega como símbolo Petit26, um surfista que na época tinha apenas 24 - Mulher que vive com um homem, mas não é casada com o mesmo. Sinônimo= amásia. 25 -Passou a adotar o nome de Baby do Brasil a partir de 1995. 34 dezesseis anos e foi tatuado então pelo tatuador que estava no auge, Lucky, que tatuou um dragão em Petit. É através da voz de Baby Consuelo que a música de Caetano, hino de uma geração, transforma a tatuagem em algo socialmente aceitável, e até certo ponto desejável. A música do “menino do Rio”, e seu “dragão tatuado no braço” viram mesmo música tema da novela Água Viva, da Rede Globo. (Leitão, 2000, p. 08). Marques (1997) reafirma esse acontecido dizendo que, O público gosta de copiar roupas, penteados e trejeitos de artistas de cinema e TV. Nos anos 80, passou a copiar a tatuagem. Na novela Guerra dos Sexos, exibida de junho de 83 a janeiro de 84, na Rede Globo, o personagem interpretado pelo ator Mário Gomes tinha no peito uma gaivota cruzando o sol. Todas as lojas e todos os ateliês caseiros foram obrigados a produzir uma quantidade incalculável de réplicas dessa tatuagem telenovelesca – inclusive em peles femininas. Grifo do autor. (p.201). A partir da década de 80 iniciou a profissionalização da tatuagem, estúdios começaram a surgir, gerando a preocupação com materiais esterilizados e profissionais aptos a essa ocupação. Multiplicaram-se as lojas, no Rio e em São Paulo. Num dia de verão, uma única loja podia receber até vintes clientes, e não só brasileiros. Sempre que o porto do Rio recebia navios de Marinha de guerra estrangeira, chovia dólar no bolso dos tatuadores. E ainda havia os turistas, nacionais e internacionais, loucos pelo mais pessoal dos suvenires27. (Marques, 1997, p. 198). Dessa forma, a tatuagem inicia uma nova etapa em sua história, começa a tornar-se um modelo para artistas, criando visibilidade no meio artístico. 1.4 A tatuagem contemporânea Atualmente o indivíduo da tatuagem, não tem uma identidade específica, ele não pertence a nenhum grupo ou comunidade, o novo sujeito da tatuagem não tem idade, classe social, gênero, ele simplesmente quer ter uma tatuagem pelo simples fato de achá-la bonita, por querer enfeitar o corpo, entre outros fatores (Fonseca, 2003). 26 - José Artur Machado, conhecido como Petit, símbolo da geração de jovens bronzeados e surfistas, na Praia de Ipanema, zona Sul do Rio de Janeiro. 27 - A palavra vem do francês ‘para a memória’. São presentes, lembranças dadas por aqueles que viajam. 35 De acordo com Le Breton (2004) na contemporaneidade existe a banalização da tatuagem, vive-se na época do imediatismo, o que em um momento era tido com valor negativo hoje é aceito de alguma forma, e essa tendência pode acontecer com as outras modificações corporais que atualmente são vistas com olhar de estranhamento que são as: escarificações28, branding29, tongue splitting30, ritual de suspensão31, entre outras. A tatuagem entrou no Ocidente através de grupos contrários ao que a sociedade demandava, era um símbolo de exclusão, atualmente foi apropriada pelo sistema, “hoje as tatuagens já não possuem nem um desses significados. Tendo sido apropriadas pelo sistema da moda, da publicidade e da mídia, transformaram-se em um adorno corporal comum” (Kemp, 2005, p.59). Atualmente a tatuagem não tem mais o sentido subversivo com que os jovens a utilizavam nas décadas de 60,70 e 80, “se a tatuagem ou piercing podiam ainda ser associados a uma dissidência social nos anos 70 ou 80, hoje já não é esse caso” (Le Breton, 2004, p.10). Os tatuados querem ser vistos, admirados, valorizados e a tatuagem os ajudam nesse quesito, almejam ser populares. Ao postar as fotos de suas tatuagens em redes sociais, querem curtidas e compartilhamentos, mostrando seus corpos e o pertencimento do próprio. Seus ídolos também aderiram às tatuagens, e ter essa marca no corpo significa estar na moda, ser popular “as marcas contemporâneas, pelo contrário, tem em primeiro lugar um objetivo de individualização e estético” (Le Breton, 2004, p.12). As pessoas com marcas corporais na sociedade atual não querem ser vistas como mais uma em meio às outras, querem mostrar