Poéticas da nuvem: pintura, paisagem e modos de ver na opacidade Maria Clarissa Spindola Mendes 2 3 UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ‘JULIO DE MESQUITA FILHO’ INSTITUTO DE ARTES Maria Clarissa Spindola Mendes Poéticas da nuvem: pintura, paisagem e modos de ver na opacidade Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Artes, sob orientação do Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo. Área de concentração: Artes Visuais Linha de pesquisa: Processos e procedimentos artísticos. São Paulo 2022 4 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. M538 p Mendes, Maria Clarissa Spindola, 1979- Poéticas da nuvem : pintura, paisagem e modos de ver na opacidade / Maria Clarissa Spindola Mendes. - São Paulo, 2022. 168 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Sergio Mauro Romagnolo Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Artes. 2. Arte moderna. 3. Pintura. 4. Pintura paisagística. I. Romagnolo, Sergio Mauro. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 759.981 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 5 Maria Clarissa Spindola Mendes Poéticas da nuvem: pintura, paisagem e modos de ver na opacidade Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Artes. BANCA EXAMINADORA ____________________________________ Prof. Dr. Sergio Mauro Romagnolo Instituto de Artes da Unesp - Orientador ____________________________________ Profa. Dra. Rita Luciana Berto Bredariolli Instituto de Artes da Unesp ____________________________________ Prof. Dr. Fernando Cidade Broggiato Sec. Cultura/Osasco 6 7 Aos que, na escuridão, cantam 8 Agradecimentos Ao Prof. Sergio Mauro Romagnolo, pela orientação e aprendizados; à Profa. Rita Bredariolli, ao Prof. José Spaniol e ao Prof. Fernando Broggiato, pelas preciosas considerações e contribuições. Aos professores e funcionários do Instituto de Artes; aos representantes discentes e colegas de pós-graduação e à todos que lutam e resistem em defesa da universidade pública. À todos os meus professores. Aos meus colegas de trabalho na Faculdade Rudolf Steiner, pelo constante incentivo e entusiasmo e à todos os meus alunos, que tanto me ensinam. Aos meus amigos – sem eles eu não seria quem sou. À minha família, por tudo. 9 “(...) Tu és a própria nuvem. O próprio vento. A própria chuva sem fim...” (Cecília Meireles) “Mas a conclusão da passagem joyciana – “fechemos os olhos para ver” – pode igualmente, e sem ser traída, penso, ser revirada como uma luva a fim de dar forma ao trabalho visual que deveria ser o nosso quando pousamos os olhos sobre o mar, sobre alguém que morre ou sobre uma obra de arte. Abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que não mais veremos (...). Sem dúvida, a experiência familiar do que vemos parece na maioria das vezes dar ensejo a um ter: ao ver alguma coisa, temos em geral a impressão de ganhar alguma coisa. Mas a modalidade do visível torna-se inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser – quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder. Tudo está aí. “ (Georges Didi-Huberman) 10 11 Resumo A dissertação Poéticas da nuvem: pintura, paisagem e modos de ver na opacidade tem como objetivo principal explorar processos e procedimentos da arte contemporânea. Busca investigar, a partir da produção plástica, as relações entre a pintura e as questões que envolvem a opacidade e a transparência dos fenômenos. A partir do texto Dentro do nevoeiro, de Guilherme Wisnik, observa como as imagens instáveis e mutantes da nebulosidade se tornaram marcantes na contemporaneidade, questionando a ideia de clareza e visibilidade total e evocando outras formas de ver o mundo. Com as ferramentas da pintura, assim como do estudo de obras de artistas e teóricos da arte, a pesquisa tem como referência central o desenvolvimento teórico de Hubert Damisch em Théorie du /nuage/ (Teoria da /nuvem/), em que a imagem da nuvem é analisada enquanto elemento que tanto contradiz e esconde quanto salvaguarda as lógicas visuais da perspectiva linear, desdobrando-se em múltiplos aspectos visuais ao longo dos últimos séculos. O trabalho plástico segue no aprofundamento dessas questões, considerando o fazer artístico como ato de reflexão e posicionamento frente aos fenômenos, e busca oferecer um conjunto de imagens que possa contribuir para o debate acadêmico e para as práticas artísticas na atualidade. Palavras-chave: arte contemporânea; pintura; imagem; nuvem; Hubert Damisch. 12 Resumé La thèse Poétique du nuage : peinture, paysage et manières de voir dans l'opacité a pour objectif principal d'explorer les processus et procédures de l'art contemporain. Elle cherche à interroger, du point de vue de la production plastique, la relation entre la peinture et les enjeux d'opacité et de transparence des phénomènes. À partir du texte Dentro do nevoeiro (Dans le brouillard), de Guilherme Wisnik, il observe comment les images instables et changeantes de la nébulosité sont devenues saisissantes à l'époque contemporaine, interrogeant l'idée de clarté et de visibilité totale et évoquant d'autres manières de voir le monde. Avec les outils de la peinture, ainsi que l'étude d'œuvres d'artistes et de théoriciens de l'art, la recherche a pour référence centrale le développement théorique d'Hubert Damisch dans Théorie du /nuage/, dans lequel l'image du nuage est analysé comme un élément qui à la fois contredit et cache et sauvegarde les logiques visuelles de la perspective linéaire, se déployant sous de multiples aspects visuels au cours des derniers siècles. Le travail plastique continue d'approfondir ces problématiques, considérant l'acte artistique comme un acte de réflexion et de positionnement face aux phénomènes, et cherche à proposer un ensemble d'images pouvant contribuer au débat académique et aux pratiques artistiques aujourd'hui. Mot-clés: art contemporain; peinture; image; nuage; Hubert Damisch. 13 Sumário . Introdução 12 . Cap. I - Poéticas do enevoamento: imagens da opacidade na arte moderna e contemporânea 28 - O problema da transparência 30 - O ofuscamento da modernidade 35 - A névoa da contemporaneidade 43 . Cap. II - A teoria da /nuvem/: o enevoamento na pintura a partir de Hubert Damisch 55 - A nuvem – índex 62 - A nuvem – teatro 67 - A nuvem – rasgo 74 - A nuvem metafísica 80 - A nuvem vazio 87 . Cap. III - A paisagem contemporânea e a nuvem: por outras formas de ver – ou– Um caderno de imagens e algumas considerações... 101 - Névoas e neblinas 103 - Fumaças e vapores 109 - Restos e vestígios 113 - Sonhos e esquecimentos 116 - Vazios e desaparecimentos 120 - Experimentos na opacidade 124 . Considerações finais 153 . Referências 157 14 15 Andrei Tarkóvski. Cão Dak, instantâneo, 1980. _ 16 17 Introdução É noite de maio, e um nevoeiro baixa sobre a cidade. Lembro dos mitos ameríndios. Como disse Cao, nevoeiro é um pouco a sensação do deserto, sem direção, sem saída, igual para todos os lados. Uma paisagem que leva para dentro, que leva ao espanto. Sertão. O que é estar com uma paisagem que não está? A mesma, mas diferente. Neste tempo sem tempo, que tem os sonhos, a espera e a escuta, como paisagens. O nevoeiro, o deserto e o tempo – lugares em que nos encontramos com aquilo que somos. (notas de uma artista em quarentena, 20201) As questões desenvolvidas nessa pesquisa se constituíram de forma orgânica a partir de múltiplas observações e práticas em torno da experiência da imagem. O interesse por elas se formou ao longos dos últimos anos, perpassando encontros, investigações poéticas, imaginações e reflexões, e definindo-se lentamente enquanto conceito. De um estado de estranheza e descoberta em torno de trabalhos artísticos e observações sensíveis, aos poucos surgiram contornos, recortes e definições. Da lembrança afetiva de um passeio às cegas em meio à neblina que cobria Paranapiacaba em uma tarde longínqua, de muitas descidas da Serra do Mar em meio ao nevoeiro, até o recente estado de isolamento social imposto por uma pandemia, desenvolveram-se práticas artísticas, registros e questionamentos. Tanto a imersão na prática de ateliê quanto a sistematização dos conceitos que a circundam vieram a compor a trama de processos e procedimentos que, em torno das questões relativas à nuvem, nebulosidade e opacidade dos fenômenos, delimitou a zona de interesse da pesquisa. Alguns indícios surgiram já na graduação em arquitetura, quando meu percurso se orientou predominantemente em direção às questões relativas à imagem e representação da paisagem. Tecidos esvoaçantes cobrindo os edifícios em construção, ruínas, contornos e cores da cidade foram registrados em vídeos, pinturas, fotografias e desenhos ao longo dos anos de formação. Alguns desses registros deram origem ao Trabalho Final de Graduação São Paulo, um percurso do olhar ao gesto, composto por processos plásticos em torno das paisagens urbanas de São Paulo. 1 Escritos realizados pela pesquisadora ao longo dos meses de isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19. 