unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP Evelyn Caroline de Mello Olhares Femininos sobre o Brasil: um estudo sobre As meninas, de Lygia Fagundes Telles ARARAQUARA – SP 2011 Evelyn Caroline de Mello 2 Olhares Femininos sobre o Brasil: um estudo sobre As meninas, de Lygia Fagundes Telles Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras, Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre. Linha de pesquisa: História e Crítica Literária Orientador: Wilton Marques ARARAQUARA – SP 2011 3 Dedico este estudo à memória de Sebastião de Mello, meu avô e exemplo de vida. 4 AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, à minha família pelo apoio e pela paciência em meus momentos de stress (que não foram poucos). Tudo teria sido muito mais complicado sem a presença dessas pessoas queridas que me acompanharam até aqui. Ao meu querido companheiro, André, que tornou tudo muito mais leve, sempre pronto para me escutar. Ao meu orientador, Wilton Marques, por tudo o que me ensinou, pela dedicação, carinho e paciência. À minha querida orientadora de iniciação científica, Tânia Pellegrini, responsável pelo encaminhamento desta pesquisa, pelas primeiras nuances do trabalho que aqui se desenrola e por meu crescimento e amadurecimento teórico, em especial, por ter me permitido aprender com seu exemplo de profissionalismo. À professora María-Dolores Aybar-Ramírez, por toda ajuda, orientação e por ampliar meu campo teórico, compartilhando comigo seu grande talento. A todos os amigos que me acompanharam nessa empreitada e souberam entender todas as vezes que não pude e não quis sair de casa. 5 Ninguém se engane. A prosa de Lygia aparenta a doce inocência de uma rosa. Mas essa rosa é profunda, e seu perfume lembra, na complexidade, os vinhos raros. Gilberto de Mello Kujawski 6 RESUMO A proposta do presente trabalho é a de analisar de que maneira Lygia Fagundes Telles se utiliza da tripartição do foco narrativo em As meninas (1973) para recompor traços da sociedade brasileira e também discutir em que medida as questões históricas referentes ao período de transição do governo Costa e Silva para o governo Médici encontram-se trabalhadas no romance. Para elucidar tal questão, ou na tentativa de, contrapõe-se o contexto histórico dado com a análise dos elementos estéticos da obra. Busca-se entender, portanto, como as personagens Lia, Lorena e Ana Clara contribuem com a recomposição do painel da sociedade brasileira do período; de que maneira a busca do Eu seria o centro de seus fluxos de ideias, ou se a questão política também aparece em seus anseios e dramas pessoais. Portanto, leva-se em conta a questão do sujeito versus a questão histórica que é vivenciada, possibilitando a afirmação de que a condição feminina das personagens e a formação de suas identidades não se dissociam da (re)construção da sociedade brasileira. O olhar feminino é, portanto, o centro da análise, pois é o olhar das três personagens que medeia tanto o espaço quanto o tempo no romance, de tal forma que se torna impossível dissociar características individuais e contingências externas. Cada uma delas é representante de um determinado segmento social e, de acordo com suas vivências, dão cores ao cenário que expõem ao leitor. Palavras-chave: Literatura Contemporânea; ditadura militar; teoria feminista; Lygia Fagundes Telles; As meninas. 7 RESUMEN La propuesta principal de esta investigación es la de analizar cómo Lygia Fagundes Telles utiliza la tripartición del foco narrativo en su novela As meninas para reconstituir los rasgos de la sociedad brasileña y también, evaluar, hasta que punto los acontecimientos históricos que se refieren al período de transición del gobierno de Costa e Silva para el de Emílio Garrastazu Médici se encuentran estéticamente transpuestos en la novela. Con esta intención, se hace una comparación entre el contexto de producción con el análisis de los elementos estéticos de As meninas. Es decir, se va a evaluar cómo Lia, Lorena y Ana Clara contribuyen con la recomposición de la situación social que viven. ¿Seria la búsqueda de la identidad el centro de sus crisis existenciales, o las cuestiones referentes a la política también son responsables por sus angustias. Siguiendo por este camino, se va llevar en cuenta la relación del sujeto con su período histórico, lo que remite a la afirmación de que la condición femenina de las personajes y las formaciones de sus identidades no se pueden disociar de la recomposición de los aspectos de la sociedad brasileña. Por supuesto, la mirada femenina es el punto principal de esta investigación, pues es la visión de las tres chicas, la que va a orientar toda la narrativa, describiendo su tiempo y su espacio de manera que resulta imposible apartar las características internas, referentes a sus subjetividades, y las categorías externas, a las cuales se tiene acceso por sus ojos y por su voz. Cada una de ellas ocupa una posición específica en la sociedad y, de acuerdo con sus experiencias, llenan la escena que exponen al lector con nuevos colores. Palabras clave: Literatura contemporánea, régimen militar, teoría feminista, Lygia Fagundes Telles, As meninas. 8 SUMÁRIO Introdução ............................................................................................................... 9 Capítulo I 1. A literatura feminina tem fisionomia própria .............................................................................................................15 2. A literatura feminina em verde e amarelo ..............................................................................................................25 3. As peças do quebra-cabeças de Telles .............................................................................................................30 Capítulo II 1. Ditadura militar sob ótica feminina em As meninas ..............................................................................................................35 2. À procura de uma identidade feminina no espaço .............................................................................................................. 42 3. Três identidades em tempo de ditadura militar ............................................................................................................. 55 4. Olhar que integra a identidade e o espaço-tempo ...............................................................................................................60 Capitulo III 1. Lorena e o mundo burguês de Magnólia Desmaiada ................................................................................................................73 2. Lia-Lião: a ambigüidade baiana-alemã ................................................................................................................86 3. Ana Clara-Turva: a Cinderela contemporânea ................................................................................................................96 Capitulo IV Olhares que questionam ............................................................................................................. 104 Referências ...............................................................................................................107 9 INTRODUÇÃO Onde estavam as mulheres? Essa foi a pergunta que deu início ao trabalho que aqui se estende, ainda em meus anos de graduação, na UFSCar. Em meio ao cenário de reação artística, apresentado pela professora Tânia Pellegrini nas aulas de Literatura Contemporânea, surpreendi-me, fascinada, pela busca à democracia, realizada por aqueles que viveram o momento histórico referente aos anos de ditadura militar no Brasil, paralelamente às loucuras deste regime brutal. O cenário da Ditadura Militar Brasileira, em especial, os Anos de Chumbo que compreendem o período entre a promulgação do AI-5 até o fim do governo de Emílio Garrastazu Médici, tão repleto de violência e abuso, chamou-me a atenção pela imensa vontade de mudança dos jovens estudantes, que se engajaram na luta contra o governo, e pela solidariedade do meio artístico em desnudar o que se encontrava escuso, na tentativa de superar as barreiras da rígida censura. As novidades comportamentais, a luta pela queda de tabus e pretensão de modernização em uma sociedade dominada por arcaísmos, a briga de contrários: direita e esquerda política digladiando-se, cultura pop e arte engajada, enfim, um cenário que se queria de cor única, mas repleto de novidades e de outros matizes que quebravam a pretensa unicidade comportamental e política. Entre os grandes, aqueles que despontaram como agentes reveladores de seu tempo, como homens que pretendiam escrever uma nova história: Hélio Oiticica, com seu “Seja herói, seja Marginal”, Glauber Rocha e Cacá Diegues – Cinema Novo, Oduvaldo Viana Filho e teatro de reação, José Celso Martinez Correa – Oficina. Na MPB a representação nas figuras de Chico Buarque, Geraldo Vandré e Milton Nascimento, a contestação às arbitrariedades do regime se fazia presente na música. Mas, a rebeldia aos padrões comportamentais também, pois a Tropicália chegava para quebrar com as estruturas e entrar em todas as festas, parodiando as antíteses da sociedade brasileira e propondo liberdade de criação e expressão. A literatura, assim como as demais expressões artísticas, deu seu testemunho. Antonio Callado, Érico Veríssimo, Ignácio Loyola Brandão, Fernando Gabeira, entre outros, traziam à tona aquilo que o regime ocultava por meio da censura e da violência. Em um novo estilo, o romance passa a incorporar técnicas extraliterárias, como o flashback, a justaposição, típicas do cinema, ou a inserção de elementos jornalísticos, na tentativa de burlar a repressão e contestar o regime vigente. 10 Homens de um tempo de intensos agitos sociais e políticos, em que o principal era garantir o direito de requerer a liberdade de expressão, o retorno dos direitos civis. Homens que tentaram transformar seu tempo, pelas armas, pelo protesto, pela arte. Homens. E as mulheres? Quais teriam sido suas posições? Onde aparecem suas representações, suas vozes? Até então, só as conhecia como intérpretes de canções das quais não eram compositoras: Elis Regina, Nara Leão, Maria Bethânia. Não haveria nenhuma mulher que participasse da luta pela redemocratização? Sim, havia. Guerrilheiras. Nunca havia pensado nessas mulheres que pegaram em armas para defender seu país, seu povo. Tão pouco citadas, quase esquecidas. E as autoras? Quais teriam sido as posições assumidas? Levando-se em conta que a rigidez que tomava conta da sociedade da época, como explicar que um momento de dura repressão fosse também o momento do boom da literatura escrita por mulheres, silenciadas e excluídas das decisões sociais? As circunstâncias políticas influenciaram de algum modo as autoras, ou a única questão seria realmente a da emancipação feminina, isolada, portanto, do quadro político? Foram essas as questões que me levaram a buscar de que maneira o olhar feminino traduziu os Anos de Chumbo. Foram essas questões que deram início ao trabalho de Iniciação Científica desenvolvido na UFSCar, com a professora Tânia Pellegrini, e que hoje, é o centro dos estudos que aqui se desenvolvem. O foco da análise é a obra As meninas, de Lygia Fagundes Telles, em que se busca compreender qual a correspondência da saga das três estudantes – Lia, Lorena e Ana Clara ��� ���� �� �� ���� �������� ��� � ����� ����� ��� ���� ������ ������ -se qual a maneira como cada uma delas se relaciona com os fatos que a cercam e, deste modo, como contribuem com a (re)composição dos fatos políticos e culturais de sua época. Para tanto, trabalha-se com a hipótese de que esse olhar feminino recria a história de um ponto de vista marginal, pois os agentes da história eram os homens, posto que o governo militar aponta para um órgão viril, que rege pela força e dela se utiliza para sua manutenção, e que as revanches por parte de estudantes e artistas, também eram hegemonicamente masculinas. Logo, entregar a narrativa a três mulheres, criadas por uma autora, pede um olhar diferenciado de análise. Para tanto, o primeiro capítulo dedica-se a uma discussão sobre o que se entende