que são diferentes, escancarar a liberdade que tem em expressar suas vontades, desejos e gostos através da tatuagem. A tatuagem conhece desde então uma difusão social crescente. O sinal na pele tem valor de decoração, traduz uma vontade estética em relação a si. Proclama a independência do indivíduo face ao social, e sua vontade clara de fazer de si o que entender. De prática marginal e estigmatizante, a tatuagem passa pouco a pouco a ser valorizada e reivindicada como artística [...] diz respeito às todas as classes sociais [...] as tatuagens ou os piercings transformaram-se em acessórios de beleza que não se gastam um adereço definitivo que contribui para a afirmação do sentimento de identidade. (Le Breton, 2004, p.20). 28 - Técnica de modificação corporal que consiste em produzir cicatrizes no corpo através de material cortante. 29 - É a escarificação produzida através de queimaduras (geralmente de 2º grau). 30 - Bifurcação central da língua, aparência de língua de cobra. 31 Suspensão do corpo por meio de ganchos passados através de perfurações na pele. 36 Le Breton (2004) vai argumentar conjuntamente que devido a esse passado negativo da tatuagem, as pessoas mais velhas são contra essas modificações e para os jovens essa visão já não existe. Para eles essa marca serve entre outras coisas como uma forma de embelezamento e estética. O sinal é memória de um acontecimento, da abertura pessoal de uma passagem na existência, do qual o indivíduo não quer perder a lembrança. Sob uma forma ostensiva ou discreta, participa de uma estética da vida cotidiana, jogando com o segredo segundo o seu lugar e o grau de familiaridade com o outro (Le Breton, 2004, p. 11). Na sociedade contemporânea, é o indivíduo quem escolhe o momento que a tatuagem deve ser feita, diferentemente das sociedades tribais, que viam nas marcas corporais um rito de passagem “podemos dizer que nos tribais o ritual precede o fato e prepara o indivíduo para vivenciá-lo. Nos contemporâneos, ele se dá depois do fato consumado e serve como registro do ocorrido, um registro que ajuda a criar a identidade” (Pires, 2003, p.81). Atualmente nos deparamos com corpos com vários tipos de modificações corporais, sejam modificações corporais aceitas, como tatuagem, piercing e cirurgias estéticas, sejam modificações corporais extremas como são os casos das escarificações, brandings, rituais de suspensão. De acordo com Mifflin (1997, citado por Le Breton, 2004) o público majoritário da tatuagem antigamente era masculino historicamente falando e atualmente esse público mudou. De acordo com a revista Super Interessante (2014), que realizou um censo sobre a tatuagem, o público com mais tatuagem são as mulheres. A tatuagem popularizou-se, percebendo isso, o mercado consumidor resolveu aplicar nesse tipo investimento, um exemplo são as bonecas Monster High32, que vem com tatuagens no corpo e na internet já existem jogos para que as crianças possam fazer e criar suas próprias tatuagens na boneca, ou seja, a criança vira um tatuador virtual. A tatuagem tem seu lugar aceito atualmente, mas o preconceito e dúvida por parte da sociedade ainda existe. Enfim, o quadro 1 ilustra de uma forma compacta o contexto da tatuagem no decorrer da sua história. 32 -É uma franquia de fashion dolls estadunidense criada e desenvolvida pela Mattel em 2010. A franquia gira em torno de personagens inspirados em monstros lendários e de filmes de terror encarnados com jovens adolescentes em uma escola para monstros. 37 Quadro 1 – Os contextos da tatuagem no decorrer da história Fonte: Fonseca, A. L. P, 2003. Contexto Sócio - Cultural Tatuador Usuários Recursos e cenários Identificados pelo sujeito como: Navegação - Descobertas Europa (Século XVIII) Povos Indígenas das Ilhas do Pacífico Navegantes: Marinheiros e Capitães Saber exótico Corpo dos navegantes como tela de exibição O exótico Marginalidade (fins do século XIX e começo do XX) "Amadores" trabalham por trocas Presidiários Meretrizes Soldados Saber de bricolagem Técnica rudimentar (manual) Itinerância O marginal A criminalidade Revolução tecnológica Centro de difusão: Centros urbanos, e Estados Unidos (começo do século XX) Tatuador Moderno Profissional Urbano, cosmopolita Saber técnico Máquina elétrica Nascimento dos estúdios modernos O tecnológico Rebeldia juvenil Tribos urbanas (anos 60 e 70) Tribos Urbanas Hell's Angel Roqueiros Punks Skin heads A transgressão A droga Sociedade Contemporânea Neotribalismo (Década de 80 à atualidade) Tatuador contemporâneo Profissional Artista Diferentes tipos, multifacetadas Saber técnico Saber artístico (desenhar) Assepsia Material descartável Catálogos, álbuns, revistas especializadas Lojas contemporâneas A estética Individualidade Sociedade inclusiva 38 2- O corpo tem uma história O corpo humano é um traje sagrado. É o primeiro e o último traje de uma pessoa: é nele que se entra na vida e é com ele que se parte dela; deve ser tratado com honra, e com alegria e medo também. Mas sempre com graça. (Graham, 1993, p.14). Fonte: Site ‘O Forum’, http://calvicieoforum.saude.ws/viewtopic.php?f=5&t=13860 39 2.1 O corpo pensado, cultuado, castigado, modificado. No decorrer da história há vários debates que tangem à temática do corpo, a maneira como é visto e as práticas relacionadas à corporeidade vão se desenrolar de acordo com as diferentes épocas, civilizações e culturas existentes. Pensar o corpo como algo produzido na e pela cultura é, simultaneamente, um desafio e uma necessidade. Um desafio porque rompe, de certa forma, com o olhar naturalista sobre o qual muitas vezes o corpo é observado, explicado, classificado e tratado. Uma necessidade porque ao desnaturalizá-lo revela, sobretudo, que o corpo é histórico. Isto é, mais do que um dado natural cuja materialidade nos presentifica no mundo, o corpo é uma construção sobre a qual são conferidas diferentes marcas em diferentes tempos, espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais, étnicos, etc. [...] o corpo é provisório, mutável e mutante, suscetível a inúmeras intervenções consoante o desenvolvimento científico e tecnológico de cada cultura. (Goellner, 2010, p.28). Com isso buscou-se fazer uma breve reflexão sobre a história do corpo para então relacioná-la com as modificações corporais, mais especificamente as tatuagens. Para compreensão dessa prática é necessário entender o processo corporal que levou a sociedade classificar a tatuagem como uma modificação. O corpo é um lugar socialmente construído, a forma como o homem o utiliza vai ocorrer por intermédio da época e cultura. O corpo é polissêmico, “o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou, mais exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem, é seu corpo” (Mauss, 2003, p. 407). Melo (2004) vai argumentar que não se pode falar de corpo sem que haja o controle do mesmo. O corpo submetido ao controle não é algo novo em nossa civilização. Podemos destacar situações em que o corpo foi negligenciado ou não valorizado em detrimento de outros valores dominantes, a exemplo das guerras, da ideia de que o corpo pode ser comparado a uma máquina ou considerado como fruto do pecado dos homens. Diferentes concepções de corpo podem ser vistas em diferentes contextos sociais e momentos históricos. As formas de vivenciar o corpo nas diferentes sociedades estão presentes nos simples momentos do cotidiano, como andar, por exemplo. As diversas formas de vida, de ser corporalmente, são apreendidas pela cultura. (Porpino, 1999, p.02) É através do corpo que expressamos nossas primeiras sensações, muito antes da linguagem verbal surgir à linguagem corporal já era utilizada, desde tempos remotos, os homens da pré-história já utilizavam seu corpo para se comunicarem por meio de gestos. 