18 No prosseguimento da pesquisa junto às artes visuais, o trabalho se direcionou para o desenvolvimento dos processos e procedimentos de pintura e desenho, ampliando as pesquisas de cor, textura, materialidade e espacialidade da imagem. Em 2010, em uma série de pinturas explorando o uso do branco – e os brancos que o compõem: branco-neve, branco-cal, branco-nuvem, branco-névoa, branco-casa, branco- concha… – a imagem esbranquiçada se mostrou não apenas como nuance de cor, mas como possibilidade de propiciar o desaparecimento das coisas. O desaparecimento do mundo tragado pelo branco, a desagregação pelo excesso de luz ou de opacidade, os vestígios de coisas esquecidas no branco e as várias qualidades e texturas desta cor permearam meus processos pictóricos por um longo período. Restos de imagens e silhuetas em desaparecimento passaram a inspirar práticas artísticas, e a ideia da opacidade e do “nublamento” se fortaleceu como fonte de interesse e pesquisa. (fig. 1 e 2). Figura 1 – Brancos. Acrílica e óleo sobre tela, 120 x 150cm, 2012. Acervo da autora 19 Figura 2 – Mãos em branco. Acrílica e grafite sobre tela, 120 x 120cm, 2012. Acervo da autora 20 Uma referência neste sentido é a obra de Cy Twombly (fig. 3 e 4), em que os sinais gráficos, marcas e manchas sobre a tela muitas vezes operam de forma que a imagem parece estar ‘desaparecendo’ em meio ao branco da tela, como que engolidos pela superfície do suporte. Fig. 3 e 4 – Cy Twombly. Flowers (fotografia), 1980 (esq.) e Idos de março, 1962. / WikiArt. Outra menção a essa questão veio da observação da ação do tempo sobre as superfícies pictóricas, tal como pode ser visto em pinturas murais antigas. Em um detalhe dos afrescos de Masolino de Panicale (1383 – 1447) em Castiglione Olona, por exemplo, a deterioração das substâncias pelo tempo fez com que surgissem linhas e manchas brancas na imagem, levando-a a um outro estado de presença e efeito (fig. 5). Como inscrições geológicas, os desenhos surgidos escavam espaços e ‘esculpem’ a superfície, tornando-a tátil e ambígua. Pelo caminho da desintegração dá-se, na imagem, o surgimento de algo novo. Como se os desenhos fossem, tal como coloca Ítalo Calvino, as narrativas sobreviventes em meio ao caos que tudo desfaz2. 2 “Somente nos relatos de Marco Pólo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins.” (CALVINO, 2003, p.9) 21 Figura 5 – Masolino. Detalhe de pintura mural em Castiglione Olona, 1435. Que possibilidade é essa de transitar por entre as coisas que se desintegram, traçando novos percursos e narrativas? No panorama contemporâneo essa questão é evocada, por exemplo, no trabalho de Laura Vinci realizado para a exposição Arte/Cidade III em São Paulo (Sem título, 1997). Na instalação, realizada em um prédio em estado de deterioração, vê-se um monte de areia que escorre lentamente por um orifício no piso do edifício, formando um novo monte no andar de baixo (fig. 6). A obra, como uma grande ampulheta em escala arquitetônica, evoca a passagem do tempo e o destruir-se / reconstruir-se constantes a que a paisagem da cidade é submetida, como um processo constante de arruinamento e sobreposição de camadas. Além disto, também é a imagem de um estado de espelhamento, em que o espaço oco surgido na medida em que a areia escorre é reconstituído, inversamente, pelo novo monte de areia que se forma no andar inferior. Conforme cresce o vazio de cima, também cresce, de forma reflexa, o novo espaço preenchido, abaixo. Como se o desaparecimento também fosse, de certa forma, uma espécie de reaparecimento, em outro plano, de uma nova imagem. 22 Figura 6 – Laura Vinci. Sem título, 1997. / Site da artista. Com a continuidade do interesse pelo tema do desaparecimento, foram realizadas, em 2014, uma série de monotipias e colagens a partir de registros fotográficos da cidade. O “decalque” dessas imagens (realizado a partir da transposição, com solvente, das impressões digitais para o papel de arroz – fig. 7) provocava imprevisibilidades e surpresas, revelando “restos” da imagem original. No processo de colagem, surgiu também o encontro entre a leveza do papel e a densidade do papelão usado como suporte, evocando a polaridade transparência / opacidade (fig. 8 a 12). Ao longo deste trabalho, também surgiu um jogo entre as manchas das nuvens (muitas vezes misturadas às manchas do decalque) e o contorno preciso dos fios da rede elétrica urbana e das edificações. Ou seja, um contraste entre os aspectos borrados e enevoados e os espaços arquitetônicos, geométricos e precisos da paisagem. Esses aspectos passaram a complementar as questões anteriores, formando um conjunto de interesses em torno do enevoamento da imagem e seus efeitos na paisagem. 23 Figuras 8 a 12 – A entropia e a cidade. Monotipia, colagem e acrílica sobre papelão, entre 15x15cm e 35x40cm, 2014. Acervo da autora Figura 7 – A entropia e a cidade. Monotipia sobre papel, 20x40cm, 2014. 24 Posteriormente, em uma série de telas denominadas do desaparecimento (fig. 13 e 14), efetuei uma operação de cobrir as cores iniciais com brancos e cinzas, até fazer desaparecer os elementos mais vibrantes da pintura. Interessavam-me as sobras, os rastros e pequenos sinais que restavam ou eram preservados em meio à opacidade das camadas. Figuras 13 e 14 – do desaparecimento. Óleo, acrílica e grafite sobre tela, 70x50 cm e 40x30cm, respectivamente, 2015. Acervo da autora Em 2016, após um trabalho em que as nuvens se tornaram quase sólidas diante do fundo negro (fig. 15 e 16), a polaridade “nuvens/fios” ganhou outros contornos, visto que o elemento nuvem tomava o lugar da concretude e da opacidade, e as linhas, de algo efêmero e aéreo. Somando a essas pesquisas os registros fotográficos que realizo desde 20093, a imagem da nuvem se constituiu um elemento recorrente no meu processo artístico, tanto 3 A Coleção de nuvens constitui um arquivo de centenas de imagens de nuvens registradas por mim. Uma parte desta coleção foi exposta na obra “Sugestão” ou “visão parcial de uma coleção de nuvens” realizada para o Seminário Emergências 2020 (fig. 190-192). 25 em seu caráter figurativo – em suas múltiplas formas, densidades e conformações – quanto na variedade de cores, reflexos, texturas e ambientes atmosféricos que evoca. Figuras 15 e 16 – Nuvens. Acrílica, carvão e grafite sobre papel. 150 x 100cm cada, 2016. Acervo da autora Ao mesmo tempo, as imagens enevoadas também trouxeram a relação com contextos paisagísticos específicos, tal como regiões desérticas, ruinas e paisagens em processo de erosão e desertificação. Em 2018, por exemplo, durante a especialização em Fundamentos da Cultura e das Artes (Instituto de Artes da Unesp), essa questão foi retomada a partir da leitura d’Os Sertões, de Euclides da Cunha. A descrição da paisagem da caatinga presente na primeira parte do livro – A Terra – inspirou uma série de desenhos e gravuras que resultaram na tiragem de um livreto artesanal e na monografia Três traduções: percursos de desenho por entre paisagem, gravura e livro, apresentada na conclusão do curso (fig. 17 a 21). 26 Figura 18 a 21 – A terra d’Os Sertões, linoleogravuras, entre 20x20cm e 50x40cm, 2018. Acervo da autora Figura 17 – estudos de desenho a partir d’ Os Sertões, 2018. 27 A questão ecológica premente do desaparecimento de biomas ao redor do mundo também foi um motivador para seguir explorando as imagens que desaparecem e se esfacelam. Um exemplo são as imagens de satélite que constatam fenômenos como o ressecamento quase total do Mar de Aral, na Ásia Central, ao longo das últimas décadas. Retratado através de uma sucessão de imagens, a superfície negro-azulada do que era o quarto maior lago do mundo dá lugar a uma mancha disforme e esbranquiçada (fig. 22). O que essas imagens nos provocam? Como aprofundar nosso olhar sobre elas? Figura 22 – Registros de satélite do desaparecimento do Mar da Aral. / BBC4 Em relação a isto, o estudo de obras que friccionam as relações com a paisagem e suas transformações também contribuiu para o desenvolvimento dessas questões. Robert Smithson, por exemplo, considerou em seu trabalho o constante e inevitável processo de desintegração a que estão submetidas todas as estruturas do mundo5 e atuou junto a esses processos. A Spiral Jetty, de 1970, desapareceu e reapareceu na superfície do Great Salt Lake nas últimas décadas (fig. 23), e atualmente está cercada de áreas secas, devido à redução do nível de água do lago. A cada transformação da paisagem, uma nova perspectiva da obra se 4 < https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/02/150226_mar_aral_gch_lab > acesso em 16 set. 2019. 5 Cf. SMITHSON, R. in: FERREIRA, 2006, p.194. 28 revela. No que diz respeito às atuações sobre a paisagem, também podemos mencionar trabalhos como a ação de Francis Alÿs Quando a fé move montanhas6 (fig. 24), o trabalho Fronteiras Verticais, de Cildo Meireles, a instalação No ar (fig. 37) de Laura Vinci e a obra Arrasto, de Marcelo Moscheta, que trazem à tona diferentes questões sobre a ação humana e a representação da paisagem. Obras que provocam novas perspectivas na relação com o espaço, operam deslocamentos na percepção do ambiente e por vezes atuam diretamente em seus meios sociais, demonstrando que a transformação da sensibilidade em relação às coisas que nos rodeiam é parte integrante das dinâmicas de transformação do mundo. Tanto a nuvem quanto outros elementos “amorfos” e em estado de “instabilidade” – vapores, fumaças, areias e ambientes atmosféricos em geral – parecem indicar que há muitas parcelas de “não ver” dentro daquilo que vemos, assim como possibilidades de “ver” dentro da invisibilidade e da opacidade. Figura 23 e 24 – Robert Smithson, Spiral Jetty, 1970 / Dia Art Foundation (esq.) e Francis Alÿs, Quando a fé move montanhas, 2002. / Site do artista. 6 Obra realizada na periferia de Lima, Perú, em que o artista reúne centenas de pessoas que trabalham voluntariamente por um dia inteiro para deslocar uma duna 10cm de seu lugar. 