Caleidoscópio de pensamentos: ensaios e prosas sobre loucura, trabalho e oficinas na Saúde Mental ARIANA CAMPANA RODRIGUES ASSIS 2021 2021 ARIANA CAMPANA RODRIGUES Caleidoscópio de pensamentos: ensaios e prosas sobre loucura, trabalho e oficinas na Saúde Mental Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de doutora em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador: Silvio Yasui Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 ASSIS 2021 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Assis CERTIFICADO DE APROVAÇÃO TÍTULO DA TESE: Caleidoscópio de pensamentos: ensaios e prosas sobre loucura, trabalho e oficinas na Saúde Mental AUTORA: ARIANA CAMPANA RODRIGUES ORIENTADOR: SILVIO YASUI Aprovada como parte das exigências para obtenção do Título de Doutora em PSICOLOGIA, área: Psicologia e Sociedade pela Comissão Examinadora: Prof. Dr. SILVIO YASUI (Participaçao Virtual) Departamento de Psicologia Social / UNESP/Assis Profa. Dra. ANA MARIA RODRIGUES DE CARVALHO (Participaçao Virtual) Departamento de Psicologia Experimental e do Trabalho / UNESP/Assis Profa. Dra. ELIZABETH MARIA FREIRE DE ARAÚJO LIMA (Participaçao Virtual) PPG/Psicologia / UNESP/Assis Prof. Dr. LADISLAU RIBEIRO DO NASCIMENTO (Participaçao Virtual) Universidade Federal do Tocantins / UFT/Tocantins Profa. Dra. CATIA PARANHOS MARTINS (Participaçao Virtual) Faculdade de Ciências Humanas / UFGD/Dourados Assis, 21 de julho de 2021 Faculdade de Ciências e Letras - Câmpus de Assis - Avenida Dom Antonio, 2100, 19806900, Assis - São Paulo www.assis.unesp.br/posgraduacao/psicologia/CNPJ: 48.031.918/0006-39. Milton Nascimento canta que “para quem quer se soltar, invento o cais, invento mais que a solidão me dá” 1. Eu, que durante anos experimentei a simplicidade da errância navegante, precisei parir minha filha para docemente inventar meu cais. Dedico esta tese a você, minha Betina, que me inspira a ser um porto onde você pode se ancorar, fazendo de mim sua segurança em nosso mar-mundo. 1 NASCIMENTO, M.; BASTOS, R. Cais. In: NASCIMENTO, M.; BORGES, L. Clube da Esquina. Rio de Janeiro: EMI, 1972. Disco sonoro de vinil, lado A, faixa 2. AGRADECIMENTOS Signore, fa' di me uno strumento della tua pace 2 Figura 2 Título: São Francisco de Assis da Oficina de Vitral Plano do Núcleo de Oficinas e Trabalho Fotografia minha (ano de 2018) Embora pareça haver alguma solidão na feitura de uma tese, o que não é de todo inverdade, paradoxalmente há a participação de muitas pessoas nesse processo. O ato da gratidão relativiza minha importância e merecimento, pois torna visível a contribuição de outros e desenha a coletividade do trabalho. Agradecer, portanto, torna-se imperativo. 2 Tradução: “Senhor, faz de mim um instrumento da tua paz”. Do origina em italiano: Preghiera di San Francesco d’Assisi. Participar de aulas na universidade e escrever cotidianamente me possibilitou engendrar encontros interessantes e positivos com autores lidos e escutados. Nos últimos quatro anos, desfrutei mais dos livros do que da presença das gentes que me acompanharam e apoiaram nesse doutoramento. A única pessoa que esteve acima disso e que, a qualquer tempo que quis ou precisou, teve garantida toda a minha presença, foi minha filha Betina, simplesmente pelo meu compromisso com a maternidade e pelo amor incondicional que prazerosamente lhe dedico. Agradeço por ela ter vindo novamente ao mundo por mim, por esse acontecimento ter ressignificado minha vida, por ter me produzido tanta alegria, por estar me ajudando a me tornar um ser humano melhor. Junto ao meu reconhecimento e agradecimento a ela, e como sou dada a declarações de amor, os demais são muitos e fartos... À minha família, especialmente ao Beto, João, Ismenia, Deyse, Maria (in memoriam) pelo amor, acolhimento, apoio, incentivo, ensinamentos e aprendizagens, pela nobreza de caráter de cada um, por compreenderem meus rumos de vida e por me ensinarem sobre o valor do estudo e do trabalho. Ao meu companheiro Mardônio, pelo amor e parceria, por ser um psiquiatra sensível, pelos sonhos compartilhados. Sou grata por seu empenho em ter tornado nosso lar acolhedor a essa pesquisa. Ao Silvio, pela orientação sempre tão cuidadosa e respeitosa, pela generosidade com que se dedica à docência e, especialmente, pela postura compreensiva comigo e com Mardônio durante o processo em que eu gestava e paria Betina. Silvio é um professor inspirador e um ser humano de coração nobre. À Beth, que compôs a banca de qualificação e defesa, pelas aulas, pelos comentários pertinentes e certeiros que me ajudaram a prosseguir a pesquisa e pelo convite para uma imersão mais profunda e feliz pela obra de Arendt. À Catia, que também compôs a banca de qualificação e defesa, pelas leituras, diálogos e, principalmente, por ser minha parenta amiga de todas as horas, multiplicando alegrias, sonhos e sabedorias. Esses anos de doutorado estão contidos em mais de duas décadas de amizade, com aventuras vida afora e adentro. Obrigada por ser minha parenta. Ao Ladislau, por compor a banca de defesa, por ter me recebido para o estágio de docência no curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal do Tocantins e pela discussão ética e plural sobre o racismo, que me provocou novos olhares. À Ana Maria, por seu vital ativismo político em favor dos catadores de materiais recicláveis e pelas generosas contribuições na banca de defesa. À Cristina Amélia e à Rosana, professoras da graduação e do Aprimoramento em Saúde Mental que, juntas ao Silvio, me inspiraram a estudar e trabalhar na Saúde Mental. Guardo lindas recordações de nossos encontros. À Anúncia, caminhante comigo na Saúde Mental desde 2000, por ter me acolhido em sua casa durante parte da pesquisa de campo, pela luz que seu olhar me transmite e por partilharmos um lema de Walter Franco: “tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo” 3. À Carol e ao Jota, pela delicadeza do cuidado dedicado a Betina, ao Mardônio e a mim, e por serem nossos parceiros em terras tocantinenses. À Jama, pelas traduções dos textos em inglês e pela amizade de longa data, que se mantém mesmo à distância de um oceano. À Melisa, por ter me escutado com humor e por me lembrar que presença não depende da matéria. Aos oficineiros e técnicos do Núcleo de Oficinas e Trabalho, da Casa das Oficinas e da Associação Arte e Convívio, pela disponibilidade em contribuírem com a pesquisa, pela receptividade tão gentil e pela dedicação à causa da Luta Antimanicomial. 3 FRANCO, W. Coração tranqüilo. In: _____. Respire fundo. Rio de Janeiro: Epic/CBS, 1978. Disco sonoro de vinil, lado A, faixa 3. Sou grata também aos artistas, especialmente aos que fazem música. Valho-me da arte em meu exercício profissional – como o leitor verá ao longo da tese – e, sobretudo, para imprimir mais vida ao meu cotidiano. Ainda, faço caber nesses substantivos minha gratidão cheia de amorosidade: amigos de todos os lugares e épocas, parceiros dos equipamentos de saúde e das universidades onde trabalhei e estudei, colegas cuidadores e pessoas cuidadas da Saúde Mental, trabalhadores da seção de Pós-Graduação da UNESP: obrigada, de todo coração. Sou uma mulher de sorte por ter tido tantos bons encontros ao longo da vida. Finalmente, por ser protocolo e também para afirmar a importância da bolsa de estudos que me permitiu dedicação integral à pesquisa, agradeço à CAPES, conforme orientação disposta no sítio da Pós-Graduação em Psicologia da UNESP/FCL-Assis. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001. Figura 3 Título: Vinil na vitrola Fotografia minha (ano de 2021) Sou, como todo escritor, uma espécie de sonhador, sem muito jeito para político ou cientista. Não foi, portanto, por nenhuma lucidez especial que me apercebi desses problemas desde muito moço: foi a própria experiência da vida. (Ariano Suassuna) 4 Palavra boa Não de fazer literatura, palavra Mas de habitar fundo O coração do pensamento, palavra (Chico Buarque) 5 A atividade de pensar [...] ainda é possível, e sem dúvida está presente onde quer que os homens vivam em condições de liberdade política. (Hannah Arendt) 6 4 SUASSUNA, A. Farsa da boa preguiça. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005, p. 33. 5 BUARQUE, C. Uma palavra. In: _____. Chico Buarque. Rio de Janeiro: RCA, 1989. Disco sonoro de vinil, lado B, faixa 3. 6 ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 406. RODRIGUES, A.C. Caleidoscópio de pensamentos: ensaios e prosas sobre loucura, trabalho e oficinas na Saúde Mental. 2021. 388 f. Tese (doutorado em Psicologia). Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2021. RESUMO A presente pesquisa de doutorado trata de três signos relevantes à Reforma Psiquiátrica: loucura, trabalho e oficinas. Propus-me a tarefa de desfazer o normal e desnaturalizar algumas compreensões sobre eles por meio de exercício de pensamentos críticos. O texto está dividido em quatro partes. Na primeira parte, exponho sobre o contexto em que a pesquisa foi feita e sobre o ensaio como estratégia para registrar a cartografia. Na segunda parte, constam três ensaios. No primeiro, “Um olhar sobre a loucura”, reflito sobre questões históricas e atuais pertinentes às ciências psis, com foco no lugar social do louco e em discussões sobre diagnóstico e medicalização. A seguir, no ensaio “Um olhar sobre o trabalho”, penso a experiência do trabalho na vida humana, na sociedade brasileira e no movimento da Reforma Psiquiátrica. No terceiro ensaio, “Um olhar sobre as oficinas”, penso as oficinas como lugares que possibilitam a oferta de trabalho e de cuidado em saúde. Após, há a terceira parte da tese, em que trago elementos de minhas memórias de trabalhadora, registros fotográficos e trechos de narrativas com os sujeitos da pesquisa, que são oficineiros e técnicos de três equipamentos de oficinas de geração de trabalho e renda na Saúde Mental. Por fim, na quarta parte, concluo os estudos com uma carta dedicada à minha filha. Pretendo, com esta pesquisa, produzir conhecimento científico que contribua com as discussões sobre o tema, somando esforços para a superação da lógica manicomial e afirmando a importância do cuidado em liberdade. Palavras-chave: Loucura. Trabalho. Oficinas. Saúde Mental. Reforma Psiquiátrica RODRIGUES, A.C. Kaleidoscope of thoughts: essays and conversations on madness, work, and workshops in Mental Health. 2021. 