40 Suporte da subjetividade, o corpo é nosso primeiro universo. É ele que recebe as primeiras impressões do mundo: cheiro, sabores, luz, calor [...] muito antes do pensamento, o corpo é sensação. É pelo corpo que um eu se exterioriza e possibilita a presença do sujeito no mundo. Os tempos sociais, afetivos, culturais e psíquicos passam pelo suporte do corpo para demarcarem sua existência. É nele que o sujeito se constitui, sendo também primeira forma de visibilidade humana. (Barros, 2006, p.13). O corpo tem uma história, devido a isso vive em constante modificação. A visão corpo-alma sempre norteou os pensamentos e escritos que existiram a respeito do corpo. Se o corpo é polissêmico, cada cultura terá o seu significado. “A concepção de corpo, seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofreram modificações em todas as sociedades históricas” (Le Goff & Truong, 2006, p.10). Na pré- história de acordo com Costa (2011) a relação do homem com o corpo era que ele sentia-se como parte desse ambiente. Os trabalhos rupestres mostram a representação de corpo do homem primitivo, deles imergem a sua relação mítica com o mundo circundante, cheia de medos, de sensações de impotência diante dos mistérios e da agressividade dos eventos naturais que provavelmente colocavam a vida em risco. As posturas e posições corporais, expressadas nos desenhos, dão alguma informação de como os homens primitivos concebiam o corpo. A percepção de si mesmos se sustentava na forma como explicavam um mundo ameaçador, pelo temor que sentiam diante do perigo. (pp. 247-248). Corpo e espírito não se separavam, não havia a valorização ou desvalorização desses, pois o corpo pertencia ou fazia parte do universo. Utilizava-se o corpo como instrumento de sobrevivência no mundo “o corpo do homem primitivo estava em sintonia e intimidade com o ambiente, com a satisfação das necessidades e a solução dos problemas imediatos do cotidiano” (Costa, 2011, p.248). Os povos egípcios acreditavam na imortalidade da alma, segundo Pires (2001) ao morrer era preciso cuidar desse corpo, pois ele serviria de moradia da alma depois da morte, sendo assim havia um culto ao corpo. A imortalidade da alma estava vinculada à representação, à conservação e à recomendação do corpo. Assim, neste período foram desenvolvidas técnicas artísticas de representação do corpo humano – tanto para a pintura como para a escultura – métodos científicos de conservação – embalsamação e mumificação – e fórmulas de encantamento (Pires, 2005, p. 23). 41 Pires (2005) argumenta que os egípcios eram adeptos da mumificação, pois assim garantiam a imortalidade da alma, nesse processo junto ao seu corpo eram colocados os objetos e pertences que fizeram parte da sua vida enquanto vivos, até mesmo os escravos eram colocados juntos ao seu corpo. O corpo do nobre se destacava dos demais, essa argumentação se dava porque acreditavam que era assim que os deuses determinavam “tais padrões culturais indicam que o domínio do corpo foi essencial para estes povos e seus desejos de encaminhar o espírito, após a morte, para a conquista da felicidade eterna” (Costa, 2011, p.249), ou seja, nessas culturas o corpo passava a ter muita importância. No período clássico, na Grécia Antiga a relação do corpo vai acontecer por intermédio da diferenciação entre homem e mulher, que segundo Pires (2005) se dava através do calor corporal. O calor corporal do homem era maior em detrimento ao da mulher, que era quase nulo, com isso muitos homens usavam menos roupas e na mulher havia a necessidade de vestimentas, pois não tinham esse calor, essa circunstância foi o argumento da soberania do homem nessa época “Desta forma, os cidadãos atenienses valorizavam os corpos masculinos e viam na nudez uma forma precisa de distinguir os indivíduos fortes dos menos saudáveis” (Pires, 2005, p. 27). Costa (2011) diz que as principais cidades-estados, Esparta e Atenas tinham formas diferentes de enxergar o corpo, em Esparta a valorização se dava através da virilidade e da força, sendo que o indivíduo que nascia com alguma deficiência física era morto, e o indivíduo que adquiria alguma deficiência no decorrer da vida era excluído das atividades que necessitavam de força e do exército espartano. Era uma sociedade excludente. Já em Atenas, o culto ao corpo acontecia por meio do belo, da arte e literatura. “Ambas as cidades cultuaram a beleza do corpo, feminino e masculino, deveriam levá-los mais próximo possível da perfeição” (Costa, 2011, p. 251). A partir da civilização romana e com o advento do Cristianismo o corpo não é mais visto com admiração. Para Pires (2005) o Cristianismo impôs ao corpo a necessidade da dor física e o sacrifício corporal como salvação do espírito. Com o advento do cristianismo, o corpo passou a carregar em si a marca do pecado: a mulher foi condenada aos sofrimentos do parto, e o homem a retirar da terra, com trabalhos penosos, o seu sustento. O cristianismo foi a religião, por excelência, da mortificação do corpo físico para que se pudesse salvar a alma. (Melo, 2004, p.45). 