por feminino, feminismo e “de mulher”, para que se possa delimitar o campo de discussão e preparar o terreno em que se fundamentará a escolha da linha teórica. Igualmente, apresentam-se as possibilidades de análises mediante as várias linhas 11 teóricas que se dedicam a investigar quais seriam as características que garantiriam a especificidade da literatura escrita por mulheres. Teria uma relação com a busca pela identidade como afirma Julia Kristeva? Ou a questão seria fundada em causas de caráter econômico, de acordo com os preceitos marxistas? Escolhemos como base teórica a ginocrítica de Eliane Showalter, que leva em consideração os fatores culturais, os quais levam às várias maneiras de sentir a condição feminina. Nesse sentido, as posições sociais, os grupos ideológicos a que pertencem, são de extrema importância para que se possa traçar seu perfil. Também encontrará apoio teórico em Kate Millet, frisando que as relações sociais e políticas têm forte influência sobre a estética do texto feminino. Após a escolha da linha, discute-se a especificidade do desenvolvimento das idéias feministas no Brasil, em concordância com os estudos de Showalter, buscando especificar a situação cultural da mulher brasileira, levando-se em consideração o fato de que a luta pelos direitos da mulher, no Brasil, possui um caráter específico, dada a situação de desigualdade social. Tal fato problematizou a inserção das ideias feministas, pois se criou um abismo entre as mulheres, em conseqüência de diferentes objetivos e divergências de opiniões. Portanto, é legítimo, em um primeiro momento, que se entenda a necessidade de falar em “feminismos”, e os diferentes tons e exigências de grupos de mulheres de diferentes classes sociais. Nesse sentido, faz-se uma retomada da carreira de Lygia Fagundes Telles e de sua formação, que a insere em um grupo de mulheres cultas, politizadas, consciente de seu tempo e das pessoas que a cercam, em suas necessidades específicas e impasses. Telles faz parte de um grupo de mulheres privilegiadas, mas multiplica seu olhar e o difunde tanto para sua própria classe, quanto para as demais. Aos poucos, todas as mulheres ganham espaço em sua narrativa. A princípio, problemas típicos das famílias burguesas, mulheres que se deparam com a artificialidade de suas vidas, com as mentiras da sociedade, com a desarticulação de seus lares e lutam (às vezes sem sucesso) por um novo destino. Com o passar do tempo, ganham espaço mulheres de classes sociais menos favorecidas, Anas Claras, produtos de uma sociedade excludente, com outras urgências, outros dilemas, destino marcado. A mudança de tom da obra de Telles sugere novos tempos. As meninas abre discussões típicas da juventude dos anos de 1960 e 1970, mostra a banalidade da sociedade do Milagre Brasileiro a partir de três pontos de vista; três classes sociais que se propõem a arrancar o véu que recobre o cenário político e social. Inicia-se, portanto, no segundo capítulo, a análise da obra em contrapartida com seu contexto e suas 12 transformações sociais, políticas e econômicas, bem como se recupera a condição feminina dentro do referido contexto, posto que o movimento feminista estava em franca ascensão, apesar dos obstáculos que encontrou em um período que desfavorecia manifestações e organizações, assim como os debates que tivessem como centro questões individualizantes e existenciais. Deste modo, expõe-se a possibilidade de que em As meninas encontra-se marcada a relação sujeito versus a questão histórica, em que a condição feminina e a formação de identidade das personagens não se dissociam da recomposição do painel da sociedade brasileira, marcada principalmente na relação das personagens com seu espaço e com seu tempo, de acordo com a hipótese levantada por Débora R. S. Ferreira (2003), de que Telles, em As meninas, vale-se do feminino para estabelecer a contraparte da história oficial. Essa será a principal hipótese que permeará os estudos aqui desenvolvidos. Logo, dando sequência à análise da obra, privilegia-se a construção do foco narrativo, os três diferentes olhares femininos presentes na obra. Em um primeiro momento faz-se uma análise da configuração do foco narrativo e de que forma tal característica estética implicaria em uma reprodução dos acontecimentos pertinentes ao contexto por elas vivenciado. Para tanto, organizou-se um capítulo destinado a cada uma das narradoras, para que se pudesse entender a maneira como se relacionam com a sociedade. O terceiro capítulo é organizado em três ensaios, cada um destinado a uma narradora. O primeiro é dedicado à personagem Lorena, jovem oriunda de família burguesa, responsável pelo principal foco do romance. Procura-se investigar em que sentido seus monólogos interiores e a relação de alteridade que possui com as amigas, traria em sua subjetividade e pretensa alienação, uma postura diante dos fatos sociais que presencia; quais seriam as imagens formadas pela visão de Lorena e em que sentido contribuiria para uma análise da figura feminina da época. O segundo ensaio destina-se à visão guerrilheira de Lia-Lião, onde se concentra a maior parte das denúncias referentes às arbitrariedades do regime militar. A personagem tanto faz menção às torturas e fragilidades da política vigente, como demonstra os problemas enfrentados por seu grupo no que se refere ao distanciamento do povo que não compreendia sua luta, a falta de estrutura dos grupos e a fragmentação decorrente das várias mortes e prisões. O terceiro ensaio abre espaço à voz de Ana Clara, representante dos não favorecidos pelo Milagre Brasileiro. Ana Deprimida e Deprimente, às voltas com seus 13 delírios e momentos de grandeza na infinita miséria a qual se encontra submetida, revela a visão daqueles que não encontram espaço em sociedade, dos que se encontram invisíveis, vagando em meio às drogas e à prostituição. É essa personagem que encarna o drama de mulheres que não têm nada mais que o corpo para oferecer. Três identidades inseridas em um mesmo tempo, em um mesmo espaço, mas que vivem sua condição feminina de maneira específica. Três imagens diferentes da sociedade brasileira, cada qual imprimindo, idiossincraticamente, novas possibilidades, novas cores ao cenário cinzento dos Anos de Chumbo. Procura-se, neste trabalho, privilegiar a voz de Telles e de suas três meninas, a fim de deixá-las livres para dar sua versão de como poderiam ter sido estes anos de repressão. O quarto capítulo é reservado para a conclusão do trabalho, no qual se reúnem as principais questões desenvolvidas e dos pontos que ainda carecem de espaço para aprofundamento teórico, bem como a reunião dos olhares expostos em cada um dos ensaios. 14 CAPÍTULO I 15 1. A literatura feminina tem uma fisionomia própria: A mulher descobrindo-se: que mundo ela vai querer revelar senão o próprio mundo? Antigamente, eram os homens que diziam como éramos nós, as mulheres. Mas agora somos nós mesmas. Há um personagem que diz exatamente isso, em As meninas. (TELLES, 1997, n.p) Nada mais oportuno para abertura deste trabalho do que aproveitar para o título deste primeiro capítulo, uma observação de Lygia Fagundes Telles sobre a literatura feminina. A problemática sobre as características de um texto escrito por mulheres e sua fisionomia própria vem sendo amplamente discutida ao longo dos tempos e encontra tanto respostas favoráveis que acreditam que um olhar diferente resulta em aspectos diferenciados, quanto o contrário, como afirma Marina Colasanti (1997), lembrando as palavras de George Sand, que a letra não tem sexo, logo, não há diferença entre a escrita masculina e a feminina. Pode-se dizer que a discussão no que se refere à questão de gênero como um dos pontos de análise da produção escrita é tão vasto quanto à própria questão da pluralidade de análises possíveis com relação aos textos literários, pois Las distintas tendências críticas, las claves de acceso a la explicación o revisión de los fenómenos literario-culturales o intelectuales, los sistemas ideológicos o las grandes corrientes de pensamiento dominantes en cada periodo histórico ha vertido un conjunto de paradigmas que han originado heterogéneas concepciones críticas desde las que se han emprendido divergentes análisis, ya sean de los medios de producción, de los textos, de los contenidos, de los autores, de las propuestas analíticas, de los acercamientos teóricos, de los niveles estilísticos, etc., que se han visto completadas con el ensamblaje de otras variables diacrónicas culturales como pueden ser los factores históricos, filosóficos, antropológicos, iconográficos, religiosos, ideológicos, etc. (SANCHES, 2009, p.7-8). Nesse sentido, a primeira tarefa a ser realizada, no que se refere ao trabalho aqui empreendido, é o de focar qual caminho será trilhado dentre tantas possibilidades analíticas. Admite-se que a especificidade de cada linha de pesquisa se dá de acordo com as questões levantadas e abordagens a serem realizadas. Nesta pesquisa, parte-se do princípio de que os pontos de vista masculinos e femininos não poderiam ser os mesmos, posto que os papéis sociais, políticos e culturais não se configuram de um mesmo modo, sendo clara a relação de poder existente entre gêneros, fato este que viabiliza um olhar específico para a análise dos textos literários produzidos por 16 mulheres, a fim de resgatar as ressonâncias históricas neles contidas e suas decorrentes especificidades. Pode-se partir, em um primeiro movimento, de uma avaliação dos principais termos empregados nos estudos que mapeiam as produções femininas: o que se entende por feminino, feminismo e “de mulher”. O primeiro termo designa um conjunto de características comuns atribuídas à mulher e, como afirma Saches, “es, por tanto, una cuestión de punto de vista a la hora de ver la vida, de escribir, de plantear la relación con el mundo o de interpretarse en él y de relacionarse y vincularse con los demás o con la escritura.” (2009, p.112). Já o tido por feminista faz referência à mirada crítica sobre a configuração da mulher com relação à sociedade na qual se insere, bem como os papéis que essa lhe reserva, nesse sentido, […] la escritura feminista ante la vida y la realidad pasa a ser una escritura política, que pretende influir, denunciar, criticar, decodificar o realizar un discurso con la finalidad última de poner al descubierto las opresiones, luchar contra lo establecido históricamente por la tradición y tratar de ofrecer nuevas vías y tentativas de ver, de pensar, de sentir y de hacer en el mundo, teniendo presente un nuevo ángulo de enfoque y una nueva óptica que es la conformada por la de uno de los sexos, el femenino, que, secularmente, ha sido solapado, sedimentado y rechazado. (SANCHES, 2009, p.112-113) Considera-se a expressão “de mulher” como referente a aspectos biológicos, típicos do sexo feminino, leva-se em conta “[…]la biología personal del ser humano, mujer u hombre, con sus rasgos exógenos y endógenos y sus características orgánicas, anímicas y corporales también influyen en la manera de ser, de ver la vida, de comunicarse, de relacionarse o de estar en el mundo” (SANCHES, 2009, p.113). Aqui, importará o segundo aspecto acima abordado – a designação de feminismo ou feminista, pois na vertente que se trabalhará em toda pesquisa, o principal a se averiguar será a hipótese de que [...] leer como mujer o escribir como mujer se trata de una experiencia diferente, necesariamente diferente como resultado de la participación primal, y los feminismos tratan de hacer visible esta diferencia en una institución que la inviabiliza. […] La escritura de las mujeres sería la materialización textual de una experiencia social, económica y cultural específica pero común. (SANCHES, 2009, p.19) Tendo estabelecido que se focará a análise no olhar feminino, assumindo uma vertente teórica feminista, tem-se como segunda tarefa definir qual perspectiva, dentre 17 os segmentos possíveis, será a mais adequada para o caminho que aqui se pretende trilhar. Não se trata de uma tarefa fácil, mas crê-se que, como um primeiro passo, deve- se entender que, apesar das múltiplas formas de se abordar e traçar a questão