388 p. Thesis (Doctorate in Psychology). College of Letters and Science, Paulista State University, Assis, 2021. ABSTRACT The present doctoral research focuses on three signs relevant to the Psychiatric Reform: madness, work, and workshops. I set myself the task of undoing the ordinary and revisiting some understandings about those signs through critical thinking exercises. The text is divided into four parts. In the first part, I report on the context in which the research was carried out and on the essay as a strategy to register the cartography. The second part contains three essays. In the first, "A Look at Madness," I reflect on historical and current issues pertinent to the psycho-sciences, focusing on the social place of the madman and discussions about diagnosis and medicalization. Next, in the essay "A Look at Work," I reflect on the work experience in human life, in Brazilian society, and in the Psychiatric Reform movement. In the third essay, "A Look at the Workshops," I discuss the workshops as places that make it possible to offer work and health care. Then, there is the third part of the thesis, in which I bring elements of my memories as a worker, photographic records, and excerpts of narratives with the research subjects, who are workshop workers and technicians from three equipment of work and income generation workshops in Mental Health. Finally, in the fourth part, I conclude the study with a letter dedicated to my daughter. I intend, with this research, to produce scientific knowledge that contributes to the discussions on the theme, adding efforts to overcome the asylum logic and affirming the importance of care in freedom. Keywords: Madness. Work. Workshops. Mental Health. Psychiatric Reform. LISTA DE FIGURAS Figura 1 Capa – flores do quintal vistas no caleidoscópio (I) Figura 2 São Francisco de Assis da Oficina de Vitral Plano do Núcleo de Oficinas e Trabalho Figura 3 Vinil na vitrola Figura 4 Ariana e Betina Figura 5 Flores do quintal vistas no caleidoscópio (II) Figura 6 Folhas do quintal vistas no caleidoscópio (I) Figura 7 Sementes do quintal vistas no caleidoscópio Figura 8 Flores do quintal vistas no caleidoscópio (III) Figura 9 Flores do quintal vistas no caleidoscópio (IV) Figura 10 Folhas do quintal vistas no caleidoscópio (II) Figura 11 Carta do tarô sobre Hannah Arendt Figura 12 Sabiá no quintal Figura 13 Logotipo da Associação Cornélia Vlieg, parceira do Núcleo de Oficinas e Trabalho, feito por Cornélia Maria Elizabeth Van Hylckama Vlieg Figura 14 Rosas coloridas da Oficina de Papel Reciclado do Núcleo de Oficinas e Trabalho (I) Figura 15 Vitrais da Oficina de Vitral do Núcleo de Oficinas e Trabalho Figura 16 Oficina de Serralheria do Núcleo de Oficinas e Trabalho Figura 17 Loja Armazém das Oficinas (I) Figura 18 Costurando na oficina de Costura do Núcleo de Oficinas e Trabalho Figura 19 Loja Armazém das Oficinas (II) Figura 20 Rosas coloridas da Oficina de Papel Reciclado do Núcleo de Oficinas e Trabalho (II) Figura 21 Colando cerâmica na Oficina de Mosaico da Arte e Convívio Fotografia minha (ano de 2018) Figura 22 Flores da oficina de Costura do Núcleo de Oficinas e Trabalho Figura 23 Colando flor na Oficina de Papel Reciclado do Núcleo de Oficinas e Trabalho Figura 24 Colando tecido na Oficina Harmonia da Casa das Oficinas Figura 25 Loja Armazém das Oficinas (III) Figura 26 Colando cerâmica na Oficina de Mosaico da Arte e Convívio Figura 27 Colando caco na Oficina de Mosaico do Núcleo de Oficinas e Trabalho Figura 28 Cortando cerâmica na Oficina de Mosaico da Arte e Convívio Figura 29 Cortando vidro na Oficina de Vitral do Núcleo de Oficinas e Trabalho Figura 30 Mosaico da Casa das Oficinas Figura 31 Medindo vidro na Oficina de Vitral do Núcleo de Oficinas e Trabalho Figura 32 Rosas coloridas da Oficina de Papel Reciclado do Núcleo de Oficinas e Trabalho (III) Figura 33 Betina LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BIREME: Biblioteca Regional de Medicina do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde BVS: Biblioteca Virtual em Saúde CAPS: Centro de Atenção Psicossocial CIST: Cadastro de Iniciativas de Inclusão Social pelo Trabalho CNES: Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde Ecosol: Economia Solidária FAMESP: Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar LILACS: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde MEDLINE: Medical Literature Analysis and Retrieval System Online NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família NOT: Núcleo de Oficinas e Trabalho ONU: Organização das Nações Unidas OPAS: Organização Pan-Americana de Saúde RAPS: Rede de Atenção Psicossocial Scielo: Scientific Eletronic Library Online SUS: Sistema Único de Saúde UNICAMP: Universidade Estadual de Campinas SUMÁRIO PARTE I ........................................................................................................... 18 Prólogo ............................................................................................................ 18 Um cotidiano (ou: Maternidade e produção científica) ..................................... 18 O que me move ............................................................................................... 35 Sobre o que escrevo ...................................................................................... 41 Como escrevo ................................................................................................. 52 A opção pela cartografia................................................................................... 55 Por uma ciência que integre saber e prática .................................................... 59 Referências ...................................................................................................... 63 PARTE II .......................................................................................................... 66 Ensaios............................................................................................................ 66 Ensaio 1: Um olhar sobre a loucura ............................................................. 68 Quem é louco? ................................................................................................. 71 Breve voejo histórico ........................................................................................ 76 No hospital ....................................................................................................... 81 Diagnósticos e afins ......................................................................................... 86 Criar nomes ...................................................................................................... 98 Bulir com a gigante farmacêutica ................................................................... 105 Algumas implicações da hegemonia biológica das ciências psis ................... 116 Enlouquecer sem ser domesticado ................................................................ 125 Referências .................................................................................................... 133 Ensaio 2: Um olhar sobre o trabalho .......................................................... 141 Criar mundos e acompanhar sabiás ............................................................... 143 Sobre pensamento, amor, pescadores e sentidos ......................................... 166 Um pingo de Freud ......................................................................................... 185 Os “nós” e os “eus” ......................................................................................... 190 A dimensão do sofrimento .............................................................................. 203 Exaltação à preguiça ...................................................................................... 211 Referências .................................................................................................... 227 Ensaio 3: Um olhar sobre as oficinas ......................................................... 236 Origens das oficinas ....................................................................................... 240 Violência pelo trabalho nos hospitais psiquiátricos ........................................ 243 Paralelos entre as Reformas Psiquiátricas brasileira e italiana ...................... 250 Direito ao trabalho .......................................................................................... 264 Reflexões sobre a parceria entre Saúde Mental e Economia Solidária .......... 267 Equidade, trabalho menor, obra ..................................................................... 279 Afirmação da clínica para produzir saúde ...................................................... 288 Referências .................................................................................................... 303 PARTE III ....................................................................................................... 312 Prosas: contar causos por palavras e imagens ........................................ 312 Resistência e sustentabilidade ....................................................................... 324 Sobre os técnicos ........................................................................................... 331 Trabalho protegido” versus “trabalho libertador” ............................................ 336 Remuneração ................................................................................................. 340 Lugar híbrido de trabalho e de cuidado em saúde ......................................... 349 Referências .................................................................................................... 362 PARTE IV ....................................................................................................... 365 Por uma conclusão possível (Ou: Carta à minha filha)............................. 365 ANEXOS ........................................................................................................ 384 Parecer consubstanciado do CEP .................................................................. 384 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ................................................ 387 18 PARTE I Prólogo Um cotidiano (ou: Maternidade e produção científica) Figura 4 Título: Ariana e Betina Fotografia de Mardônio Parente de Menezes (ano de 2017) Trem de tese ...piuííííí, escreve tese, troca fralda, escreve tese, dá maçã, escreve tese, escova os dentes, escreve tese, cola figurinha, escreve tese, embala no colo, escreve tese, piuííííí, escreve tese, brinca de massinha, escreve tese, ferve mamadeira, escreve tese, pinta desenho, escreve tese, faz coceguinhas, escreve tese, acolhe choro, escreve tese, piuííííí, 19 escreve tese, corta as unhas, escreve tese, nada na cachoeira, escreve tese, penteia o cabelo, escreve tese, calça sandalinha, escreve tese, piuííííí, escreve tese, nina na rede, escreve tese, passeia no parquinho, escreve tese, dá banho, escreve tese, procura a chupeta, escreve tese, guarda brinquedo, escreve tese, piuííííí, escreve tese, conta historinha, escreve tese, lava roupa, escreve tese, joga ioiô, escreve tese, limpa o nariz, escreve tese, mergulha no rio, escreve tese, piuííííí, escreve tese, coloca pijama, escreve tese, joga bola, escreve tese, faz carinho, escreve tese, pega na mão, escreve tese, brinca com o gato e as cachorras, escreve tese, escreve tese, escreve tese, escreve tese, escreve tese... piuííííííííí!!!!! 7 Perto de um nascer do sol, antes de todos acordarem, entre o copo de café, o pão com manteiga, os afagos no gato e o silêncio da casa, refleti sobre o tempo que eu havia usado para viajar nesse “trem de tese” pelos trilhos do pensamento: parece que foi rápido e, ao mesmo tempo, tão lento... Sinto que foi num piscar de olhos. Mas, o corpo constantemente me relembra que parece ter se passado alguns séculos. Afinal, não há coluna, neurônios, funções vitais e investimentos afetivos que permaneçam intactos e saudáveis ao longo de um processo tão denso como esse. Meu corpo de pesquisadora, que engendrou uma tese de doutorado pelos exercícios do pensar e do sentir, também gerou e cuidou de outro corpo. Engravidei durante a seleção do doutorado e, pelo imenso desejo de ambos, prossegui na seleção, mesmo imaginando os desafios que poderiam vir. Eu já havia vivido o suficiente para saber que a dobradinha “maternidade e produção científica” nem sempre é bem-vinda na maioria dos ambientes acadêmicos. 7 Poesia que fiz em 2020, na ocasião do envio do material da pesquisa à banca de qualificação. 