29 Do sfumato renascentista, passando pelas brumas de William Turner, pelo esfumaçado que baliza as cores das pinturas de Mark Rothko, as manchas dos quadros de José Bechara, a leveza dos papéis de Mira Schendel, as paisagens brancas de Armando Reverón, o Livro nuvem, de Hilal Sami Hilal (fig. 25), as coletas de orvalho e maresia de Brígida Baltar (fig. 58), entre outros... destaca-se um conjunto de trabalhos artísticos em torno das formas “enevoadas” e “informes” que inspirou e norteou o projeto. Figura 25 – Hilal Sami Hilal. Livro nuvem, 2018. / Bolsa de Arte. As perguntas se tornaram mais claras, no entanto, ao encontrar o texto do historiador da arte Hubert Damisch, Théorie du /nuage/: pour une histoire de la peinture7, ainda pouco presente em pesquisas acadêmicas do Brasil. Nele, o teórico francês realiza um amplo estudo sobre imagem da nuvem na história da pintura ocidental, contrapondo-a à limitação do modelo perspéctico renascentista e indicando os múltiplos aspectos que ela adquiriu nos séculos seguintes. Para Damisch, a força de uma imagem pictórica se dá por seu potencial enquanto ato do pensamento, enquanto reflexão ativa sobre a realidade contida em sua inteligência pictórica8. E o significante nuvem, enquanto imagem do “inapreensível” 7 Teoria da /nuvem/: por uma história da pintura (tradução nossa). DAMISCH, 1972. 8 ALPHEN, 2006, p. 93-94. 30 (por oposição a uma invenção baseada na arquitetura e na geometria euclidiana tal como a perspectiva linear), seria ainda hoje a parcela que escapa ao nosso poder cognitivo lógico e, portanto, capaz de despertar novas formas de ver o espaço, vindo a ser grande parte daquilo que nos atrai e nos intriga na arte. Paralelamente, no texto Dentro do nevoeiro de Guilherme Wisnik foi encontrado um estudo aprofundado sobre a metáfora da nuvem e do nevoeiro em relação à sociedade contemporânea. O autor destaca, através de diversos exemplos provindos da arquitetura e da arte, que vivemos hoje em um mundo impalpável e instável, no qual justamente o informe e a nuvem seriam suas potentes expressões9. Considerações que afirmaram a atualidade e a pertinência do tema e ajudaram a afinar a questão central da pesquisa. Esta constituiu-se, portanto, a partir da proposição de explorar visualmente as zonas de aproximação e distanciamento entre elementos plásticos da pintura e as questões teóricas estudadas, considerando o elemento nuvem (em sentido amplo, enquanto imagem, representação e alegoria, tal como desenvolve Hubert Damisch e como metáfora da modernidade, tal como demonstrado por Wisnik) como ponto de partida, inspiração e aprofundamento do olhar contemporâneo para este tema. De que forma o elemento “nuvem” – enquanto imagem do informe, do “impalpável” e como metáfora da contemporaneidade – está presente nas práticas artísticas contemporâneas, especialmente nas práticas pictóricas? Como esse elemento, aplicado nas imagens, nos traria pistas sobre as formas atuais de ver o mundo e suas paisagens? A partir desses questionamentos, busco compreender, inter-relacionar e destacar alguns dos encontros e lacunas existentes entre as referências encontradas sobre o tema, relacioná-las com o trabalho de artistas contemporâneos e sobretudo explorar, na prática, como essas considerações se desdobram no processo artístico. Para isso a pesquisa foi estruturada em três eixos: I - O estudo da questão da transparência e da opacidade no contexto de formação da modernidade e do olhar contemporâneo; 9 WISNIK, 2012, p.6. 31 II - O panorama da imagem da nuvem na história da pintura e seus desdobramentos na arte contemporânea; III – A observação de obras de artistas contemporâneos relacionadas ao tema da pesquisa, as considerações suscitadas por essa obras e o trabalho prático de ateliê. O primeiro eixo, desenvolvido no capítulo I, traz um panorama de alguns dos elementos do “enevoamento” presentes nas artes da modernidade até os dias de hoje. Através de um sobrevoo por alguns desses aspectos, e baseado sobretudo no texto de Guilherme Wisnik, foi destacada a relação entre os conceitos de transparência e opacidade com a ideia da modernidade e desenvolvidos alguns aspectos de como isso se desdobrou na contemporaneidade e na arte contemporânea. Também foram utilizados os pensamentos de Didi-Huberman, Walter Benjamin, Jonathan Crary e Byung Chul Han. No segundo capítulo foi explorada a questão da pintura em si, detalhando, sobretudo através da abordagem de Hubert Damisch, o desenvolvimento do elemento nuvem na história da pintura. Os diversos aspectos desse elemento, tal como trazido pelo autor, foram observados e desenvolvidos através de uma observação de obras pictóricas e de seus procedimentos. A questão do confronto do elemento nuvem com os paradoxos da perspectiva linear tal como desenvolvido pelo autor forma o centro do capítulo, abrindo aspectos de reflexão sobre a essência da imagem pictórica. Pretendeu-se desenvolver e aprofundar o olhar sobre as questões que envolvem a pintura enquanto prática e modo de ver o mundo. Por fim, o terceiro capítulo agrupa a questão da nuvem e da nebulosidade a partir da suas múltiplas manifestações em trabalhos artísticos modernos e contemporâneos, assim como na prática de ateliê da pesquisadora. A partir das reflexões suscitadas pelos artistas e teóricos estudados na pesquisa, buscou-se possibilidades de desdobramentos poéticos contemporâneos das perspectivas estudadas. Estruturado através de um caderno de imagens, margeadas por trechos reflexivos, imaginativos e poéticos, pretende deixar sobretudo as imagens falarem, compondo outras possibilidades de linguagem, de encontros e vislumbres dos temas desenvolvidos. 32 Figura 26. Incêndio do Palácio de Cristal, Londres, 1936. / Foto: anônimo. 33 I - Poéticas do enevoamento: imagens da opacidade na arte moderna e contemporânea “Dá a tua fala também o sentido: Dando-lhe sombra. Dá a tua fala bastante sombra, o suficiente para que tu, projetado ao teu redor, possas distinguir entre a meia-noite e o meio-dia e a meia-noite. (...)” (Paul Celan10) Em 1936 o Palácio de Cristal, grande estrutura de vidro e ferro construída em Londres na esteira das inovações da Revolução Industrial, foi consumido pelas chamas. A construção, símbolo da transparência e da leveza dos novos materiais recém-saídos das indústrias, foi erguida para abrigar a Grande Exposição Internacional de 1851 e se tornou símbolo do despontar da modernidade no séc. XIX. Por ironia do destino, talvez possamos dizer que acabou por se tornar também uma imagem do fim das utopias modernas, ao desfazer-se completamente por entre as nuvens de fumaça do incêndio. Os registros fotográficos da época mostram as estruturas delgadas, frutos do cálculo e da engenharia, perdendo-se em meio a manchas disformes e abstratas (fig. 26). Ao apropriar-se da frase de Marx "tudo que é sólido desmancha no ar"11 para o título de seu livro sobre a modernidade, Marshall Berman também ilustra o conjunto de certezas e desenganos que foi o período moderno. Sobre o Palácio de Cristal, cita a fala de Dostoiévski feita pelo personagem de Notas do Subterrâneo após a visita ao edifício: "eu temo esse edifício justamente porque é de cristal e indestrutível por todos os séculos, e por não se poder mostrar-lhe a língua, nem mesmo às escondidas"12. Um trecho que ilustra a ideia de progresso racional e "invulnerável", assim como a sensação de controle e de visibilidade total que permeou este período, na tentativa de impedir a subversão de seus espaços. 10 Apud. BLANCHOT, 2011. 11 BERMAN, 1986. 12 Apud. BERMAN, 1986, p. 224. 34 Nas primeiras décadas do século XX o modernismo parecia ter construído em torno de si uma lógica de racionalidade e funcionalidade com a qual se acreditava resolver quaisquer problemáticas e realizar o projeto de um mundo ordenado, calculado e projetado. Filho do pensamento iluminista, realçou os avanços das ciências e da transparência racional como caminho idealizado para o futuro. De maneira geral, grande parte da arte e da arquitetura moderna foi construída em cima desses pilares – a transparência dos materiais, a visibilidade da estrutura e a análise dos elementos constituintes e específicos de cada linguagem. As abordagens formalistas da história da arte, tal como os trabalhos de Alois Riegl (1858-1905), Heinrich Wölfflin (1864-1945), e posteriormente Clement Greenberg (1909-1994) também pretenderam ordenar e compreender os objetos artísticos – e a história da arte – a partir de suas estruturas formais. Wöfflin, por exemplo, aplicou à observação da arte um conjunto de princípios estruturais fundamentais, alinhados por pares opostos13, através dos quais os estilos de cada época poderiam ser definidos e organizados. Sua análise se aplica às possibilidades visuais do objeto e se limita à sua descrição excluindo, segundo o filósofo contemporâneo Georges Didi-Huberman, “qualquer fulgor, qualquer anacronismo e qualquer constelação inédita”14. Já Greenberg, considerado um dos principais teóricos do modernismo, desenvolveu uma concepção evolutiva e linear da história da arte em busca da “pureza” de cada expressão artística, que teria como “ápice” a caracterização e a ênfase do seu meio específico15. No caso da pintura, por exemplo, esse meio seria a superfície bidimensional, e o estado de máxima evolução a busca da planaridade total e o abandono de quaisquer referências literárias, históricas, tridimensionais ou cênicas. Uma lógica progressiva rumo a um estado em que cada arte expressaria, com toda clareza possível, as características estruturais de sua constituição. Ambos indicam métodos que se atêm a uma profunda análise das formas e nisso têm seu mérito e importância, mas excluem todos os paradigmas interpretativos, culturais e muitas vezes paradoxais às quais essas formas estão submetidas. 13 Linear x pictórico; plano x profundidade; forma fechada x forma aberta; pluralidade x unidade; clareza x obscuridade. WÖFFLIN, 2015. 14 DIDI-HUBERMAN apud ALMEIDA, 2015, p. 82-83. 