da mulher, o principal é que se compreenda que essas linhas se complementam em muitos sentidos, afinal, utiliza-se a teoria feminista a fim de mapear a maneira por meio da qual a mulher foi representada pela literatura ao longo do tempo, como nela se inseriu, qual foi sua contribuição, aceitação ou resistência ao, até então, escrito pelo cânone, composto em sua unanimidade por homens. Admite-se a escrita feminina como [...] um “discurso de duas vozes” que personifica sempre a herança social, literária e cultural tanto do silenciado quanto do dominante. Já que a maioria das críticas feministas são também escritoras, dividimos esta herança precária; cada passo dado pela crítica feminista em direção à definição da escrita das mulheres é, da mesma forma, um passo em direção à autocompreensão; cada avaliação de uma cultura literária e de uma tradição literária femininas tem uma significação paralela para nosso lugar na história e na tradição crítica. A escrita das mulheres não está, então, dentro e fora da tradição masculina; ela está dentro de duas tradições simultaneamente, “subjacentes ao fluxo principal”, segundo a metáfora de Ellen Moer. (SHOWALTER, 1994, p.50) Dado o caráter dialético de construção da escrita feminina, partícipe e não partícipe da tradição hegemonicamente masculina, torna-se importante o estudo das especificidades da construção de linguagem por ela empreendidas, característica esta que está diretamente ligada à construção da psique feminina que, por sua vez, não está dissociada das condições culturais da sociedade em que se encontra, logo, há uma relação dialética entre cada uma das propostas que configuram os estudos feministas. Porém, apesar da possibilidade de diálogo entre as vertentes, não se pode ignorar sua vastidão, tão pouco a complexidade que as garante como linhas específicas, permitindo- se falar em feminismos, pois a pluralidade de situações e diferentes abordagens não permitem que se generalize ou se feche a questão, de acordo com os diferentes enfoques adotados. Dentre as possibilidades de análise, uma das questões levantadas é de que o feminismo se opõe à maneira cartesiana de avaliar o mundo, eliminando, neste sentido, o dualismo mente/corpo, natureza/cultura, essência/ constituição social, que relegavam ao homem o primado da razão e sujeitavam a mulher à marginalidade. Podem-se citar como exemplo, as teorias de Jacques Derrida, que vão servir de base para as teorias feministas e bater de frente com a visão de mundo e de sujeito binarista burguesa que 18 encontraram apoio nas noções de sujeito cartesiano de Descartes. De acordo com Eduardo de Assis Duarte, [...] em seus escritos dos anos 1960 e seguintes, Jacques Derrida empreende o questionamento dos pilares fundantes da metafísica ocidental, a saber: o fono-logocentrismo, o etnocentrismo e o falocentrismo. Vistas como origem da Filosofia e, ao mesmo tempo, como elementos redutores e cerceadores do sentido da Verdade nela estabelecida, as concepções logo-, falo-, fono-, e etnocêntricas passarão pelo processo a que o filósofo denomina desconstrução e que consiste em abalar de dentro as estruturas deste edifício conceitual, explorando suas ambigüidades e contradições. (DUARTE, 2003, p.429) De acordo com este seguimento teórico, a questão da construção da identidade feminina seguiria, portanto, esta mesma linha de desconstrução de figuras preestabelecidas pelo sistema vigente. Seguindo esta linha desconstrutivista, o movimento feminista visava balançar as estruturas criadas e mantidas pelo patriarcado, desconstruindo as imagens formadas pela ideologia vigente, inaugurando uma nova possibilidade de formação e mesmo de manipulação da escrita feminina, em prol da construção de uma nova sociedade. Acredita-se que a história construída através da visão de mundo falocêntrica constitui-se como o eixo central da linha de pesquisa responsável pela construção de uma nova história, na qual as vozes que emergem junto ao trabalho de resgate, começam a introduzir novas cores à história de mundo patriarcal. Pode-se encarar, inclusive, como uma primeira tentativa de mapeamento da literatura escrita por mulheres, a quebra do silêncio e da submissão a que a figura feminina foi submetida ao longo da história de mundo escrita pela visão falocêntrica e dita universal. Um exemplo dessa reação ao silenciamento sofrido é o trabalho de resgate de autoras pouco conhecidas, que converge como uma reação ao apagamento histórico, e ao mesmo tempo, a própria desconstrução do que se entende por cânone, muito embora, para outros, como Harold Bloom, de acordo com o que afirma Ceila Ferreira (2003), esta linha esteja relacionada ao ressentimento e revanchismo. Porém, discordando do apontamento de Bloom, é necessário destacar que a admissão e discussão sobre a existência de uma literatura feminina, é mais que simplesmente um complô contra o cânone ou uma vingança pelo silenciamento feminino ao longo da história, o trabalho de resgate das vozes femininas confere à mulher um espaço que, até então, era privilégio dos homens. Isso significa a subversão da história, até aqui, preenchida em tons pastéis e vozes abafadas, quebrando o mito da autoria andrógina. Segundo Zahidé 19 Lupinacci Muzart (2003) ao resgatar as vozes femininas silenciadas/esquecidas, os trabalhos se configuram como atos de resistência à violência ideológica de premissas geradas nos quadros de referência hegemônica da cultura. Seguindo o caminho apontado por esta linha de pesquisa, leva-se a crer que o hibridismo das obras femininas seria uma maneira de “remar contra a maré” proposta pelo cânone. A partir do momento em que a mulher inicia seu espaço na escrita, a visão de mundo que construía, até então, as imagens tanto da mulher quanto do mundo em geral, começam a ser postas em xeque, propiciando o aparecimento de novas condições para a escrita e para a expressão que implicam a necessidade de novos olhares para analisá-los. Deste modo, seguindo preceitos de teóricos contemporâneos como os de Foucault, esta linha de pesquisa leva em consideração a recuperação de vozes dos setores considerados marginais, reformulando o passado – por meio do resgate das vozes, o presente – na criação de novas oportunidades, e do futuro – com a ampliação de horizonte. Além das tendências de investigação acima apontadas, também são de fundamental importância as linhas de pesquisa anglo-americana e a linha francesa. Para Elizabeth Grosz, por exemplo, “o pensamento misógino tomou por base a dualidade mente/corpo para validar os atos de discriminação contra a mulher” (apud Xavier, 2003, p.254), frente tal constatação, pode-se dizer que tal linha de pensamento se legitima, se tomamos como exemplo os postulados médico-higienistas que, por diversas vezes, tiveram como objetivo vincular o corpo feminino às mais diferenciadas mazelas no decorrer da história. Assim, o corpo que, até então, havia sido considerado por essa cultura, algo inferior à razão, passa a ser o centro de discussão da linha feminista teórica; o corpo passa a ser entendido como uma construção social, uma representação ideológica; entre as teóricas que postulam tal tese, podem-se citar Julia Kristeva e Nancy Chodorow. Essa linha de pesquisa admite que a maneira feminina de lidar com a linguagem teria relação com a maneira de lidar com o próprio corpo, ou mesmo com a relação entre mãe e filho, algo pré-verbal, anterior à concepção; a linguagem seria de domínio masculino e à mulher caberiam balbucios; ao homem o orgulho do falo, à mulher o drama da castração, em linguagem afinada com os estudos de Jacques Lacan. De acordo com Helène Cixous “é assim que ela escreve, como se lança a voz, adiante, no vazio. Ela se afasta, avança, não retorna a seus traços para examiná-los. Ela não se examina.” (apud BRANCO, 1989, p.122). Encarada deste modo, a escrita feminina estaria 20 impregnada de valores ligados ao corpo, à sua essência, razão pela qual a oralidade é intrínseca à sua estética, constituindo uma “oralitude”, na qual os caminhos percorridos pela mulher durante a história, afastada das possibilidades de escrita e silenciada pelo patriarcado, explodem em ritmo e tempo peculiares das obras femininas. Tais textos seriam criados mais para serem ouvidos que lidos, recuperando, neste sentido, o direito à fala, durante tanto tempo usurpado. Portanto, o discurso fragmentado e estilhaçado, lançado ao vazio e repleto de silêncio, seria, na realidade, uma maneira de buscar o próprio Eu, em um jogo de espelhos. A recorrência ao memorialismo, à infância e à desarticulação refletiriam a indagação, a procura pelo “ser mulher”, a busca da identidade, configurando a linguagem do Eu. Neste segmento teórico, avalia-se o discurso feminino como fruto de um Eu aprisionado no próprio corpo, em busca da liberdade de expressar-se, constituindo-se de gritos e silêncios. Sempre em busca de si mesmo, perdendo-se para encontrar-se, em uma técnica suicida que se estilhaça em prol de uma tentativa de unicidade. Kristeva, por exemplo, analisa a linguagem verbal, com base no modelo freudiano “como um substitutivo do seio materno, um representante da função paternal em lugar do bom objeto maternal ausente. A linguagem, em lugar do bom seio. O discurso substituindo o cuidado materno” (apud BRANCO, 1989, p.122). Entretanto, ainda que Julia Kristeva encare a escrita feminina como uma relação direta da linguagem com o corpo, não se pode ignorar a importância que as transformações culturais, políticas e sociais adquirem com relação à formação individual. Admite-se que se há uma “psique” tipicamente feminina, e esta se encontra espelhada em seu texto, as condições de produção inseridas em um determinado contexto e sob custódia de uma sociedade patriarcal contribuíram para essa formação, construindo uma identidade feminina que, em contrapartida, se organiza em função da desconstrução de um postulado anterior. Segundo Telles: A literatura feminina tem uma fisionomia própria decorrente da situação da mulher, das suas raízes históricas... a mulher vem tradicionalmente de uma servidão absoluta através do tempo e a mulher brasileira mais do que as outras mulheres do mundo... Quando as mulheres do mundo já se comunicavam, através, por exemplo, das cartas, as correspondências das mulheres de salões, a mulher brasileira estava fechada em casa, vivendo a vida das senhoras das fazendas, da senhora da casa grande... Viviam aprisionadas, não sabiam ler, não sabiam nem sequer escrever, não sabiam coisa nenhuma. Elas viviam numa servidão mais terrível do que as mulheres dos outros países, inclusive da Europa. 