20 Mas, também sabia que a universidade onde cursei a graduação, o mestrado e onde agora faço o doutorado tem o perfil de olhar para a singularidade de cada estudante e cuidar para que ele não se perca em labirintos burocráticos, tampouco que desista de uma pesquisa porque os imperativos da vida bagunçam imposições de regras acadêmicas 8. Enfim, eu sabia das dificuldades de conciliar o papel de mãe e o de estudante e que enfrentaria preconceito e torcida contrária dentro e fora da universidade. Só não entendi ainda se fiz isso por ingenuidade, coragem, falta de miolos ou tudo isso junto. Parafraseando o poetinha 9: tese, melhor não tê- la; mas, se não a tenho, como saber? Madrugada adentro, manhã afora, tarde longa, noite curta, o tempo não batia com os compromissos da tese, as demandas do cotidiano familiar não deixavam a tese se fazer, a tese não me permitia descanso. Foram segundos de desespero porque o computador pifou, minutos absorta em ideias enquanto o leite fervia e se derramava no fogão, horas distante de minha doce filha e na frente desse teclado de computador, dias em que a família me demandava mais cuidado e que a pesquisa tinha que esperar, meses em que eu vivia a gravidez, o pós-parto e o puerpério condensados ao cumprimento das disciplinas, anos de leituras deliciosas – e outras nem tanto – concomitantes ao exercício de escrita do texto que apresento agora. Viajei entre Assis-SP e Palmas-TO barriguda e, depois, com minha filha no colo, canguru, sling ou carrinho de lá pra cá, daqui pra lá, com uma mochila pequena em que cabiam mamadeira, carteira, mudas de roupas, fraldas, livros, caderninho, caneta, celular e carregador para nos manter conectadas à família e aos amigos. Era tudo o que precisávamos, além da esperança de que os voos não atrasassem e que houvesse banheiro com fraldário pelo caminho. Betina, recém-nascida, ficava no colchãozinho ao lado de minha mesa de trabalho enquanto eu lia, escrevia e me recuperava do parto. Eu a ninava 8 Este prólogo, bem como a conclusão da tese, também se inspira em um movimento que discute a maternidade e a paternidade no ambiente acadêmico, pensando sobre impactos dos filhos nas carreiras científicas de mulheres e homens (PARENT IN SCIENCE, 2020). 9 MORAES, V. Poema enjoadinho. In: _____. Antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. P. 191-193. 21 com músicas da minha infância e contava a ela, em voz baixa, o que estudava. Espero que um dia ela me perdoe por esses pequenos deslizes tão prazerosos de colocá-la a par de minha pesquisa e de todos os sonhos aqui contidos. Quando ela começou a engatinhar, fui com os livros e o computador para o chão. Estudei sentada no piso da casa, da varanda ou da terra do quintal. Nossos corpos aprendiam: ela com as plantas, eu com as letras 10. Ao dar seus primeiros passos, ela já havia rasgado ou desenhado em uma parte da bibliografia que usei para fundamentar teoricamente os estudos, além de ter entendido que, teclando no computador, símbolos apareciam na tela. Ao começar a aprender as primeiras palavras, fiquei atenta para ensiná- la “mamãe” e “papai” antes de loucura, psicologia, trabalho, política, subjetividade, saúde e tudo o mais que compôs meu repertório comunicacional durante o princípio do desenvolvimento de sua fala. Com 1 ano e 1 mês, ela e seu pai me acompanharam nas visitas aos campos de pesquisa. Fomos todos juntos passear e conhecer as oficinas bonitas das quais eu falava. ‘’’ Foi para que eu tivesse silêncio e mais concentração que Betina, quando chegou perto de completar 2 anos, começou a frequentar creches e/ou ser cuidada por babás. Entre buscas de bibliografia, leituras, rascunhos de pensamentos e escritas, havia uma bebê e, posteriormente, uma pós-bebê que, para crescer, precisava de socialização e outros cuidados que, naquele momento, precisei buscar com mais pessoas além de mim e de seu pai. Lembro-me de um período em que sua principal diversão era jogar os livros pra cima e gritar: “caiu no céu!” – algo que eu nunca tive a audácia de corrigir. Ela tinha razão: os livros sustentam ideias que nem sempre estão fincadas na terra. “Sim, minha filha: pensamentos voam”, eu lhe dizia. O texto 10 Alusão ao poema “Na fazenda”: As plantas me ensinaram de chão. Fui aprendendo com o corpo. (Manoel de Barros) Referência: BARROS, M. Na fazenda. In: _____. Compêndio para uso dos pássaros. São Paulo: Leya, 2013, p. 106. 22 que cá está contém marcas desse caos todo em que a escrita se deu. E não poderia ter sido melhor. Nesse cenário de uma pessoa nascendo e crescendo também nasceu e cresceu os escritos que apresento agora. Toda a pesquisa aconteceu com a parceria de Betina. Foram desenvolvimentos concomitantes que, nesse ínterim de processo de doutoramento, também me ajudaram a crescer como pessoa. E nesse lar onde só havia maternidade e doutorado, com as alegrias da bebê e da pesquisa me trazendo esperança, sem que ninguém esperasse por isso, impôs-se a obrigação de uma quarentena: no meio do caminho tinha um coronavírus. Tinha um coronavírus no meio do caminho. Como a pedra do poeta, eu também não me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas 11. Minha família, a pesquisa, o mundo todo foram pegos de surpresa pelo atravessamento da pandemia 12. No Brasil, uma catástrofe: nesse momento, somos o lugar no mundo em que mais se morre da doença. Estamos no centro de uma barbárie, em parte, pela má gestão governamental da crise. O país convulsiona social, sanitária e politicamente. Um mundo está acabando e ainda há outro por vir: entre esses dois espaços de desordem e de tempo, a humanidade se reconfigura para criar uma nova forma de viver em que – assim desejo eu – os interesses sociais e de saúde ocupem a centralidade. É difícil elaborar algum pensamento sobre os acontecimentos quando se está no olho do furacão, mas também não é possível deixar de pensar. É óbvio que a história é fluida e composta de muitas historietas cruzadas, umas mais pessoais que outras, com características únicas de muitas populações que formam o povo brasileiro. No contexto atual, entretanto, parece que algumas delas se assemelham bastante em todo território nacional. 11 Alusão ao poema “No meio do caminho”. Referência: ANDRADE, C.D. No meio do caminho. In: _____. Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 20. 12 Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou a disseminação do coronavirus como uma pandemia, marcando seu início oficial. Referência: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma- que-covid-19-e-agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812 https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-e-agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812 https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-e-agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812 23 Não raro os valores morais de um indivíduo ou de uma população são colocados em evidência durante situações de catástrofes e calamidades, como a pandêmica que vivemos agora. Não que dependamos delas para perceber e analisar a fragilidade e, por vezes, até mesmo a falibilidade desses valores. Mas, em momentos de incertezas, medos, adoecimento e mortes, eles estão ruindo rapidamente, na velocidade do contágio pelo coronavírus. Pessoas e instituições outrora ditas infalíveis são descortinadas em suas promessas de cuidado com o ser humano, a começar pelo Estado. Algo como a reafirmação de sua ineficiência, que todos já sabíamos ser assim, mas que agora se tornou incontestável. Na reivindicação desesperada pelo cuidado com a vida, eclodem-se ineficiências públicas e privadas. Figuras populares ditas incorruptíveis e acima de qualquer suspeita se desnudam de seus trajes fictícios de bondade e compaixão: as incompetências de alguns governantes ficam em destaque e empresários supostamente comprometidos com a dignidade humana impõem jornadas de trabalho incompatíveis com a necessidade de resguardo dos trabalhadores. Junto a isso, ativistas de redes sociais queixam suas crenças e mazelas pessoais sobre a pandemia, travestidas de ciência ou política, para milhares de leitores ávidos por se reconhecerem na querela alheia. Numa espécie de arena pretensamente democrática, adversários se enxergam como inimigos e se digladiam entre si. Na democracia, tradicionalmente, o que se espera é que a política seja exercida pela experiência de diálogos entre todos, pela diferença de ideias, na perspectiva de fortalecer o mundo comum. Nos últimos anos, porém, o adversário tem sido tomado como um inimigo a ser eliminado e o pluralismo de ideias, tão caro ao movimento democrático, se silencia diante de tendências de vozes extremistas e inócuas. Na urgência de tomar uma posição e se engajar com certos discursos, pessoas escancaram o pior de si em embates cruéis e vergonhosos. E a democracia, evidentemente, se enfraquece. A corrida armamentista virtual de argumentos combativos, mesmo que tenha a intenção de servir de bússola sobre ideias, algumas vezes prejudica as orientações e ações, por exemplo, dos cientistas e profissionais de saúde no 24 combate ao contágio pelo vírus e no cuidado ao adoecido. Imagino que ninguém discorde que uma desinformação – de boa vontade ou de má-fé – proferida por um influenciador digital pode prejudicar a vida de muitas pessoas. As tais fake news, nome estrangeiro para a conhecida expressão verde e amarela “notícias falsas”, preocupam tanto quanto a doença. Faço tais observações porque, agora, ocupo o lugar de cientista e tenho a obrigação ética de pensar sobre problemas que envolvem a ciência e sua divulgação pública. Os saberes populares, a meu ver, tão valiosos e verdadeiros quanto os científicos, também merecem respeito. Já os embates pautados no autoritarismo parvo e cego de quaisquer ordens, que resultam em mais adoecimentos e mortes, devem ser problematizados e combatidos. O capitalismo está sendo desmentido em sua promessa de fortaleza, pois o que se constata com a necessidade do isolamento social é um abalo nesse sistema que é instável desde sempre. A saúde – finalmente – passou a ser seriamente uma pauta mundial e a humanidade talvez esteja colhendo os frutos da ignorância de não tê-la cuidado antes. Finalmente assumimos que somos mais frágeis e vulneráveis do que acreditávamos ser, bastando um vírus – e não ameaças de um amplo e complexo sistema bélico, ou algo do tipo – para dizimar a humanidade. Talvez esse seja um dos grandes ensinamentos da catástrofe humanitária em curso. E assim a pandemia se torna mais violenta e mortífera. A presença da morte, evidentemente, é constante durante toda a vida. Faz-nos, aliás, mais atentos à importância da valorização e do desfrute de estarmos vivos e da imprescindível companhia e parceria de quem amamos. Mas, o contato cotidiano com a morte e a impotência de pouco poder fazer diante dessa tragédia de enormes proporções também têm impactado meus estudos. Se antes da quarentena eu tinha minimamente um cotidiano organizado para me dedicar muitas horas da semana à pesquisa, hoje concilio as horas com as demandas de um companheiro médico trabalhando em um grande hospital público que também sofre – ou melhor, agoniza – com a situação, com 25 o fechamento da creche e a dispensa da babá que zelavam por minha filha enquanto eu pesquisava, com os efeitos do medo pelo risco constante e iminente do contágio. Parece um momento tirado de alguma obra do gênero da “literatura fantástica”, mas suspeito que nem mesmo o grande mestre Gabriel García Márquez, do alto de sua perspicácia e inteligência, poderia ter tido, no plano da imaginação, audácia para inventar tamanho absurdo. O mundo, uma grande e arquetípica Macondo; nós, os Buendía-Iguarán, tentando nos resguardar dos perigos e reconstruir incessantemente nosso vilarejo global, mesmo num cenário de exploração e de uma destruição atrás da outra. Uma epifania de um novo mundo mais caótico