UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA GEDRA – GRUPO DE ESTUDOS DINÂMICA REGIONAL E AGROPECUÁRIA Elicardo Heber de Almeida Batista ENTRE TRÂNSITOS PERMANENTES E PERMANÊNCIAS TRANSITÓRIAS: Estudo sobre a reprodução social de famílias rurais pobres em Itinga, Minas Gerais, Brasil. Presidente Prudente - SP 2016 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA GEDRA – GRUPO DE ESTUDOS DINÂMICA REGIONAL E AGROPECUÁRIA Elicardo Heber de Almeida Batista ENTRE TRÂNSITOS PERMANENTES E PERMANÊNCIAS TRANSITÓRIAS: Estudo sobre a reprodução social de famílias rurais pobres em Itinga, Minas Gerais, Brasil. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP de Presidente Prudente para obtenção do título de Doutor em Geografia, sob a orientação da Profa. Dra. Rosangela Aparecida de Medeiros Hespanhol. Presidente Prudente - SP 2016 RUA ROBERTO SIMONSEN, 305 - TEL. (0XX18)3 229-5375 - FAX (0XX18) 3221-8212 - CAIXA POSTAL 467 - CEP 19060-900 - PRESIDENTE.PRUDENTE (SP). E Mail: posgraduação@prudente.unesp.br mailto:posgraduação@prudente.unesp.br FICHA CATALOGRÁFICA Batista, Elicardo Heber de Almeida. B336e Entre trânsitos permanentes e permanências transitórias : estudo sobre a reprodução social de famílias rurais pobres em Itinga, Minas Gerais, Brasil / Elicardo Heber de Almeida Batista. - Presidente Prudente : [s.n.], 2016 374 f. : il. Orientadora: Rosângela Aparecida de Medeiros Hespanhol Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Inclui bibliografia 1. Políticas públicas. 2. Lugar. 3. Famílias rurais. 4. Pobreza. 5. Mobilidade espacial. 6. Migração. 7. Permanência. I. Hespanhol, Rosângela Aparecida de Medeiros. II. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. III. Título. Dedico essa tese às famílias rurais do Vale do Jequitinhonha, sobretudo às mulheres do lugar. AGRADECIMENTOS Muitas pessoas e instituições contribuíram para que a pesquisa que resultou nesta tese fosse realizada, mas correrei o risco de citar alguns nomes, como forma de agradecimento. Não poderia começar a agradecer nominalmente sem citar minha orientadora do doutorado, a professora Rosangela Ap. de Medeiros Hespanhol. A concretização desta tese só foi possível pelo voto de confiança, aceitando orientar o projeto de tese de um investigador por ela desconhecido. Obrigado pela oportunidade do convívio, pelas aulas, pelas leituras atenciosas dos vários relatórios FAPESP, pelo apoio às minhas escolhas teóricas e metodológicas, sempre com intervenções precisas, e pela serenidade nas orientações ao longo desses quatro anos. Junto com minhas orientadoras Gildete Fonseca, na graduação, e Maria José ―Zezé‖ Carneiro, no mestrado, a Rosangela faz agora parte da minha trajetória acadêmica. São mulheres às quais, no convívio e na partilha, aprendi a ter profunda admiração e afeto. Agradeço aos professores Antônio Nivaldo Hespanhol, Nécio Turra Neto e Elpídio Serra, com quem pude conviver e aprender durante as disciplinas na pós-graduação. Muito da minha formação se deve aos debates com os colegas e os professores Rosangela e Nivaldo, no âmbito do Grupo de Estudos Dinâmica Regional e Agropecuária (GEDRA) e, por isso, agradeço. Sou bastante grato aos professores Nécio Turra Neto (FCT/UNESP) e Jones Dari Goettert (UFGD), pela atenciosa leitura e pelas sugestões para a tese, na ocasião do exame de qualificação. O convívio com o professor Nécio me fez sentir cada vez mais confortável com minhas escolhas teóricas e metodológicas. Em Coimbra, Portugal, meu carinho e agradecimento aos professores do Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT/Universidade de Coimbra), sobretudo ao Lúcio Cunha e Rui Missa Jacinto. Rui, obrigado pela atenção despendida, pelo auxílio nas leituras e por ter tornado mais serena minha estadia no outro lado do Atlântico. Meus agradecimentos aos membros da banca de avaliação deste trabalho pelas leituras e contribuições: Eliseu Savério Sposito (FCT/UNESP), Nécio Turra Neto (FCT/UNESP), Alice Yatiyo Asari (Universidade Estadual de Londrina - UEL) e Andréa Maria Narciso Rocha de Paula (Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES). Em Presidente Prudente fiz a tese, mas também fiz amigos. Obrigado aos meus novos amigos, pelos momentos de partilha e convívio, em especial, Maryna Antunes, Keith Braga, Reginaldo Souza, Willian Gregório, Jânio Gomes, Robson Munhoz, Jessica Kurak, Eliane Carvalho, Mary Roldan (mon petit chou), Bruno Felipe Oliveira, Xiomara Moreno Lorenzo e Anderson Marioto. Jessica, Keith, Maryna, Willian e Regis foram fundamentais para tornar minha estadia em Presidente Prudente menos solitária. Em Portugal, meus agradecimentos aos colegas, Davi Abre, Fernando Oliveira, Audo Morel, Ruud Sliphorst, Miguel Angel Garcia, Lina Hurtado, Jémisson Mattos, Hubert Lemaréchal, Raissa Lopes, Paulo Zangalli e Josué Viegas. Vindas de diversas partes do mundo, essas pessoas me ensinaram que, apesar das distintas origens geográficas, somos muito parecidos. No fundo, apesar de algumas diferenças culturais, somos, antes de tudo, gente. E isso quer dizer muita coisa. Dizem que os mortos recebem mais flores que os vivos, porque o remorso é mais forte que a gratidão. Mesmo nas atuais circunstâncias, é impossível não lembrar Evandro Brèal e prestar-lhe meu agradecimento. Jovem aluno do doutorado, lia com atenção meus textos e sugeria alterações e até mesmo leituras. Por fatalidade do destino, não concluiu sua tese, mas contribuiu imensamente para o desenvolvimento da minha. Ev, espero que este meu trabalho tenha pelo menos parte da qualidade que desejava. Em Itinga, meu carinho a Pierre Gusmão, Jô Pinto, Márcia Esteves, Anderson Souza e Marcio Jardim, de quem sinto saudade. Certamente, o convívio com essas pessoas, essenciais para a realização dos trabalhos de campo, deixou a estadia no Vale do Jequitinhonha mais leve durante a pesquisa. Agradeço muitíssimo às famílias de Itinga, que me receberam em seus lugares de vida. Em especial, meu agradecimento a Paulo Jardim, Jailson Jardim, Sr. Nô, Dona Pretinha e Sr, Reinaldo, por terem me agregado a suas respectivas famílias durante as pesquisas de campo. Fiz pesquisas, mas também fiz amigos. Um obrigado ao meu hoje amigo André Bersani (USP/Geografia Humana), pelo companheirismo na primeira etapa do trabalho de campo em Itinga. Um obrigado a Claudinei Silva (FCT/UNESP), pelo auxílio na elaboração dos mapas e a Junior Wesz (UNILA) e Paulo Rogers (Université Laval), pelos diálogos no decurso da pesquisa de campo e da escrita da tese. Agradeço a todas as instituições pelo apoio financeiro ao longo desses anos: à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), nos primeiros dois meses do doutorado; à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP - Processo: 12/05014-7), pelo financiamento do doutorado; à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à Fundação de Ciência e Tecnologia (FCT), pela concessão de uma bolsa de doutorado ―sanduíche‖, em Coimbra (PT), no âmbito do projeto de cooperação binacional Norte-Sul: Geografia, Cooperação e Desenvolvimento entre Brasil e Portugal. https://www.facebook.com/ruud.sliphorst.3 https://www.facebook.com/lina.m.gomez.750 https://www.facebook.com/lina.m.gomez.750 ―...chorou, mas estava invisível, e ninguém percebeu o choro.‖ Graciliano Ramos, Vidas Secas, 1991. RESUMO Esta tese tratará dos meios, modos e condições de vida de famílias rurais localizadas na base da estrutura social brasileira, ou seja, daquelas classificadas como pobres pelo governo brasileiro. De forma mais específica, serão discutidas as estratégias de reprodução social de famílias rurais pobres economicamente, residentes no município de Itinga, Vale do Jequitinhonha, mesorregião bastante emblemática por se apresentar no cenário nacional como um ―bolsão de miséria‖, definida a partir dos indicadores de alta incidência de pobreza (econômica) e por ter se estabelecido como uma espécie de ―viveiro de migrantes‖. O deslocamento temporário dos migrantes do trabalho precário e a migração definitiva de parte das famílias e indivíduos dali originados, para as mais diversas regiões do Brasil, são elementos que vêm sendo utilizados como indicativo de um processo de desruralização. O referido município está localizado em um ambiente social e econômico marcado pelo pouco dinamismo socioeconômico, por altos índices de carências sociais e materiais e pelo predomínio de população rural envolvida em atividades agrícolas, principalmente para o autoconsumo. Baseada em metodologias qualitativas na produção de evidências, e tendo as famílias residentes em comunidades rurais como unidade de análise, a pesquisa parte de dois princípios hipotéticos: I- mesmo as regiões rurais menos dinâmicas do país não estão passando por um processo de esvaziamento social, cultural, demográfico e econômico, e a migração, sobretudo do trabalho precário, é parte das estratégias de reprodução social, para a própria permanência nos lugares de origem, e de forma mais ampla, é elemento constitutivo da cultura local; II- a ampliação de políticas sociais em regiões carentes impactam consideravelmente as dinâmicas sociais e econômicas das famílias rurais, possibilitando melhora na economia das unidades familiares, permitida pelos rendimentos não contributivos. Esses rendimentos interferem nos sentidos e significados da mobilidade espacial, condicionando inclusive a permanência desses possíveis migrantes em suas localidades de origem. Palavras-chaves: Políticas públicas, Lugar, Famílias rurais, Pobreza, Mobilidade espacial, migração e permanência. RESUMEN Esta tesis se ocupa de los medios, modos y condiciones de vida de los hogares rurales ubicados en la base de la estructura social brasilera, es decir, aquellos clasificados como pobres por el gobierno. Analizaremos las estrategias de reproducción social de las familias rurales pobres, residentes en la ciudad de Itinga, en el Valle del Jequitinhonha, mesorregión emblemática por presentarse en el escenario nacional como "foco de miseria", que se define sobre la base de indicadores de alta incidencia de pobreza económica y por haberse establecido como una especie de "vivero de migrantes ". El desplazamiento temporal de los migrantes con trabajo precario y la migración definitiva por parte de las familias e individuos originarios de Itinga para diversas regiones de Brasil, se han utilizado como indicadores de un proceso de desruralización. El referido municipio se encuentra localizado en un entorno social y económico caracterizado por un bajo dinamismo socioeconómico, altos índices de necesidades sociales y materiales y por el predominio de la población rural involucrada en actividades agrícolas, principalmente para autoconsumo. Basado en metodologías cualitativas para la producción de evidencias, y teniendo como unidad de análisis las familias que viven en las comunidades rurales, la investigación parte de dos principios hipotéticos: I- las regiones rurales menos dinámicas del país no están pasando por un proceso de desocupación del espacio social, cultural, demográfico y económico, y la migración, especialmente la relacionada al trabajo precario, es parte de las estrategias de reproducción social, para permanecer en sus lugares de origen, y elemento de la cultura local; II- la expansión de las políticas sociales en las zonas pobres afectan significativamente las dinámicas sociales y económicas de la población rural, lo que permite una mejora en la economía de las unidades familiares, como consecuencia de las rentas no contributivas. Estos rendimientos interfieren en los sentidos y significados de la movilidad espacial, condicionando inclusive la permanencia de esos posibles migrantes en sus localidades de origen. Palabras llave: Políticas públicas, familias rurales, pobreza, movilidad espacial, migración y permanencia. ABSTRACT