21 A ficção feita por mulheres têm suas características próprias, é mais intimista, mais confessional: a mulher está podendo se revelar, se buscar e se definir, o que a faz escolher um estilo de mergulhos em si mesma, aparentemente narcisista porque precisa falar de si própria, deslumbrada às vezes com as suas descobertas, como se acabasse de nascer. (TELLES, 1997, p.D 14) Logo, é importante entender que as possíveis especificidades da literatura feminina, como a fragmentação no discurso, a busca da identidade, o eterno retorno pela memória (que também é invenção), o discurso intimista, em geral marcado pelo uso da primeira pessoa e mesmo a intensa oralidade marcada nas obras, são justificáveis se entendidos como soluções estéticas encontradas pela arte como possibilidade de releitura da condição feminina, fruto da relação que a mulher estabeleceu com uma sociedade em que encontrava dificuldade ou mesmo inviabilidade de aceitar sua participação, negando-lhe o direito à voz. Não se descarta a relação íntima com as palavras, tampouco que essa relação tenha a ver com o próprio corpo, como afirma a linha francesa, mas é importante notar que mesmo a relação da mulher com seu corpo foi moldada pela sociedade na qual se inseria, como postula Showalter: A questão da linguagem na crítica feminista emergiu, num certo sentido, após a nossa revolução, e revela as tensões no movimento das mulheres entre aqueles que ficariam fora dos estabelecimentos acadêmicos e das instituições de crítica, e aqueles que entrariam neles e até mesmo os conquistariam. A defesa de uma linguagem das mulheres é, portanto, um gesto político que também carrega uma força emocional enorme. [...] A língua e o estilo nunca são crus e instintivos, mas sempre o produto de inúmeros fatores, de gênero, tradição, memória e contexto. (SHOWALTER, 1994, p.38-39). [...] A diferença da escrita das mulheres, então, só pode ser entendida nos termos desta relação cultural complexa e historicamente fundamentada. [...] a primeira tarefa de uma crítica ginocêntrica deve ser a de delinear o locus cultural preciso da indentidade literária feminina e a de escrever as forças que dividem um campo cultural individual das escritoras. Uma crítica ginocêntrica iria, também, situar as escritoras com respeito às variáveis da cultura literária, tais como os modos de produção e distribuição; as relações entre autor e público, as relações entre arte de elite e arte popular, e as hierarquias de gênero. Visto que os nossos conceitos de periodização literária são baseados nos escritos masculinos, os escritos femininos devem forçosamente ser assimilados a uma grade despropositada; nós discutimos sobre uma Renascença que não é uma renascença para as mulheres, um período romântico no qual as mulheres tiveram um papel muito 22 pequeno, um modernismo com o qual as mulheres entram em conflito. (SHOWALTER, 1994, p.50-51) Essa é a postura analítica que fundamenta o trabalho aqui exposto. Privilegia-se a formação do caráter feminino em confluência com os acontecimentos sociais e políticos de seu tempo, incluindo-a como agente participante da construção dos fatos que a cercam. É oportuno notar que a relação de dominação homem/mulher é uma das possibilidades, já que a dominação também pode ocorrer com relação ao mesmo gênero de acordo com as diferenças sociais, ou como no caso do período ditatorial – contexto referente à obra As meninas (1973) – com relação ao próprio sistema, fato este que leva a considerar as diferentes maneiras com as quais se pode avaliar a condição feminina. De acordo com Heloísa Buarque de Hollanda, “as noções de linguagem feminina ou mesmo de identidade feminina, enquanto construções sociais exigem a avaliação das condições particulares e dos contextos sociais e históricos em que foram estruturadas”. (apud GOMES, 2003, p.317). Vale lembrar também que A condição da mulher, vivida e transfigurada esteticamente, é um elemento estruturante nesses textos; não se trata de um simples tema literário, mas da substância mesmo de que se nutre a narrativa. A representação do mundo é feita a partir da ótica feminina, portanto, de uma perspectiva diferente (para não dizer marginal), com relação ao texto de autoria masculina (...) A mulher, vivendo uma condição especial, representa o mundo de uma forma diferente (...) quando uma mulher articula um discurso este traz a marca de suas experiências, de sua condição; praticas sociais diferentes geram discursos diferentes. Uma mesma realidade pode suscitar várias verbalizações, reveladoras experiências peculiares. (XAVIER, 1991, p.11) Tal postura teórica encontra-se afinada com os estudos realizados por Kate Millet (1970), que leva em consideração que as relações sociais e políticas têm forte influência sobre a estética do texto feminino, pois [...] es preciso analizar el contexto sociocultural en el que se gesta ya que, gracias a ello, se pueden desentrañar los subterfugios y motivos que se esconden por debajo de la ficción literaria superficial. Ello conlleva una lucha política más o menos visible por medio de la literatura al entender que los discursos de ficción, conscientemente o desde el plano del subconsciente, han sido emitidos (con)/contra la ideología dominante con la finalidad de concienciar a la sociedad y de transformar las relaciones de acción, poder y producción de unos/as y otros/as. (SANCHES, 2009, p.117) 23 Neste caso, a formação do sujeito estaria diretamente ligada às condições sociais, fato esse anteriormente avaliado por Marx e Engels (2001), que citam a burguesia como a grande responsável por reduzir as relações familiares à mera relação monetária. Dessa maneira, a relação de subserviência feminina devida aos padrões políticos que transformaram a mulher em segundo sexo é a diretriz seguida por esta linha de pesquisa, a qual considera o materialismo histórico a base para os estudos sociais. O fator econômico funciona como base para os demais fatores, a história escrita sempre diz respeito às idéias dominantes, que relegam o dominado à dominação, pois se admite que as ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante. Dentro desses padrões, considera-se que a história escrita pelos dominadores implica sempre em um abafamento ou até mesmo nulidade do dominado e, nesse sentido, pode-se considerar que a escrita feminina emerge como reação ao poder ideológico e político vigente, se levarmos em consideração que, dentro deste mesmo sistema burguês, a posição da mulher era exatamente a do dominado. Para Millet (1970), a condição feminina começa a contar com um pouco mais de liberdade a partir do momento em que ganha sua independência econômica. Logo, pode-se depreender que a condição feminina também varia de acordo com a posição da mulher em sociedade. Não seria possível avaliar de um mesmo modo a situação da mulher de elite e da trabalhadora de fábrica - suas necessidades não são as mesmas, tampouco são os mesmos os problemas enfrentados em sociedade. Também se deve considerar que a consciência com relação aos diversos problemas decorrentes do “ser” mulher não se deu da mesma maneira em culturas diferentes. É notável que as mulheres pertencentes a países economicamente desenvolvidos foram pioneiras na luta por seus direitos, ao passo que mulheres de países periféricos, como no caso do Brasil, sequer tinham acesso à educação. Dados os diferentes matizes que a luta pelos direitos da mulher pode adquirir, cabe avaliar de que maneira tal questão se aplicou no Brasil e qual seria a melhor maneira, portanto, de avaliar a contribuição do ponto de vista feminino da mulher brasileira, posto que, segundo a ginocrítica, é preciso [...] delinear el lugar cultural preciso de la identidad literaria femenina y ha de describir las fuerzas que afectan al campo cultural de la escritora y la insertan en el entramado complejo de los sistemas de producción, de las teorías, de las críticas y de todos aquellos 24 elementos y fenómenos que convergen en los estudios literarios desde la perspectiva del género. (SANCHES, 2009, p.130) 25 2. A literatura feminina em verde e amarelo [Durante] a Segunda Grande Guerra, quando os homens válidos para as trincheiras e as mulheres na retaguarda começaram a exercer nas fábricas, nos escritórios e nas universidades, o ofício desses homens...Eis então as mulheres ocupando esses espaços, eis as mulheres provando que também podiam desempenhar funções até o momento notadamente masculinas... Quer dizer que a “rainha do lar” podia desempenhar- e bem- funções mais sofisticadas? Contudo, persistia a desconfiança fechando na sua nuvem o chamado segundo sexo. (TELLES, 1997, p.60-61) Como o cenário deste trabalho é o contexto referente à sociedade brasileira, é importante que se entenda a especificidade da situação da mulher brasileira e da maneira com a qual se lidou com a questão da condição feminina num dado momento histórico. É licito dizer que, no Brasil, o feminismo ganhou cor própria, na segunda metade do século XIX, pois esteve mesclado a outros movimentos sociais e políticos, como a luta pela abolição dos escravos. Os primeiros escritos produzidos por brasileiras eram referentes a diários e anotações que se perdiam em meio a receitas; pouco se sabe, na realidade, destes primeiros indícios, visto que a pesquisa sobre literatura feminina data de pouco tempo. A grande maioria destes escritos encontra-se perdido no tempo, e há fortes possibilidades de ainda surgirem novos nomes que complementem o rol de autoras desconhecidas, como se pode deduzir levando-se em conta estudos como o de Ceila Ferreira (2003), que sustenta que a aparentemente simples redescoberta de escritoras já coloca em xeque muitas histórias das literaturas que teimam por manter os nomes femininos de autoras no esquecimento. As primeiras obras femininas datam do século XIX, momento em que a mulher começa a contestar o espaço que lhe cabia em sociedade e a participar de movimentos abolicionistas e republicanos, ampliando seu espaço e sua atuação, visto que, até este momento, apenas os homens teriam, de fato, o acesso à educação. Este primeiro momento já marca diferenças entre a situação feminina no Brasil e de mulheres de países desenvolvidos: Virginia Wolf (1997) acredita que o principal motivo da inserção da mulher como escritora é o fato de que o papel era muito barato, afirmação que indica uma mulher inserida em ambiente doméstico, sem renda própria, mas alfabetizada e culta o suficiente para ser capaz de canalizar emoções e expor pensamentos através da escrita, já que não encontrava espaço para exprimi-los. Tal postura, para Lygia 26 Fagundes Telles (1997), não se aplica à realidade da mulher brasileira, pois esta conheceu o acesso à educação tardiamente, confundia seus escritos com as anotações domésticas, sem nenhuma chance de participação social. Igualmente tarde, inicia-se a discussão sobre o papel feminino, pois cabia às poucas mulheres que se aventuravam pelos caminhos literários, provar à sociedade que nem somente sobre amor escrevia a mulher. De acordo com Suzana Funck (1994), a especificidade de sexo/gênero, ao ser afirmada, trazia consigo quase sempre a marca de inferioridade, como na conotação normalmente atribuída à categoria de poetisa. Devido a esse pensamento, algumas autoras chegaram a adotar pseudônimos masculinos, para escapar às críticas sociais e à obrigatoriedade de falar sobre romance. Aliadas a Mary Wollstonecraft e Nísia Floresta, principiam os primeiros tons do feminismo, reivindicando o direito de moldarem sua subjetividade e principalmente de quebrar com a imagem feminina construída pela sociedade patriarcal até então. Pode-se citar como um exemplo de tentativa de impor à mulher a figura obrigatória de “poetisa do amor”, as posições de Guimarães Júnior e C. Ferreira do jornal Correio do Brasil, expostas por Ceila Ferreira (2003), com relação à poeta Narcisa Amália de Oliveira Campos, os quais criticavam sua postura política, deslocada da figura imposta à mulher da época. Entende-se, portanto, que o “ser” mulher moldou-se ao longo dos tempos, de acordo com as dificuldades específicas de cada época, com as quais se deparou durante suas tentativas de se afirmar como sujeito e, no entanto, em uma história de lutas e superação de barreiras, a intensa discussão e polêmica que envolve o tema, ainda permitem visualizar resquícios de preconceito. Torna-se oportuno destacar que a visão de Simone de Beauvoir (1980), de que não se é mulher e sim, torna-se mulher, em união com a visão de Millet (1970), na qual o sexo é uma poderosa arma de opressão, são as mais adequadas para que se avaliem as transformações sofridas no decorrer da história. Um exemplo dessa interação que influencia diretamente a condição feminina é a mudança de papéis ao longo da história. Com o processo de urbanização, a consolidação do modo capitalista de vida e a ascensão do modo de vida burguês, a figura feminina foi relacionada à ideia de mãe e esposa dedicada, em especial, com a ascensão do pensamento iluminista, que conferiu a razão e o controle da mesma aos homens, em concordância aos estudos desenvolvidos por Blas Sanches Dueñas: 27 Partiendo de planteamientos que inauguran la instauración de una nueva sociedad y nuevas concepciones del saber que emergen al encenderse la llama de la razón y de la Ilustración como instrumentos de transformación social y de reforma de las mentes en el siglo XVIII – lo que va a dar lugar a un nuevo universo simbólico, a un renovado planteamiento en el reparto de funciones y espacios simbólicos para hombres y mujeres […] instaura nuevos sistemas ideológicos a partir de los cuales se generarán dicotomías que no son peritarías en la relación entre los sexos, como la de