42 Perante as leis cristãs, os corpos são todos iguais, o que difere um indivíduo do outro é o espírito “contrariamente a civilização Grega, a Romana aspirava ao entorpecimento de todos os sentidos. A experiência sensorial deveria ser anulada em detrimento da espiritual.” (Pires, 2005, p. 31). Melo (2004) vai argumentar que esse entendimento da corporeidade como algo desprezível vai adentrar a Idade Média, nesse período o corpo é visto como algo impuro, e acaba sendo mais desvalorizado, pois tudo que pertencia ao mundo era provisório. O corpo não tem o menor valor, é a prisão do homem, não é nada em si mesmo, por ser passageiro e mortal. Deve o corpo, pois, ser submetido a humilhações e mutilações, pois é a origem de todo o mal. Dentro desse enfoque, ser dominado pelo corpo é próprio dos seres inferiores. (Melo, 2004, p.47). Foi nesse período que a Santa Inquisição33 utilizou-se do corpo para aplicar suas punições. Marcas de nascença, cicatrizes pelo corpo eram consideradas marca do diabo e consequentemente essas pessoas recebiam torturas ou acabavam na fogueira. Para Le Goff e Truong (2006) a relação que temos com o nosso corpo, de acordo com o conceito histórico é o reflexo do período da Idade Média. Muitas de nossas mentalidades e muitos de nossos comportamentos foram concebidos na Idade Média. Isto é válido também para as atitudes em relação ao corpo, ainda que as duas reviravoltas principais tenham ocorridos no século XIX (com o ressurgimento do esporte) e no século XX (no domínio da sexualidade). É de fato na Idade Média que se instala esse elemento fundamental de nossa identidade coletiva que é o cristianismo, atormentado pela questão do corpo, ao mesmo tempo glorificado e reprimido, exaltado e rechaçado (Le Goff & Truong, 2006, p.29). Para Le Goff e Truong (2006) o corpo na Idade Média é um paradoxo, por um lado o cristianismo o reprime, por outro lado é glorificado por causa de Cristo, a igreja controlou o corpo socialmente e culturalmente. Nos séculos XVI e XVII inaugura-se a valorização do homem como ser pensante, o homem com razão. Pensamentos e corpos são separados, visto como coisas distintas “o corpo passará de instrumento da alma para ser um mecanismo, uma maquinaria autônoma. ‘O penso, logo existo’ cartesiano torna-se a marca do homem ocidental” (Melo, 2004, p.48). 33 Espécie de tribunal religioso criado na Idade Média para condenar todos aqueles que eram contra os dogmas pregados pela Igreja Católica. 43 De acordo com Capra (1986), Descartes, criou a partir desse pensamento o conceito de plano cartesiano que, Privilegiasse a mente em relação à matéria e levou-o a conclusão de que as duas eram separadas e fundamentalmente diferentes [...] a divisão cartesiana entre matéria e mente teve um efeito profundo sobre o pensamento ocidental. Ela nos ensinou a conhecermos a nós mesmos como egos isolados existentes ‘dentro’ dos nossos corpos. (Capra, 1986, p.55). A nova concepção de homem moderno, conforme Tucherman (2004) é o sujeito individual, seu corpo é próprio e associa-se com o espaço das coisas. Abandonando a antiga imagem da duplicidade da alma e do corpo, a saúde do corpo é pensada a partir de um novo paradigma: o de uma corrente que constrói uma nova imagem de saúde e individualidade corporal, mudando as relações entre corpo e o ambiente humano. Agora, numa sociedade cada vez menos religiosa e mais secular, a saúde passa a ser vista, e cada vez mais, como uma responsabilidade individual, em vez de uma dádiva de Deus. (Tucherman, 2004, p.80). Segundo Capra (1986) esse pensamento cartesiano produziu uma nova visão no que concerne a saúde e corpo. Indústrias voltadas à fabricação de objetos que ajudassem na manutenção de um corpo perfeito ficaram em voga, o público alvo foram às mulheres, na