do que antes. O desafio de fazer pesquisa nesse contexto, provavelmente, será estudado por meus colegas cientistas num futuro – espero – próximo. Por hora, vale o registro de que a situação atual tem impactado minha produção acadêmica. Não se trata de mea culpa, mas de um posicionamento político sobre o que representa ser mãe e cientista em um momento sanitário e político como esse. Também é preciso apontar que ser pesquisadora em uma universidade pública tem sido desafiador porque, além de vivermos a crise pandêmica, estamos em um tempo em que o amparo da esfera pública para o fomento da produção científica tem sido cada vez menor. Os riscos devastadores disso para a sociedade não são difíceis de prever. Sobre minha formação anterior ao curso doutoral, tenho a alegria de afirmar que toda ela aconteceu apenas em escolas e universidades públicas, com a única e breve exceção do cursinho pré-vestibular. Em tempos de desinvestimento nesses lugares, poder testemunhar que escolas, universidades e equipamentos de saúde públicos onde estudei e trabalhei devem ser mantidos e valorizados faz parte de minha obrigação cidadã. Foi nesses ambientes que minha escolha por estudar e trabalhar com a loucura se sustentou. Meu interesse por ela vem desde há muito tempo. Empenho-me nas incontáveis, frutíferas e/ou frustradas tentativas de 26 compreender o ser humano, renovando minha paixão pelo pensamento e encanto pela experiência humana muito louca, menos louca, não tão louca ou mesmo só um pouquinho louca. Não posso afirmar que estudo a mente 13 humana que não é louca, porque é provável que ela não exista. Há quem se empenhe em refutar essa afirmação, mas, até o presente momento, ninguém conseguiu me convencer da autenticidade de alguém dito “normal”. Partilho da aposta de Caetano de que “de perto ninguém é normal” 14. De longe, também não. Ao terminar a graduação em psicologia, no final de 2002, comecei minha trajetória profissional e geográfica, como cantaram Gonzagão e Gonzaguinha: “Minha vida é andar por este país/ Pra ver se um dia descanso feliz/ Guardando as recordações/ Das terras onde passei/ Andando pelos sertões/ E dos amigos que lá deixei” 15. No começo de 2003, mudei-me de cidade para conhecer outras formas de tratamento ao louco. Fui para Campinas fazer o “Aprimoramento em Saúde Mental”, pós-graduação no nível de especialização, durante 1 ano na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Ao final do curso, fui contratada pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) “Antônio da Costa Santos”, do Serviço de Saúde Cândido Ferreira, que foi campo de minha atuação nessa pós. Trabalhei no CAPS entre 2004 a 2009 afinando minha escuta, aprendendo sobre as dinâmicas institucionais e seus meandros, mergulhando em loucuras e estudando clínicas, filosofias, Sistema Único de Saúde e Reforma Psiquiátrica. Em 2009, repensei minha intensa dedicação em fazer a roda girar onde as engrenagens já estavam enferrujadas e aceitei a sugestão de compor a equipe do Núcleo de Oficinas e Trabalho (NOT), na mesma instituição, entendendo que havia ali uma possibilidade de renovar minhas energias de trabalho numa nova atuação profissional. Chegando ao NOT, já na primeira 13 Aqui, “mente humana” se refere à experiência humana da loucura e não à mente restrita ao “cérebro” ou a algum outro objeto de estudo e intervenção das ciências biológicas, tampouco à divisão cartesiana “mente e corpo” tão presente em discussões sobre a loucura. Tratarei do problema no ensaio “Um olhar sobre a loucura”. 14 VELOSO, C. Vaca profana. In: _____. Totalmente demais. Rio de Janeiro: Phillips-Records, 1986. Disco sonoro de vinil, lado A, faixa 1. 15 CORDOVIL, H.; GONZAGA, L. Vida de viajante. In: _____. Discanço em caza, moro no mundo. Rio de Janeiro: EMI/Odeon, 1981. Disco sonoro de vinil, lado B, faixa 12. 27 semana, fiquei impactada com o tamanho do projeto, com tudo o que aquilo significava aos oficineiros 16 e, principalmente, com a pouca visibilidade do equipamento dentro do próprio Cândido Ferreira. Nos primeiros dias, voltei para casa pensando que eu havia sido psicóloga no CAPS durante 6 anos sem ter a real noção do que era o Núcleo, mesmo tendo feito alguns encaminhamentos de usuários para triagem nas oficinas e sendo consumidora de seus produtos. Rapidamente, percebi que o que se fazia lá era muito mais eficaz em termos de aposta clínica do que o que se fazia no CAPS. Senti que eu estava num lugar onde eu poderia multiplicar meu encanto pela Saúde Mental e, especialmente, onde meu trabalho novamente fazia sentido. Assistir a tantos oficineiros evoluindo na perspectiva de uma vida mais saudável me fez pensar no quão injusto era o NOT não ser reconhecido como um potente ponto de produção de saúde da rede do município. Eram muitos os que chegavam com aspecto de sedação, relatando suas descrenças no remédio, marginalizados socialmente por serem loucos e vivendo existências devastadas pelo diagnóstico e suposto tratamento. Com pouco tempo de investimento naqueles sujeitos – que, aliás, finalmente se percebiam sujeitos, nos sentidos de cidadão e de ser humano –, a prescrição de medicamentos diminuía consideravelmente, as crises rareavam ou desapareciam por completo, a aparência ficava mais cuidada, o semblante mais leve e, especialmente, os desejos novamente afloravam. Estudar, casar, frequentar um lugar religioso, viajar, fazer amigos, conhecer lugares, comprar o que lhes aprazia, ressignificar relações familiares, construir um lar: esses e muitos outros efeitos do trabalho nas oficinas não pareciam tão estudados e divulgados. É compreensível que o foco que se deu historicamente aos CAPS se deva ao seu nascimento como a maior aposta substitutiva ao manicômio. A 16 Oficineiro”, nesta tese, refere-se ao usuário da Saúde Mental que trabalha nessas oficinas. No Núcleo de Oficinas e Trabalho e na Casa das Oficinas, eles são chamados de oficineiros. Na Arte e Convívio, de trabalhadores. Pretendi, com a uniformização da nomenclatura de “oficineiro”, facilitar a leitura, o que em nada desabona a opção da Arte e Convívio. Como suscitado pela professora Catia Paranhos Martins durante a qualificação, a palavra “oficineiro” é uma generalização em que cabem gentes de todo tipo. 28 questão é que, por algum tempo, ele foi tido como o privilegiado nessa imensa tarefa, enquanto outros formatos de equipamentos de saúde estavam se configurando fora dos holofotes e tendo bons efeitos na vida dos usuários da Saúde Mental. Há um ditado popular que diz que “mineiro trabalha quieto”. Ele explica um pouco minhas primeiras impressões sobre o NOT, que se confirmaram ao longo de aproximadamente 2 anos em que estive lá: muito trabalho e pouco alarde. As oficinas nasceram quando o Cândido Ferreira ainda era um hospital psiquiátrico fechado e cresceu junto à abertura do serviço, mas sem ter tido uma justa valorização como lugar de cuidado. Há produções de vida em oficinas que podem inspirar quem se interessar por elas. Pensar e escrever sobre isso foi incumbência do mestrado. Agora, no doutorado, retomo algumas reflexões, na intenção de prosseguir com aquela pesquisa que considero ainda inacabada. Também reflito sobre a loucura e o trabalho, assuntos de meu interesse há anos, em alguns momentos relacionando ambos às oficinas, mas em outros abrindo mais a perspectiva e abordando pontos que podem contribuir com as discussões na ampla área da Saúde Mental. Assim, o tema está configurado por reflexões sobre esses três signos: loucura, trabalho e oficinas. Essas são as tarefas dos estudos, junto ao compromisso de tentar instigar alguns pensamentos no leitor 17. Além, é óbvio, da obtenção de um título de doutora. Objetivos oceânicos, confesso. Mas, do que uma pessoa pode ser feita, a não ser de seus sonhos? Quando cheguei ao NOT, já estava imbuída do interesse de fazer mestrado. Escrevi um projeto e submeti à seleção no Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis, onde eu já havia cursado a graduação e onde agora também curso o doutorado. Iniciei o mestrado em 2010 e em 2011 pedi licença não remunerada 17 Ao longo de toda a tese, opto por manter os pronomes no masculino coloquial da língua portuguesa em detrimento do uso de termos neutros, ou mesmo da duplicação de termos – tais como, por exemplo, “leitor” e “leitora” – apenas por reverência à língua-pátria e sem desconsiderar o relevante problema do uso da linguagem em relação às questões de gênero. 29 do trabalho para estudar. Depois de alguns meses, compreendi que meu ciclo de trabalho em Campinas deveria terminar e, durante a licença, solicitei desligamento do Cândido Ferreira em janeiro de 2012. Em 2013, depois de defender a dissertação cujo tema foi a experiência no NOT, mudei-me para Camocim, no litoral oeste do Ceará, onde trabalhei num Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) durante apenas poucos meses. Soube, por acaso, que havia um câmpus da Universidade Federal do Piauí (UFPI) em Parnaíba, no litoral do Piauí, há cerca de 2 horas de viagem dali, e que estava com um processo seletivo aberto para professor substituto no curso de psicologia. Prestei a seleção, mudei-me para lá e comecei a lecionar ainda em 2013. Eu lidava cotidianamente com estudantes vindos de cenários sociais, geográficos e políticos distantes dos meus de origem. A possibilidade de criar e aprimorar minha própria arte de ensinar, estar imersa no cotidiano da docência, experimentar a academia de outro modo lugar e habitar um contexto cultural e social tão distante do que eu conhecia me ensinaram outros modos de vida e me ofertaram um bom atalho no caminho de tentar me tornar uma pessoa melhor. O trato com os estudantes, as parcerias com funcionários e professores, a aprendizagem de outra linguagem universitária, os novos amigos, a morada numa duna ao lado do mar, a convivência diária com os pescadores e uma cultura praiana de restinga da caatinga, as aprendizagens de uma culinária litorânea, tudo isso contribuiu para meu crescimento como ser humano. Em 2014, conheci a Clínica de La Borde, buscando compreender um pouco sobre a influência desse lugar na Reforma Psiquiátrica brasileira. Ela está localizada em Blois, região central da França, e foi fundada em 1953 pelo psiquiatra e psicanalista Jean Oury 18. Sua proposta de ser uma clínica psiquiátrica aberta e a abordagem da Psicoterapia Institucional a fizeram mundialmente reconhecida. Havia certo clima de tensão no ar, dada a delicada condição de saúde de seu fundador, o que preocupava os pensionistas – moradores e demais 18 Jean Oury (1924-2014) foi um psiquiatra e psicanalista francês. 