razón/corazón, actividad/pasividad, concreto/abstracto, cultura/naturaleza o la de privado/publico, entre otras […] (SANCHES, 2009, p.30-31). Desse modo, os rótulos de “sexo frágil” e “dona de casa” foram construídos e mantidos pela sociedade patriarcal, visando manter os interesses mais imediatos da sociedade, em especial, no que diz respeito à manutenção do status quo, privilegiando o mundo masculino, principalmente, o do homem burguês. Consideram-se as transformações ocorridas durante este período de consolidação da sociedade burguesa, de grande importância para o entendimento de alguns tabus contemporâneos com relação à figura da mulher em nossa sociedade, pois, ao passo que o espaço urbano ganhava importância, a mulher também via seu espaço de convívio ampliado, e, ao mesmo tempo, ia sendo moldada de acordo com os padrões de vida burguesa. Contudo, porque os tabus variavam de acordo com a posição social da mulher, a estereotipação da figura feminina estimulada pela moral burguesa delineia-se de acordo com a diferença social entre as mulheres. Se, por um lado, a jovem burguesa era treinada para ser a rainha de seu lar, devendo servir de exemplo de virtude e pureza, para mais tarde ocupar seu lugar como matrona, por outro, a jovem do povo, desprovida de proteção e regalias, via muito cedo sua condição de objeto: sua função, evidentemente, era proporcionar aos homens o prazer e a diversão, coisa que não se permitia acontecer com “moças de família”. Esse abismo criado entre mulheres, dada à situação de desigualdade social, ocasionou uma fragmentação das ideias feministas no Brasil. As ideias vindas do exterior chegaram tardiamente e foram postas em prática das mais diferenciadas maneiras: desde o feminismo comportado de Bertha Luthz, - mulher integrante tanto da elite cultural quanto da elite econômica, participante ativa dos quadros políticos brasileiros, utilizava sua influência para lutar por direitos, tais como o direito ao voto, porém, sem contestar ou ferir a manutenção do status quo -, até movimentos de operárias e alas mais radicais que encaravam a sociedade hegemonicamente construída e manipulada por homens, como verdadeira culpada pela situação de mazela por elas 28 enfrentada, demonstrando, portanto, que “os oprimidos não são oprimidos da mesma forma; que ser mulher, ser negro ou pertencer a qualquer outra minoria traz uma carga a mais em relação a ser homem e ser branco” (PINTO, 2003, p.35). É nesta efervescência social, em meio aos agitos políticos e divergências ideológicas, que a questão feminina se desenvolve no Brasil. Nem sempre em conformidade com os acontecimentos exteriores, posto que esteve ligada ao processo de desenvolvimento de um país jovem e subdesenvolvido, com problemas peculiares de sua condição, vítima de um passado de colonização. Nossas mulheres afirmavam e lutavam por sua identidade ao mesmo tempo em que lutavam pelo crescimento de sua nação, ou seja, o feminismo, no Brasil, nasceu e se desenvolveu em um dificílimo paradoxo: “ao mesmo tempo em que teve de administrar as tensões entre uma perspectiva autonomista e sua profunda ligação com a luta contra a ditadura militar, foi visto pelos integrantes desta mesma luta como um sério desvio pequeno-burguês” (PINTO, 2003, p.45). Como, então, avaliar a produção feminina no Brasil? Acredita-se que as obras femininas eclodiram como uma reação ao silenciamento sofrido ao longo da história, como uma busca por uma identidade, mas principalmente, como forma de que a mulher pudesse afirmar-se como um sujeito participante dos impasses de seu tempo. Logo, pode-se dizer que há a reconstrução das necessidades femininas e de sua inserção social, bem como o esboço de contornos da situação do Brasil, impondo um ponto de vista feminino, ousando adentrar em um universo hermético e masculino, reproduzindo, portanto, as questões que permearam a própria dificuldade de inserção dos ideais feministas na sociedade brasileira, visto que se [...] por um lado, se organiza a partir do reconhecimento de que ser mulher, tanto no espaço público como no privado, acarreta conseqüências definitivas para a vida e que, portanto, há uma luta específica, a da transformação das relações de gênero. Por outro lado, há uma consciência muito clara por parte dos grupos organizados de que existe no Brasil uma grande questão: a fome, a miséria, enfim, a desigualdade social, e que este não é um problema que pode ficar fora de qualquer luta específica. Principalmente na luta das mulheres e negros, a questão da desigualdade social é central. Tal circunstância pode levar a dois cenários distintos: o primeiro muito presente nos partidos de esquerda, que tendem a minimizar essas questões específicas, incluindo-as como parte da problemática maior da desigualdade. O segundo cenário é o da presença da questão da desigualdade quando se trata de mulheres pobres, negras, sem-terra 29 ou, de outro lado, de mulheres ricas ou intelectualizadas. (PINTO, 2003, p.45-46). Portanto, cabe avaliar neste trabalho qual teria sido a colaboração dos textos literários de Lygia Fagundes Telles para a análise crítica do país. Quais questões permearam seu trabalho: a principal preocupação teria sido isoladamente as questões femininas, ou estas estiveram entremeadas com as demais questões referentes ao contexto em que foram produzidas? 30 3. As peças do quebra-cabeça de Telles [...] enquanto eu escrevo, as palavras são como esses pedaços, essas pequenas lâminas coloridas. As palavras estão todas ali espalhadas. Eu vou encaixando umas às outras, formando um quadro, e essa é uma alegria, mas é sofrimento. Escrever é alegria e sofrimento também. É a busca... (TELLES, 1998, p.58) Em meio a histórias de assombrações e seres fantásticos, cresce Lygia Fagundes Telles; infância típica de quem vive nas cidades do interior de São Paulo. Desde cedo, ouvindo e reproduzindo as falas alheias, para mais tarde, começar a criar as suas próprias, sempre aumentando um ponto e inovando as histórias. O talento para perceber o outro e compreender as diferentes posturas adotadas pelo ser humano são características conhecidas de sua personalidade, também sua postura inovadora: uma mulher que decide formar-se em Educação Física, Direito e dedicar-se à literatura, ofícios, até então, considerados como privilégio de homens; uma mulher que usa para definir-se palavras de Trotsky (2009), lembrando que aqueles que vão logo na primeira fila são os que levam no peito as primeiras rajadas, frase esta que a levou a escolher uma solução: assumir a luta na vida e na arte, escrevendo para si e para seus leitores um novo percurso. Luta assumida e aceita; Lygia Fagundes Telles entra para o quadro da literatura brasileira em meados da década de 1940, momento marcado pelo pós-guerra e, retomando palavras de Alfredo Bosi (1994), período referente à “era do romance brasileiro”, pois nesse contexto, abre-se espaço para outras possibilidades de narração, herança das conquistas do movimento de 1922 que possibilitou novas técnicas. A geração de 1930 viria incorporar a essa transformação formal a visão crítica da sociedade. Sendo assim, é sob o embalo de transformações no campo da estética e da relação do artista com a sociedade que é marcada a geração literária da década de 1940. É espelhando o pluralismo da vida moderna que Telles contribui com suas obras – contos e romances que buscam deslindar o ser humano e sua maneira de relacionar-se com o mundo em suas múltiplas possibilidades, aprofundando a relação do ser humano com o contexto no qual se insere, enfatizando, em especial, suas angústias existenciais. Escrever, segundo L.F.Telles (2009), é como o jogo de puzzle de sua infância, em que se juntam as peças até formar um quadro, em uma eterna busca pelas imagens e combinações corretas, uma eterna busca em consertar a desordem. 31 Íntima das redes de palavras que tece com cuidado, Telles está fragmentada em suas obras: uma alma complexa, multifacetada, sempre pronta para absorver e relatar o drama humano, sensível e atenta o suficiente para relatar e sentir as mais diferentes experiências decorrentes da relação do sujeito versus o contexto que vivencia. A cada relato realizado, a cada contorno delineado, uma sombra de si mesma. Ela diz que, assim como Octávio Paz, não tem uma biografia, mas uma obra (2009). Em seu caso, obras. Para Telles: Impossível localizar criação e criatura. Separar a obra do criador. Sei que há escritores que conseguem se explicar tão bem, esclarecer o lado escuro do ofício. Eu não. Escrevo e esse corpo-a-corpo com a palavra me toma todo o tempo, que se faz mais curto nesse cotidiano devorador. (TELLES, 2003, n.p). Telles não se separa de sua obra, mas esta identidade está longe de fechar as questões que expõem a uma perspectiva única, posto que sua obra funcione como um espelho que reflete diferentes prismas, democratizando e pluralizando vozes por meio de suas diversas personagens, que se modificam de acordo com o passar do tempo entre um e outro livro e no interior do tempo das suas narrativas: aos poucos, o foco se multiplica; em princípio, mulheres e jovens burguesas que sofrem com a ruína de sua família, bem como de suas crenças, principalmente as que fundamentam seus preceitos morais, como nos romances Ciranda de Pedra (1954) e Verão no Aquário (1963), ambos abordando mulheres diante do desconserto familiar. Timidamente se misturam personagens habitantes de porões e sobrados, mais sobrados que porões - temática presente desde sua primeira série de contos lançados, porém, que por ela, são desconsiderados. Considera morto tudo que veio antes de Ciranda de Pedra, o qual considera a marca de seu amadurecimento literário. Nesse sentido, seja como retrato da degradação burguesa, como esboço da condição feminina ou salientando as diferenças sociais entre os indivíduos, a perspectiva política existe desde suas primeiras obras, em menor ou em maior intensidade. Para que se entenda tal afirmação, resgata-se que a raiz etimológica da palavra política vem do grego e faz menção àqueles que se envolvem com os assuntos referentes à sua polis, portanto, pode-se dizer que Telles desde seus primeiros contos, envolve-se com questões pertinentes à realidade brasileira; quanto à condição feminina retratada em suas obras, trata-se também de assunto político, posto que diz respeito a um problema de cunho social. Segundo Cristina Ferreira-Pinto 32 Central na obra de L.F. Telles desde o início de sua carreira de escritora, a questão da identidade feminina tem sido enfocada sobre um eixo principal constitutivo dessa identidade, que é o da relação entre mulheres, além, é claro, do aspecto mais óbvio das relações homem-mulher. Dentro desse eixo principal, cabe ressaltar as relações entre mãe e filha. (PINTO, 1997, p.69) Tomando-se Ciranda de Pedra como um exemplo dos primeiros traços da maturidade de Telles, pode-se notar que, em princípio, sua temática aborda as várias etapas da construção do Eu. Os caminhos percorridos por Virgínia e as situações familiares que a levam a buscar novos caminhos fora de sua casa, demonstram o desmoronamento da estrutura familiar e a artificialidade da sociedade burguesa. Trata- se de um Buldungsroman – “romance de aprendizagem, formação ou desenvolvimento” (PINTO, 1990, p.09), pois foca a fase de desenvolvimento de Virgínia e sua luta para afirmar-se como sujeito, transcendendo a ausência da família e sua condição de bastarda. Durante o enredo, percebem-se uma relação de aprendizagem, de troca de experiências entre as personagens, experiências essas, resultantes da interação que cada uma possui com a sociedade em que se insere, demonstrando uma fase de formação da vida. O fato de discutir diversos tabus como homossexualismo, traição e estereótipos preconceituosos oriundos da forte formação tradicionalista das famílias retratadas na obra, Ciranda de Pedra é densa e impactante, por vezes perturbadora, pois a fragmentação das imagens por ela geradas dá o tom da loucura presente no texto, parte integrante da realidade das personagens, que se perdem no mundo de superficialidades, no qual estão imersas. Realça a condição de subserviência feminina, enfatizando uma sociedade sem qualquer espécie