This thesis treats of the means, manners and living conditions of rural households located at the base of the Brazilian social structure, i.e. those people classified as poor by the Brazilian Government. More specifically, it will be discussed the social reproduction strategies of poor rural families economically, residents in the municipality of Itinga, Jequitinhonha Valley, a mesoregion rather emblematic for performing on the national scene as a "pocket of misery", defined from the high incidence of poverty (economic) and because it was established as a kind of "migrant nursery‖. For the most diverse regions of Brazil, the temporary displacement of migrants working in precarious situations , the final migration as part of families and individuals from there originated are elements which have been used as indicative in a deruralization process. This municipality is located in a social and economic environment known by its little socioeconomic dynamism, high levels of social and material deprivation, and the predominance of the rural population engaged in agricultural activities, manly for self-consumption. Based on qualitative methodologies in production of evidences, and having families residing in rural communities as the unit of analysis, the research begins of two hypothetical principles: I- even less dynamic rural regions of the country are not going through a process of the social, cultural, economic demographic and migration emptying, especially at precarious work, is part of the social reproduction strategies in order to stay in their own places of origin, and more broadly, element of the local culture; II- the social policies expansion in poor areas impact considerably the social and economic dynamics of rural peoples in poor areas, enabling improving the economy in family units, allowed for non-contributory income. Such income interfere with senses and meanings spatial mobility, including conditioning potential migrants in their home localities. Key Words: Public policies, town rural families, poverty, spatial mobility, migration and permanence. LISTA DE FOTOGRAFIAS Página Fotografia 1: Parte de uma chapada (terras altas e vegetação rasteira) nos tempos da chuva ... 113 Fotografia 2: Residência localizada em uma grota na bacia do rio Água Fria (Comunidade Rural da Gangorra) ................................................................................................................................ 124 Fotografia 3 : Abrigo físico e redes de comunicação e informação - Parte externa de uma residência de uma família beneficiária do Programa ―Luz para Todos‖, na Comunidade Rural Ponte dos Pasmados. ................................................................................................................... 167 Fotografia 4: Parte externa de uma residência de família beneficiária do Programa ―Luz para Todos‖, na Comunidade Rural de Santo Antônio das Pindobas. Foto tirada nos ―tempos das águas‖, ou no período das chuvas, entre novembro e fevereiro. ................................................. 168 Fotografia 5: Família na parte frontal de uma casa na Comunidade rural dos Hermogenes. .... 169 Fotografia 6: Utilização de fogão a lenha pela família da comunidade do Hermógenes. .......... 172 Fotografia 7: procissão das festas do sagrado ............................................................................ 175 Fotografia 8: Idosa portuguesa pedindo esmolas nas ruas de Lisboa. ....................................... 267 Fotografia 9: Crianças em momento de sociabilidade num campo de futebol precário localizado à margem esquerda do Rio Jequitinhonha, na Comunidade Rural dos Hermógenes. ................. 308 LISTA DE IMAGENS Página Imagem 1: A questão da pobreza extrema e a desnutrição infantil ............................................ 170 LISTA DE MAPAS Página Mapa 1: Mesorregiões Geográficas do Estado de Minas Gerais. ................................................. 91 Mapa 2: Vale do Jequitinhonha e seus municípios ..................................................................... 105 Mapa 3: Recorte espacial da pesquisa: o município de Itinga e as comunidades rurais ............ 127 Mapa 4: As comunidades rurais pesquisadas e os biomas. ........................................................ 156 LISTA DE QUADROS Página Quadro 1: História oral e a produção de documentos orais ......................................................... 65 Quadro 2: Três principais abordagens da migração ................................................................... 191 Quadro 3: O conceito de pobreza na experiência europeia ........................................................ 270 LISTA DE TABELAS Página Tabela 1: Indicadores socioeconômicos das mesorregiões do Estado de Minas Gerais (2010) .. 95 Tabela 2: Porcentagem de populações pobres nas distintas mesorregiões mineiras (1991, 2000 e 2010) .............................................................................................................................................. 98 Tabela 3: Redução no tamanho da população vivendo abaixo da linha de pobreza .................... 99 Tabela 4: Distribuição relativa da população total e pobre conforme as mesorregiões nos períodos 1991-2000 e 2000-2010. ............................................................................................... 100 Tabela 5: População residente no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais e Brasil em 1991, 2000, 2010. ............................................................................................................................................ 117 Tabela 6: População em situação de extrema pobreza por faixa etária no Município de Itinga (MG) ............................................................................................................................................ 129 Tabela 7: Programa de Aquisição de Alimentos (PAA): Município de Itinga - 2013 ............... 130 Tabela 8: Transferência de renda no Município de Itinga (MG) ................................................ 134 Tabela 9: Repasse de recursos para o município de Itinga (MG) - 2013 ................................... 139 Tabela 10: Comunidades rurais, número de famílias residentes e pesquisadas. ........................ 149 Tabela 11: Bens e infraestrutura das famílias residentes nas comunidades ............................... 165 Tabela 12: População Total, por Gênero e Rural/Urbana – Itinga/MG ..................................... 208 Tabela 13: Migração temporária e definitiva: a mobilidade do trabalho ................................... 217 Tabela 14: Trajetória social e de mobilidade: uma experiência emblemática............................ 219 Tabela 15: Países com maior desigualdade de renda no ano 2000............................................. 301 Tabela 16: População pobre e não pobre e local de residência - Brasil 2003 e 2009. ............... 302 LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES AMAI - Associação Amigos de Itinga BPC - Benefício de Prestação Continuada BR - Brasil Rodovias BVCE - Benefício Variável de Caráter Extraordinário CRAS - Centros de Referência da Assistência Social CODEVALE – Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha COPASA - Companhia de Saneamento de Minas Gerais CEMIG - Companhia Energética de Minas Gerais CPDA/UFRRJ - Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro DNOCS - Departamento Nacional de Obras Contra as Secas EFA - Escola Família Agrícola EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária EMATER-MG - Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais EUROSTAT – European Statistic FAO – Food and Agriculture Organization (Organização das Nações Unidas para Alimentação e agricultura FMI – Fundo Monetário Internacional FSE – Fundo Social Europeu FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FJP - Fundação João Pinheiro RURALMINAS - Fundação Rural Mineira GEDRA – Grupo de Estudos Dinâmica Regional e Agropecuária IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia Estatística ICA/UFMG - Instituto de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Minas Gerais IDH - Índice de Desenvolvimento Humano IMA - Instituto Mineiro de Agropecuária IDHM - Índice de Desenvolvimento Humano Municipal IBDF - Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IEF-MG - Instituto Estadual de Florestas do Estado de Minas Gerais IESA - Instituto Estadual de Saúde Animal INE - Instituto Nacional de Estatística (Portugal) MESOVALES - Mesorregião do Vale do Jequitinhonha e Mucuri MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome ONGs - Organizações não governamentais ONU - Organização das Nações Unidas FAO - Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OIT - Organização Internacional do Trabalho OMS- Organização Mundial da Saúde PBF - Programa Bolsa Família PIB - Produto Interno Bruto PBDS - Programa Brasileiro de Desenvolvimento Social PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PAA - Programa de Aquisição de Alimentos PRONAF - Programa Nacional para o Fortalecimento da Agricultura Familiar RSI - Rendimento Social de Inserção SUAS - Sistema Único de Assistência Social SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste UFVJM - Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" UNIMONTES - Universidade Estadual de Montes Claros SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 20 1. GEOGRAFIA HUMANA: OS TEMAS E OS PROBLEMAS DE UMA TESE .......... 29 1.1. Pesquisador migrante: uma breve trajetória de vida ..............................................................49 1.2. Caminho metodológico: fontes orais como meio para produção de evidências ....................56 1.3. A pesquisa de campo: uma experiência .................................................................................68 PARTE I: REGIÃO, LUGAR E SOCIEDADES RURAIS: OS PROCESSOS SOCIAIS. .. 88 2. ASSIMETRIAS REGIONAIS E POBREZA ECONÔMICA: BREVE GEOGRAFIA DAS DESIGUALDADES NO ESTADO DE MINAS GERAIS, BRASIL. ............................ 89 2.1. Região da pobreza? Vale do Jequitinhonha, caracterização do ambiente social e econômico ...................................................................................................................................................... ....102 2.2. Mobilidade espacial no Vale do Jequitinhonha: uma sociedade em movimento .................109 2.3. Pecuária extensiva: das terras policultoras às terras do gado ............................................... 119 2.4. pínus e eucalipto: a destruição do complexo grota-chapada ................................................122 2.5. A cafeicultura: da produção para o autoconsumo à produção modernizada ........................125 2.6. Itinga, no Vale do Jequitinhonha: indicadores sociais e econômicos – a extrema pobreza econômica .......................................................................................................................................126 3. HABITAR, RESIDIR, SER E ESTAR: O RURAL COMO ESPAÇO DE VIDA ...... 140 3.1. Comunidade e comunidades rurais: espaços de vida no mundo rural .................................145 4. DINÂMICA POPULACIONAL: MOBILIDADE ESPACIAL, MIGRAÇÕES TEMPORÁRIAS, RETORNOS E PERMANÊNCIAS. ........................................................ 