15 COUTO, 2004, p. 96-97 35 Assim como a teoria modernista de Greenberg foi intensamente questionada por muitos de seus discípulos e contemporâneos do final do séc. XX, já no início da modernidade o olhar formalista foi contraposto à outras lógicas. Aby Warburg (1866-1929), historiador alemão, olhou a imagem como um campo do saber amplo e aberto, turbilhonante, que requer que as dimensões antropológicas do ser e do tempo sejam incluídas e consideradas16. Seguido pelos métodos de Erwin Panofsky (1892-1968) – baseado na icolonogia das imagens – e Ernst Gombrich (1909-2001) – que realça o caráter psicológico e interpretativo da história da arte –, o olhar para os objetos artísticos foi ganhando diferentes abordagens, cada uma delas questionando a relatividade e a parcialidade das anteriores. Hubert Damisch (1928-2017) e Georges Didi-Huberman (1953-), pensadores contemporâneos que serão retomados mais adiante, também se incluem nesse profundo questionamento das lógicas que reduzem a arte à “clareza” de suas questões formais. O que tudo isso parece demostrar é que o objeto artístico é um ser complexo, distante de ser resumido às logicas racionais e funcionais da transparência e visibilidade total. E que o século XX será marcado por um crescente questionamento dessas lógicas, inclusive pela constatação de que a ideia iluminista e moderna de racionalidade não parece ter levado o mundo ao seu “ápice” de desenvolvimento, muito pelo contrário: o próprio conceito de transparência parece guardar problemáticas marcantes, sintomas de que talvez o olhar excessivamente “claro” e ordenado não seja capaz de abarcar a complexidade dos fenômenos. Seria possível a transparência total? Até que ponto a visibilidade nos revela com clareza os meios e os materiais de uma obra? Observemos mais de perto essas questões. O problema da transparência No texto Transparência literal e fenomenal17, Colin Rowe e Robert Slutzky levantam a distinção entre uma transparência dita literal – característica material de uma substância permeável à luz ou de tudo aquilo que é facilmente percebido, evidente e não-dissimulado – e uma fenomênica, que relaciona-se com o efeito provocado pela percepção simultânea 16 DIDI-HUBERMAN apud ALMEIDA, 2015, p. 83. 17 ROWE e SLUTZKY, 1985. 36 de distintos planos espaciais. Nessa última, estaríamos diante de uma situação mais complexa, em que múltiplas figuras estariam sobrepostas sem que uma anulasse a outra. A transparência, nesse caso, seria relacionada mais a um efeito de ordem espacial do que às características “permeáveis” da substância dos objetos. Ao olharmos as figuras, teríamos a apreensão simultânea de seus planos, observando uma espécie de zona “flutuante” criada pela interpenetração de espaços distintos18. Uma aglutinação de elementos que, ao contrário da transparência literal, é capaz de nos causar ambiguidades, estranhamentos, distorções e ilusões ópticas, fazendo do conjunto um fenômeno de apreensão complexa. Segundo os autores, essa propriedade menos evidente da transparência poderia ser ilustrada sobretudo pela pintura cubista, que teria sido também a inauguradora dessas características no plano das artes visuais19. Figura 27 – Pablo Picasso. A arlesiana, 1911-12. / Coleção particular 18 ROWE e SLUTZKY, 1985. p. 34. 19 Ibid. p. 35 37 Na esteira das questões abertas por Cézanne, os cubistas teriam contraído o espaço e trazido uma tal reorganização dos objetos que a simultaneidade de planos se fez possível. Essa seria composta por uma sobreposição de “coordenadas” distintas que se entrelaçam e convivem sem se anularem umas às outras – por exemplo as linhas mais orgânicas e naturalistas sobrepostas à malha geometrizante formada pelas linhas retilíneas. Ao mesmo tempo, a densidade do suporte, as massas opacas da pintura e as áreas translúcidas também convivem entre si, tudo isso compondo esse outro tipo de transparência que é decorrente de um fenômeno espacial (e não apenas luminoso)20. Um exemplo dado pelos autores é a Arlesiana de Picasso (fig. 27). Apesar de distinguirmos certas nuances que remetem a uma ideia de transparência literal, insinuando superfícies vítreas e translúcidas, a maior parte da imagem é composta por camadas opacas que convivem lado a lado. A impressão de transparência, portanto, seria dada muito mais pela organização das formas, linhas e planos – em suas relações de vizinhança, equilíbrio e espacialidade – do que pelo uso da transparência literal; o que faz da imagem um espaço ambíguo e paradoxal. Essas ilusões e estranhamentos que a transparência fenomênica provoca no olhar já são por si só uma contraposição curiosa à conotação de clareza e evidência que a ideia de transparência literal possui. Um paradoxo que talvez possa ser aplicado ao próprio vidro, material que foi a euforia das indústrias modernas junto ao ferro e que talvez seja o grande símbolo da ideia de racionalidade e transparência que se desenvolveu nesse período. Ao compor espaços onde é difícil "deixar rastros" e onde tudo se apaga e "nada se fixa"21, o vidro foi considerado por Walter Benjamin como o inimigo tanto da propriedade privada quanto do mistério22. Por trás dele não seria possível esconder-se nem guardar segredos. Uma lógica da visibilidade total que, transposta para o comportamento humano, remeteria diretamente a uma ideia de “honestidade” e “veracidade” – base do “ethos” iluminista que sustentou o pensamento, a arte e a arquitetura modernas23. Mas Benjamin parece caminhar um pouco na contramão dos homens de seu tempo, acusando a chegada de uma “nova 20 ROWE e SLUTZKY, 1985, p. 37. 21 BENJAMIN, 2012, p. 126 - 127. 22 Ibid., apud. WISNIK, 2018, p. 7. 23 WISNIK, 2018, p. 7. 38 pobreza” que, através da superexposição e do desencantamento, estaria suprimindo as possibilidades da experiência24. Intimamente associada à capacidade de intercambiar narrativas e de contar histórias “artesanalmente” de pessoa para pessoa, a experiência, para o autor, seria a ferramenta com a qual cada narrador desfia seu relato, compondo com uma “marca” pessoal algo que foi vivido ou ouvido e que será repassado a outros. E assim as histórias seguiriam sendo recontadas e revividas, como “sementes herméticas” prontas a germinar novamente a cada relato25. Por conterem, em estado potencial, uma aura de mistério, de algo inexplicável e opaco que nunca se desvela totalmente, continuam mantendo sua força e cativando o interesse. Seriam, portanto, o contrário da mera informação, que pede para ser explicada e verificada de forma plausível e imediata26 sem deixar margem para interpretações subjetivas ou zonas “enevoadas”. A informação talvez pudesse justamente ser considerada uma equivalente, na materialidade, ao vidro – a transparência que não guarda mistério, que não esconde surpresas e que não incita, portanto, à experiência. “As coisas de vidro não têm nenhuma aura” afirma Benjamin27; o que nos remete ao seu célebre texto A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, no qual ele definirá a “aura” como a composição de elementos espaciais e temporais que permeiam algo, fazendo-o aparecer como algo único, distante e inalcançável28. Uma camada de autenticidade e singularidade presente nas obras de arte ao longo dos tempos que estaria, no entanto, sendo diluída e anulada pela possibilidade de reprodução técnica de suas imagens, sobretudo pelo advento da fotografia e do cinema. Vemos assim que a questão da transparência parece não se resolver de forma simples nem dicotômica. Há camadas de contradições internas que não fazem da transparência um simples fenômeno “claro e distinto”. Aparentemente, a ideia da transparência não contém 24 BENJAMIN, 2012, p. 127. 25 Ibid., 220 26 Ibid., 218-219 27 Ibid., 126. 28 Ibid., 184. Não cabe aqui um detalhamento das consequências apontadas por Benjamin dessa “perda da aura” – que essencialmente diminuiria o chamado “valor de culto” da obra em prol do seu “valor de exposição” – mas vale dizer que o autor aponta, junto aos ganhos sociais que a possibilidade de reprodutibilidade que a obra de arte pode alcançar (por possibilitar o acesso coletivo e crítico a essas obras), também os riscos da manipulação política desses meios. A possibilidade de uma “politização da arte” teria como contraponto uma “estetização da política” que levaria à manipulação e ao fascismo. (Ibid., 187-188.) 39 apenas características positivas e virtuosas, mas também conflitos e paradoxos. O filósofo contemporâneo Byung-Chul Han destaca, no seu ensaio A sociedade da transparência29, o quanto a ênfase na transparência levaria a um excesso de positividade, não necessariamente benéfico à sociedade. As coisas se tornam transparentes quando eliminam de si toda e qualquer negatividade, quando se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação. As ações se tornam transparentes quando se transformam em operacionais, quando se subordinam a um processo passível de cálculo, governo e controle. O tempo se torna transparente quando é aplainado na sequência de um presente disponível. Assim, também o futuro é positivado e o presente otimizado. O tempo transparente é um tempo sem destino e sem evento. As imagens se tornam transparentes quando, despojadas de qualquer dramaturgia, coreografia e cenografia, de toda profundidade hermenêutica, de todo sentido, tornam-se pornográficas, que é o contato imediato entre imagem e olho. As coisas tornam-se transparentes quando depõem sua singularidade e se expressam unicamente no preço. [...] A comunicação alcança sua velocidade máxima ali onde o igual responde ao igual, onde ocorre uma reação em cadeia do igual. A negatividade da alteridade e do que é alheio ou a resistência do outro atrapalha e retarda a comunicação rasa do igual. A transparência estabiliza e acelera o sistema, eliminando o outro ou o estranho. (HAN, 2020, p. 9-11) Um filósofo do séc. XXI certamente guarda uma visão muito mais panorâmica das contradições às quais a ideia de racionalidade e clareza da modernidade nos levou. Tendo em vista o século XX, com seus profundos conflitos políticos e sociais, viu-se o quanto a humanidade não foi capaz de demonstrar a eficácia desses aspectos da modernidade, expondo suas falhas e parcialidades. A própria imagem amorfa do incêndio do Palácio de Cristal, ocorrido em um entreguerras já marcado pelas grandes contradições da modernidade, parece indicar uma rachadura nos ideais de clareza e ordenação, visto que o suposto ideal moderno não havia sido suficiente para impedir uma grande guerra mundial e nem a ameaça de outra. Na arte, a ideia de transparência também mostrará suas contradições e complexidades. O próprio vidro ganhará, ao longo das décadas posteriores, camadas de significados distintos, para além da característica de transparência. Já na contemporaneidade, por exemplo, o trabalho de Dan Graham irá problematizar essa questão ao utilizar vidros reflexivos e curvos em suas obras. Como pequenos ambientes envidraçados, as esculturas revelam espectros, distorções e ilusões de óptica, em uma 29 HAN, 2020. 