30 pacientes da clínica – e os trabalhadores. Afora isso, o clima era parecido com o que eu havia estudado: pacientes circulando entre La Borde e a cidade de Blois, monitores que se revezavam em atividades de cuidado às pessoas e ao lugar, oficinas abertas em que participantes entravam e saíam. Sobre as oficinas, surpreendi-me especialmente por serem tão parecidas com as que conduzi no CAPS. Outra surpresa foi a de que alguns pacientes trabalhavam na clínica, tendo remuneração e direitos trabalhistas garantidos, como, por exemplo, o motorista do micro-ônibus que buscou a mim, meu companheiro e os demais passageiros na estação de trem para nos levar à clínica, cozinheiros, jardineiros, entre outros. Impressionei-me, ainda, com o fato de que todos os trabalhadores da clínica – excetuando-se, curiosamente, os médicos – eram considerados “monitores” sem a marca de sua categoria profissional. Por exemplo, almocei com um marceneiro que me contou que, enquanto trabalhava na reforma das escadas do castelo, envolvia pacientes na atividade de modo a tornar o trabalho, como ele mesmo disse, “terapêutico”. Não diferenciar os pacientes dos monitores foi a melhor experiência da viagem. Empreendi encontros que corroboraram minha ideia de que o funcionamento louco está vivo – e potente – em todos nós. Em 2015, depois de 2 anos e meio de Nordeste, mudei-me para o Norte, num cerrado tocantinense marcado por sua beleza e intensidades: seja pelo calor de Palmas, seja pelas chuvas volumosas e pesadas no que aqui se chama “inverno” – embora aconteçam no verão –, seja pelo contato diário com a mata nativa, sua bicharada e águas, muito daqui destoa do cerrado assisense que faz transição com a Mata Atlântica, lugar onde nasci, me criei, está minha família e continuo estudando. Esse “Brasil profundo” que, na proposição de Euclides da Cunha em seu clássico “Os Sertões”, guardaria uma realidade geográfica, social e cultural distante dos grandes centros, hoje já tem seu próprio grande centro. A exemplo dos mais antigos de outras regiões de nosso grande país, Palmas também 31 ostenta suas mazelas, mas seus adjetivos positivos superam – e muito – os negativos. A capital é também única cidade com cerca de 280.000 habitantes num raio de 830 quilômetros. Ela tem em um de seus lados as densas fauna e flora, rios, riachos e cachoeiras da Serra do Lajeado – em que está o pequeno distrito de Taquaruçu, onde moro, e que hoje tem cerca de 5000 habitantes – e no outro a vastidão do rio Tocantins, plenamente limpo, navegável e apto a banhos e pescas, assim como os outros inúmeros córregos, riachos, ribeirões e rios da região. Aqui, há lugares de educação e saúde de qualidade que em nada se diferenciam dos de capitais mais antigas e há saberes tradicionais que o povo perpetua sem precisar se esforçar. Esse é o lugar onde nasceu minha filha e onde moro agora. As prosas que farei ao longo desta tese já são um tanto conhecidas pelos afeitos à Reforma Psiquiátrica. Ou melhor, aos afeitos que habitam alguns Estados brasileiros, notadamente municípios que estão num raio de cerca de 500 ou 600 kms do litoral. Agora, produzindo pesquisa na Universidade Estadual Paulista e, desde o início da pandemia, exclusivamente escrevendo esta tese em Taquaruçu-TO, registro que, aos fazem a Reforma Psiquiátrica no interior do país, pensar sobre loucura, trabalho e, especialmente, sobre oficinas, é algo que desperta curiosidade, desejo de saber e esperança de que algo semelhante também possa ser feito em suas regiões. Marcar que a escrita da tese está sendo feita desde o “Brasil profundo” é postura ética, pois creio que a multiplicidade de culturas que compõem o país deve ser considerada na elaboração de políticas públicas e na produção cientifica engajada com questões sociais. Como canta Milton Nascimento, A novidade é que o Brasil não é só litoral É muito mais É muito mais que qualquer Zona Sul Tem gente boa espalhada por esse Brasil 32 Que vai fazer desse lugar um bom país Uma notícia está chegando lá do interior Não deu no rádio, no jornal ou na televisão Ficar de frente para o mar, De costas pro Brasil, Não vai fazer desse lugar um bom país. (Milton Nascimento) 19 Aliás, se aqui é “Brasil profundo”, onde seria o “Brasil superficial”? Talvez a região do mar? Talvez a dos grandes centros? E se a superfície de um corpo-país é a pele litorânea e metropolitana, seria o interior suas vísceras? Se em São Paulo há oficinas tão potentes como as três pesquisadas, se há discussões tão plurais, fartas e ricas sobre a loucura e o trabalho, se há tantas forças atuando em defesa da Reforma Psiquiátrica, por que não inspirar os recônditos do Brasil? E mais: por que não há olhares mais interessados na ciência que se produz no coração geográfico do país? Um país que assume sua imensidão pode multiplicar sua força. O Tocantins não é apenas o lugar onde se passa férias. Aqui é também o lugar de toda a vida de muitas gentes, onde há saberes e ciências que também podem inspirar o Brasil da superfície. Como canta Juraildes da Cruz, artista nascido onde antes era Goiás e hoje é Tocantins, não valorizemos tanto os estrangeirismos, até mesmo os que se dão dentro de nosso próprio país: Se farinha fosse americana Mandioca importada Banquete de bacana Era farinhada (Juraildes da Cruz) 20 São muitos os lugares e tempos vividos ao longo de uma biografia. Sobre o atual e suas vicissitudes, provavelmente meu processo de doutorado 19 NASCIMENTO, M.; BRANT, F. Notícias do Brasil (os pássaros trazem). In: NASCIMENTO, M. Caçador de mim. Rio de Janeiro: Phillips, 1981. Disco sonoro de vinil, lado A, faixa 4. 20 CRUZ, J. Nóis é jeca, mais é jóia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tgwB25z5j-E. Acessado em 07/06/2021. https://www.youtube.com/watch?v=tgwB25z5j-E 33 em muito se assemelha ao de meus colegas pesquisadores: um prazo para a entrega de uma tese e muitos malabarismos para fazer a pesquisa caber nele. Mas, sobre a escolha do tema, fiz o caminho inverso do que geralmente se faz na academia. Ao entrar numa pós-graduação, muitas vezes se propõe um tema de pesquisa a ser desenvolvido em acordo com os grupos de pesquisa existentes e com o orientador. Para mim, esse tema já estava dado. Vim para o doutorado não apenas pela aspiração ao título, mas também porque eu precisava terminar a tarefa que eu acreditava não ter findado no mestrado e também para organizar num texto acadêmico ideias que há muito venho tendo sobre a loucura e o trabalho. A breve narrativa de pequena parte de minha atuação profissional, com pinceladas de história pessoal, está aqui para registrar quem é a pesquisadora e para que se compreenda de onde parte a presente pesquisa. Apenas isso. Tenho a esperança de que os pensamentos que pretendo inspirar com esses os estudos superem a importância de minha pouca pessoa. Concordo com os dizeres do grandioso Guimarães Rosa: Vivo para uma coisa maior, um vir-a-ser de uma natureza diferente. A arte permite isso. Permite essa transformação. Por mim os livros não deviam nem trazer nome do autor. O autor devia ser um mistério (BLOCK, 1963). Apresentarei, ao longo da tese, alguns desses muitos pensamentos que organizei até o momento. Obviamente, um tanto deles mudará com o passar do tempo, porque – ainda bem! – é o que se espera de alguém que amadurece. Creio que as possibilidades do exercício do pensamento guardam o limite da existência: enquanto um corpo está vivo, ele pensa. A canção “Tempo-Rei”, de Gilberto Gil, sempre me lembra da beleza e importância do tempo no processo de mudança de ideias. É com ela que findarei este prólogo que pretendeu situar o leitor sobre o contexto em que a pesquisa foi feita. Com sincero desejo de pensar sobre os signos “loucura, trabalho e oficinas”, faço o convite: avante e boa leitura! Não me iludo Tudo permanecerá do jeito que tem sido 34 Transcorrendo Transformando Tempo e espaço navegando todos os sentidos Pães de Açúcar Corcovados Fustigados pela chuva e pelo eterno vento Água mole Pedra dura Tanto bate que não restará nem pensamento Tempo rei, tempo rei, tempo rei Transformai as velhas formas do viver Ensinai-me, pai, o que eu ainda não sei Mãe Senhora do Perpétuo socorrei Pensamento Mesmo o fundamento singular do ser humano De um momento Para o outro Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos Mães zelosas Pais corujas Vejam como as águas de repente ficam sujas Não se iludam Não me iludo Tudo agora mesmo pode estar por um segundo (Gilberto Gil) 21 21 GIL, G. Tempo rei. In: _____. Raça humana. Rio de Janeiro: Warner Music Brasil, 1984. Disco sonoro de vinil, lado A, faixa 4. 35 O que me move Figura 5 Título: Flores do quintal vistas no caleidoscópio (II) 22 Fotografia minha (ano de 2021) Eu luto do jeito que eu posso. Levo no ridículo, levo na graça, que isso eu aprendi a fazer. Eu não tenho poder político nem econômico, mas tenho uma língua afiada da peste. Vocês vão ver. E essa está a serviço do meu país e do meu povo. (Ariano Suassuna) 23 22 Agradeço ao Mardônio pela gentileza de ter construído à mão o caleidoscópio para que eu fizesse as fotografias da tese. 23 SUASSUNA, A. Aula-espetáculo de Ariano Suassuna (parte 1). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=B3KN-dn-R5s. Acessado em 04/10/2019. https://www.youtube.com/watch?v=B3KN-dn-R5s 36 Iniciar a tese com uma citação de Ariano Suassuna não é artimanha literária, mas feliz escolha de registrar uma importante fala de um dos pensadores que me norteiam. Dele veio a inspiração para meu nome, no momento de meu nascimento, e ele agora inspira, junto a muitos outros cientistas e polímatas, os escritos que se seguem. Esta tese, mestre Ariano, também está a serviço do nosso povo e Brasil. Seguramente com muito menos sabedoria que o senhor, mas eu também gostaria de dar minha pequena contribuição. Como escrito no prólogo, a tese é composta por pensamentos sobre três signos que, em alguns momentos, se ligam e se confundem, e em outros não: loucura, trabalho e oficinas de geração de trabalho e renda na Saúde Mental. Considero minha trajetória pessoal e profissional no processo de feitura do texto e o motivo desse estilo de escrita é porque fui trabalhadora na “linha de frente” 24 do Sistema Único de Saúde (SUS). Ainda estou trabalhando por e para ele, agora numa perspectiva acadêmica. É por isso que o leitor não encontrará um texto pautado na habitual tradição da acadêmica da neutralidade científica. Quando da formatura na graduação, ainda imatura sobre a vida profissional, esperava que o saber acadêmico muito ensinaria à experiência prática. O discurso – eloquente, por sinal – de parte do corpo docente me convenceu por pouco tempo. Os primeiros atendimentos e as primeiras disputas institucionais que presenciei, em 2003, à época do Aprimoramento em Saúde Mental, rapidamente questionaram aprendizagens de cinco anos de curso de psicologia. Não que os estudos tivessem sido em vão. Ao contrário. Foi pelos novatos olhos de psicóloga que consegui enxergar que as aulas e os livros seriam a base para meu trabalho, mas não seriam, eles mesmos, a verdade sobre meu trabalho. Fosse eu leiga, talvez ainda continuasse acreditando que 24 Expressão bastante usada pelos trabalhadores do campo da saúde para designar quem lida diretamente com os usuários do Sistema Único de Saúde. 