177 4.1. Mobilidade espacial e migração: uma abordagem das ciências sociais ...............................178 4.2. Mobilidade espacial e migração: uma abordagem ...............................................................179 4.3. Migração: abordagem macro e microestrutural ...................................................................185 4.4. Migração e experiência brasileira: de 1950 a 1980 .............................................................193 4.5. Migração, permanências e circularidades: expressões de trajetórias sociais e de mobilidade ................................................................................................................................................... .......198 4.6. Migração e permanência: experiências locais em Itinga .....................................................205 5. PERMANÊNCIA E RETORNO: O DILEMA COTIDIANO ENTRE FICAR E SAIR ...................................................................................................................................................... 231 5.1. Permanência: os benefícios sociais, o retorno e a contramobilidade – novos processos sociais em decurso ......................................................................................................................................254 PARTE II: ESTADO E SOCIEDADE: POLÍTICAS SOCIAIS E A QUESTÃO DA POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL ...................................................................................... 262 6. ESTADO, ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL E SOCIEDADE: AS POLÍTICAS SOCIAIS E A QUESTÃO DA POBREZA EM UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR .......................263 6.1. Pobreza e suas expressões: algumas conceituações .............................................................274 6.2. As causas da pobreza e da exclusão social: os indicadores globais .....................................285 6.2.1. Os fatores globais ............................................................................................................285 6.2.2. Os fatores meso (locais ou setoriais) ...............................................................................287 6.2.3. Fatores micro (familiares e pessoais) ..............................................................................287 6.3. Medir a pobreza: critérios e indicadores globais do fenômeno .......................................288 7. ESTADO E SOCIEDADE: POLÍTICAS SOCIAIS E SUAS INCIDÊNCIAS NOS LUGARES DE VIDA ............................................................................................................... 296 7.1 Estado e sociedade: o sistema de proteção social no Brasil .................................................296 7.2 Políticas sociais e intervenção no combate à pobreza e as rendas não agrícolas: o enfoque nas experiências do Programa Bolsa Família (PBF) .............................................................................307 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 335 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 347 ANEXOS .................................................................................................................................... 365 20 INTRODUÇÃO Nos anos recentes, sobretudo após 2003, difundiu-se no Brasil um conjunto de pesquisas e relatórios técnicos que apontam para transformações sociais e econômicas que estariam em decurso no país. Uma das principais mudanças diz respeito à redução dos índices de pobreza e de desigualdade, sobretudo, mas não apenas, nos primeiros anos do século XXI. Tal fato, segundo os dados, estaria associado à expansão de políticas públicas, entre elas, as de transferência direta de renda aos domicílios mais pobres do país, localizados em regiões com baixo dinamismo econômico e alto índice de problemas sociais. Em um país marcado por profundas desigualdades regionais, tanto sociais quanto econômicas, as famílias rurais serão o ponto de partida para o entendimento dos referidos processos sociais. Embora a pobreza, no Brasil, seja um fenômeno presente em distintas realidades, sua distribuição tem um forte elemento espacial: em termos relativos, ela está concentrada no meio rural. Esta tese tratará dos meios, modos e condições de vida de famílias rurais localizadas na base da estrutura social brasileira, ou seja, aquelas entendidas como pobres pelo governo brasileiro, ou seja, que vivem com parcos recursos monetários, nas incertezas, por um fio. De forma mais específica, abordará as estratégias de reprodução social de famílias rurais pobres economicamente, residentes no município de Itinga-MG. O referido município está localizado no Vale do Jequitinhonha, uma mesorregião mineira conhecida nacionalmente por suas carências sociais, materiais e econômicas. Está presente no imaginário social brasileiro e nas distintas mídias, sobretudo a televisão, como uma região marcada por um profundo estigma socioeconômico: a miséria. Detentora de fortes indicadores de pobreza e baixo dinamismo socioeconômico abriga um significativo número de pessoas residentes no meio rural que vivem do trabalho agrícola (produção animal e vegetal), com produção voltada principalmente para o autoconsumo. Esta representação do Vale é reforçada inclusive por políticos de expressão nacional, como por exemplo, o ex-presidente Lula que, em Itinga, afirmou sua intenção de concentrar esforços para que o ―Vale do Jequitinhonha deixe de ser a região mais pobre do Brasil e passe a ter cidadania‖ 1 . A primeira viagem do Presidente Lula ao município de Itinga teve como objetivo, segundo ele, mostrar aos seus ministros, entre eles a então ministra de Minas e Energia e futura presidente, o que é ―ter fome e não ter o que comer, o que é ficar doente e 1 Presidência da República, Secretaria de Imprensa e Divulgação. Discurso do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva em Itinga, 11/01/2003. 21 não ter remédio nem hospital‖, resumindo, assim, o ambiente social considerado um dos mais pobres economicamente, no universo dos 853 municípios mineiros (FJP, 2010), e que detém um dos mais baixos índices de desenvolvimento econômico e social do Estado de Minas Gerais 2 . O nordeste do Estado de Minas Gerais é considerado, portanto, no cenário nacional, como um ―bolsão de miséria‖ que, além dos indicadores de alta incidência de pobreza (econômica), apresenta-se também como uma espécie de ―viveiro de migrantes‖, com o deslocamento permanente de parte de seus habitantes rurais para as mais diversas cidades brasileiras (e suas distintas tipologias) e para o trabalho no corte de cana-de-açúcar, sobretudo no interior paulista, fenômenos sociais que parecem indicar um processo de desruralização nas localidades de origem desses migrantes. Mesmo considerando o cenário acima retratado, a proposta da pesquisa teve por base dois princípios hipotéticos: I- as regiões rurais menos dinâmicas do país não estão passando por um processo de esvaziamento social, cultural, demográfico e econômico; ao contrário, a ampliação de políticas sociais nas regiões carentes, em especial os programas de transferências de renda, impacta consideravelmente nas dinâmicas sociais e econômicas dessas localidades, possibilitando uma melhora na economia das unidades familiares, em decorrência da obtenção de rendimentos não contributivos; II- esses rendimentos interferem nos sentidos e significados da mobilidade espacial, condicionando inclusive a permanência de famílias e/ou indivíduos em suas regiões de origem. Em face do exposto, foi estabelecido como objetivo geral da pesquisa: - Compreender as estratégias de reprodução social de famílias rurais pobres, com destaque para as dinâmicas de mobilidade espacial (―trânsitos permanentes e permanências transitórias‖), os sentidos e os significados da permanência no meio rural como lugar de trabalho e moradia, e o processo de territorialização de políticas sociais em regiões rurais carentes. Como objetivos específicos, propõem-se: a) entender os diferentes significados atribuídos às mobilidades espaciais no contexto das permanências e saídas transitórias, considerando os deslocamentos e as permanências como elementos multidimensionais; 2 Com a análise dos dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e da Fundação João Pinheiro (FJP), percebe-se que o IDHM de Itinga teve um considerável avanço, em apenas sete anos, passando de 0,276 (muito baixo), em 2003, para 0,600 (médio), em 2010. A carência econômica, material e social, somada à baixa qualidade de vida, foi decisiva para que, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, iniciado no ano de 2003, fosse lançado, nessa cidade, o Programa Fome Zero, embrião do Bolsa-Família. 22 b) analisar as diversas políticas públicas existentes na área de estudo e seus possíveis impactos nos meios, modos, ritmos e condições de vida; ou seja, como a presença do Estado em regiões carentes, mediante políticas de transferência de renda, altera a dinâmica das economias regionais, criando um contexto próprio à permanência; c) compreender de que maneira as interações de diversas políticas públicas no espaço modelam as relações das famílias rurais com o seu lugar de origem, induzindo uma possível diminuição da mobilidade espacial, e quais são os elementos (materiais e imateriais) que contribuem para a permanência, ainda que transitória, em seu lugar de origem. No cenário de permanente disseminação de trabalhos acadêmicos e dados de institutos que propagam estar a maioria da população brasileira situada na condição de classe média, o foco desta pesquisa é a população reconhecida como pobre ou extremamente pobre 3 . Apesar da opção por desenvolver o estudo no Vale do Jequitinhonha, conhecido por seus índices de pobreza, cabe ressaltar que os dados sobre esse fenômeno no Brasil são consideravelmente expressivos. Em 2007, estavam concentrados no país, 30% da pobreza latino-americana, ou seja, 58 milhões de pessoas (IPEA, 2013). As pessoas em condição de extrema pobreza somam um total de 16,27 milhões, número que representa 8,5% da população nacional (IBGE 2012; MDS, 2013). Esses números são significativos e a dramaticidade torna-se ainda maior, considerando que a linha de pobreza extrema adotada pelo governo é bastante baixa . 3 O governo brasileiro utiliza o critério da renda para definir quem são as famílias pobres ou extremamente pobres, o público-alvo do Plano Brasil Sem Miséria. Até o ano de 2012, Famílias com renda mensal per capita de até R$ 70 eram consideradas extremamente pobres e famílias que detinha rendimento de até R$ 140 per capita/mês eram classificadas como pobres. O grande foco do Plano Brasil Sem Miséria eram os brasileiros que residiam em lares com rendimento familiar de até R$ 70 per capita, o que, conforme o Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) representavam um total de 16,2 milhões de brasileiros. Deste universo total de extremamente pobres (16,27 milhões), a grande maioria estava localizada no nordeste brasileiro (9,6 milhões), seguido pela região sudeste (2,72 milhões), em terceiro lugar o norte (2,65 milhões) e, por último, as regiões sul (715,9 mil) e centro-oeste (557,4 mil). Deste total, 4,8 milhões de pessoas não possuíam qualquer tipo de rendimento e 11,4 milhões tinham um rendimento per capita entre R$ 1 e R$ 70. No ano de 2012, a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) no governo da presidente Dilma Rousseff, dividiu os pobres entre 2 grandes grupos, baseado também na renda per capita/mês: famílias com renda per capita de R$ 81,00 passam a ser considerados como extremamente pobres e famílias com renda per capita/mês de 162,00 são considerados como pobres. No Brasil, o Programa Bolsa Família é a principal medida de combate à pobreza, dentro do plano Brasil sem Miséria. No ano de 2013, havia 25,3 milhões de famílias brasileiras incluídas no cadastro único (CadÚnico), sendo que 23 milhões delas tinham renda familiar per capita de até meio salário mínimo. Um total de 13,9 milhões de famílias eram beneficiárias do Programa Bolsa Família, recebendo em média R$ 149,71 pelo beneficio, 50,2% das quais residiam no nordeste brasileiro (MDS,2013). O CadÚnico foi criado no ano de 2001 como meio de identificação das famílias brasileiras