40 demonstração que a suposta transparência desse material também pode ser agente de dissimulação e desconcerto30 (fig. 28 e 29 ). Mas examinemos os primórdios da modernidade a fim de verificar os possíveis germes dessa contradição e talvez encontrar mais alguns elementos referentes aos desdobramentos contemporâneos da questão. Fig 28 e 29 : Dan Graham. Dan's world, 2018 (esq.) e Time/space warp, 2015. / Artsy. O ofuscamento da modernidade Se observarmos William Turner (1775 – 1851), artista que desenvolveu seu trabalho em meio ao otimismo das inovações industriais, veremos que ele não é o pintor da transparência, mas da névoa. Mais precisamente, do vapor. Pois é preciso lembrar que junto às estruturas velozes e racionalmente eficazes do novo maquinário, há a produção do rejeito que é o contrário da transparência - o vapor da máquina, a fumaça das fábricas, a névoa que passa a cobrir as principais cidades industriais inglesas do século XIX. Nas palavras de T. J. Clark: O vapor, na arte dos últimos dois séculos, nunca fora inequivocamente uma imagem de esvaziamento e evanescência, sempre fora também uma imagem de poder. O vapor podia ser domado; o vapor podia ser comprimido. Foi o vapor que inicialmente tornou possível o mundo da máquina. Foi o termo médio na grande reconstrução humana da Natureza. "Chuva, vapor e velocidade". A velocidade que 30 WISNIK, 2018, p. 21. 41 se segue à compressão transforma o mundo em um grande vórtice em Turner, um olho espectral voraz, em que chuva, sol, nuvem e rio são vistos, da janela do compartimento, como nunca haviam sido vistos antes. O vapor é poder e possibilidade, portanto; mas também, logo, está obsoleto – é uma figura de nostalgia de um futuro, ou um sentimento de futuridade, que a idade moderna tinha no início mas que jamais poderia atingir. (CLARK, T. J., 2006, p. 129.) Figura 30 – William Turner. Chuva, Vapor e Velocidade, 1844. / National Gallery, Londres. De acordo com esse ponto de vista, a névoa que cobre as pinturas de Turner (fig. 30) não seria apenas imagem das partículas físicas que recobrem o ar das indústrias, mas também fruto de um novo modo de vida que surgia rapidamente em meio à ideia de um futuro movido pelo progresso e pela racionalidade. Ao mesmo tempo, a apreensão da paisagem a partir da velocidade dos trens operava uma transformação do corpo e da percepção do mundo que parecia envolver o olhar em um turbilhão ofuscante31. Um tipo de simultaneidade de percepções e sobreposição de planos que talvez poderíamos relacionar com a transparência fenomênica descrita por Rowe e Slutzky em relação às pinturas 31 "Dada a enorme aceleração da vida, o espírito e o olhar acostumaram-se a ver e a julgar de maneira parcial e imprecisa, e todos são como o viajante que conhece um país e seu povo por um vagão de trem." NIETSZCHE, Humano demasiado humano, apud. CRARY, 2012, p. 111. 42 cubistas32. Estas últimas só vieram a surgir posteriormente, mas ainda no século XIX a visão simultânea de diferentes planos aparece como o principal mecanismo dos estereoscópios, dispositivos muito populares na Europa do século XIX. Esses aparatos utilizavam-se da diferença de ângulo entre os olhos no olhar bifocal para dar a uma imagem a percepção ilusória de profundidade33. Um jogo de planos bidimensionais sobrepostos que, diferentemente da atuação isolada de cada um deles, provocava um novo modo de ver a imagem. Na história da pintura, seria difícil não fazer referência às obras de Edouard Manet (1832- 1883), que indicam mais um passo rumo à modernidade na arte. Em Déjeuner sur l’herbe, a sobreposição de planos (aparentemente claros porém incomodamente ambíguos) causou uma tal perturbação no olhar da Europa do século XIX que a pintura foi acusada de indecente e pornográfica. E realmente, conforme relata Jonathan Crary em seu estudo sobre o início da modernidade, as imagens do estereoscópio, em sua aparente volumetria provocada por uma planaridade crua acabaram associadas ao voyeurismo pornográfico34. Um espaço que “flutua” entre planos; que se torna móvel e, em consonância com nossa própria corporalidade (pois depende da relação focal entre os dois olhos) sai da sua aparente “objetividade” e transparência para penetrar estranhamente em nossa subjetividade opaca e dúbia. Segundo Crary, há uma mudança crucial na visão do observador europeu do século XIX. Enquanto nos séculos anteriores a câmara escura havia sido usada, em experimentos artísticos e científicos, como um anteparo protetor entre o olho humano e o sol, agora o que impera é o desejo do olhar direto para a luz, sem mediações. Um olhar que, acompanhando todas as inovações científicas da época, buscava alçar-se ao limite da visibilidade dos fenômenos. O autor relata como muitos cientistas deste período que pesquisaram os efeitos luminosos acabaram por prejudicar seriamente suas visões por conta das prolongadas experiências olhando diretamente para o sol35. E assim como o excesso de luz pode levar ao ofuscamento e à cegueira, aparentemente a busca incessante 32 ROWE e SLUTZKY, 1985. 33 CRARY, 2012, p.117-120. 34 Ibid, p.124-125. 35 Ibid., p. 136-138. 43 da racionalidade moderna por transparência e visibilidade foi obnubilada pelo seu oposto. Segundo Crary, é o sfumato (e não a perspectiva linear) que triunfa em Turner36. Se voltarmos alguns séculos até o momento do desenvolvimento da técnica dos efeitos esfumaçados na pintura, veremos que, embora ela tenha se tornado um contraponto à ideia de racionalidade e transparência presentes na construção geométrica, o próprio Leonardo da Vinci a tratava não como um questionamento à lógica linear, mas como seu complemento e aprofundamento37. Contemporâneo à invenção da perspectiva e preciso em seus projetos de engenharia, o artista recomendava que também se observasse com atenção as estruturas disformes da lama, das cinzas e das nuvens, assim como as manchas presentes em muros e pedras. Para ele, os jogos de acaso e imaginação desses corpos seriam capazes de revelar ideias e composições surpreendentes38, ampliando a experiência pictórica. Ainda assim a construção geométrica aparentemente se tornou, a partir do Renascimento, a estrutura principal da representação do espaço e da paisagem no mundo ocidental. Nas palavras de Giorgio Vasari (1511-1574), por exemplo, o pai das artes seria o desenho, por ser um produto do intelecto que mantém as relações entre o todo e as partes e portanto constitui a "expressão manual do juízo universal sobre as coisas"39. Com o tempo, essa forma de representar o espaço através da composição de planos e linhas ordenados geometricamente veio a se tornar uma escrita tão marcante na nossa percepção visual que se tornou quase sinônimo da própria ideia de paisagem40. Segundo Anne Cauquelin, o estabelecimento da perspectiva se consolida por ser capaz de demonstrar "que se vê aquilo que se vê", organizando aquilo que a razão apreende e exibindo de maneira compreensível o elo entre o pensamento e a visão41. Nos séculos seguintes, o desenvolvimento da lógica racional científica e sua coroação no Iluminismo talvez pudesse ser resumido pela busca da demonstração clara e distinta, para a satisfação da razão, de tudo aquilo que se vê. Nesse sentido, o ofuscamento nas obras de 36 CRARY, 2012, p. 136. 37 DAMISCH, 1972, p. 192. 38 Ibid., p. 51. 39 LICHTENSTEIN, 2006, p. 20. 40 CAUQUELIN, 2007, p. 77 41 Ibid., p. 83-84. 44 Turner parece abrir uma rachadura no seio das conquistas da modernidade. Em um mundo que se organiza em torno da visibilidade da razão e da ciência, a névoa encobre e diminui a nitidez. Em meio à aceleração da busca pela clareza e pela transparência, no limite do excesso de luz, chega-se ao seu oposto – a não-visão, a opacidade. Mais uma vez, o conceito de transparência parece esconder uma ambiguidade complexa. O impressionismo veio a ser a consequência natural dessa mudança perceptiva. Marcado pela observação direta dos fenômenos luminosos, não poderia fazer uma referência mais direta à busca pela transparência. E, no entanto, as pinturas impressionistas são constituídas por uma ambiguidade marcante entre plano pictórico e representação espacial. Claro que essa é uma característica intrínseca de toda tentativa de representação da tridimensionalidade no plano bidimensional, mas a história da pintura parece guardar, a cada época, uma elaboração constante dessa questão. E especialmente nesse período, o paradoxo entre a materialidade da superfície e a busca de uma imagem que reproduza o mundo real parece entrar em xeque. O impressionismo, ao estender um olhar quase científico para os fenômenos luminosos, de certa forma esgarçou os contornos que distinguem os objetos e planos – rompendo um pouco com as “leis do desenho” que vinham predominando desde a perspectiva linear – e fez da superfície pictórica algo homogêneo e constante. Ou seja: todos os tons, luzes e sombras passam a ter o mesmo valor pictórico, o jogo entre planos é “aplainado” e a vivência sensorial das cores é exaltada. Com isso a organização espacial entre planos – a transparência fenomênica que criava os paradoxos na pintura de Manet – praticamente desaparece em prol de uma espécie de transparência literal, que ganha seu grau máximo no pontilhismo de Paul Signac e Georges Seurat. O impressionismo nada esconde nem camufla; tudo é visível, claro e distinto; tudo brilha lado a lado e nada está em conflito. Uma pintura de prazer contemplativo que talvez por isso tenha sido, após uma curta fase de estranhamento do público, amplamente aceita e assimilada. Imagens de deleite, de um certo relaxamento do olhar que parecem não ter perdido sua popularidade e sucesso até os dias de hoje. Ao mesmo tempo, uma pintura que marca uma passagem, um intermezzo, pois é considerada tanto o último suspiro das tradições clássicas e românticas quanto uma introdução à modernidade. 