37 o saber acadêmico tinha algo muito maior e mais valioso que a lida cotidiana para ensinar sobre a loucura. Escolhi me despir rapidamente da costumeira altivez acadêmica que muitos recém-formados carregam consigo para me deixar impregnar daquilo que me mostrava, com mais agudeza e intensidade, o que os estágios da graduação 25 me mostraram em doses homeopáticas. De segunda a quinta- feira, no Centro de Atenção Psicossocial Antônio da Costa Santos, às sextas- feiras na UNICAMP, finalmente me encontrei com a loucura da maneira como eu gostaria e deveria. No mesmo período, comecei cursos de formação clínica e de supervisões, cujos estudos prosseguem até hoje. O percurso profissional que comecei a construir em 2003 e que hoje me é tão caro no processo doutoral compreende uma psicologia fortalecida por reflexões críticas. Enquanto parte da psicologia hegemônica na atualidade parece pretender ser límpida, incolor, insípida e inodora, adjetivos irônicos e metafóricos para provocar a pensar sobre sua aproximação atual com políticas higienistas e deslocadas do engajamento ético com contextos sociais periféricos, entrego à banca e demais interessados um texto compromissado com a produção de uma psicologia conectada à defesa do SUS e de quem sofre a segregação social por ser louco. Aqui estão alguns escritos que mesclam o que aprendi na academia e nos equipamentos de saúde. Sou uma estudante que saiu da universidade para fazer valer o que aprendi e que voltou para contribuir com a Reforma Psiquiátrica com reflexões que partem de minha prática. Em meu percurso, convergem trilhas de trabalho em equipamentos de saúde e de educação com trilhas de aulas e livros. Abusando de uma paródia com a poesia de Belchior, mesmo assumindo o risco de ser piegas, aqui “Não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que aprendi nos ‘livros’, quero lhe contar como eu vivi e tudo o que aconteceu comigo. Viver é melhor que sonhar, e eu sei que o amor é uma coisa boa, mas 25 Cursei estágios obrigatórios e extracurriculares no campo da Atenção Psicossocial nos anos de 2000, 2001 e 2002 no CIAPS (Centro Integrado de Atenção Psicossocial) de Assis-SP e nos anos de 2001 e 2002 no Centro de Saúde de Cândido Mota-SP. 38 também sei que qualquer ‘tese’ é menor do que a vida de qualquer pessoa” 26. Mesmo sabendo que a arte nos ancora à vida, há situações em que disco, livro, tese ou canto não supera a potência de alguns encontros entre alguém que precisa ser cuidado e alguém disposto a cuidar. Por reconhecer o valor disso, acreditei que encontros que experimentei nos lugares onde trabalhei mereciam ser pesquisados e partilhados. Não seria justo que eles servissem apenas à minha história. A luta para acabar com a segregação imposta secularmente ao louco foi assumida por mim quando atuei na perspectiva da Atenção Psicossocial em diferentes lugares e momentos. Somei forças com companheiros da Reforma Psiquiátrica para tentar superar prédios, práticas, modos de pensar e morrer manicomiais e, ao mesmo tempo, para criar com e para o louco novos lugares sociais. A Atenção Psicossocial, inicialmente tomada como uma ética do cuidado em liberdade foi, concomitante à sua prática, transformada em conceito e em política pública. Hoje, ela é o paradigma que orienta os campos de saberes e práticas em Saúde Mental (COSTA-ROSA, 2013; COSTA-ROSA; YASUI, 2008; COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2003; AMARANTE, 2007). Do que experimentei até agora como possibilidade de viabilizar o projeto coletivo de uma sociedade sem manicômios, e considerando os recursos que existem hoje, essas oficinas 27, e também os Centros de Convivência 28, me parecem as mais potentes estratégias para concretizá-lo. Sonho com um tempo em que os equipamentos de Saúde Mental que conhecemos não sejam mais necessários, pois creio que eles representam a transição entre os manicômios e algo que está por vir. Mas, por enquanto, ainda são os lugares, por excelência, que se empenham em fazer caber o louco na sociedade. 26 Adaptação, em forma de paródia, da canção “Como nossos pais”. Referência: BELCHIOR. Como nossos pais. In: _____. Alucinação. Rio de Janeiro: PolyGram, 1976. Disco sonoro de vinil, lado A, faixa 3. 27 A partir daqui, “oficina” e seu plural farão referência à “oficina de geração de trabalho e renda na Saúde Mental” e seus plurais. Caso se trate de outra modalidade de oficina, estará especificada no corpo do texto. 28 Centro de Convivência é um dispositivo que pretende ser lugar de encontro entre pessoas interessadas em produzir saúde. Trata-se de equipamento de Saúde Mental que funciona na intersecção entre a saúde e outras áreas como, por exemplo, a educação, a arte, a cultura, e geralmente contam com grupos artísticos, terapêuticos, pedagógicos, entre outros. 39 Iniciei uma discussão sobre minha experiência como coordenadora de oficinas no mestrado 29 e agora prossigo refletindo, pois reconheço que há sempre muito e mais a se pensar. Como apontei ao findar a dissertação, as discussões sobre o cuidado que se produzia nas oficinas foram provisórias pelo caráter inconclusivo de um tema que constantemente é problematizado em pensamentos, práticas e políticas cotidianas. Por fim, faço algumas ponderações que adiantarão, ao leitor, o que não encontrarão nessa tese. A primeira dela diz respeito ao fato de que essas páginas iniciais não pretenderam fazer uma apologia ao enlouquecimento ou mesmo romantizar uma experiência que, em muitos casos, é produtora de intenso sofrimento. Minha pretensão foi dar passagem para uma breve apresentação sobre quais foram alguns dos interesses que impulsionaram a pesquisa. E também pondero que as reflexões registradas aqui são circunstanciais, pois se referem ao momento atual da sociedade brasileira e ao meu próprio momento de vida, e também provisórias porque, como se espera do pensamento humano, é certo que elas amadurecerão e mudarão com o passar do tempo. Porque iniciar uma tese de doutorado assim? Para assinalar que os estudos foram disparados por algo que me entusiasma e que não se restringe a uma busca apenas científica, embora eu me valha, nesse momento, da ciência para me trazer compreensões possíveis. As sempre vivas inquietações e interrogações sobre a loucura e o que se tem feito nas políticas públicas de Saúde Mental para a efetivação do fim de sua marginalização social, as reflexões sobre o trabalho na vida humana e na sociedade e o papel das oficinas hoje na Reforma Psiquiátrica inspirarão as reflexões que apresentarei a seguir. 29 A discussão foi feita em minha dissertação, cuja referência é: RODRIGUES, A. C. Produção de cuidado em oficinas de geração de trabalho e renda na Saúde Mental. Assis, 2012. Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Pós-Graduação em Psicologia. 40 Os estudos não têm a intenção de serem definitivos nas discussões. Sua pretensão maior é a de provocar perguntas. Não há nada de equivocado nisso, pois o movimento de buscar respostas e, ao mesmo tempo, instigar pensamentos e novas indagações, faz parte das forças que compõem as ciências humanas. Oxalá logo mais essa tese de doutorado seja tão somente registro de um passado remoto e fonte de pesquisa do que já se fez, que a compreensão preponderantemente biológica da loucura seja superada, que surjam novas experiências afirmativas de garantia de direitos ao louco – incluindo o do trabalho – e que esses equipamentos de transição entre os manicômios e o que há por vir se transformem em memórias expostas em museus. 41 Sobre o que escrevo Figura 6 Título: Folhas do quintal vistas no caleidoscópio (I) Fotografia minha (ano de 2021) A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. 42 Fiquei emocionado. Sou fraco para elogios. (Manoel de Barros) 30 Assim como Manoel de Barros que, na epígrafe acima, escreve que seu fado é o de não saber quase tudo, tendo profundidades sobre o nada, eu também assumo especialista não saber tanto assim sobre as coisas da vida. Quem dera um dia eu conheça uma centelha das insignificâncias – minhas e do mundo. Por isso, estudo. E também por isso agradeço quem me lembra de minha imbecilidade e de minha pequeneza diante de tanta sabedoria que contém as vidas das pessoas. Para chegar ao ápice de reconhecer alguma centelha de nossas insignificâncias, creio que um dos melhores caminhos seja o do pensamento. É preciso – sempre e mais – agir pensando. A ultrajante cisão “pensamento versus ação” não deveria interessar às ciências. Mas, certo é que, pelos mais variados motivos, o exercício de pensar sobre o que se faz nem sempre contempla esforços para que seja crítico. É por isso que, na área da saúde, são tão importantes reuniões de equipe, supervisões institucionais, assembleias 31, e, em nosso país democrático, são fundamentais os debates públicos e populares, os movimentos sociais, as produções acadêmicas, entre outras estratégias que privilegiem o pensamento crítico. A presente pesquisa de doutoramento tem a pretensão de ser uma dessas estratégias. Ela tem como tema a produção de pensamentos críticos sobre três signos: loucura, trabalho e oficinas de geração de trabalho e renda na Saúde Mental. Cada um deles foi explorado em exercícios de reflexões que compuseram três ensaios distintos, se conversando em alguns pontos e em outros não, e na apresentação de alguns materiais das idas aos campos. Pretendo fazer, ao longo do texto, considerações críticas sobre questões históricas e atuais pertinentes à sociedade brasileira em geral e à Saúde 30 BARROS, M. Poesia completa. São Paulo: LeYa, 2013, p. 374-375. 31 Cito reuniões, supervisões e assembleias porque eram os momentos em que as equipes dos equipamentos de saúde onde trabalhei como psicóloga se reuniam para pensar e discutir, e também porque dois dos três equipamentos de saúde que compõem o campo desta pesquisa fazem reunião de equipe e supervisões institucionais. 43 Mental em especial, numa cartografia de estudos bibliográficos e recordações de meu percurso profissional e novos encontros. Articular todos esses pensamentos na escrita de uma tese foi tarefa grandiosa. A língua portuguesa, aqui usada como matéria de expressão dos pensamentos, em alguns momentos foi difícil de ser manejada. Daí a explicação de haver fotografias e excertos de poemas e canções em epígrafes ao longo do texto. A arte da escrita não alcança, sozinha, a dimensão do ofício do pensar. Como Clarice Lispector, amo a língua e reconheço a dificuldade de usá- la, especialmente quando se pretende, com ela, tirar o superficialismo: Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. (...) A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo 32. Desde criança, aprender sobre a escrita – e eu aprendo até hoje – é uma das tarefas da vida que mais me alegram. Nos últimos anos, aprender como ensinar a língua para minha filha guarda o mesmo regalo. De todas as etapas da realização da pesquisa de doutorado, escrever me foi a mais prazerosa. Sem negar o cansaço que o exercício vigoroso da escrita também produz, evidentemente. Em alguns momentos, a escrita se dava a “conta- letras”, para brincar com o “conta-gotas” dos frascos de remédios que também me sustentaram escrevendo. Em outros, era mais fluida. Como a própria vida, aliás. Rascunhando, lendo, apagando, enfim, tratando com as palavras e dando forma ao pensamento, o problema que orientou a pesquisa foi mais bem delineado ao longo do processo. Ele concerne à relevância de “desnaturalizar” a loucura, o trabalho e as oficinas. Como o farei? Guiando-me pelo ensinamento de Manoel de Barros: “desfazer o normal há de ser uma norma”. No texto chamado “Aula”, ele ensina que 32 LISPECTOR, C. Declaração de amor. In: _____. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 100. 44 [...] quisera uma linguagem que obedecesse a desordem das falas infantis do que as ordens gramaticais. Desfazer o normal há de ser uma norma. Pois eu quisera modificar nosso idioma com as minhas particularidades. Eu queria só descobrir e não descrever. O imprevisto fosse mais atraente do que o dejá visto (BARROS, 2006, p. 31). Para o poeta, trata-se do exercício da escrita; para minha pesquisa, trata-se do exercício de pensar. Inspirada por ele, tentarei, ao longo da tese, desfazer alguns normais sobre a loucura, o trabalho e as oficinas. Há muitas maneiras de desfazer um normal. Às crianças, pelas brincadeiras. Aos artistas, pelas artes. Aos cozinheiros, pelas comidas. Aos jardineiros, pelas plantas. A mim, que agora ocupo a cadeira de aluna de um curso doutoral na área das humanidades, pela ação de pensar. Ação que Arendt (2010) ensinou, com base na história da cultura grega, ser um fazer político, pedindo pluralidade de pensamentos e devendo ser tomada em toda sua radicalidade se queremos exercer a potência de criação de um mundo diferente do que temos 33. Aqui, “desfazer o normal” se referirá ao fomento de um exercício de pensamentos que pretende “estranhar” olhares, por vezes, já acostumados a perspectivas conhecidas. Ou, como escreveu Clarice Lispector na citação acima, é uma tentativa de tirar o superficialismo das coisas e das pessoas. A experiência de olhar de outro modo agregando novos elementos e ressignificando antigos é constante em minha vida. Desde criança, míope que sou, quando mudo as lentes de meus óculos para outras mais adequadas ao que preciso no momento, passo a enxergar pequenos pontinhos, fissuras, rasgos, bolhas, texturas que outrora meus olhos acomodados a lentes antigas não alcançavam. Desfaço normais e desnaturalizo imagens, portanto. Outro significado de “desnaturalização” corresponde à perda da cidadania, voluntária ou não, e passar a ser estrangeiro em seu lugar de origem. Deixar de ser natural de um país pode implicar na busca por ser reconhecido como cidadão por outro, ou mesmo, no caso de a pessoa ter mais 33 O pensamento arendtiano será mais discutido no ensaio “Um olhar sobre o trabalho”. 