de baixa renda (localização), as possíveis beneficiárias de programas e plano brasileiro contra a pobreza econômica (focalização), ou seja, é um instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda. 23 Se apenas os extremamente pobres brasileiros constituíssem um país, este ocuparia, no ano de 2014, o 60º lugar em termos populacionais, situado entre o Chile (16.454.143) e o Cazaquistão (15.340.533 habitantes). É nesse ―país de extremamente pobres‖ que o governo brasileiro tem concentrado suas ações, baseado na tríade transferência direta de renda, acesso a serviços públicos (principalmente ligados à educação e saúde) e inclusão produtiva, para tentar retirar esses brasileiros da condição de pobreza econômica, mas, sobretudo de miséria. Os debates sobre desenvolvimento rural e, recentemente, sobre desenvolvimento territorial, centram-se, entre outros aspectos, na ideia da persistência, no cenário brasileiro (e de forma expressiva no meio rural), da pobreza econômica que, aliada às desigualdades sociais e regionais, remete ao fato de inexistir desenvolvimento econômico e social no Brasil. Nesse sentido, a temática da pobreza, com suas diversas expressões, tem ocupado uma posição privilegiada, sobretudo no campo acadêmico e nas agendas de governos nacionais e internacionais que, através de programas e ações, se propõem a enfrentar esse fenômeno. A experiência brasileira aponta para um conjunto de inovações institucionais e para a implantação de políticas que têm por base ações de caráter cooperativo, considerando os próprios pobres como um elemento fundamental no enfrentamento à pobreza. Essa opção representa um amadurecimento da democracia brasileira e estabelece um ambiente positivo para a consolidação do esforço de combate à pobreza. Pobreza essa que não é mais entendida estritamente em seu caráter econômico, mas, sim, como um fenômeno que afeta amplamente o desenvolvimento social e, pelo menos, dois direitos fundamentais: os humanos e os sociais. Ainda que a pobreza seja um fenômeno recorrente em todo o país, e em seus dois mundos (o rural e o urbano), os objetivos de análise desta pesquisa estão voltados para a vertente rural. Em termos relativos, a pobreza no campo é consideravelmente expressiva no Brasil. Dos 30,7 milhões de pessoas que residem no meio rural, 8,4 milhões eram classificadas como pobres (PNAD, 2009). A distribuição espacial da pobreza aponta que 54% da população brasileira rural eram pobres economicamente. Meio rural, porém, é uma categoria heterogênea, que encobre, sob uma mesma etiqueta, uma diversidade de entidades, de tipologias de unidades de produção, de grupos familiares, de relações com a terra, de atividades agrícolas e não agrícolas (não necessariamente ligadas à produção animal e vegetal), distintas formas de ocupações e usos do solo, relações (ou não) de identidade e sentimento de pertencimento e, de forma mais ampla, um conjunto de dinâmicas sociais, econômicas, culturais e ambientais, que são expressas na escala local. 24 Considerando essa variedade de elementos, o estudo no Vale do Jequitinhonha, no Estado de Minas Gerais, buscou compreender os processos sociais que ocorrem em um ambiente social e econômico que é marcado, por um lado, pela riqueza cultural (música e artesanato) e paradoxalmente, por outro, pelos indicadores que sinteticamente expressam consideráveis carências de infraestrutura social e pobreza econômica, como mencionado anteriormente. Nesse cenário, as abordagens relacionadas à reprodução social são uma tentativa de compreensão das condições de existência social das famílias no meio rural, sobretudo seus meios, modos e condições de vida, bem como suas práticas cotidianas em contexto de poucos recursos monetários. Simplificando, este estudo pretende apresentar as experiências locais de como vivem os mais pobres economicamente do país e de como orientam cotidianamente suas ações na definição de estratégias de reprodução social, a partir do ambiente social e econômico em que estão inseridos e de um conjunto de capitais (monetário, social, cultural etc.) de que dispõem (ou não). As famílias rurais foram escolhidas como unidade de análise para a compreensão dos processos sociais discutidos ao longo do texto. Tal opção, todavia, não elimina as relações sociais e econômicas exteriores às unidades familiares. As articulações entre os universos macro e microssociais, entre o geral e o particular, entre sociedade e indivíduos serão pensadas a partir do contato com processos microssociais. O entendimento das estratégias de reprodução social das famílias consideradas mais pobres no contexto da estrutura social brasileira pode elucidar os modos como os indivíduos se relacionam com estruturas e processos sociais mais amplos em curso no país, como a relação Estado e sociedade, e de que maneiras esses processos podem alterar a própria existência dessas famílias, sobretudo nos aspectos referentes às suas condições, modos e meios de vida, os quais expressam, em determinada medida, a diversidade local e regional. Para as famílias rurais que lidam no cotidiano com a incerteza dos rendimentos monetários oriundos da atividade agrícola no Vale do Jequitinhonha, a implementação de programas sociais e de políticas públicas de combate à pobreza tem ocupado posição central nas estratégias de reprodução social por elas acionadas. No contexto da experiência brasileira, no período contemporâneo, chama a atenção um elemento importante para tratar da relação entre sociedade e Estado. A introdução de programas de transferência de renda no espaço intradoméstico, como o Programa Bolsa Família, representa não só a ampliação da presença do Estado, como também um novo componente entre as distintas estratégias de reprodução social, permitindo o acesso das famílias pobres ao consumo. A inserção da família no Programa Bolsa Família tem viabilizado novas possibilidades de obtenção de renda, o que 25 aponta para novas dinâmicas sociais, entre elas, a possibilidade de permanência dos migrantes temporários em suas localidades de origem, ao longo de todo o ano, e até o retorno dos migrantes aos seus locais de partida 4 . Se os rendimentos oriundos das políticas sociais podem assumir distintos significados em conformidade com diferentes lógicas de reprodução social das famílias rurais, parece ser uma importante questão de pesquisa avaliar o seu papel na definição de modos e condições de vida e/ou na configuração das dinâmicas populacionais entre indivíduos ou famílias potencialmente migrantes por falta de opção de trabalho em suas localidades de origem. O que se coloca é: assim, até que ponto se pode afirmar estar em curso um novo fenômeno social que relaciona a permanência e a diminuição da migração temporária às políticas sociais, sobretudo aos programas de transferência direta de renda? A abordagem centrada na reprodução social parte do pressuposto que sua compreensão pode expressar dinâmicas internas a um ambiente familiar, como também a relação de famílias com o ambiente social e econômico em que estão imersas, e a interação deste com elementos externos às famílias, entre eles, os rendimentos das transferências de renda e a migração, em suas mais distintas tipologias. As migrações temporárias, tanto as mais longas quanto as mais curtas, são um fato social sempre existente e parte constitutiva da dinâmica social no Vale do Jequitinhonha no Estado de Minas Gerais. Nesse cenário, surge a importância de entender os processos em torno da migração, considerando os elementos modeladores desse fenômeno social e seus efeitos correlatos, entre eles, os significados que lhes são atribuídos, seja pelos agentes sociais envolvidos nessa prática social, seja pelos membros das famílias que permanecem na localidade de origem. A migração é tratada neste trabalho principalmente como resultado de um universo social marcado pelo baixo dinamismo no mercado de trabalho, e a saída passa a ser uma escolha que tem, todavia, em seu mais íntimo sentido, a insistência em permanecer na localidade de origem. Como um fenômeno que representa uma prática social, a migração, seja em sua forma transitória e/ou definitiva, assume uma diversidade de significados para as famílias ou para os indivíduos, dependendo de um conjunto de variações, entre elas, seu ciclo demográfico e as condições subjetivas (individuais e familiares) e objetivas do mercado de trabalho local (ou a inexistência deste). Na análise das estratégias de reprodução social, a migração, a permanência e a circularidade são expressões da articulação entre o local de 4 Esse processo social será detalhado ao longo do texto. 26 partida e o local de destino, que marcam a dinâmica populacional, um fenômeno não necessariamente novo. O acesso a determinados serviços e bens de consumo depende dos rendimentos obtidos com o trabalho no local de origem e da renda possibilitada pela migração. Os significados da migração e o seu papel nos processos de reprodução social não podem ser negligenciados, na medida em que a própria migração fortalece a possibilidade de permanência e expressa até mesmo um caráter de resistência: sair para permanecer. A compreensão de distintas experiências migratórias e de seus objetivos pode auxiliar no entendimento do contexto socioeconômico e cultural das localidades de origem dos migrantes. As assimetrias regionais, as dinâmicas do mercado de trabalho, as possibilidades de emprego/renda e, de forma mais ampla, melhores condições de existência social são fatores que podem, até certo ponto, explicar as razões que levam as pessoas e/ou famílias a optarem pela migração. Entretanto, não explicam satisfatoriamente o fenômeno, uma vez que entre pessoas/famílias com condições sociais e econômicas parecidas, algumas tendem a migrar, enquanto outras tendem a permanecer em suas localidades de origem, o que indica haver outras variáveis em jogo na decisão de partir ou permanecer. Uma possível contribuição da Geografia Social, nesse sentido, é a de entender as mais distintas variáveis presentes na multideterminação dos fenômenos da permanência e da partida, como por exemplo, a existência de recrutadores de mão de obra, ou a própria decisão da família sobre a partida de todo o grupo ou de apenas um de seus membros. Ou seja, explicar o conjunto de fenômenos sociais que ocorrem no espaço como um projeto familiar ou do grupo doméstico. A migração é parte constitutiva de um projeto maior que está relacionado à própria permanência das famílias em suas localidades de origem, mesmo entre as que são consideradas pobres pelo governo brasileiro. Nessa perspectiva, as análises dos fenômenos centrados no indivíduo não são suficientes. Nas tramas sociais da migração, os indivíduos podem vivenciar o processo como resultado de uma decisão pessoal, mas a construção social do fenômeno envolve todo o grupo familiar. A própria condição de migrante e as razões que impulsionam sua saída expressam, em grande medida, as condições materiais e monetárias do grupo de origem do indivíduo. Considerando que no Vale do Jequitinhonha, as pessoas com recursos monetários também saem de suas localidades de origem, a pobreza econômica por si só também não explica o fenômeno da migração. Diferente do que possa parecer, quanto mais pobre economicamente é a família, menor é sua tendência a se inserir no fenômeno da migração. Em face dessas aparentes contradições, cabem aqui as questões: até que ponto a pobreza 27 econômica dificulta ou potencializa a migração? A ausência de renda e o baixo nível de educação formal são elementos que determinam a decisão por permanecer? A pobreza econômica é fator que fortalece a saída em situações consideravelmente extremas, como longos períodos de seca, perda da produção animal e vegetal etc.? Nas incertezas existentes nas trajetórias sociais largamente