de consideração pela mulher ou pelos problemas sociais que a envolviam direta ou indiretamente. Segundo Telles (1998), por essa razão, o romance jamais poderia ter sido escrito por um homem, pois traz o seu conhecimento sobre a condição da mulher brasileira do período. Deste modo retrata a dificuldade encontrada por mulheres que optam ampliar seus caminhos, remando contra a maré, em sentido oposto àquele ditado pela sociedade. A pluralidade de temas abordados na obra teria a ver com as novas possibilidades que começavam a surgir para um novo tipo de mulher que estava lutando por seu espaço, mas sem escapar ilesa ao crivo da sociedade. Tal situação transposta para a ficção, 33 marca a caminhada percorrida pela mulher rumo à inserção social, cujo ápice se encontra no enredo de As meninas. Comparando-se a obra acima citada com As meninas, notar-se-á que a última se trata de uma obra mais focada no que se refere à temática. A ditadura militar brasileira rouba o foco, condensando os assuntos à sua esfera de repressão. A semelhança de Ciranda de Pedra pode ser considerada como um Buldunsgroman, pois traça a trajetória de três jovens, rumo à idade adulta, em fase e em busca de sua formação, contudo, o processo de formação das personagens encontra-se intrinsecamente ligado ao processo de desenvolvimento do país e às dificuldades do regime de exceção. Em Ciranda de Pedra, Laura termina tragicamente seus dias por não conseguir subverter a ordem social. Enlouquece e paga com a vida o preço do adultério e do casamento fracassado. No caso de As meninas, é para Ana Clara que se encontra reservado o caráter de fracasso atribuído às narrativas de Buldungsroman feminino, em que a tentativa de subverter sua posição social, fugindo da prostituição e da miséria, termina em morte trágica, repetindo o destino de sua mãe – morre grávida e drogada -, uma vítima da feroz desigualdade social. Contudo, é importante notar que, mesmo sendo filhas de tempos históricos distintos, tanto Laura quanto Ana Clara paga com a vida a ousadia de subverter seu papel social. Portanto, é interessante notar que a busca pela integração do Eu e de caminhos faz parte da saga de As meninas; em meio ao momento político fervilhante, entre denúncias de tortura e discussões do panorama cultural, escreve-se o momento de formação de jovens que procuram o direito de formar sua imagem de mulher, contudo, nem sempre compatível com a imagem a qual seu papel social lhe confere, porque além da hierarquia entre os gêneros homem/mulher e da questão da condição feminina em sociedade, há a hierarquia dentro do mesmo gênero, refletida nas diferenças sociais, ressaltando a problemática da desigualdade social. Se em seus primeiros romances os desencontros são relacionados ao círculo familiar, em As meninas, o desencontro é com o mundo, com a sociedade tresloucada, sufocada pela esfera de repressão e extremismos. Cabe, portanto, uma breve averiguação sobre o contexto de produção da obra, para que se possam compreender as soluções estéticas que nela se encontram. 34 Capítulo II 35 1. Ditadura Militar sob ótica feminina em As meninas. No meu caso, por exemplo, na época da ditadura militar, eu fazia o romance As meninas e, por isso, me aproximei dos jovens e tentei penetrar nesse universo o mais fundo possível através da palavra escrita. Consegui ou não? Eu acho que sim. Porque acabo de ver uma reportagem sobre os documentos da ditadura militar e vi que tudo o que aconteceu nos anos de chumbo eu pude retratar no meu livro. Aristóteles dizia uma coisa muito importante "O que importa não é o escritor relatar o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido.” Então, dentro da minha realidade, o que poderia ter acontecido? Assim nasceu esse meu livro. Eu conheci essas três moças e não conheci. Elas estiveram do meu lado e ao mesmo tempo não estiveram. Eu sei que elas existiam, mas me importa saber o que poderia ter acontecido, até porque a realidade é muito sem graças, às vezes. (TELLES, 2008, p.01) 1 O cenário escolhido por Lygia Fagundes Telles para seu romance As meninas, diz respeito à vida urbana na cidade de São Paulo em pleno regime militar (1964-1985), cujo endurecimento político, deu-se a partir da instituição do AI-5 (Ato Institucional nº5), em dezembro de 1968, ainda no governo Costa e Silva, que aumentou a repressão contra os movimentos de esquerda e o controle sobre os meios de comunicação, por meio da censura. Desde 1964 – observa Élio Gaspari (2004) – a máquina da repressão exigia liberdade de ação, e graças ao AI-5 ela teve e foi à caça. Mediante tal reação por parte do governo militar, ganham corpo os protestos de alguns setores sociais (estudantes, sindicalistas, etc.), que, inclusive, começaram a optar pela radicalização do movimento armado, como meio de derrotar a ditadura. Os impactos decorrentes das bruscas mudanças econômicas e institucionais fazem com que o ano de 1968 condense em si as principais mudanças culturais e políticas. Neste período, também se tem o aumento de questões referentes ao comportamento, em especial, as que envolviam o sexo e o uso de drogas. Portanto, os acontecimentos referentes ao emblemático 1968 são de extrema importância para que se compreenda o processo de mudanças que a sociedade brasileira enfrentou, bem como as situações que se configuram ao longo do romance As meninas. Pode-se sentir um pouco do clima da época no trecho que se segue: 1 Disponível em: 36 A onda de rebeldia que percorreu o globo em 68 foi inspirada, de um lado, por reivindicações específicas de cada realidade nacional – no Brasil, a luta contra a ditadura militar, impulsionada por um sentimento libertário contra o opressivo autoritarismo que permeava as relações no interior das famílias, nas escolas e universidades, nas empresas e na vida cotidiana dentro de uma sociedade de consumo e comunicação de massas que sofria a doença de uma deformada prosperidade. Mas não era só isso. Jovens de todo o planeta alimentavam também uma generosa e generalizada revolta contra o mundo bipolar, os valores sociais ultrapassados, o falso moralismo, a repressão sexual, as injustiças sociais e a guerra do Vietnã, onde um poderoso país imperialista exercia uma agressão cruel contra uma pequena e subdesenvolvida nação do Terceiro Mundo. (ZAPPA; SOTO, 2008, p.12) Há, neste momento, uma linha tênue que separa assuntos de interesse individual e coletivo, caracterizando a época por uma diversidade de debates por parte de pequena parcela de jovens universitários e intelectuais que participavam das limitadas rodas de discussões. Não obstante, é oportuno recuperar que o clima de opressão não se limitava ao controle político, a questão sexual também esteve em destaque, haja vista a quantidade de discussões e tabus que envolviam assuntos concernentes à liberação sexual. Desse modo, é importante destacar como forte característica do contexto aqui abordado, a questão das minorias, que se caracteriza pela marginalização de negros, mulheres e homossexuais, herança da constituição histórica da sociedade brasileira e que ganha impulso neste período, dado seu caráter de opressão. Em meio a tantas contradições, efervescência política, disputas ideológicas e em especial, convivendo com sujeitos que lutavam por afirmar-se política, cultural e socialmente, desenvolve-se o quadro cultural, que, desse modo, absorveu os impasses e pressões provindos do campo social e político, recebendo influências, tanto do quadro nacional quanto do internacional. Devido a esta peculiaridade do desenvolvimento cultural, Regina Dalcastagné (1996) observa que a discussão sobre o engajamento do artista não pode ser dissociada do contexto em que foi travada – um debate que tinha sempre como horizonte a revolução proletária e a inelutável vitória do comunismo. Sendo assim, tem-se que a principal característica que se estabeleceu no quadro cultural pertinente ao período ditatorial foi o intenso clima de “resistência artística”, pois, como citam Regina Zappa e Ernesto Soto (2008), o ambiente cultural vinha de anos férteis e criativos em que as artes dialogaram como nunca entre si, refletindo conscientização política e desejo de transformação. 37 Neste clima intenso de contribuição em prol da mudança do quadro político vigente, foram encontradas pelas vertentes artísticas diferentes formas pelas quais a resistência foi trabalhada. Há duas tendências de extrema importância que, de uma maneira ou de outra, ditaram os caminhos que a arte percorreria. Uma afinada aos ideais dos CPCs (Centros Populares de Cultura), ligados à União Nacional dos Estudantes (UNE), que defendiam a arte revolucionária a serviço da revolução social e a busca pela unidade nacional, voltando-se coletiva e didaticamente para o povo, tentando criar nele uma espécie de consciência de si mesmo, promovendo peças de teatro, escrevendo poemas e histórias com conteúdo marcadamente revolucionário, e como observa Heloísa Buarque de Hollanda: Ainda com um certo sabor CPC, temos aqui alguns pontos-chave do raciocínio cultural engajado que dá o tom nesse momento: a idéia de que a arte é “tanto mais expressiva” quanto mais tenha uma “opinião”, ou seja, quanto mais se faça instrumento para a divulgação de conteúdos políticos; a idealização, um tanto problemática, de uma aliança do artista com o “povo”, concebido como a fonte “autêntica” da cultura; e um certo nacionalismo, explícito na referência de indisfarçável sotaque populista às “tradições de unidade e integração nacionais.” (HOLLANDA, 1983, p.22) Como se pode observar nesta citação de Heloísa Buarque de Hollanda, um dos ideais CPCistas era a busca por uma forma de reproduzir livremente, no plano estético, as influências provenientes dos setores social, político e econômico, na tentativa de desenvolver uma arte de caráter tipicamente nacional, voltada a serviço da realidade social brasileira. Essa característica da cultura, difundida pelos CPCs, passa a ser o ponto em comum com a arte engajada inerente ao período ditatorial, que encontrou grande afinidade com os ideais de nacionalismo e de arte como forma de denúncia social. Em contrapartida, os movimentos vanguardistas pregavam a arte livre, sem compromisso ideológico explícito, concebendo a cultura não mais como um instrumento político direto, e sim, como a procura de novas possibilidades expressivas, culturais e existenciais. Desse modo, a política passa a ser concebida como uma problemática cotidiana ligada ao corpo. Com esta vertente, a cultura ganha maior amplitude, causando conflitos tanto na direita quanto na esquerda política. Como exemplo, pode-se citar movimentos vanguardistas como o Tropicalismo e o Cinema Novo que se baseavam na crítica à política tradicional, indo além da crítica aos padrões do sistema, caracterizando-se como uma “contracultura”, levantando a questão da não 38 possibilidade de uma revolução social sem a existência de uma revolução individual. Tal situação confere com os estudos realizados por Hollanda: Dois movimentos talvez tenham conduzido com especial significação a “linha evolutiva” do processo cultural nesse período: o Cinema Novo e o Tropicalismo. O primeiro, assumindo um papel de frente no campo da reflexão política e estética, expressaria de forma radical as ambigüidades que dilaceravam a prática política do intelectual em nossa história recente. O segundo catalisando as inquietações e impasses da situação pós-64, iria fazê-las explodir num movimento de renovação da canção popular que “arrombaria a festa”, abrindo novas possibilidades criativas para a produção cultural. (HOLLANDA, 1983, p.30) Como se pode observar, nesta disposição distinguem-se duas vertentes: uma que, em função da rigidez do regime, abre espaço para um pensamento de contestação, em que o coletivo é privilegiado e, ao mesmo tempo, caracteriza-se pelo fato de que as questões sociais e políticas fazem parte da temática principal. A outra vertente é formada por indivíduos que procuram trazer o comportamento para a política, ou seja, que contestam o secundarismo que o plano individual adquire em relação às questões de ordem política e social. Assim, ressalta-se a intensa pressão à qual o quadro