45 de uma cidadania, passar a ser cidadão em apenas um lugar. Ao ser tomado em sentido metafórico – guardando o devido respeito à condição violenta e potencialmente estarrecedora de ser banido de um país e desterrado dele –, “desnaturalizar” pode dizer, simbolicamente, sobre perder-se do antigo e emigrar em busca de novos territórios. É o que tentarei fazer com a loucura, o trabalho e as oficinas. Para mim, que já morei no Sudeste, Nordeste e Norte, pois, como canta Milton Nascimento, tento me encontrar longe do meu lugar 34, e que transitei por grande parte do território brasileiro também em busca de me conhecer mais em meu país, experimentar estrangeirices em território nacional me era habitual. E também já fui estrangeira em outros países, para passear e estudar, o que contribui para exercer o estranhamento do olhar que pretendo empreender ao longo do texto a seguir. Hoje, vivo essas andanças no ofício de pesquisadora, matutando e escrevendo, e em meu quintal, ao lado de minha filha e meu companheiro brincantes. As viagens nesse “trem de tese” e em meu quintal que, como o de Manoel de Barros, “é maior do que o mundo” 35, hoje me tem sido mais prazerosas do que pelos trilhos, estradas, rios e céus para além dos portões de nossa casa. Ofertar meu olhar para tentar desfazer o normal e desnaturalizar esses signos não é tarefa de pouca monta. Confesso que, inicialmente, titubeei. Mas, como recusar o desejo de fazê-lo, depois de ter experimentado a loucura de tantas maneiras e convivido com gentes tão loucas? Para que serviria uma tese de doutorado em psicologia feita por mim, a não ser para contribuir no desfazimento do normal? Em tempo: sim, há pesquisas em psicologia que se fazem com as réguas científicas pretensamente capazes de afirmar padrões e normatizar comportamentos, afetos, modos de existir, e que são tão bem-vindas quanto a que apresento agora. Elas importam à ciência e à prática profissional e suas 34 Alusão à canção “Caçador de mim”. MAGRÃO, S.; SÁ, S.C. Caçador de mim. In: NASCIMENTO, M. Caçador de mim. Rio de Janeiro: Phillips, 1981. Disco sonoro de vinil, lado B, faixa 6. 35 Referência ao livro de poemas de Manoel de Barros: “Meu quintal é maior do que o mundo”. In: _____. Meu quintal é maior do que o mundo – Antologia. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2015. 46 validades são inquestionáveis. Só não espere, leitor, encontrar uma dessas no texto a seguir. Para realizar a tarefa, resgatarei compreensões de alguns autores clássicos, talvez bastante familiares aos leitores afeitos às questões da Saúde Mental, e outros não tão conhecidos assim. Eu os buscarei para que me ajudem, com a agudeza de seus pensamentos, a olhar para algumas direções sobre os signos “loucura”, “trabalho” e “oficinas” que, de tão amplos e complexos, merecem ser tratados de muitas perspectivas. Advirto o leitor que esses signos não serão pensados como comumente se faz nas pesquisas científicas que tenham as oficinas como seus campos, ou seja, focando nelas os estudos. A centralidade não estará nelas, como o título poderia levar a supor. Talvez até seja o que se espera de alguém que pensou sobre as oficinas no mestrado e que teve atuação profissional na área. Porém, restringir a pesquisa a elas desconsideraria que tenho feito algumas reflexões a mais – sobre a loucura e o trabalho – que também podem servir à ciência. No primeiro e segundo ensaios, as reflexões são próprias à matéria da loucura e do trabalho, com a finalidade de pensar mais livremente sobre questões pertinentes à Reforma Psiquiátrica. Nele, há tímidas referências às oficinas. No terceiro ensaio, dialogo mais sobre as oficinas para pensar em alguns pontos que pretendem contribuir com os equipamentos que compõem os campos da pesquisa e com outros que possam vir a se inspirar no conteúdo dessa tese. Feita a ressalva, explico que escolhi três equipamentos como campos da pesquisa para evitar que houvesse qualquer tendência de “duelo” ou comparações dicotômicas, caso houvesse apenas dois. Não escolhi apenas um porque eu já havia tido a oportunidade de explorar um único equipamento na minha pesquisa de mestrado. Propus o Núcleo de Oficinas e Trabalho e a Casa das Oficinas, em Campinas-SP, e a Associação Arte e Convívio, em 47 Botucatu-SP porque já os admirava anteriormente a esse processo doutoral e também porque eles podem inspirar outras experiências 36. Elucido mais um recorte: a escolha do louco como um dos sujeitos da pesquisa e a exclusão da pessoa que usa substâncias psicoativas, que também participa das oficinas pesquisadas, foi feita pelo meu interesse na loucura, como explanado anteriormente, e também porque parto da suposição que seus lugares sociais são diferentes. Foi também em virtude dessa escolha que o primeiro ensaio foi pensado. Há particularidades históricas e atuais da segregação social e do preconceito em relação à figura do louco que não necessariamente aparecem nos demais frequentadores das oficinas, tais como a imposição de internação vitalícia em manicômio, a negação da cidadania, o descrédito em relação à sua potência para o trabalho, entre outras. Obviamente que os sentidos que se produz ao trabalhar são diferentes para quaisquer pessoas, estejam elas nas oficinas ou não e independente de seus diagnósticos. No entanto, no cenário das oficinas, tais dessemelhanças são acentuadas o suficiente para permitir a escolha de uma categoria de sujeito em detrimento de outra. Sobre os trâmites éticos do projeto de pesquisa, ele foi submetido à Plataforma Brasil para apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, em acordo a Resolução n°466 de 12 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2012), tendo sido aprovado em 19/11/2018 37. Todo sujeito entrevistado foi esclarecido sobre sua participação voluntária, confidencialidade de dados pessoais, tema e objetivos da pesquisa, foi garantido que ele poderia solicitar mais informações e também deixar de participar dela a qualquer tempo. Nenhum dos procedimentos propostos pretendeu trazer qualquer risco ou desconforto para o participante. Também não houve qualquer tipo de despesa ou de remuneração paga ou recebida por ele. A participação aconteceu após o sujeito concordar com as condições citadas e registrar sua aprovação em “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido” (TCLE), conforme modelo em anexo ao 36 A apresentação desses equipamentos será feita na terceira parte da tese. 37 O “parecer consubstanciado” encontra-se nos “Anexos” da presente tese. 48 final do texto desta tese. As informações serão apresentadas anonimamente, assegurando, assim, a privacidade do sujeito. O objetivo da pesquisa é, pela via de estudos e memórias de minha prática profissional, apresentar reflexões sobre a loucura, o trabalho e as oficinas, para contribuir com a ética proposta pela Reforma Psiquiátrica de cuidado ao louco em condições dignas e em liberdade. O louco é um cidadão que deve ter garantido, entre outros, seu direto ao trabalho e à saúde, e a oficina de geração de trabalho e renda na Saúde Mental é um dos meios para efetivá-los. Pretendo contribuir na superação de modos de pensar e fazer manicomiais e na construção de uma sociedade mais justa. Faço a aposta de que a participação do sujeito na oficina pode colaborar para enfrentar a marginalização da loucura ao possibilitar que ele construa para si um lugar social de trabalhador, ao mesmo tempo em que ela também tem o compromisso de produzir saúde. A proposição parte de memórias de algumas narrativas de oficineiros com quem convivi no NOT sobre se sentirem trabalhadores “úteis”, “produtivos” e “autoconfiantes”, e sobre articularem o trabalho a outras dimensões da vida como a ampliação da convivência interpessoal, de circulação na cidade, do desejo de estudar, entre outros. Para refletir sobre isso, além do levantamento bibliográfico e de minhas memórias de trabalhadora, conversei com alguns oficineiros e membros das equipes técnicas sobre como se dão as dimensões do trabalho e do cuidado em saúde em seus cotidianos, quais são os sentidos produzidos no âmbito do trabalho e que se prolongam para outros campos da vida do oficineiro, entre outras matérias. Didaticamente, a presente tese será dividida em quatro partes. Nesta primeira parte, além da breve apresentação de minha trajetória estudantil e profissional já feita, exponho sobre o que pesquiso, o método empregado e quais os objetivos dos estudos. Na segunda parte, farei três ensaios sobre loucura, trabalho e oficinas. Na terceira parte, há trechos das prosas entre mim, oficineiros e técnicos das oficinas, e algumas fotografias de seus cotidianos. 49 Finalmente, na quarta parte, com últimas palavras, concluirei a tese fazendo alguns arremates das discussões por meio de uma carta dirigida à minha filha. No ensaio “Um olhar sobre a loucura”, trarei alguns contextos históricos e atuais para argumentar sobre a escolha do termo “louco” ao longo do texto, sem relacionar as discussões exclusivamente às oficinas. Problematizarei a questão do diagnóstico, sobre como ela é nomeada, apontarei para a importância de considerar a narrativa da história do sujeito no tratamento em saúde e refletirei sobre a hegemonia da medicalização da loucura como uma das consequências de olhares eminentemente biológicos das disciplinas psis. No ensaio “Um olhar sobre o trabalho”, pensarei sobre a atividade do trabalho na criação de mundos, a importância do pensamento e do amor como forças da vida, o trabalho em alguns momentos da constituição da sociedade brasileira e, por fim, a tão importante preguiça. No ensaio “Um olhar sobre as oficinas”, remontarei aos primórdios das oficinas nos hospitais psiquiátricos até a atualidade, discutindo sobre a oficina como lugar de oferta de trabalho e como campo clínico que visa produzir cuidado em saúde. Adentrarei na seara das Reformas Psiquiátricas italiana e brasileira com o intuito de compreender a importância das oficinas no processo de superação dos manicômios. A atenção em saúde que as oficinas promovem pareceu pertinente de ser investigada desde quando fiz a pesquisa de mestrado, que tratou de minha experiência profissional no NOT. Durante aproximadamente os dois anos em que trabalhei lá, pude refletir que ali eram produzidas mudanças significativas nas vidas dos participantes, algumas vezes de maneira mais potente do que, por exemplo, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) onde atuei anteriormente durante seis anos. À época, pensei que seria importante reavaliar o CAPS como sítio privilegiado no projeto social de cuidado ao louco e questionar se a centralidade da produção de saúde não deveria ser das oficinas e dos Centros 