marcadas por carências sociais e materiais, um ponto a ser considerado é o papel das aposentadorias rurais na viabilização (ou não) de melhorias nas condições de vida dos grupos sociais em que um de seus membros recebe esse benefício social. Se a atividade exclusivamente agrícola exerce uma forte pressão no sentido de ―expulsar‖ os jovens para outras atividades fora de sua localidade de origem através da migração, até que ponto a existência de um rendimento fixo tende a mantê-los, ainda que temporariamente, em suas localidades de origem? Teriam as aposentadorias rurais um peso na manutenção dos jovens por mais tempo vinculados às suas famílias, ou, em outros termos, seriam elas um fator que atua consideravelmente no sentido de favorecer a permanência dos jovens e das famílias rurais em suas localidades de origem? No que concerne ainda às estratégias de reprodução social das famílias rurais, cabem também as seguintes indagações: que papel tem nesse processo a atividade agrícola? Qual é a importância do trabalho cotidiano na produção agrícola, fortemente centrada no autoconsumo familiar, com renda instável e indivisível (trabalho familiar e renda de todo o grupo), adquirida com as vendas esporádicas da produção animal e vegetal? Há uma relação entre atividade agrícola e a permanência de famílias em suas localidades de origem? E quais são, entre as famílias rurais mais pobres do país, os efeitos de programas como o Bolsa Família (PBF), um programa brasileiro de transferência direta de renda? Procurando responder essas questões, o texto, a partir de um estudo de caso no Estado de Minas Gerais, discorrerá sobre políticas públicas (federais, estaduais e municipais) de combate à pobreza rural, sua dinâmica, implicações socioculturais e econômicas, assim como suas especificidades e seus impactos nos meios, modos, ritmos e condições de vida das populações rurais no âmbito regional. Tendo por base a produção de dados por meio de metodologia qualitativa (entrevistas e história de vida), serão apresentados os processos sociais, econômicos e culturais de famílias rurais mineiras que não possuem um rendimento fixo e que recorrem, sobretudo, a um conjunto de políticas públicas como tentativa de melhoria de vida. O texto demonstrará como um conjunto de políticas públicas interage no espaço e repercute nos modos e nas condições de vida dessas famílias (principalmente entre os grupos familiares mais pobres). 28 O trabalho, enfim, procurará demonstrar como múltiplas fontes de rendimentos no espaço intradoméstico – agrícolas, não agrícolas, e, sobretudo os benefícios sociais, aposentadoria rural, pensões e Bolsa Família – interferem na possibilidade (ou não) da saída desses grupos familiares da condição de pobreza (material e econômica), bem como nos projetos de vida dessas famílias, com reflexo nas dinâmicas de mobilidade espacial, condicionando a permanência das pessoas em sua região de origem, onde a migração é um fenômeno cultural. 29 1. GEOGRAFIA HUMANA: OS TEMAS E OS PROBLEMAS DE UMA TESE Eu me chamo de excluído como alguém me chamou Mas pode me chamar do que quiser seu doutor Eu não tenho nome Eu não tenho identidade Eu não tenho nem certeza se eu sou gente de verdade Eu não tenho nada Mas gostaria de ter Aproveita seu doutor e dá um trocado pra eu comer... Eu to com fome Tenho que me alimentar Eu posso não ter nome, mas o estômago tá lá... Eu sou o resto do mundo Eu não sou ninguém Eu não sou nada Eu não sou gente Eu sou o resto do mundo Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo Eu sou o resto Eu não sou ninguém... É o resumo do meu ser Eu sou filho da miséria e o meu castigo é viver Eu vejo gente nascendo com a vida ganha e eu não tenho uma chance Deus, me diga por quê? Eu sei que a maioria do Brasil é pobre Mas eu não chego a ser pobre eu sou podre! Um fracassado Mas não fui eu que fracassei Porque eu não pude tentar Então que culpa eu terei.... Eu não sou registrado Eu não sou batizado Eu não sou civilizado Eu não sou filho do Senhor Eu não sou computador Eu não sou consultado Eu não sou vacinado Contribuinte eu não sou Eu não sou comemorado Eu não sou considerado Eu não sou empregado Eu não sou consumidor Eu não sou amado Eu não sou respeitado Eu não sou perdoado Mas também sou pecador Eu não sou representado por ninguém... Eu não sou apresentado pra ninguém Eu não sou convidado de ninguém E eu não posso ser visitado por ninguém Além da minha triste sobrevivência eu tento entender a razão da minha existência Por que que eu nasci? Por que eu to aqui? Um penetra no inferno sem lugar pra fugir... O Resto Do Mundo, Gabriel O Pensador (adaptado) 30 Este capítulo tratará principalmente dos procedimentos metodológicos acionados durante a pesquisa, que tem enfoque nas fontes orais como meio para produção de evidências e de uma experiência de pesquisa no Vale do Jequitinhonha. O texto está organizado em quatro grandes partes. A primeira abrange uma discussão sobre a Geografia e as temáticas de cunho social. Na segunda, são apresentadas a trajetória social do investigador e a análise de como essa trajetória pode influenciar no desenvolvimento de pesquisas tratadas pelo campo acadêmico. As metodologias utilizadas na investigação são o tema da terceira parte, e a última traz a descrição da experiência de campo realizada no Vale do Jequitinhonha (MG). Em uma tese que trata da reprodução social de famílias pobres, as leituras sobre determinada realidade trazem à baila temáticas relativas a grupos sociais desfavorecidos, tais como pobreza, exclusões, vulnerabilidades sociais, mobilidade precária de trabalhadores e precariedade das condições sociais de existência de determinado estrato da sociedade brasileira, conferindo à pesquisa um caráter social. Essas temáticas, como a pobreza e as migrações, por exemplo, estão e permanecem na ordem do dia, presentes tanto na paisagem Social dos países quanto nas agendas de pesquisas no campo acadêmico, por pelo menos dois fatores basilares: I- pela generalidade desses fenômenos sociais: ainda que tenham características específicas e expressões distintas, apresentam-se nas paisagens sociais de todos os países, em especial e de forma mais profunda e dramática, nos subdesenvolvidos (SANTOS, 2009; DAVIS, 2006; LAVINAS, 2014); II- por se tratar de problemas que permanecem nesses distintos países, inclusive, entre os ricos (GONZÁLEZ E ESPARCIA, 1992). No contexto mundial, sobretudo no campo acadêmico europeu, e de forma ainda mais específica, na França, estudos de caráter social sempre foram tendência da Geografia Social, fragmento da Geografia Humana que estabelece um diálogo com as ciências sociais, notadamente a Sociologia, tendo como objeto o espaço social 5 e, em especial, as questões 5 Rochefort (1983, p.13) na década de 1980 definiu que: « [...] ―Ce qui est premier en géographie sociale, c'est la société et non l'espace. Ce sont les mécanismes, les processus sociaux et sociétaux, le jeu des acteurs publics ou privés de toutes espèces. Si l'on ne cherche pas la société au départ, on ne la trouve pas à l'arrivée [...]. Le moteur, la clé, c'est la société. L'espace est toujours second et si l'on commence par lui, on risque de ne pas comprendre. Mais il est bien évident que l'espace à son tour rend bien compte de tout un jeu de variations qui renforcent ou atténuent les décalages et les tensions entre société locale et société globale.‖ / O ponto principal na Geografia Social é a sociedade e não o espaço. Trata-se, sobretudo da análise dos mecanismos, dos processos sociais e societais, do jogo de atores públicos e privados de todos os tipos. Se não pesquisarmos a sociedade como ponto de partida, nos a encontraremos como ponto de chegada [...] O motor, a chave, é a sociedade. O espaço é sempre secundário e se começarmos por ele, nos arriscamos de não compreender o fenômeno. Porém, é evidente que o espaço, em seus termos, está imbricado em um jogo de variações que reforçam ou atenuam os conflitos e as tensões entre a sociedade local e a sociedade global (tradução minha). Já no século XXI, Pain et alii (2001, p.1), em uma coletânea mais recente sobre a Geografia Social, iriam definir que o objeto de parte da 31 sociais 6 , entre elas, as assimetrias expressas nas sociedades, as desigualdades, a pobreza, as exclusões sociais etc. Apesar da divulgação de alguns trabalhos dispersos, elaborados nos períodos anteriores aos anos 1960 por geógrafos norte-americanos influenciados pelos sociólogos da Escola Ecológica de Chicago, foram as mudanças sociais e econômicas do final dessa década que afirmaram a temática social no âmbito da Geografia. Nesse contexto, com inspiração marxista, uma perspectiva da Geografia, denominada Geografia Radical, Crítica ou Marxista, passou a entender a organização espacial como um produto das relações sociais de produção que, juntamente com as estruturas de classe, configurariam os dois fenômenos nevrálgicos para o entendimento desse processo. Nesse sentido, a Geografia Social desenvolve-se em um contexto de alterações sociais, econômicas, políticas e culturais ocorridas temporalmente na transição entre os anos 1960 e 1970, com uma forte centralidade de estudos voltados às assimetrias territoriais. Ou seja, ―após meados da década de 80 assiste‐se a uma recuperação da centralidade das temáticas sociais em Geografia Humana muito associada à emergência de novas correntes como o realismo, ou os projetos das Geografias Pós‐Modernas‖ (MALHEIROS, 1995, p. 116). Malheiros chama a atenção para a necessidade de diversificar os sujeitos a serem pesquisados na Geografia Humana e afirma que os pesquisadores sociais (e os geógrafos) passaram a assumir uma posição crítica em relação às grandes tipologias usadas para classificar as sociedades e os grupos sociais, o que acabou exigindo um debate e permanente ajustamento referente à escala de preocupação, passando a incorporar com maior frequência estudos de pequenos grupos diversificados, gestados a partir do próprio funcionamento do sistema econômico contemporâneo (MALHEIROS, 1995). De um ponto de vista da empiria, as preocupações sociais da Geografia Radical centravam-se, não exclusiva, mas essencialmente, em dois pontos: I- nos processos de formação do espaço urbano, com enfoque nos conflitos existentes no meio urbano e na segregação socioespacial; II- nas desigualdades do desenvolvimento na escala mundial, tratando, sobretudo, das temáticas relativas às relações de dependência e subdesenvolvimento. Após relevante presença de geógrafos nos debates relativos à temática social, ocorre, durante os anos 1970 e 1980, um arrefecimento das questões relacionadas à justiça social na produção geográfica (MALHEIROS, 1995). Esse processo se deu na medida em que a Geografia são os modos como as relações sociais, as identidades sociais e as desigualdades sociais são produzidas, bem como sua variação espacial e o papel do espaço em sua produção (grifo nosso). 