medicina os médicos não podiam mais atuar em doenças psicológicas, nas ciências humanas houve um conflito entre mente e cérebro. Para contestar esse corpo cartesiano o filósofo Merleau- Ponty (1999) relata que o corpo é construído a partir de experiências vividas, ele assume um caráter peculiar, e critica esse caráter dual ao qual o corpo é submetido, exemplifica assim Melo (2004) que o “mundo e sujeito são unos, sendo o corpo importante categoria mediadora que faz a ponte entre o Ser e o Mundo, o Ser e o outro, e entre Ser e o Outro no Mundo” (p. 51). Quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer, retomar por minha conta o drama que o transpassa e confundir-me com ele. Portanto, sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total. (Merleau-Ponty, 1999, p. 269). Medina (1991) vai pontuar que com o decorrer do tempo essas ideias vão permear a sociedade que vem surgindo, influenciados também pela manifestação sobre o corpo após a 44 Segunda Guerra mundial, essas manifestações vão discutir a relação do corpo com a sexualidade, atividades ligadas ao esporte e danças. E esclarece que, A análise evolutiva da concepção de corpo, da Grécia Antiga aos nossos dias, revela- nos o confronto entre o Idealismo e o Materialismo, entre a Metafísica e a Dialética. Estes são os registros que a razão humana, através de sua história, encontrou para a leitura e interpretação da realidade. E mais: para a sua conservação ou transformação radical. (Medina, 1991, pp. 52-53). Melo (2004) vai ressaltar que esse novo paradigma do materialismo histórico- dialético, propõe que o homem seja reconhecido com um corpo, mas esse corpo tem uma compreensão histórica, que surge a partir do seu convívio social e como ele orienta sua vida. De acordo com os vários relatos de autores que estudaram a ótica do corpo no sentido de como ele é abordado na sociedade, podemos perceber como foi construída essa relação existente na nossa sociedade contemporânea, “revendo essa trajetória, pode-se perceber um pouco mais como foram construídas, em nossa cultura atual, sob vários disfarces, as dicotomias corpo-alma, matéria e forma, exterior e interior, objetivo e subjetivo” (Melo, 2004, p.50). 2.2 Corpos na contemporaneidade: a tatuagem como marca da individualidade Vivemos na época da vigência do Capitalismo, atualmente o que se prega é o consumismo exacerbado das coisas que nos rodeiam, “autoestima, status, bom gosto, personalidade, ostentação são sentimentos relativos à nossa cultura e que se expressam através das mercadorias, que se transformam em seus símbolos” (Kemp, 2005, p.77). Bauman (2001) trabalha muito bem essa relação sociedade versus consumismo, ele chama essa sociedade de modernidade líquida, porque assim como o líquido se ajusta ao vasilhame que é colocado, a nossa sociedade é ajustável ao que se prega. Os líquidos se espalham e vazam com muita facilidade, comparando assim com a atualidade. Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência e interação. Eles são agora maleáveis a um ponto que as gerações passadas não experimentaram e nem poderiam imaginar; mas como todo o fluído eles não mantêm a forma por muito tempo. Dar-lhes forma é mais fácil que mantê-los nela. Os sólidos são moldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço perpétuo – e mesmo assim o sucesso do esforço é tido menos inevitável (Bauman, 2001, pp.14-15). 45 Assim a “política da vida” é introduzida pelo ter e não o ser. A pessoa se satisfaz quando tem mais bens de consumo que o seu vizinho. Só que esse anseio pelo ter é infindável, quanto mais se tem, mais se almeja, “nenhum dos prêmios é suficientemente satisfatório para destituir os outros prêmios que acenam e fascinam” (Bauman, 2001, p.86). O consumismo de hoje, porém, não diz mais respeito à satisfação das necessidades – nem mesmo as mais sublimes, distantes (alguns diriam, não muito corretamente, ‘artificiais’, ‘inventadas’, ‘derivadas’) necessidades de identificação ou a auto-segurança quanto à ‘adequação’. Já foi dito que o spiritus movens da atividade consumista não é mais o conjunto mensurável de necessidades articuladas, mas o desejo – entidade