45 Figura 31 – Claude Monet. Gare Saint Lazare, 1877. / Musée d’Orsay, Paris. E no entanto o vapor, o avesso da transparência, não havia deixado de mostrar seus sinais. São muitas as pinturas de Monet que retratam as locomotivas e sua fumaça, por exemplo (fig. 31). Para T. J. Clark, o vapor é justamente uma metáfora da instabilidade constitutiva da modernidade, em que tudo avança e se dispersa velozmente, tornando as coisas cada vez mais impalpáveis. Em um mundo em estado de transição, o vapor seria a imagem da passagem e efemeridade de tudo, a superfície na qual a vida em sua totalidade está se transformando42. Mas esse paradoxo parece ter ganhado seus contornos mais nítidos apenas com Cézanne, antes de desembocar com toda a força no cubismo. Nas obras do artista, o conflito pelo qual a pintura passava neste momento é vivido e explicitado. Em A dúvida de Cézanne, Merleau-Ponty destaca os embates do pintor com a superfície pictórica, em um confronto entre a homogeneidade do impressionismo e a organização dos planos no espaço43. Ao mesmo tempo que o pintor reconhecia os avanços alcançados na percepção da cor e da luz, 42 T.J. CLARK, 2006, p.130. 43 MERLEAU-PONTY, 2013, p. 125 – 149. 46 percebia um enfraquecimento da estrutura que dava a força das pinturas clássicas. A partir disso realiza a sua obra e vem a levar o jogo entre a superfície pictórica e os fenômenos visuais da organização do espaço a um novo patamar. Cézanne explicita a questão, coloca- a no centro do debate e faz dela o cerne do seu fazer pictórico. Abre as tramas da pintura e revela sua ossatura – a dialética entre o suporte e as sensações ópticas da cor, mediada pela pincelada44. Afasta as justificativas ilusionistas do quadro para explicitar as características internas do meio pictórico, e com isso abrirá definitivamente o caminho para a arte moderna. Mais adiante veremos com mais detalhes os processos pictóricos do artista; por hora destacamos o significado metafórico dessa passagem em relação às questões da transparência como ideal da modernidade. Mas seriam as pinturas de Cézanne, enquanto abre-alas da modernidade, imagens da transparência e clareza totais? Ou talvez haveria em sua pintura também a ambiguidade da simultaneidade de planos que faz a transparência ser um jogo dúbio e complexo, uma transparência fenomênica? Segundo Rowe e Slutzky, as obras tardias de Cézanne, em sua explicitação clara e distinta das questões intrínsecas da pintura, se utilizam justamente de um jogo complexo de sobreposição de planos que, aliado à uma multiplicidade de fontes de luz, contrastes de cores dentro de uma paleta restrita e variações na malha das pinceladas tensionam a relação centro-periferia do quadro45. Uma trama de processos simultâneos cuidadosamente inter-relacionados que fazem o fenômeno da ordenação transparente ir muito além do literal. A imagem flutua entre figura e fundo, entre cor e forma, entre sensação óptica e suporte. O que faz com que compreender Cézanne talvez esteja muito além de aguardar uma lógica clara e distinta, mas sobretudo em um tatear cuidadoso e lento por cada uma de suas partes, de forma a apreender aos poucos a dança de seus elementos. E talvez apenas através da passagem lenta e cuidadosa pelos meandros de Cézanne possamos olhar sem estranhamento para a pintura cubista. Pois é nesse que foi o estilo símbolo das vanguardas e que floresceu nos embalos de uma modernidade que desejava caminhar a passos largos para o futuro que parece repousar grande parte dos 44 DAMISCH, 1972, p. 314. 45 ROWE e SLUTZKY, 1985, p. 36. 47 questionamentos sobre a arte moderna. É diante do cubismo, em que se buscou explicitar com transparência os planos do quadro que, para muitos, a visão se obscurece. Fig. 32 (esq.) – Pablo Picasso. Homem com clarineta, 1911. / Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, Madrid; e figura 33 (dir.) – Georges Braque. O português, 1911. / Kunstmuseum, Basel Como já mencionado, é justamente nos quadros cubistas que a trama de processos simultâneos46, na tensão entre figura e espaço, vai apresentar com intensidade as características da transparência fenomênica. E ela aparece principalmente quando é buscada a articulação de objetos frontalmente alinhados num espaço raso e abstrato no lugar da mera representação naturalista de objetos translúcidos – como na transparência literal. Rowe e Slutzky evidenciam essa questão ao comparar duas obras cubistas que lidam com ela de formas distintas. Enquanto a imagem do Homem com clarineta de Picasso produz a impressão de uma figura transparente diante de um espaço que recua para o fundo (fig. 32), o quadro O português de Braque entrelaça figura e fundo através de planos e linhas, 46 “Frontalidade, supressão de profundidade, contração do espaço, definição de fontes de luz, o inclinar-se à frente dos objetos, paleta restrita, malhas oblíquas e retilíneas, propensão para o desenvolvimento da periferia, todas são características do Cubismo analítico”. ROWE e SLUTZKY, 1985, p.36. 48 puxando toda a imagem para o plano da superfície e fazendo com que a malha, “achatada” e estendida pelo espaço, seja percebida independentemente da figura – a qual por sua vez se torna um objeto sem materialidade claramente definida47 (fig. 33). Segundo os autores, no primeiro caso predomina a transparência literal, e no segundo, a fenomênica. Poderíamos levantar outros exemplos desses jogos entre planos que foram amplamente explorados na modernidade, especialmente com o surgimento da abstração. Mas por enquanto nos basta a demonstração, através desses exemplos, da relatividade do conceito de transparência. Pelo que vimos, este não parece ser um conceito que se remete exclusivamente à ideia de clareza, ordem e compreensão do espaço. Para além desse significado corrente, a transparência talvez também possa conter a imagem da ambiguidade, da dubiedade e do trompe d'oeil que caracterizam a percepção de planos sobrepostos no espaço. O que aproximaria a transparência de seu oposto – aquilo que esconde, que dissimula, que eclipsa uma situação. Portanto, aparentemente a transparência parece conter em si também a opacidade. Em termos históricos, vale lembrar que o cubismo, símbolo tão forte das vanguardas e da ideia de uma arte que quebra todos os padrões e traz a inovação e a ousadia do futuro, acontece às vésperas da 1ª guerra mundial. Mal havia começado o século XX e, assim como no incêndio do Palácio de Cristal, as estruturas límpidas do pensamento moderno foram obscurecidas pela fumaça opaca e incendiária do conflito bélico. O que nos impulsiona a uma breve investigação sobre as consequências, nas décadas seguintes, desse obnubilamento: se porventura ele viria a se dispersar ou, ao contrário, a adquirir contornos cada vez mais densos. A névoa da contemporaneidade Para Guilherme Wisnik estaríamos vivendo hoje dentro do nevoeiro48. O impalpável e o instável, tendo a névoa como uma de suas potentes expressões, seriam as imagens marcantes do mundo contemporâneo, em contraste flagrante com a ideia de clareza e legibilidade do espaço moderno. Para o autor, as consequências de um processo acarretado 47 ROWE e SLUTZKY, 1985, p. 37. 48 WISNIK, 2018. 49 por uma série de questões que envolvem a tecnologia, o processo de globalização e sobretudo o modo de vida capitalista ocidental teriam levado a humanidade a um esgotamento da suposta transparência prometida pelo modernismo. Ou talvez ela nunca tenha realmente se realizado, se levarmos em conta, além das questões levantadas anteriormente, também a afirmação que intitula o texto de Bruno Latour: Jamais fomos modernos. Nesse texto, Latour destaca e analisa alguns dos fundamentos da ideia de modernidade, em especial a separação entre cultura e natureza – ou “humanos e não- humanos”49: “O obscurantismo das idades passadas, que misturavam indevidamente necessidades sociais e realidade natural, foi substituído por uma aurora luminosa que separava claramente os encadeamentos naturais e a fantasia dos homens. As ciências naturais definiam a natureza e cada disciplina foi vivenciada como uma revolução total através da qual se separava enfim do Antigo Regime. Ninguém é moderno se não sentiu a beleza desta aurora e não vibrou com suas promessas.” (LATOUR, 1994, p. 40-41) Clareza, luminosidade e aurora em oposição à “mistura” dos âmbitos da vida, que estaria relacionado ao obscurantismo do passado. Dentro dessa ideia, toda a sociedade que não realiza esse tipo de separação, vivendo de maneira não-dicotômica com seu meio natural – como as sociedades indígenas, por exemplo – estariam excluídas do conceito de modernidade. Raciocínio que cunhou uma espécie de busca por um estado de “purificação” e linearidade evolutiva que acabou por cindir as instâncias da vida e encaminhar a humanidade para uma representação ilusória de sua invencibilidade e poder. Para o autor, portanto, o mundo moderno jamais teria realmente existido50. Se retomarmos a imagem da cegueira causada pelos experimentos do século XIX que utilizavam o olhar dirigido diretamente ao sol, poderíamos talvez dizer que a busca pelo excesso de luz teria levado a modernidade ao seu completo ofuscamento. Uma imagem disso talvez esteja no filme Border, de Laura Waddington51 (fig. 34), em que as tentativas de refugiados de atravessar ilegalmente uma fronteira na União Europeia são um testemunho de como o estilo de vida 49 LATOUR, 1994, p.19. 