6 A Geografia Social, ao tratar de suas questões, considera que os pesquisadores têm um papel social a desempenhar com suas pesquisas. Nessa perspectiva, os geógrafos sociais também são concebidos como geógrafos militantes, posição que muitos assumem de fato. 32 Geografia Marxista, ao interpretar as desigualdades socioterritoriais, considerando a produção e as estruturas de classes como elementos estruturais basilares, Viu-se impossibilitada de incorporar outras dimensões da injustiça social (designadamente o patriarcado e o racismo) que, apesar de relacionadas com as estruturas de classes, não decorrem, necessariamente, dela. Por outro lado, a crise estrutural [...] veio reforçar o domínio da temática econômica em Geografia, desenvolvendo-se os estudos relativos às implicações territoriais dos processos de reestruturação econômica, bem como as análises urbanas e regionais centradas nos elementos de competitividade econômica. (MALHEIROS, 1995, p. 116) Além dos fatores citados por Malheiros (1995), o declínio do Welfare State e a ampliação de políticas de caráter liberalista como, por exemplo, o Thatcherismo, que apregoavam a redução do intervencionismo público e do papel do Estado na criação de um ambiente favorável ao funcionamento dos agentes econômicos privados e dos mecanismos de mercado, conduziram a um recuo dos estudos que tratavam de experiências empíricas relacionadas às questões sociais. Em período seguinte, porém, há no âmbito da Geografia Humana uma maior presença das temáticas sociais, muito associadas às ditas ―geografias pós-modernas‖, nas quais se incluem, por exemplo, os estudos de Soja (1989), que trouxe à Geografia a relevância do debate relacionado às questões sociais gerais e, em particular, aos grupos sociais desfavorecidos, marginalizados e oprimidos. Entre estes, a mão de obra explorada como parte do capitalismo, populações tiranizadas e mulheres excluídas, três grupos que exemplificam a tríade classe-raça-gênero que configurou parte central na discussão da Geografia Social. Ganham força, então, nas Ciências Sociais, e também na Geografia, temas relacionados ao racismo e ao patriarcado, para pensar as relações entre os grupos sociais na sociedade capitalista, enfocando, além das posições nas estruturas de classe, outros elementos, tais como sexo, raça/cor e idade. Se já havia exclusões e discriminações relativas a sexo e raça, entendia-se que o desenvolvimento do modo de produção capitalista reforçava posições de subalternidade e assimetrias sociais em relação a mulheres e pessoas não brancas. Como exemplo, se no âmbito do grupo familiar, o trabalho feminino e, de forma mais específica, o trabalho doméstico, possibilitava as condições de reprodução social que, por sua vez, permitia o funcionamento da esfera da produção que era considerado um domínio exclusivamente masculino e par excellence com maior valoração positiva, a mulher e o trabalho doméstico permaneciam desvalorizados ou marginalizados. Trata-se aqui de uma das 33 discussões centrais da Geografia Social: a que envolve gênero, trabalho e desvalorização social 7 . Diante dessa breve revisão sobre as discussões relacionadas à Geografia Social, é importante destacar que, ao pretender analisar e compreender as estratégias de reprodução social de famílias rurais pobres economicamente, este estudo trata de questões relativas a grupos sociais desfavorecidos. Diferentemente dos estudos de Geografia do gênero, que não raro são conduzidos por mulheres ou outros grupos marginalizados ou excluídos, tais como os negros, os homossexuais etc., os que tratam de grupos sociais desfavorecidos, como as famílias rurais do Vale do Jequitinhonha, são desenvolvidos, em geral pelo outro, ou por alguém externo à sua condição econômica e social. Considerando que fazer pesquisa é um ato político, cabe ao investigador ―de fora‖ tentar entender as condições, os modos e meios de vida de famílias cuja existência é permeada por grande invisibilidade ou quando vista, por exemplo, as define como pobres ou migrantes do trabalho que sintetizam uma determinada condição e posições dentro da estrutura social. Todavia, além da afirmação de uma determinada condição social e posicioná-las na estrutura social, é preciso entender as dinâmicas e os processos de formação socioespacial que as empurram para essa situação ou as fazem nela permanecer. Dessa forma, na análise do processo de formação socioespacial das cidades, com os problemas nelas presentes, como a exclusão social, a gentrificação, o desemprego, a marginalização, a pobreza urbana etc., deve-se dar visibilidade também aos grupos marginalizados no mundo rural, ao ambiente social em que vivem e aos processos de que participam. Se há, no mundo urbano, distintos grupos sociais desfavorecidos e, entre estes, um subconjunto de parcelas marginalizadas, entende-se ser igualmente importante identificar os marginalizados do campo. Antes, porém, cabe esclarecer o que se entende por marginalização. A marginalização pressupõe um desvio em relação aos comportamentos-padrão, estabelecidos pelo grupo-dominante (homens de meia-idade, brancos e da classe média ou média alta) e que podem ser definidos enquanto um conjunto de normas e valores que regulam os sistemas econômico, social, político-administrativo. Enquanto a maioria das mulheres, dos idosos e, em larga medida, dos membros das minorias étnicas tem uma atuação funcional conforme os papéis sociais que lhes são reservados pela sociedade contemporânea, existem diversos outros grupos que ocupam uma posição claramente marginal face ao conjunto de normas e valores que constituem os padrões sociais de referência, assumindo-se que podem pôr em causa, 7 No campo acadêmico brasileiro, no caso especifico da Geografia Humana, trata-se de temas de pesquisa da Geografia do Gênero. 34 ou mesmo ameaçar, certas dimensões da ordem social vigente. (MALHEIROS, 1995, p.119) Como um fenômeno relativo, a marginalização abarca um conjunto de grupos sociais, que embora variados, podem ser identificados por alguns fatores: I - Grupos marginalizados pela condição econômica: compostos por aqueles, por exemplo, que não conseguem satisfazer suas necessidades básicas mínimas, as vítimas da fome, uma das mais expressivas e elementares formas de pobreza. Os desempregados urbanos e as famílias de agricultores descapitalizados podem compor esses grupos que conformam indivíduos e famílias vulneráveis à insegurança alimentar; II- Grupos marginalizados por uma condição social: compostos por pessoas que não correspondem ao padrão hegemônico dominante, tais como os migrantes pobres, os analfabetos (sem educação formal), os negros, as mulheres, os homossexuais, entre outros; III- Grupos marcados por atividades econômicas desvalorizadas: como, por exemplo, os pequenos agricultores pobres, marginalizados social e economicamente. Não raro, há pessoas que reúnem mais de uma dessas condições, o que as coloca numa posição de extrema marginalidade, como por exemplo, mulheres agricultoras, negras, analfabetas e inseridas em famílias monoparentais. Isso significa que no interior de grupos desfavorecidos, alguns indivíduos agregam um conjunto de elementos em níveis distintos, como aqueles que além de ter uma determinada condição social e econômica, seguem religiões de matriz afro, fator que amplia o grau de marginalidade dentro do seu próprio grupo social. Grupo social este que, por sua vez, carrega outros elementos de marginalização. Essa tipologia de grupos marginalizados, sob as óticas econômica e social e das atividades econômicas, representa divisões que têm proposição heurística extremamente sintética. A realidade social, no entanto, é consideravelmente mais complexa do que podem demonstrar os instrumentais de análise e explicação que temos à nossa disposição. Se focarmos, por exemplo, os estudos que envolvem gênero, sexualidade, idade, condição física etc., surgirá, nas geografias do cotidiano, um conjunto diversificado de grupos sociais excluídos baseados na condição de gênero (sobretudo as mulheres e transexuais), na orientação sexual (sobretudo os homossexuais), na idade (destaque para idosos e crianças), numa determinada condição social marginal (pobres rurais e urbanos, migrantes pobres), na cor da pele (negros, e entre eles, os quilombolas, os indígenas etc.), bem como na religião e na cultura. 35 Dentre os grupos excluídos e marginalizados, destacam-se os jovens negros e pobres, os transexuais e os travestis, grupos que até mesmo inconscientemente participam de processos de categorização que também são construções sociais de exclusão e de poder de uma sociedade heteronormativa, as quais incluem e excluem pessoas de uma vida digna em sociedade, por carregarem em sua corporeidade características que não escolheram, mas que limitam as oportunidades empurram-nas para a marginalidade e a inviabilidade social, podendo, assim, definir drasticamente até mesmo o fim de suas existências 8 . Se há distintas categorias marginalizadas, entende-se, portanto, ser preciso distinguir desfavorecidos e marginalizados. Uma agricultora pobre, negra, mãe solteira e seguidora de religião de matriz afro agrega em si um conjunto de desvantagens que a marginaliza. Mas, já mulheres jovens, brancas, de classe média, residentes no Vale do Jequitinhonha, embora carreguem em sua corporeidade uma condição de mulher, que as desfavorece, têm bastante reduzido seu processo de marginalização. Nesse contexto, a marginalização é uma classificação relativa, uma vez que depende principalmente das normas e dos valores da sociedade em que o indivíduo está inserido. Os marginalizados são fruto de uma construção social desigual de poder baseado em relações sociais, às quais: Os geógrafos sociais têm dedicado a sua atenção a classe, gênero, sexualidade, raça, idade e deficiência – estão em torno do poder, opressão e distribuição de recursos na sociedade. A geografia social está também preocupada com as identidades, que estão sempre associadas a modos de vida, e por isso não são apenas relacionadas com ideologias, mas também poder e recursos (Pain et alii, 2001, p. 4). 9 Em uma sociedade desigual, como a brasileira é importante pontuar que há outras pobrezas para além dos rendimentos, considerando que em maior ou menor grau pessoas e grupos são excluídos considerando o gênero, raça e etnias. Tratar dos pobres (rurais e 8 No ano de 2013, de um total de 8.153 adolescentes brasileiros mortos, com idade entre 16 e 17 anos, quase a metade foi vítima de homicídio (3.749 - 46%), ou seja, uma média de 10,3 adolescentes assassinados por dia no Brasil. Geralmente são jovens, negros e moradores das periferias das grandes cidades. No ano de 2014, 61% das mortes violentas no Brasil foram de negros. Os negros e pardos correspondem a 61% da população carcerária nacional. Em 2012, a população carcerária nacional era predominantemente jovem (266.356), num universo de 480.393 pessoas, e com largo predomínio de negros (295.242). Em 2013, o Brasil liderou o ranking entre os países onde mais se matou a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros). Naquele ano, a homotransfobia foi à causa da morte de 312 representantes desses grupos e, entre 2008 e 2013, foram assassinados 486 transexuais no Brasil. Fonte: Mapa do encarceramento (2015); Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2014), Grupo Gay da Bahia (GGB, 2014); Internacional Transgender Europe (2015). 9 Tradução livre realizada por Renato Ferreira do Centro de Estudos de Ciências Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC). 