50 de Convivência 38. Como já escrito, ainda creio nisso, embora eu tenha esperança de que, um dia, esses equipamentos de transição de uma lógica manicomial nos guiem para um horizonte em que não haja mais lugar de tratamento específico para o louco. Que ele possa circular por todos os lugares de saúde, de convivência, de trabalho que nós, talvez um pouco menos loucos do que eles, temos o direito de habitar. Considerando que nós, que participamos da Reforma Psiquiátrica, temos a obrigação ética de reinventarmos nossos fazeres, projetos e equipamentos incessantemente, muitos espaços de pensamentos e ações precisam ser ativados para que o presente seja melhor e o futuro seja possível, incluindo esse de uma pesquisa acadêmica. Escrevo a tese pensando que os leitores serão, preponderantemente, os participantes da Reforma Psiquiátrica. O movimento, heterogêneo que é, compõem-se de pessoas das mais variadas áreas e lugares: usuários dos equipamentos de Saúde Mental, seus familiares e amigos, trabalhadores não apenas da Saúde Mental, mas também de áreas que a atravessam (jurídica, educacional, cultural, da Assistência Social, entre outras), estudantes, literários e outros interessados. A tarefa é desafiadora, pois criar um texto científico que alcance essas pessoas merecerá tratamentos diferentes em certos trechos, com menos ou mais usos de termos técnicos. Evidente que o vocabulário mais usado será o de um trabalho de doutorado em psicologia, mas, em alguns momentos, ousarei subverter a obediência acadêmica para tornar o texto mais tangível aos leitores citados. Com o acúmulo de leituras que fiz ao longo dos anos, de diálogos com os participantes das oficinas e de minhas memórias de trabalhadora, construí um “caleidoscópio de pensamentos” sobre loucura, trabalho e oficinas. 38 À época em que trabalhei em Campinas, as oficinas de geração de trabalho e renda na Saúde Mental e os Centros de Convivência eram os espaços que, junto ao CAPS, compunham a rede pública de Saúde Mental. 51 As metáforas da imprevisibilidade e da pluralidade do desenho do caleidoscópio guardam bem o sentido de como compus os estudos e a escrita. No instrumento óptico, não se sabe, de antemão, qual imagem colorida se formará no interior do tubo ao movimentá-lo para mudá-lo de posição, porque ela dependerá de como ele é chacoalhado, da incidência da luz, da posição dos objetos coloridos refletidos no prisma de espelho, entre outras variáveis. Daí o caráter imprevisível da brincadeira. Do mesmo modo, a pesquisa foi ganhando um formato conforme seus conteúdos – os pequenos objetos coloridos contidos no interior do tubo – formavam plurais reflexões – o prisma de espelho – na escrita da tese – o desenho. Nesses estudos, a cada escuta e leitura, houve efeitos de pensamentos diferentes. E, por serem diferentes, eles renovaram meu olhar de pesquisadora. Os pensamentos são, portanto, provisórios, tais como as figuras do caleidoscópio que mudam a cada giro. O caráter temporário e passageiro do pensamento, que é assim porque pensar é exercício constante e mutável – de intensidade, direção, opinião, julgamento – me conforta, pois me resguarda de possíveis equívocos futuros quanto ao que escrevo agora. Das incertezas de quando iniciei o roteiro ao momento atual da pesquisa, o produto que entrego à banca é um desenho caleidoscópico que poderá, quiçá, ser registro de uma época a ser lembrada posteriormente como de transição de um longo período passado de práticas manicomiais para um novo tempo, ainda por vir, de consolidação de práticas de cuidado em liberdade. 52 Como escrevo Figura 7 Título: Sementes do quintal vistas no caleidoscópio Fotografia minha (ano de 2021) Este livro foi escrito por uma mulher que no tarde da Vida recria e poetiza sua própria Vida. Este livro foi escrito por uma mulher que fez a escalada da Montanha da Vida removendo pedras 53 e plantando flores. Este livro: Versos... Não. Poesia... Não. Um modo diferente de contar velhas estórias. (Cora Coralina) 39 O traçado de meu percurso profissional é fortemente marcado pela atuação na área da Saúde Mental, como apresentado anteriormente. Especialmente as memórias do tempo em que coordenei oficinas no Núcleo de Oficinas e Trabalho e a dissertação de mestrado ainda ressoavam em mim, o que me inspirou a prosseguir estudando sobre elas, junto às reflexões que também venho fazendo, nos últimos anos, sobre a loucura e o trabalho. Mas, se a dissertação privilegiou meu próprio relato, agora ele irá se compor com os dos oficineiros e técnicos das oficinas. De mim, há a escolha de uma postura ética na organização das prosas que fiz com eles, em 2018, de modo que sejam proveitosas à Reforma Psiquiátrica. Por ser um texto com caráter também autoral, a opção pelo uso da primeira pessoa do singular me pareceu ser a mais adequada, contrariando o hábito corrente da primeira pessoa do plural em textos acadêmicos. Usar a pessoalidade não é mero artifício linguístico, mas afirmação de um modo implicado de fazer ciência. Embora sempre reservada, creio que de nada valeria um trabalho de doutoramento na área das humanidades sobre uma vivência com a loucura e o trabalho tão importante para mim se eu não usasse uns poucos trechos de minha própria experiência para refletir sobre o tema. Como na epígrafe de Cora Coralina, esta é uma tese que pretende, de um modo diferente, contar velhas histórias. São causos sobre loucura, trabalho 39 CORALINA, C. Ressalva. In: _____. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global, 1985, p. 42. 54 e oficinas que querem colaborar com a Reforma Psiquiátrica e com um mundo com justiça social. Signos tão complexos não merecem ser tratados sob qualquer purismo, ou mesmo sob uma única perspectiva. Por crer que a pluralidade de ideias enriquece a Reforma, terei uma abertura a contribuições de diversos autores, alguns nem sempre afeitos a outros, mas todos usados, em suas fontes, com o intuito de enriquecer as discussões. Suas diferenças irão compor o desenho caleidoscópico desta pesquisa cartográfica. 55 A opção pela cartografia Figura 8 Título: Flores do quintal vistas no caleidoscópio (III) Fotografia minha (ano de 2021) Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. (Clarice Lispector) 40 A Geografia usa o verbo “cartografar” para designar a feitura e o estudo de mapas terrestres que representam uma dada área em versão reduzida. O termo da ciência geográfica foi adotado na obra “Mil Platôs” (DELEUZE; GUATTARI, 1995), quando os autores trataram do conceito de “rizoma”, sugerindo mapas que fossem traçados por linhas de relações entre sujeitos. O 40 LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 21. 56 filósofo e o psicanalista pretenderam refletir sobre a multiplicidade rizomática das relações humanas e a inviabilidade de circunscrevê-las em universalismos, pois consideravam cada experiência relacional única. Eles não sugeriram, de antemão, um método científico. Coube aos pesquisadores das ciências humanas alvitrarem um método inspirado pela ideia da cartografia cunhada pelos pensadores. Como ensinam Barros e Kastrup (2009), O caráter inventivo coloca a ciência em constante movimento de transformação, não apenas refazendo seus enunciados, mas criando novos problemas e exigindo práticas originas de investigação. É nesse contexto que surge a proposta do método da cartografia (BARROS; KASTRUP, 2009, p.55 e 56). Suas apostas principais são de que o sujeito da pesquisa existe apenas na relação com o pesquisador e vice-versa, que as particularidades de determinadas situações de pesquisa não se reproduziriam em outras e que é necessário que o pesquisador se comprometa e esteja afetado pelo processo de pesquisar. O traçado da pesquisa – tal como num mapa – guardaria um certo tom de “um modo diferente de contar velhas estórias”, como escreveu Cora Coralina na epígrafe acima. Na “diferença” também estaria guardada a riqueza da pesquisa. A “contação de histórias” acontece durante o próprio pesquisar “com” o campo e o sujeito e não “sobre” ou “para” eles. O caminho de pesquisa é criado sem protocolos prévios, pois o “aprendizado não pode ser enquadrado numa técnica e em um conjunto de procedimentos a seguir, mas deve ser construído no próprio processo de pesquisa” (ALVAREZ; PASSOS, 2009, p.135). Abdicar de regras não pressupõe irresponsabilidade com processos éticos em pesquisa. A cartografia, como outros métodos científicos, pede respeito aos direitos dos seres humanos em pesquisa e responsabilidade pelo que se reflete e publica. Segundo Rolnik (2014), em cartografia, a regra é agir e inventar estratégias tendo a ética da expansão da vida como parâmetro básico. 57 Numa pesquisa com esse tom, o “método” – palavra que vem do grego methodos e que significa “caminho para atingir um objetivo” – tem seu sentido invertido. Na cartografia, o objetivo (metà) é o próprio caminho (hodós), ou seja, “não mais um caminhar para alcançar metas pré-fixadas (metà-hodós), mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas” (PASSOS; BARROS, 2009a, p. 17). Na geografia, uma cartografia serve a quem quer seguir as rotas de um caminho já registrado e representado previamente. O mesmo não acontece com o método cartográfico, pois a “apresentação” – e não representação – de certo caminho não compreende a possibilidade de que outro faça esse mesmo caminho. E, nas ciências, para que serviria a apresentação de um caminho que não pode ser usado para guiar outros caminhantes? Serviria para algo também interessante: inspirar outros caminhos. Particularmente, na área da saúde, esse método interessa porque reconhece que cada ser humano, com sua biografia, merece ser cuidado partindo de sua singularidade. Nesse caminhar, os dados não estão imóveis num determinado campo para serem coletados, recolhidos, descobertos. Pelo contrário, os dados só existirão na inter-relação entre os sujeitos pesquisados, o campo e o pesquisador. A intenção é pesquisar implicando mutuamente todos os participantes (ROLNIK, 2014; GUATTARI; ROLNIK, 2013). Trata-se, em cartografia, de “criar” – e não coletar – material de pesquisa, cultivando o encontro do pesquisador com o sujeito e relacionando interferências daquele sobre esse e vice-versa. Como ensina Sibertin-Blanc, Cartografar não é somente um saber técnico de representação gráfica de um espaço preexistente no meio de um código de projeção e de transcrição simbólica. É, primeiramente, uma atividade vital, implicada por todo processo prático, natural ou cultural, individual ou coletivo; é, em seguida, uma maneira de conceber um regime de saber implicado por estes processos (SIBERTIN-BLANC, 2010, p.227, tradução minha) 41. 41 Traduzido do original: “Cartographier n’est pas seulement une technique savante de représentation graphique d’un espace préexistant au moyen d’un code de projection et de 58 Aqui, o regime de saber é fruto de minhas buscas literárias somadas à minha experiência como trabalhadora da Saúde Mental e aos encontros com os sujeitos nos campos da pesquisa. Com esse material, compus a cartografia registrada em três ensaios e na apresentação de um trecho com nossas narrativas. transcription symbolique. C’est d’abord une activité vitale, impliquée par tout processus pratique, naturel ou culturel, individuel ou collectif; c’est ensuite une manière de concevoir um régime de savoir implique par ces processus”. 59 Por uma ciência que integre saber e prática Figura 9 Título: Flores do quintal vistas no caleidoscópio (IV) Fotografia minha (ano de 2021) “Tudo vem da sem-razão”, diz-se na Antologia Grega. E, na verdade, tudo vem da sem- razão. Fora da matemática, que não tem q