50 Ibid., p.44-45. 51 Citado por Didi-Huberman ao final de seu texto A sobrevivência dos vagalumes, de 2011, que discorre sobre o “ofuscamento” provocado pelos totalitarismos do séc. XX sobre os esforços de resistência e poesia, e se relaciona intimamente com as questões aqui tratadas. 50 dito de “1ºmundo” tem sido incapaz de acolher aquilo que não se encaixa em sua ideia de futuro. Pessoas sem lugar, sem voz, sem identidade; bordas, excessos. Escondidos ao lado da via expressa, são sombras ofuscadas e invisibilizadas pela luz forte dos faróis. Figura 34 – Laura Waddington. Frames do filme Border, 2004. / Site da artista. Esse obscurecimento do sonho da modernidade teve, segundo Wisnik, sinais muito mais fortes e profundos que o incêndio do Palácio de Cristal. A fumaça das indústrias, o crescimento desordenado e a poluição das grandes cidades, as grandes guerras e por fim a imensa nuvem da bomba atômica são alguns dos sinais drásticos apontados pelo autor como demonstração de que a utopia de "clareza" e "ordem" do modernismo talvez tenha fracassado52. O nevoeiro, este elemento informe, mutante e de contornos indefinidos, que parece ser o extremo oposto da ideia de ordem e transparência foi a imagem escolhida pelo autor para detalhar esse processo. Ambíguo e impalpável, ele talvez tenha na nuvem digital do século XXI uma de suas mais distintas representações. Wisnik destaca que, se por um lado a interconectividade da internet possibilita o acesso instantâneo à uma amplitude de informações, como uma imensa “tela de visibilidade total”, por outro ela é um intrincado complexo de estruturas e interligações em que somos envolvidos e incapazes de dominar por completo, como se estivéssemos dentro de um nevoeiro53. Ícone de nossa época, ela é simultaneamente opaca ao nosso entendimento e símbolo da hipervisibilidade e da vigilância, nos envolvendo e nos tornando "transparentes" para sistemas sobre os quais não temos controle nem compreensão. Mais uma vez, uma sociedade da transparência54 que nos envolve no nevoeiro. 52 WISNIK, 2018, p. 151 - 155. 53 Ibid., p. 49 - 53. 54 HAN, 2017. 51 No terreno da arte, os paradoxos da transparência da modernidade talvez possam ser observados em uma das mais icônicas obras do século XX: A noiva despida por seus celibatários, mesmo (1915-23), de Marcel Duchamp, também conhecida como O grande vidro. Realizada a partir de duas grandes chapas de vidro sobrepostas que deixam ver uma série de figuras bidimensionais em seu interior, a obra só foi considerada finalizada – ou "definitivamente inacabada", segundo seu autor – ao ganhar uma série de grandes rachaduras como consequência de um acidente ao ser transportada. Deixando a superfície do vidro levemente turva, a estrutura rizomática do estilhaço poderia ser vista como uma imagem da fragmentação que virá a abalar a "inteireza" das certezas modernas; não apenas pelo imprevisto ter sido incorporado à obra, mas por todo o estado de dúvida, estranheza e ambiguidade que ela provoca, como um todo, no espaço expositivo. Através do vidro, vemos as pequenas figuras dispostas em seu interior, a superfície estilhaçada e também as pessoas ou objetos que porventura estiverem do outro lado da sala. Formam-se camadas; um conjunto de percepções simultâneas dentre as quais nenhuma parece predominar ou "ordenar" a nossa visão. Ao invés disso, a impressão inicial talvez seja muito mais a de uma espécie de embaçamento – como se justamente a transparência que envolve tudo nos deixasse um poucos "cegos" para o que está acontecendo ali. Como se os olhos, assim como acontece quando passamos de uma sala escura para um espaço amplamente iluminado, ficassem um pouco ofuscados e precisassem de um tempo para se adaptarem à nova situação. Uma espécie de transtorno e quebra da ordem das coisas, para os quais não temos muitas respostas. Aliás, temos muito mais perguntas do que respostas. De dentro do espaço moderno das vanguardas e das proposições utópicas para o futuro parece nascer o seu extremo contrário: a indefinição, o inacabamento e os imprevistos que desestabilizam a transparência do mundo. Algumas décadas depois d'O grande vidro, encontraremos na obra de Joseph Beuys a busca de um reespessamento da relação com o mundo55. Artista que parece ter assimilado e reelaborado muitos dos aspectos levantados por Duchamp, Beuys utiliza-se sobretudo de uma grande quantidade de objetos recolhidos e reaproveitados, tais como ferramentas, 55 WISNIK, 2018, p. 273. 52 utensílios não identificados, objetos, papéis, pedaços de madeira, etc… que reagrupa em conjuntos – em vitrines ou instalações – onde sua materialidade é reivindicada como uma força que vai além de seus usos correntes. Também utiliza com frequência materiais densos, maleáveis e opacos tal como a cera, o feltro e a gordura; substâncias que estão intimamente relacionadas com a experiência do calor – uma das questões centrais na obra do artista. Uma obra, portanto, que tem uma carga altamente tátil, espessa e concentrada. Figura 35 – Joseph Beuys. Cadeira com gordura, 1964. / Landesmuseum, Darmstadt. Embora em um primeiro momento possa haver um aparente distanciamento entre as obras dos dois artistas, talvez elas se aproximem ao associarmos a ideia de "retardamento" das obras de Duchamp56 com o "espessamento" da materialidade de Beuys. Ambos parecem "adensar" a experiência da obra prolongando-a no tempo e no espaço, tirando os materiais de suas "clarezas", deslocando-os para um lugar de incerteza e levando-os a dizerem coisas 56 Para Octávio Paz, Duchamp seria o "duplo oposto" de Picasso (o artista da ação, da realização das formas, do acelerado estado de materialização e concretização de ideias) por ser um artista do retardamento, da lentidão, do silêncio e do estado de espera e maturação. PAZ, 2014, p. 7 - 9. 53 que contradizem o fluxo utilitário e funcional de suas origens. Tanto o vidro quebrado de Duchamp quanto a cadeira coberta de gordura de Beuys (fig. 35) parecem dizer que as coisas não servem mais ao que aparentavam servir nem aparentam mais ao que eram quando "serviam" a algo. As coisas não são mais transparentes e ordenadas; elas são densas, informes, opacas e reagem às forças vivas que as rodeiam. E enquanto houver calor e vida pulsando em torno, elas estarão definitivamente inacabadas. Figura 36 (ac.) – Olafur Eliasson. The Mediated Motion, 2001 / Foto: Markus Tretter. Figura 37 (ab.) – Laura Vinci. No Ar, 2017. / Foto: Laura Vinci. 54 Mas a ideia de opacidade do mundo aparece de forma ainda mais explícita em obras recentes como a de Olafur Eliasson, Laura Vinci e Francis Alÿs, artistas que evocam a instabilidade e a nebulosidade de forma quase literal. Os trabalhos Yellow fog (1998/2008) e Your natural denudation inverted (1999) de Olafur, por exemplo, utilizam efeitos enevoados de fumaça e vapor que ocupam o ambiente e limitam ou modificam a visibilidade. Em The Mediated Motion (fig. 36), o artista cria ambientes artificiais interiores que emulam a experiência da paisagem. Em uma das salas, a neblina ocupa o ambiente e envolve a ponte flutuante por onde o visitante transita e de onde descortina a paisagem esbranquiçada e indefinida que esconde seus limites, contornos e fronteiras. O trabalho No Ar, de Laura Vinci, instalado em diversos locais desde 2010, também joga com a ocupação dos espaços pela atmosfera nebulosa (fig. 37). Através da pulverização de vapor ela modifica o ambiente e cria uma obra que não tem forma nem contorno preciso. Uma ocupação no tempo e no espaço, em que a perda da visibilidade e do controle constrói imagens, vislumbres e percepções surpreendentes da paisagem; onde nada é estático e nada permanece. Figura 38 – Francis Alÿs, Tornado, 2000-10 / Foto: Julian Devaux. Nesse sentido, Francis Alÿs parece radicalizar ainda mais a experiência de bloqueio da visibilidade. Quando lança-se, depois de uma corrida por um campo aberto, para dentro de furacões de poeira na obra Tornado (fig. 38), age como aquele que persegue a opacidade e 55 o descontrole, na busca de um espaço atmosférico de total ausência de clareza e ordem. As fotografias feitas por Julian Devaux registram a aproximação da figura de Alÿs à grande nuvem marrom em movimento, na iminência do encontro. Apesar de impressionantes enquanto imagens, são registros que, distanciados da ação, posicionam os elementos (planície, ser humano correndo, mancha de poeira suspensa) em uma ordem definida e nítida, e formam uma composição ordenada e objetiva. Já os vídeos realizados pelo próprio artista durante suas corridas até os tornados têm uma outra natureza: os registros são trêmulos e desfocados devido ao movimento da corrida, vindo a se tornar opacos e indistintos, tomados por manchas marrons abstratas a medida em que o artista penetra na nuvem de poeira (fig. 39). O ruído ofegante da respiração do artista e o zumbido do tornado realçam a atmosfera de perturbação e abalo da normalidade. Uma perturbação que, em suas imagens irregulares e algo tumultuadas, parecem capazes de nos transportar para o interior do mistério e da estranheza da ação de Alÿs. Diferentemente do registro fotográfico, onde os fatores do acontecimento estão claros, há um mergulho sensorial que dificulta uma definição discursiva da obra. Aqui, a opacidade e a vivência do corpo parecem se sobrepor à clareza de seus elementos visuais. Figura 39 – Francis Alÿs, frame do vídeo Tornado, 2000-10. / Site do artista Mas não seria a privação da visão uma