36 urbanos), dos migrantes pobres e de outros grupos sociais desfavorecidos é dar visibilidade aos excluídos da sociedade. Obviamente, nos meios urbanos, sobretudo nas grandes cidades, os marginalizados são mais facilmente identificados, devido, entre outros fatores, às relações sociais mais formais, tendendo a serem mais frágeis, à forte segregação socioespacial, com significativos níveis de precarização da vida, ao desemprego, às relações flexíveis de trabalho, à menor coesão social, com sociedades mais diversificadas, bem como à forte mobilidade social e ocupacional das pessoas. No entanto, há de se entender que as populações rurais também estão sujeitas a distintos tipos de marginalização e outras expressões que empobrecem a vida, tais como a vulnerabilidade e a exclusão social. Diferente de outros fenômenos sociais, a exclusão social não está necessariamente ligada a fatores econômicos. Pode-se viver em condições materiais confortáveis e encontrar-se, ao mesmo tempo, consideravelmente excluído da vida em comunidade ou incapacitado de frequentar escolas, por exemplo. O entendimento da reprodução social de famílias pobres passa, pelo menos, por esses três fenômenos: a marginalização, a vulnerabilidade e a exclusão social. Eles auxiliam, em grande medida, a entender a posição dos indivíduos ou grupos na estrutura social. Ainda que a marginalização esteja ligada a fatores que o indivíduo não escolhe, como, por exemplo, a cor e o gênero, ela pode ser também produto de processos que excluem os mais pobres. Nesse sentido, torna-se foco do estudo, entender: I- o processo de formação socioespacial e a formação de diversos grupos marginalizados; II- os reflexos das desigualdades sociais dentro da estrutura da sociedade; III- a definição de estratégias de reprodução social em um contexto de marginalização, exclusão e vulnerabilidade social, considerando os lugares de vida e os destinos, por exemplo, dos migrantes do trabalho; IV- a forma como as famílias pobres organizam a vida social do trabalho familiar no lugar de vida e como se apoiam na mobilidade espacial como um projeto de reprodução do grupo familiar; V- os meios, modos e condições de vida das pessoas do lugar; VI- as relações entre Estado e sociedade num contexto de políticas sociais que são acessadas por famílias marginalizadas, excluídas e vulneráveis. O desafio decorrente desses seis pontos, no entanto, encontra-se no fato de que, no domínio teórico e metodológico, a opção é por apoiar a análise dos fenômenos numa abordagem amplamente qualitativa para o entendimento das estratégias de reprodução social das famílias rurais pobres. 37 De forma geral, os estudos sobre reprodução social preocupam-se com as formas pelas quais se dá a continuidade de estruturas, práticas e instituições sociais ( SACCO DOS ANJOS, 2003; BRUMER, 2007). Reprodução social pode ser entendida, então, como um processo pelo qual uma determinada sociedade, mediante diferentes mecanismos, reproduz a sua própria estrutura. Para alguns autores, como por exemplo, Luxemburg (2003), a reprodução abarca o plano da sociedade como um todo e seu ponto essencial estaria no ciclo de produção e consumo. Na perspectiva marxista, a reprodução remete à continuidade de produção de bens de consumo em um longo tempo (temporalidade da reprodução), que é modificada historicamente tendo como base, por um lado, uma articulação entre tecnologia, matéria- prima e trabalho e, por outro, as formas sociais de produção, incluindo a organização social, ou seja, a relação do homem com a natureza e dos homens entre si (LUXEMBURG, 2003, p. 4). Há autores que entendem a reprodução como processo social que abrange três formas: I- a humana ou biológica; II- a da força de trabalho; III- a ―das condições de produção social na sua totalidade‖ (EDHOLM; HARRIS; YOUNG, 1977, p. 105). Numa abordagem próxima à de Edholm et alii (1977), outros pesquisadores destacam determinadas dimensões da reprodução social, por exemplo, a reprodução biológica que, no âmbito familiar, refere-se ao nascimento de filhos, no plano social, aos aspectos sociodemográficos da fecundidade e à reprodução cotidiana, como por exemplo a dedicação de diferentes elementos da população ao trabalho e à produção para a subsistência e a reprodução social (JELIN, 1995). Bourdieu contribui para o debate, quando foca seu estudo nos sistemas de estratégias de reprodução social por meio das quais diferentes categorias reproduzem sua posição no espaço social a partir das socializações que geram determinadas e distintas posições (BOURDIEU, 1994, p.3). Diferentemente da perspectiva de Edholm, Harris e Young, e também de Jelin, as estratégias de reprodução social de Bourdieu contemplam não só a reprodução biológica/fecundidade 10 , mas incluem as relacionadas ao matrimônio e à educação, as econômicas (orientadas para aumentar ou conservar os capitais disponíveis), as simbólicas e de sucessão (BOURDIEU, 1994), todas produzidas nas/pelas famílias. Articuladas de forma sistêmica, essas estratégias são empregadas conjuntamente e em diferentes momentos, por meio de práticas que objetivam a reprodução social, por exemplo, 10 Indicadores de natalidade/fecundidade, mortalidade e as migrações são importantes para retratar uma determinada dinâmica populacional. Indo além, pode até mesmo ser utilizado como indicador de pobreza de uma sociedade, como exemplo, quando há altos índices de mortalidade. 38 as relativas aos mercados econômico, matrimonial, de trabalho e regras jurídicas, enfim, as possibilidades de ganhos que esses diferentes mercados possam oferecer às famílias e/ou aos indivíduos (BOURDIEU, 1994). Elas são implementadas de acordo com o estado dos mecanismos socialmente objetivados de reprodução social, tais como os mercados econômico, escolar, matrimonial, de trabalho e as regras jurídicas e as possibilidades de ganhos que esses distintos mercados podem oferecer as famílias ou indivíduos. Essa concepção pode ser acionada para entender as diferentes formas pelas quais os membros de famílias rurais, inseridas em contexto de parcos recursos monetários, precárias condições materiais de existência e limitado campo de possibilidades de inserções laborais, reproduzem-se socialmente e dão continuidade a sua vida e as atividades sociais. Neste ponto, é possível trazer à baila duas questões importantes para analisar a reprodução social: a reprodução cotidiana (ou no curto prazo) e/ou a geracional (ou no longo prazo). Na perspectiva da reprodução cotidiana de famílias rurais que se dedicam às atividades agrícolas, pode-se tratar das formas como elas se reproduzem no ciclo anual, como uma prática espaço-temporal, efetiva nas relações sociedade-natureza, combinando trabalho familiar, um conjunto de relações sociais dos homens entre si e com a natureza, por meio de mediações materiais (técnicas, tecnologias, instrumentos etc.) e imateriais (conhecimentos, saberes etc.), para atender o consumo familiar, para as trocas de alimentos entre vizinhos e parentes e a venda de excedentes nas feiras locais. É uma visão que envolve uma dinâmica econômica da unidade familiar que a entende via trabalho e consumo. A reprodução cotidiana de famílias agrícolas no curto prazo pode tratar das questões relativas a formas e meios de produção, tais como apropriações (concreta e simbolicamente) do espaço geográfico e uso de determinadas tecnologias (na unidade de produção), bem como sua organização na divisão do trabalho entre os membros da família e as relações sociais estabelecidas no espaço intradoméstico ou com os membros da comunidade, outros agentes sociais e instituições. Entretanto, a identidade entre unidade familiar e unidade de produção pode ser questionada a partir da dimensão dos laços familiares e da própria unidade familiar nas distintas sociedades. Nos espaços rurais, por exemplo, observa-se uma queda expressiva da endogamia, a dificuldade de inserção dos filhos ou da permanência nas atividades agrícolas e na propriedade como local de produção (agrícola) ou de morada, e até mesmo uma ampliação das atividades não agrícolas no rol das ocupações dos filhos de agricultores, principalmente a partir da queda generalizada das rendas agrícolas (BRUN, 1989; SCHNEIDER, 2003). 39 Pesquisas apontam o enfraquecimento ou até mesmo a perda de centralidade das atividades agrícolas, seja em experiências no Brasil (SACCO DOS ANJOS, 1995; SCHNEIDER, 2003, 2009) ou internacionais (DELORD E LACOMBE, 1990; CARNEIRO, 1998). Nesse sentido, deve-se considerar que a reprodução social da família (de parentesco ou consideração) é influenciada por fatores internos a ela (número de membros, presença de jovens, terras disponíveis para o trabalho familiar etc.) e pelo ambiente social e econômico em que está inserida, inclusive com a possibilidade de haver ou não empregos em atividades não agrícolas. Nessa direção, a permanência da lógica que funde a unidade familiar com a unidade profissional (atividade econômica) e a restrita diversificação das atividades agrícolas pode explicar o pouco dinamismo nos mercados de trabalho locais. Nesse sentido, deve-se ter clareza que em determinadas experiências locais no Brasil há ainda um forte peso das atividades agrícolas dentro das estratégias de reprodução social, seja por opção ou pela impossibilidade de diversificação das fontes de renda e ingresso dos membros existentes nas famílias e disponíveis para o trabalho (intra ou extra unidade de produção). Partindo de uma análise da família como um grupo de indivíduos que coabitam um determinado lar, não necessariamente uma unidade em si ou para si, o desafio é tentar entender como, a partir da interdependência pessoal, conseguem integrar-se num projeto comum (ou não) que mantém a vida em grupo. Por exemplo, entender até que ponto a migração de trabalhadores precários (ou não) pode ter significados distintos se praticada pelos filhos jovens, pela esposa ou pelo agricultor considerado o chefe da unidade produtiva, e em que medida os recursos advindos da migração dos distintos membros do grupo familiar são utilizados para satisfazer as necessidades individuais ou do grupo. Entende-se por família um determinado conjunto de parentes, tipicamente constituído por um núcleo familiar, ainda que sejam possíveis outras formações e grupos domésticos, como uma unidade residencial, de consumo e, às vezes, de trabalho, que compartilham uma casa e trabalham conjuntamente (ALMEIDA, 1986). Os estudos da reprodução cotidiana levam em consideração as formas de utilização da terra, a distribuição do trabalho da família (de forma consciente ou não) e os usos dos recursos naturais, bem como, de forma concomitante, outros elementos atuantes no cotidiano das famílias, como por exemplo, a presença do Estado e as políticas sociais, estes, até certo ponto novos nas dinâmicas das famílias e que podem ser incorporados às estratégias familiares, como exemplo, as rendas das transferências diretas, do tipo Bolsa Família. Em uma análise da reprodução em longo prazo, pode-se considerar como a unidade familiar se perpetua como tal (as continuidades), mas também as mudanças (e as rupturas), 40 contemplando, por exemplo, as lógicas de parentesco, caminho pelo qual se estabelecem as estratégias de casamentos e heranças, o que remete a análises dos processos sucessórios sobre a herança da terra. De forma mais ampla, pode-se analisar as regras ou estratégias definidas no âmbito da família que se apoiam na migração e suas distintas tipologias, baseadas nas diferenças entre os sexos e na posição dos membros na hierarquia familiar. De certa forma, a reprodução social está relacionada às relações sociais que incluem desde elementos mais palpáveis, como as condições materiais de existência e modos de produção, mas também elementos espirituais e formas distintas de consciência social, mediante a qual o indivíduo tem sua posição na vida social. Aqui, a abordagem da reprodução social centra-se em família inseridas em contextos de pobreza econômica e até mesmo de vulnerabilidade social e limitado campo de possibilidades que limitam consideravelmente os projetos de vida. Velho (2003, p. 101) compreende a noção de "Projeto" como uma ―conduta organizada para atingir finalidades específicas‖, tornando-se uma antecipação da futura trajetória e biografia do sujeito. Na definição do seu projeto, esse sujeito utiliza-se da dimensão da memória, (Velho, 2003), considerando não apenas as ações do presente, como também as significações impressas nos acontecimentos pretéritos. A memória é fragmentada, sendo que o sentido que o indivíduo confere a si mesmo depende consideravelmente da organização dos seus fragmentos no decorrer de sua trajetória. No passado, descontínuo, a memória é também parte da construção de um projeto que é uma construção posterior, partindo dos próprios significados que o sujeito confere aos acontecimentos. Trata-se de um processo não linear, muito menos contínuo ou homogêneo, portanto, que