muito mais volátil e efêmera, evasiva e caprichosa, e essencialmente não referencial que as ‘necessidades’ um motivo autogerado e autopropelido que não precisa de outra justificação ou ‘causa’ [...] o desejo tem a si mesmo como objeto constante, e por essa razão está fadado a permanecer insaciável qualquer que seja a altura atingida pela pilha dos outros objetos. Grifo do autor. (Bauman, 2001, p.88). As consequências desse consumo exagerado manifestam-se através de doenças que são tidas como contemporâneas, estresse, agressividade, depressões, juntando-se a isso a banalização do corpo, complementa Pires (2003) diante dessa situação “nos colocam diante da necessidade de nos reapropriarmos deste e de criarmos uma identidade que nos diferencia dos demais” (p. 77). Vivemos em uma sociedade imediatista, para alguns o passado não tem importância, o futuro nem é pensado, o momento presente é o que importa, segundo Pires (2003) vive-se uma inconstância e com isso o indivíduo através dessa flutuação quer por meio de práticas milenares de modificação corporal, construir o seu corpo atual, “esses indivíduos que veem as modificações corporais como sendo um requisito estético necessário para se inserirem no contexto urbano atual” (p. 78). Com as tatuagens esses indivíduos querem mostrar à sociedade suas lembranças e suas emoções mais íntimas, e mesmo com a imposição da sociedade por corpos perfeitos, o novo sujeito da tatuagem quer exibir esse corpo “como essa associação se dá de forma absolutamente particular, o real significado de qualquer uma das marcas corporais só é totalmente compreendido pelo indivíduo que a possui” (Pires, 2003, p.79). O corpo com isso é a representação do que o indivíduo passa naquele instante na sua vida através dos desenhos marcado em sua pele. Há nessa transferência não apenas uma mudança no modo de efetuar, de perpetuar e de relacionar-se com os principais fatos de sua história, mas também na forma de concebê-los que, com essa alteração, deixa de ser uma atividade predominantemente racional e passa, como os sonhos, a ser uma maneira encontrada pelo indivíduo de resgatar elementos do 46 inconsciente. O registro corporal hoje, mais do que uma marca estética ou amuleto protetor, representa um prolongamento da mente (Pires, 2003, p.80). Atualmente o corpo remete ao nosso individualismo, nossa identidade pessoal “o corpo contemporâneo não deixa de ser – como em qualquer época e lugar – o corpo que expressa uma condição cultural muito específica que é experimentada como modo de vida”. (Kemp, 2005, p.14). A cada indivíduo cabe à construção pessoal do seu corpo, há uma vontade de transformação, um lugar único que pertence a si mesmo. “Nas nossas sociedades o corpo tende a tornar-se uma matéria-prima a modelar segundo o ambiente do momento. É doravante, para um grande número de contemporâneos, um acessório da presença, um lugar de encenação de si próprio” (Le Breton, 2004, p.07). Já não se trata de se contentar com o corpo que se tem, mas de modificar os seus fundamentos para completá-lo ou torná-lo conforme a ideia que faz dele. Sem o suplemento introduzido pelo indivíduo no seu estilo de vida ou nas suas ações deliberadas de metamorfoses físicas, o corpo seria uma forma decepcionante, insuficiente para acolher suas aspirações. É preciso acrescentar-lhe a sua marca própria para tomar posse dele (Le Breton, 2004, p.08). Há também nessa conjuntura corpo e tatuagem a percepção do olhar do outro, cada indivíduo terá uma compreensão diferente em relação às marcações corporais, para cada um a tatuagem tem um significado peculiar e distinto. Se apropriando da Antropologia no que diz respeito ao Etnocentrismo, não se pode julgar o corpo e a tatuagem de alguém pelo que se considera ser correto, ou seja, julgar o indivíduo por meio de padrões corporais que se presume serem os corretos, nesse sentido o que cabe ao outro é relativizar essa situação, ou seja, não condenar e nem julgar, simplesmente aceitar que aquela marca tem algum significado para quem a possui. O que fica claro é que as tatuagens para sociedades antigas significavam que os corpos estavam unidos através daquela