cultural estava submetido, tanto pela situação de castramento devido à censura, imposta pela ditadura, quanto à problemática que envolvia setores da esquerda que viam no engajamento da arte um instrumento de luta, e deste modo, também cumpria um papel de controle cultural. Destaca-se também, o papel da indústria cultural nos anos 1970, em que “o padrão básico de avaliação é a coisa, o objeto, o bem, o produto, e nunca o homem, que entra num processo de reificação e alienação, entendendo-se a cultura como mero produto de troca e não mais como um instrumento crítico do real” (PELLEGRINI, 1996, p.13). É importante, portanto, a compreensão de que o romance brasileiro, nesse momento, esteve profundamente ligado aos acontecimentos nacionais e internacionais, constituindo um grande elo com o próprio mecanismo de desenvolvimento do sistema capitalista. Nesse sentido, Pellegrini observa que [...] o romance brasileiro da década de 70 está inserido num contexto muito maior, e, por isso, apresenta traços de transformação, de renovação, de inovação, que se referem à sua especificidade brasileira e à sua generalidade universal. (PELLEGRINI, 1996, p.14) Acredita-se que os debates levantados pelas tendências artísticas se deram de uma maneira mais ampla na literatura, pois o romance brasileiro, nesse momento, 39 absorveu em sua estética diversos estilos, vozes e situações. Dessa maneira, o caráter de resistência encontrou no romance, uma maior completude, juntando elementos coletivos e individuais, de modo harmônico, tornando-os parte de um mesmo todo, afinal, como lembra, Regina Dalcastagné, “é nos romances que vamos reencontrar, com maior intensidade, o desespero daqueles que foram massacrados por acreditarem que podiam fazer alguma coisa pela história do país” (1996, p.15). Encara-se, por conseguinte, a literatura desse período como princípio constitutivo do real e não apenas como reflexo dele. Como observa Pellegrini (1996), não existe uma relação causal entre realidade e obra, mas uma relação dialética, apreendida no plano estético. Valem para fundamentação da escolha deste viés de pesquisa, os argumentos utilizados por Alfredo Bosi, pautados na teoria de Otto Maria Carpeaux, de que [...] a literatura não existe no ar, e sim no Tempo, no Tempo histórico, que obedece ao seu próprio ritmo dialético. A literatura não deixará de refletir esse ritmo – refletir, mas não acompanhar. Cumpre fazer essa distinção algo sutil para evitar aquele erro de transformar a literatura em mero documento das situações e transições sociais [...]. A relação entre literatura e sociedade não é mera dependência recíproca: é uma relação complicada, de dependência recíproca e interdependência dos fatores espirituais (ideológicos e estilísticos) e dos fatores materiais (estrutura social e econômica). (BOSI, 2002, p. 07). Em complemento a esta ideia, é oportuna a afirmação de Tânia Pellegrini (1996, p. 8), de que “existe uma relação dialética entre obra e realidade, entre o sujeito (artista) e o objeto (obra), como especificidade da existência humana, que não pode ser reduzida ao condicionamento absoluto da situação histórica dada”. No decorrer de nossa história, pode-se notar uma sincronia entre os acontecimentos sociais e políticos, e a estética literária desenvolvida nos romances. De acordo com Regina Dalcastagné: [...] não era de modo algum novidade em terras brasileiras essa tendência utilitária apontada para a obra de arte. Muito antes da República já se defendia a idéia de uma arte a serviço da Nação, ou ao menos a serviço da formação de uma nacionalidade, e o romance era, à época, o meio mais adequado de atuação. Desde que chegou até nós, junto ao Romantismo, o romance sempre se impôs entre os intelectuais como um instrumento eficaz de descoberta e interpretação da realidade brasileira [...] (DALCASTAGNÉ, 1996, p.35-36). É, portanto, nesta perspectiva de comprometimento com os fatos sociais que são analisados os romances desenvolvidos durante o período compreendido pela ditadura 40 militar, como uma forma de dar voz àqueles que no momento se encontravam impedidos de falar, seja pela censura, ou pelo medo, ou mesmo por se encontrar às margens da sociedade, ou como observa Pellegrini (1996, p.26), “é um momento em que o dado local predomina na criação, como resistência à repressão interna, e que por meio da linguagem como função crítica, instrumental, rompe a superfície dos fatos e rasga os “retratos do Brasil”. Em outras palavras, recompõe-se o quadro da sociedade brasileira em face de uma nova situação, mediada pela violência e pela repressão. Frente ao exposto, nota-se que a literatura adquiriu uma “nova face”, e que seus novos contornos foram determinados pelas inquietações deste intenso período da história do Brasil. Assim, em meio ao silêncio imposto por questões concernentes à política e à sociedade – uma combinação de censura e padrões sociais moralistas –, tem- se um período de castração do sujeito. Foram várias as soluções estéticas encontradas pela literatura, de acordo com o foco abordado, para dialogar com as questões de seu tempo. Não cabe neste trabalho uma lista esmiuçada de tendências, como o fez Malcolm Silverman em Prostesto e O Romance Brasileiro (1995), até porque, a listagem seria meramente didática. Sabe-se que técnicas semelhantes podem possuir resultados diversos de obra para obra, o que inviabiliza rotulá-las. Contudo, podem-se citar a inserção de elementos extra-literários, como técnicas jornalísticas a fim de que se burlasse a censura, técnicas de recorte cinematográfico como o flashback, a fragmentação e a justaposição. Também tiveram importância, as técnicas de alegoria e carnavalização, em especial, no que se refere à paródia do poder vigente. Durante esta pesquisa observamos que a grande maioria das obras que encabeçam as listas do que se entende por literatura engajada, eram obras produzidas por homens, tais como, Incidente em Antares (1971) de Érico Veríssimo, Quarup (1967) de Antonio Callado, Zero (1976) de Ignácio Loyola Brandão, O que é isso, companheiro? (1979) de Fernando Gabeira, entre outras. Tal fato despertou a curiosidade de saber em que situação se encontrava a produção feminina. Teriam as autoras se distanciado do engajamento literário? Não existiria alguma mulher que pudesse fazer parte dessa lista de autores? Pensa-se, com base nessas experimentações incorporadas ao fazer literário, qual teria sido o papel da produção feminina neste momento e quais seriam as inovações estéticas por elas incorporadas. Para Helena Parente Cunha, 41 Embora estivessem vivendo sob o tacão do Regime Militar, exacerbador dos códigos patriarcais e talvez por isso mesmo, as mulheres brasileiras, que já vinham do longo padecimento imposto por sua condição específica no curso da História do País, se tornaram particularmente receptivas as idéias libertárias dos anos 60. Depois de tão prolongado silencio forçado, com exceção de poucas vozes conhecidas e das desconhecidas que começam a ressurgir do passado, a explosão da literatura feminina no Brasil dos anos 70, embora contemporânea das reações à ditadura, não constitui rebeldia contra o regime, e sim contra os excessos do patriarcado. (CUNHA, 1997, p.112) De fato, as novidades comportamentais e o espírito de liberdade serviram como fermento à busca por maior espaço e autonomia femininos; entretanto, não se pode ignorar o fato de que durante o período de exceção, nada escapou da esfera política, nem mesmo as questões individuais; todo e qualquer movimento que ousasse o mais leve sinal de mudança era considerado subversivo. Também é válido lembrar que a conciliação entre interesses individuais e coletivos gerou uma série de discussões e atitudes truncadas por parte da esquerda política, o que suscitou que o movimento feminista se desenvolvesse paralelamente à luta contra o esquema ditatorial. Em outras palavras, a grande maioria das mulheres lutou por seus direitos em conjunto à luta pela democracia. Não obstante, cabe lembrar que democracia sugere liberdade de ação e igualdade de escolha, logo, não se deve desvincular a causa da inserção feminina em sociedade de qualquer outra luta por igualdade e liberdade, mas o fato é que, durante os entraves entre direita e esquerda, perdeu-se um pouco tal sentido. A produção feminina da época dá abertura à discussão acima explicitada. Portanto, a resposta à pergunta que iniciou todo o trabalho aqui desenvolvido é sim. Sim, há escritoras que podem e devem ser citadas como integrantes da produção de literatura engajada, tanto no que se refere à crítica direta a ditadura quanto à crítica referente à crueldade social do período e, contrariamente ao que se pensa, não são poucas, podem-se citar: Manual de Tapeçaria (1986) de Nilma Gonçalves Lacerda, Pau Brasil (1984) de Dinorah do Valle, A Doce Canção de Caetana (1987) de Nélida Piñon, A Hora da Estrela (1979) de Clarice Lispector, Mário/Vera (1939) de Tânia Jamardo Faillace, Um nome para matar (1967), de Maria Alice Barroso, Com licença, eu vou à luta (1983) de Eliane Vasconcelos. Todas essas obras listadas contribuíram para um olhar específico sobre seu tempo e a situação da mulher na sociedade abordada. Neste trabalho, pretende-se abordar, dentro deste contexto político e literário, a contribuição de Lygia Fagundes Telles em sua obra As meninas. 42 2. À procura de uma identidade feminina no espaço: Veja o caso de As meninas, por exemplo. Está lá, cravado nas minhas personagens, um instante da maior importância para a História do Brasil. É o registro, é o meu testemunho de uma época. (TELLES, 1998, p.32) Publicado em 1973, o romance As meninas, de Lygia Fagundes Telles, traz em sua constituição a confluência de fortes elementos inerentes à esfera política da época, bem como de assuntos referentes ao comportamento e aos problemas existenciais tipicamente femininos. A trama se passa em um pensionato de freiras, em pleno regime militar. Neste espaço convivem três estudantes universitárias, durante uma greve universitária: Lorena – representante da elite social, descendente de bandeirantes -, Lia – representante da classe média, baiana e membro de um grupo de guerrilha urbana-, e Ana Clara – pobre e prostituída, que vê em sua beleza a oportunidade de escapar do universo de drogas e miséria no qual está inserida. Assim, tem-se no mesmo espaço, a convivência de personagens de classes sociais e perfis culturais distintos, respectivamente, uma aluna do curso de Direito, uma do curso de Ciências Sociais e uma aspirante a Psicóloga. Todas imersas no mesmo ambiente, cujo cenário principal é o caos urbano: Lygia conta que se inspirou nas conversas dos amigos do filho Goffredo Telles Neto, então um adolescente. Atenta, incorporou desde detalhes do vocabulário dos jovens, que tratavam de drogas e sexo, até a preocupação com as ações políticas radicais em uma época marcada pela repressão militar. (BRASIL, 2003, n.p) Nota-se que sua preocupação era a de experimentar fazer uma recomposição da sociedade da época, sob a ótica do jovem, mas é importante frisar que esse olhar jovem, que procura deslindar seu tempo, trata-se de um olhar feminino. Sendo assim, intrinsecamente às inquietações típicas de meninas em fase de transição, em que se constroem os primeiros passos para a vida extra-familiar, Telles insere nuances do contexto de repressão e incongruências referentes aos extremismos que permearam a época. Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, a 29 de outubro de 2010, Telles conta que, na época em que escrevia As meninas, recebeu um panfleto que detalhava a violência física sofrida por um preso político, fato esse que a impressionou de tal forma, que decidiu aproveitar o relato, inserindo-o no romance. O risco da censura não passou 43 em branco para a autora, mas incentivada por seu marido, Paulo Emílio Salles Gomes, decide-se por encarar o desafio, e, caso fosse necessário, se desculparia baseada no argumento de que as personagens ganhavam liberdade no ato da escrita, o que impedia o controle de suas ações. A dica de que a censura tomava proporções insuportáveis encontra-se em trecho da própria obra: “Rajada não é uma palavra boa, mas de trás pra diante: adajar? Rosa levou uma adajar no peito fica menos grave”. (TELLES, 2009, p.139). Assim, pode-se afirmar que a resistência presente na obra não se dá somente em relação à questão da liberação feminina, mas também em relação à esfera política, e que mesmo as questões comportamentais abordadas não escapam da esfera de repressão política, pois é por meio das personagens que se tem acesso a uma relação dialética entre indivíduo e coletivo. Enquanto presenciam-se as inquietações e a intimidade de cada uma das meninas, tem-se espelhadas todas as referências e crenças de suas posições sociais, constituindo, portanto, o caráter de resistência, como se pode conferir abaixo, nas palavras de Telles: Vivendo a realidade de uma escritora de Terceiro Mundo, considero a minha obra de natureza engajada, ou seja, comprometida com a condição humana dentro da circunstância de um país, participante e testemunha de uma sociedade. Quando vi essa reportagem na televisão sobre os documentos da ditadura fiquei muito comovida. Foram anos terríveis realmente, perdi amigos. Eu já escrevia o meu livro As meninas, comecei em 1970 e ele foi lançado em 1973. O DOI-CODI, onde eram torturados os presos, ficava perto da minha casa em São Paulo. Eu me lembrei do conteúdo do livro e fiquei emocionada, contente por ter sido uma testemunha daquele tempo no que eu escrevi. O papel do escritor me pareceu tão importante... A fama e a posteridade não são importantes. O que importa é testemunhar a realidade. [...] Esse livro me deu a alegria de ser uma escritora de Terceiro Mundo, testemunha de um tempo importante. (TELLES, 2008, p.01)2 No caso de As meninas, trata-se de três testemunhas da realidade, a história passa a ser contada pelas personagens femininas que revelam a contraparte de seu contexto, e permitem visualizar de que forma estas inquietações sociais interferem no caráter de cada uma das três personagens. Os fluxos de pensamento de cada uma das meninas possibilitam a conclusão de que os caracteres individuais se constroem dialeticamente em relação a seu contexto, como se pode conferir na fala da personagem Lia: “somos todos mais ou menos loucos, bobagem trancar alguns, entende. A loucura 2 Disponível em: < http://portalliteral.terra.com.br/artigos/o-engajamento-de-lygia-fagundes-telles> 44 vem do sistema. Acabar com o sistema para acabar com a doença” (TELLES, 1992, p.181). Cada uma das personagens traduz, dentro da perspectiva que lhes conferem seus papéis sociais, as trajetórias de meninas que ainda se encontram imersas em seus problemas existenciais, nem sempre certas de suas escolhas, já que sofrem as influências da sociedade. Cada uma a seu modo: Lorena, isolada do mundo em sua concha-quarto, Ana Clara, em seu mundo de drogas e prostituição, e Lia, às voltas com a guerrilha urbana. Porém, à medida que se analisa a posição de cada uma em contraste com a esfera do regime, questiona-se ainda, se há lugar para inocência em uma sociedade brutal e excludente. O mesmo se pode dizer da linguagem metafórica presente na obra, que também remete ao cuidado com a censura, tanto no título, quanto na inserção de elementos de resistência, tais como as denúncias de tortura, as confissões acerca dos tempos obscuros, as confissões sobre os medos, como ressalta Débora Ferreira: Parece óbvio que Telles inseriu elementos de denúncia socioeconômica e política de maneira muito cuidadosa. Para isso se valeu de artifícios da linguagem, como voz narrativa do outro, denuncia no cenário e não na voz direta; ou em situações de curiosa fragmentação/inversão sintática como “tudo esconder onde” (81) que de trás pra frente se lê “onde esconder tudo?”, à semelhança de “oriehnid”, ou seja “dinheiro” de trás para frente [...] (FERREIRA, 2003, p.157) Podem-se perceber tais apontamentos acerca da elaboração da linguagem através de metáforas em prol da denúncia em toda a obra. Veja-se o exemplo abaixo, na fala da personagem Lorena: Encaro o sol até a cegueira, não, não quero, agora não. Estava tão contente pensando só em letras e de repente elas foram se compondo, tão perigosas quando se juntam. Mas na raiz são descomprometidas. Umas crianças A, B, H, M, O... Tão raro o X. Em declínio, o Z, rei desmemoriado, o irmão gêmeo S com a astúcia de um usurpador. Ponho o dedo em cima do F desventurado que Irmã Bula bordou, as letras também levam facadas no ventre, tiros no peito, socos, agulhadas, coices – também as letras são atiradas ao mar, aos abismos, às latas de lixo, aos esgotos, falsificadas e decompostas, torturadas e encarceradas. Algumas morrem mas não importa, voltam sob nova forma, como os mortos. (TELLES, 1992, p.58-59) Nesse trecho, habilmente trabalhado, o romance traz a esfera do regime ditatorial através do olhar feminino. De acordo com depoimento prestado ao Estado de São 45 Paulo, em 17 de abril de 2003, Telles afirma que a prosa refinada e o tom intimista de As meninas despontavam como sua primeira e maior defesa, pois o censor encarregado de analisar o romance liberou-o depois de ler poucas páginas, aborrecido com o que julgou falta de ação. Segundo a autora, é devido a este tom contestatório que As meninas pode ser considerada como uma obra atual, parafraseando suas palavras: mais atual que o Fernandinho Beiramar, constatação que procura frisar a importância dos acontecimentos pertinentes ao período da ditadura militar brasileira para as configurações sociais atuais, fato esse já mencionado por diversos estudiosos, como por exemplo, Zuenir Ventura (1988). Frente a tais constatações, não é possível concordar com a categorização que Malcolm Silverman aplica ao romance de Telles. Para o estudioso a obra poderia ser classificada ao que nomeia romance de costumes urbanos, em que [...] colhidos ainda no conflito imemorial entre pressões sociais para se conformar e as necessidades “anti-sociais” para resistir, os personagens são enfocados pelo romancista sob uma luz mais existencial do que determinista. A ênfase, comunicada em tons mais tragicômicos do que patéticos, é nos indivíduos ou nos pequenos grupos que decidem o que fazer e quem resolve ou não os problemas localizados – enquanto a macroestrutura social desempenha decididamente um papel secundário. (SILVERMAN, 1995, p.111) Longe se está de poder afirmar que a macroestrutura social represente um papel secundário, haja vista que os costumes urbanos enquadrados na narrativa estão diretamente vinculados à macroestrutura social. A esfera do regime constitui ferramenta primordial para que se possam compreender as soluções estéticas encontradas por Telles. Pode-se inferir que a linguagem e a estrutura adotada pela autora procuram sobreviver à intensa censura e repressão às quais a arte estava sujeita. Nota-se que a introdução do romance dá maior vazão aos fluxos de pensamentos das três estudantes e, com o desenvolvimento da trama, estrategicamente mais densa no meio do romance com grande ápice no desfecho, mascara-se o engajamento da obra, deixando as denúncias mais pesadas escondidas, nas entrelinhas. As divagações inocentes ganham aos poucos o caráter de crítica ácida. Parece mais adequado enquadrar o romance na categorização de Alfredo Bosi, o qual defende que [...] já se começavam a sentir, principalmente entre os jovens, os apelos da contracultura que reclamavam o lugar, ou os múltiplos lugares do sujeito, as potências do desejo, a liberdade sem peias da imaginação. A virada era internacional, como planetárias eram as 46 transformações ideológicas que ela representava. O capitalismo avançado, combinando selvageria e sofisticação eletrônica, conquistava o monopólio dos bens simbólicos. Os desejos, ou melhor, as suas representações e as suas contrafações, convertiam-se em mercadorias sob a batuta dos meios de comunicação de massa. (BOSI, 1994, p.435). Sentem-se as nuances dessa sociedade traçada por Bosi na saga das três estudantes que se encontram imersas em uma esfera política brutal, marcada pela lógica do capitalismo, o qual, sem dúvida, é a chave principal de compreensão. É o centro das preocupações de Lorena que, acostumada ao conforto e a futilidade de sua classe, está completamente inserida no movimento de contracultura, às voltas com seu Jimi Hendrix; é também seu “oriehnid” que garante o sucesso das ações do grupo de Lia e as extravagâncias de Ana Clara, essa às voltas com as drogas. As crises emocionais são decorrentes do desconforto que cada uma sente com relação ao contexto em que vivem, como se pode notar no trecho abaixo: - Ana Clara tem cor de coalhada - disse Irmã Clotilde reaparecendo na porta. Enxugou as mãos. -Até a Lia que parecia uma romã também está perdendo as cores. Não sei o que está acontecendo com vocês. “Sabe muito bem”, pensou Lorena apanhando na estante o tratado de legislação social. Agitou-o fazendo farfalhar as longas tiras de papel que marcavam as páginas. Leu as anotações ficou olhando o jardim. O Direito nasceu espontâneo como aquelas florzinhas brotando no meio do mato. “Mas vieram os homens cavilosos e complicaram tudo com suas cavilosidades”, pensou arrancando outra fita de dentro do livro. Leu-a com atenção e picou-a em pedacinhos miúdos como confete. Soprou-a na palma da mão. “Jesus era caviloso? Imagine. Os que vieram depois é que fizeram aquelas caras espertas e inventaram a sed lex”. E que no fundo não é tão dura assim. (TELLES, 2009, p.154) Traduzido na intensa oralidade presente na obra – podem-se ouvir as confissões das três jovens, e por meio de seus fluxos de pensamentos e dos diálogos, tem-se acesso à sociedade da época reconstituída por meio da linguagem artística, pois, neste caso, [...] quem faz a história são mulheres comuns – indivíduos amedrontados que não só possuem outros problemas além daqueles enfrentados num regime autoritário como os explicitam continuamente. A violência nas ruas, a repressão, a censura só fazem agravar existências já conturbadas, trazendo à tona dúvidas e angústias, ou, pelo contrário, escondendo sentimentos que deveriam estar descobertos. Se parte desses problemas pode ser entendida como peculiar à existência humana, a maioria deles ainda é específica do gênero feminino, que pode estar longe de ser uma minoria, mas continua sendo marginalizado dentro da sociedade. Por isso mesmo, 47 entregar a narrativa a uma mulher é olhar a história sob outra perspectiva. (DALCASTAGNÉ, 1994, p.116) É também, por meio dos diálogos entre as personagens, que se tem acesso ao seu mundo, ao que as diferencia e separa (construções sociais coletivas, referentes às suas posições sociais) e ao que as aproxima e une (fatores subjetivos, a condição feminina e os espaços comuns entre elas, como o pensionato), sempre em jogo de espelhamento. Segundo Ferreira (2003), une-as uma tênue amizade e alguns aspectos em comum, como o pensionato, a universidade e seu gênero, mas separam-nas os valores que seus respectivos grupos sociais atribuem aos outros. Pode-se conferir tal apontamento no trecho do romance, a seguir: - Ingleses? – pergunto. – Prefiro nossos biscoitos e nossa música. Chega de colonialismo cultural. - Mas nossa música não me comove, querida. Se os seus baianos dizem que estão desesperados, acredito, acho ótimo. Mas se vem John Lennon e diz a mesma coisa, então vibro, fico mística. Sou mística. - Você é fresca. - Fresca, Lião? Você disse fresca – repete ela. Debruçou-se mais na janela e, em meio do riso, envesgou, botou a língua pra fora e colou os polegares na cabeça. Abanou as mãos como orelhas, ô, é preciso saco pra agüentar essa menina. (TELLES, 1992, p.13) Percebe-se neste diálogo entre Lorena e Lia, a posição social e ideológica de cada uma, marcando desta forma, respectivamente, o imenso debate entre valores da contracultura e o discurso da esquerda militante, voltados para o nacionalismo e a recusa de elementos ligados ao imperialismo, refletindo, desta maneira, os questionamentos culturais do período ditatorial. Pode-se notar que as personagens são as chaves para a análise do romance. É por meio de suas visões que tudo se organiza: o espaço é visto por seus olhos, revelando o interior de cada uma, de maneira homóloga, como uma forma de cada uma se relacionar c