deve ser entendido em sua multiplicidade. O indivíduo define seu projeto influenciado por um campo de possibilidades a qual está inserido. Campo de possibilidades trata do que é dado com as alternativas construídas do processo sócio-histórico e com o potencial interpretativo do mundo simbólico da cultura. O projeto no nível individual lida com a performance, as explorações, o desempenho e as opções, ancoradas a avaliações e definições da realidade. Estas, por sua vez, nos termos de Schutz, são resultado de complexos processos de negociação e construção que se desenvolvem com e constituem toda a vida social, inextricavelmente vinculados aos códigos culturais e aos processos históricos de longue durée. (VELHO, 2003, p.28). Nessa perspectiva, o campo de possibilidade é, portanto, um conjunto de alternativas possíveis e disponíveis ao indivíduo a partir dos processos sócio históricos mais gerais que também passam pelo potencial interpretativo da sociedade. É algo que é dado, mas simultaneamente também passa pelas ressignificações em distintos contextos, mostrando o 41 potencial de metamorfose do indivíduo. O campo de possibilidade pode possibilitar um entendimento sobre as formas como os projetos movimentam-se no decurso de uma trajetória de vida, de forma coerente ou não. Pelo seu ―potencial de metamorfose‖ (VELHO, 2003), o indivíduo pode no decorrer de sua trajetória de vida, alterar seus projetos, negociando sua realidade, comtemplada por outros projetos, individuais ou de grupos, neste último caso, projetos coletivos, englobando traços de família, grupos, instituições, passíveis de distintas interpretações individuais em decorrência as particularidades de status, trajetórias e, no contexto da família, de gênero e geração. Os projetos coletivos são heterogêneos. Ser um projeto coletivo não quer dizer que são igualmente compartilhados por todos, uma vez que, os projetos são reinterpretados descontinuamente. ―Os projetos individuais sempre interagem com outros dentro de um campo de possibilidades. Não operam num vácuo, mas sim a partir de premissas e paradigmas culturais compartilhados por universos específicos‖ (VELHO, 2003, p. 46). Sendo assim, os projetos de vida são complexos, e os indivíduos, podem ser portadores de projetos distintos e até mesmo contraditórios. No âmbito da família, seus distintos membros podem ter diferentes projetos de vida, que pode apontar tanto para um projeto individual ou para um projeto coletivo, mesmo que desenvolvido por um membro constitutivo do grupo familiar. Trata-se também de um jogo dos papéis que o indivíduo traça para transformar seu próprio projeto, ao desenvolver seu potencial de metamorfose. A viabilidade de decisões do indivíduo depende de um jogo de interações com os projetos individuais e coletivos. O projeto é passível de transformação e é único ao sujeito: é parte característica de sua individualidade, uma orientação no caminho por entre os campos de possibilidades e, por fim, um instrumento base de negociação da realidade. Nessa direção, um dos elementos chaves na trajetória de vida é a metamorfose. As distintas sociedades, por menor que seja não será totalmente homogênea. A vida social está muito pautada na interação das diferenças, o que é ainda mais expressivo nas sociedades complexas, inclusive pela existência simultânea de um conjunto de identidades. Este fato implica em uma permanente adaptação dos atores, produzidos e produtores por ―escalas de valores e ideologias individualistas constitutivas da vida moderna‖ (VELHO, 2003, p.44). No plano do indivíduo, a participação nesses diferentes mundos desenvolve um potencial de metamorfose. Há um conjunto de perspectivas para o que se entende por identidade, por exemplo, na psicologia social, na Sociologia e até mesmo na Geografia. Na psicologia social há abordagens da identidade como uma categoria (CIAMPA, 1987). Na sociologia, alguns 42 autores trabalham na perspectiva da identidade do trabalho (DUBAR, 1997), e esta é uma das principais abordagens presente nos trabalhos acadêmicos. Zygmunt Bauman (2005), sociólogo polonês, focaliza o tema na perspectiva da modernidade liquida e, Stuart Hall (2006), sociólogo, mas inglês, estuda as identidades sociais na perspectiva da pós- modernidade. Para Ciampa (1987), identidade é uma metamorfose, ou seja, defende que a identidade está em permanente transformação, como o resultado provisório do encontro entre a história da pessoa, seu contexto histórico e social e seus projetos de vida. Essa identidade apresenta um caráter dinâmico e seu movimento pressupõe a existência de um personagem. Esse personagem, na perspectiva do autor, é a vivência pessoal envolto em um papel antecipadamente padronizado por uma cultura, elemento fundamental na construção de uma identidade, ou seja, como um construto social. Alguém representa a sua identidade pela reificação da sua atividade em um determinado personagem que, por fim, termina por ser independente da atividade. As distintas formas de se estruturar as personagens são resultantes dos diferentes modos de produção de identidade. Nesse sentido, identidade é a articulação entre igualdade e diferença. A identidade entendida como um movimento. Uma vez que a identidade é uma resposta aos ritos sociais, ela passa a ser entendida com algo como dado e não como se dando. A reposição, entretanto, sustenta o mesmo, a partir da ideia de que a identidade é atemporal e continua, ou seja, uma identidade-mito. A superação dessa identidade pressuposta é denominada como metamorfose Dubar (1997) entende a identidade como resultante de um processo de socialização, que é entendido como o cruzamento dos processos relacionais (o sujeito é analisado pelo outro dentro dos sistemas de ação nos quais os sujeitos estão inseridos) e biográficos (que trata da história, de suas habilidades e seus projetos). A identidade para si não se separa da identidade para o outro, pois ambas são correlatas: reconhece-se pelo olhar do outro. A relação entre as identidades é um problema, na medida em que não se pode viver diretamente a experiência do outro, que ocorre dentro dos processos de sociabilização. A identidade não é dada, mas uma construção e (re) construção, em contextos de maior ou menor durabilidade (DUBAR, 1997). Essa perspectiva aproxima-se consideravelmente de Ciampa (1987) quando o autor afirma que a identidade é construída na e pela atividade. Se a identidade ocorre pelo outro ou no contato com o outro, pode haver a recusa e a criação de outra identidade. Essa identificação ocorre a partir das categorias sociais disponíveis. Partindo da premissa que as identidades sociais são constituídas mediante processos e que é recorrente falar em formação identitárias (DUBAR, 1997), é entender também que 43 assumimos diversas identidades no decurso de nossas trajetórias de vida, dentro de um movimento de tensão continua entre atos de atribuição (que refere aos que os outros dizem ao sujeito o que ele é – identidades virtuais) e os atos de presença (como o sujeito se identifica mediante as atribuições recebidas e adere a essas identidades atribuídas). A atribuição é referente a identidade para o outro e a pertença indica a identidade para si, e o movimento de tensão, e o ponto (movimento de tensão) se dá na oposição entre as identidades que esperam que o sujeito assuma e seja e o desejo próprio do sujeito em assumir determinadas identidades. Logo, o que está no centro do jogo é o processo de formação identitárias, que corresponde a identificação ou não identidade referente as atribuições que são sempre dos outros, uma vez que esse processo só é viabilizado no âmbito da socialização. A constituição das formas identidades na perspectiva de Dubar (1997) ocorre no âmbito de dois processos: um relacional e o biográfico. A relacional diz respeito a identidade para com outro e possui um caráter mais objetivo e genérico. A biográfica referente propriamente à identidade para si, com caráter mais subjetivo e compreender as identidades herdades e identidades visadas. Os processos relacionais e biográficos concorrem para a produção das identidades. Uma identidade social é marcada por uma dualidade entre esses dois processos e a dialética entre o relacional e biográfico deve ser a cerne na análise sociológica da identidade. Bauman (2005) entende a identidade como autodeterminação. Nessa perspectiva a identidade é definida como o ―eu postulado‖. O elemento novo na perspectiva de Bauman se dá na medida em que as identidades comumente referem-se as comunidades. Comunidades que por sua vez define as identidades. Haveria dois tipos de comunidade: a de vida e destino, em contextos nas quais os membros vivem juntos em uma ligação absoluta e as comunidades de ideais, constituídas por uma variedade de princípios. A questão da identidade só é posta nas comunidades quando ocorre uma grande diferença de ideias e, como consequência, a necessidade de escolhas. A identidade passa a se revelar como uma invenção e não como uma descoberta, resultado de um esforço, um objetivo e uma construção. É um algo não concluso, precário, com uma tendência de construção de identidades individuais e não coletivas. O pensamento sobre ter uma identidade não acontece enquanto se acredita em um pertencimento, mas quando se pensa em uma atividade que deva ser permanentemente realizada. Essa perspectiva de identidade surge no âmbito da crise do pertencimento (BAU- MAN, 2005). Uma questão essencial da identidade é que ela é construída tendo como referencial os vínculos que conectam as pessoas umas com as outras e considerando esses vínculos como 44 sendo estáveis. O habitat da identidade é o campo de batalha, ou seja, apenas se apresenta no tumulto. É inevitável sua ambivalência: é uma luta contra a dissolução e a fragmentação, com a intencionalidade de devorar e uma forma de recusa para não ser devorado. Trata-se de uma batalha que ao mesmo tempo une e divide. As intenções de inclusão e segregação nesta batalha misturam-se e complementam-se (BAUMAN, 2005). Na perspectiva da modernidade liquida, Bauman afirma haver uma infinidade de iden- tidades à escolha, e outras a serem inventadas (BAUMAN, 2005). Nesse sentido, apenas é possível falar em construções identitárias como experimentação infindável. Com uma abordagem próxima a Bauman, mas tratando da identidade cultural, Hall (2006) define as identidades culturais como aspecto de nossas identidades culturais que são constituídos a partir de nosso pertencimento: cultural, étnica, racial, linguística, religiosas e, sobretudo, nacionais. Para o autor, as condições atuais da/na sociedade estão fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais‖. (BAUMAN, 2006, p. 9). Essas transformações tem alterado as identidades pessoas, interferindo na ideia de sujeito integrado que temos de nós próprios. É a perda de sentido de si estável que Hall (2006) denomina de duplo deslocamento ou descentração do sujeito. O duplo deslocamento que contribui para à descentração dos indivíduos tanto no seu lugar do/no mundo social e cultural quanto de si mesmo, resulta no que é denominado de ―crise de identidade‖. Em determinados contextos, a identidade apenas se torna uma questão mais relevante quando está em crise ou a mesma é iminente. Ou seja, quando há uma coisa que supostamente é tida como fixo, coerente e estável e está sendo direcionada para uma experiência de dúvida e incertezas. Como exemplo, em experiências locais no Brasil, trabalhadores rurais que acionam uma identidade de agricultor como parte de um processo de luta para permanecer na terra e até mesmo nas atividades agrícolas. Na perspectiva de Hall (2006) há 3 (três) perspectivas de identidade que se relacionam as visões do sujeito no decurso de sua história. Uma identidade do sujeito do iluminismo, que se expressa em