marca e havia uma representação social para aquilo. Hoje, marcar o corpo significa expressar sua individualidade, embora essa individualidade esteja associada a restrições sociais. Sendo assim de acordo com Kemp (2005) a tatuagem para quem a possui atualmente significa que, Não existe, por parte dos envolvidos [...] qualquer preocupação em ‘manter tradições’, ou de como essas práticas se relacionam em sua origem a outros fatos e 47 representações como mito e ritual. A tradição é apropriada e evocada agora como forma de expressar ruptura, discordância dos padrões de embelezamento [...] e do consumo da individualidade. A tradição do outro, que em seu contexto original representa os laços do indivíduo com o grupo e suas tradições, serve inesperadamente como recurso de rompimento com sua própria história. Reapropriados dentro de um novo contexto cultural, a tradição adquire um novo sentido e abre possibilidade de novos usos e representações. (p.63). Nas sociedades atuais não é uma prática socialmente imposta, e sim um adorno a mais ao corpo, o embelezamento dele. Assim enfatiza Berger (2006), “o corpo é um reflexo da sociedade que articula significados sociais e não apenas um complexo de mecanismos fisiológicos; assim sendo, é impossível pensar o corpo sem considerar a pluralidade de sentidos que ele engloba” (p. 38). O corpo se transforma, torna-se uma vitrine de exposições, atrelado a condutas e regras estéticas, (Berger, 2006). As marcas no corpo podem significar códigos de pertencimento para grupos específicos, como roqueiros, punks, nazistas, mas também pode significar que ter essa marca no corpo, demonstra seus gostos, desejos, sonhos e realizações, tatuar o símbolo de um clube de futebol ou um nome de uma banda musical famosa significa não expressar verbalmente suas opções, pois está explicitamente inscrito nele. As marcas corporais para muitos significam uma identidade, para outros um ornamento, mas em ambos os casos o corpo sempre estará atrelado nessa situação, é no corpo que estará exposta essa nova condição. A partir do momento que o corpo contém uma marca, ele passa a ser diferente dos demais. As tendências exibicionistas e performáticas alimentam os novos mecanismos de construção e consumo identitário, numa espetacularização do eu que visa à obtenção de um efeito: o reconhecimento nos olhos do outro e, sobretudo, o cobiçado, fato de ser visto. Nesse contexto, a subjetividade é estruturada em função do corpo, que se torna um espaço de criação epidérmica e um campo propício para a expressão do eu, mais do um mero suporte para acolher aquele enigmático espaço interior que devia ser auscultado permanentemente por meio de complexas técnicas introspectivas e hermenêuticas (Sibilia, 2003, p. 03). Segundo a autora novas identidades surgem nesse desfecho, os tatuados e os não tatuados. Atualmente as marcas corporais, não significam um corpo marcado pelo exótico, pelo diferente, hoje ter uma tatuagem no corpo significa estar na moda, o corpo como pedestal da arte. Há várias convenções de tatuagem em todo o mundo, no qual o tatuado expõe o seu corpo a observação de terceiros para ser vislumbrado, observado, analisado, da mesma forma quando se vai a uma exposição de arte em um museu. Como explicita Barros (2006). 48 Associar a tatuagem como expressão artística encontra-se na tendência atual das chamadas ‘convenções de tatuagem’ realizadas anualmente em cidades brasileiras e europeias, que têm a finalidade de ampliar o espaço da tatuagem e validá-la como produção artística. [...]. Um corpo tatuado também é um corpo de incentivo e de resultado do consumo. (p.36). Assim, o corpo contemporâneo marcado pela tatuagem, carrega consigo as indicações da individualidade, mesmo vivendo tempos pelo qual o efêmero é atuante, a tatuagem vem em contra partida e fica em definitivo na pele. 49 3- O relativizar da tatuagem e do corpo: a metodologia empregada Restava o terceiro desafio, o mais formidável, aquele que eu estava a anos-luz de imaginar ter de enfrentar um dia, ao abrir a porta do Woodlawn Boys Club e para o qual esta obra dá uma primeira resposta parcial e provisória (assim como