outra maneira de ver? Talvez seja o que insinua Paul Celan, poeta judeu que sobreviveu ao holocausto: Olhos cegos para o mundo, / Olhos nas 56 fendas do morrer, / Olhos olhos: / Não leias mais – olha! / Não olhes mais – vai!57. Maurice Blanchot, ao analisar os versos em Uma voz vinda de outro lugar, associa essa visão "cega" a um mover-se, à um errar em busca de algo que está para além do visível; um movimento ininterrupto – porém sem objetivo definido – em meio a um vazio que nos olha58, visto que também a eternidade é cheia de olhos (...) Aí a escuridão / olhada atenta59. Nessa mesma direção Didi-Huberman evoca, a partir de um relato de Pasolini, as pequenas luzes intermitentes que brilham na noite escura como focos de resistência à barbárie60. O ataque a esses lucciole não viria da escuridão que os rodeia – visto que é nela que suas luzes podem brilhar – mas sim do ofuscamento provindo das luzes artificiais. Um ofuscamento que tem como sua imagem mais violenta os fortes holofotes que, no contexto do fascismo italiano, eram a imagem da vigilância totalitária; mas que também poderiam representar a imagem da sociedade do espetáculo e da mercadoria – um tipo de “neofascismo televisual” que absorve tudo61. Para o autor, no entanto, os pequenos brilhos intermitentes de resistência não apenas persistem e sobrevivem, mas são a própria capacidade de imaginação que segue como princípio de esperança e condição de nosso modo de fazer política. Didi-Huberman evoca o pensamento de Giorgio Agamben a respeito da necessidade de se obscurecer o espetáculo do século para que se possa ver a luz que procura nos alcançar e não consegue62. Para isso, seria preciso deixar surgir "tudo que, por contraste, desenha zonas e redes de sobrevivências no lugar mesmo onde se declaram sua extraterritorialidade, sua marginalização, sua resistência, na vocação para a revolta"63; para que então percebamos que a destruição nunca é absoluta. Para esses autores da contemporaneidade, as imagens poéticas seriam lampejos, belezas intermitentes, brilhos frágeis, "portas estreitas" que transpõem o tempo investido pelo pensamento64 e que são capazes, por sua força dialética, desviante e fugaz, de germinar e 57 CELAN apud. BLANCHOT, 2011. p. 79. 58 BLANCHOT, 2011, p. 79 - 85. 59 CELAN apud. BLANCHOT, 2011, p. 83. 60 DIDI-HUBERMAN, 2011. 61 Ibid., p. 39. 62 AGAMBEN, 2009, p. 65. 63 DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 72. 64 BENJAMIN apud Ibid., p. 116. 57 renascer das cinzas mesmo em meio ao ofuscamento totalitário. Sobrevivências que, atravessando a escuridão, revelam, como brechas, as múltiplas camadas da existência. Sonhos e saberes que também se tornam profecias, constituindo forças capazes de trazer à tona a indestrutibilidade do desejo, uma comunidade "de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir"65. Diante da falência dos modelos de futuro que pregavam a visibilidade e a compreensão total dos fenômenos, essa indeterminação talvez seja justamente uma via de acesso para ir ao encontro de novas formas de ver e de entender o mundo. A nuvem, a névoa, a fumaça, a poeira, os espaços espessos, densos, opacos; as paisagens que escondem mais do que mostram, que confundem mais do que esclarecem; as zonas que provocam desvios, fragmentação e incerteza podem ser imagens de vias desconhecidas e por vezes alarmantes, mas também podem representar situações em suspenso, incompletas e abertas à novas possibilidades de invenção e criação. No nevoeiro que nos condena à impossibilidade de tudo ver, no balançar da realidade movediça que nos rodeia e desequilibra, seria preciso, segundo Wisnik, assumir a condição amorfa, nebulosa e informe dos territórios em que estamos e através disso buscar meios de compreendê-los e de ativá-los; seria preciso realizar um mergulho voluntário, como a corrida de Francis Alÿs para dentro do tornado66. Como uma espécie de reação ao excesso de visibilidade que nos invade e vigia – e contra o qual não podemos “mostrar a língua" – talvez o embaçamento e a opacidade possam se revelar como camadas de proteção, resistência e inventividade. A 34ª Bienal de São Paulo, realizada em 2021 em meio ao contexto de isolamento social imposto pela pandemia de Covid 19, apontou nesse sentido com seu título Faz escuro mas eu canto, verso do poeta Thiago de Mello. A curadoria teve como uma de suas referências o pensamento de Edouard Glissant (1928-2011), filósofo martinicano que reinvindica o direito à opacidade como condição necessária para se desenvolver um verdadeiro senso de alteridade. Em sua Poética da relação, o autor contesta a necessidade da transparência como condição para a coexistência das diferenças67, e 65 DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 154 - 155. 66 WISNIK, 2018, p. 265-267. 67 GLISSANT, 2021, p. 219-220. 58 defende que a opacidade possibilitaria a convivência e a solidariedade sem que se faça da relação com o outro um exercício de dominação e imposição de conceitos e valores68. O estado enevoado, portanto, parece guardar em si tanto paradoxos quanto múltiplas possibilidades de apresentação. Suas formas de surgimento, ao que tudo indica, não se mostram através de um único ponto de vista ou perspectiva. Aliás, parecem nunca se mostrar por inteiro, guardando um espécie de ponto cego. Na pintura, o enevoamento aparentemente tanto mostra quando esconde a imagem. Como as paisagens brancas de Armando Reverón, parecem guardar uma espécie de mistério. Contemporâneo às vanguardas europeias, o pintor venezuelano jamais participou dos círculos intelectuais do início da modernidade. Ainda assim, realizou uma obra considerada inauguradora da modernidade em seu país, trabalhando não por uma via conceitual, mas por uma “aproximação orgânica e corpórea ao mundo e às coisas” 69 (fig. 40). Da vivência do corpo parece surgir um transbordamento. Imagens inundadas de luz, mas que com isso se tornam opacas. Em que o que é luz, ofusca; e o que mostra, esconde. E, misteriosamente, o que esconde parece ser capaz de nos mostrar outros aspectos, não percebidos e desconhecidos, da imagem. Como é possível esse paradoxo no plano da imagem, especialmente no âmbito da pintura? Como se constituiu que as estruturas enevoadas parecem ser, simultaneamente, algo que recobre a imagem, ocultando-a, e parte intrínseca do que a faz visível? O que acontece na névoa, que nos escapa? Através das perspectivas do historiador da arte Hubert Damisch, tentaremos explorar os meandros da imagem da “nuvem” na história da pintura, de forma a compreender um pouco da essência e do comportamento desse elemento visual. Para isso retomaremos o processo pelo qual a invenção de certas estruturas específicas de representação delimitaram as formas de olhar do mundo ocidental e, ao mesmo tempo que excluíram outras, implicaram em modos de ver o mundo que persistem, em certos aspectos, até os dias de hoje. 68 Apud. FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO (org.), 2020, p. 16. 69 Luís Peres Oramas, em palestra preparatória da 30ªBienal. Cf. , acesso em 10 abril 2022. 59 Figura 40 - Armando Reverón. Rancho em Macuto, 1927. / Coleção particular 60 61 Cap. II - A Teoria da /nuvem/: o enevoamento na pintura a partir de Hubert Damisch Tela, tecido, parede. Sobre estes ou outros materiais, sobrepõem-se camadas de tintas, pigmentos, objetos... Da preparação de seus suportes à realização, a pintura parece ser um constante esforço de opacidade. E, no entanto, ela deixa ver. Em sua superfície, pode surgir a impressão de que certas imagens a transpassam em direção ao fundo; outras aparentam se fixar – mais flutuantes ou mais pesadas – na fronteira exata do bloqueio material que as sustenta; e outras por fim parecem habitar o ar diante de nossos olhos, livres no espaço. Um processo que guarda uma materialidade específica – seja madeira, papel, tela, tinta, pigmento... – mas que, em sua aparência, parece se tornar uma outra coisa: uma pintura. Não se nega que ela seja composta por toda a concretude que a constitui, mas também parece difícil dizer que ali não haja algo mais do que a simples somatória dos materiais nela empregados. Um procedimento que parece envolver um conjunto de materiais numa espécie de "dupla existência" – a de suas constituições específicas e a sua participação em uma imagem que surge a partir do todo dos elementos. Essa segunda existência, revestida do conceito "pintura", parece em um primeiro momento se sobrepor consideravelmente por sobre as características particulares de cada um dos materiais. No entanto, são estas mesmas particularidades materiais que darão ao conjunto sua característica própria, construindo com maior ou menor potência aquilo que a imagem nos "deixa ver", ou não… Uma dialética constante entre ver e não-ver, entre transparência e opacidade, entre materialidade e visualidade que parece balizar a experiência da pintura. . . . Enquanto linguagem visual complexa, portanto, a pintura também traz muitos desafios no que diz respeito ao discurso verbal. Muitos são os artistas, teóricos e filósofos que desfiam tentativas de trazer palavras para a experiência da pintura. Todas elas enriquecem a experiência artística na medida em que escavam e destrincham seus pormenores técnicos, significados, inter-relações e paralelos conceituais. Mas nada parece substituir a experiência direta da imagem pictórica. “O que tento lhe traduzir é mais misterioso, se 62 enreda nas raízes mesmas do ser, na fonte impalpável das sensações”70 é a epígrafe escolhida por Merleau-Ponty para iniciar suas reflexões sobre a pintura. Para o filósofo, é na complexidade de trocas entre o que é visível e aquele que vê, entre a mão que toca e o que é tocado, entre as coisas do mundo e o eco que suas qualidades de luz e cor provocam em nosso corpo, que se situam as experiências da pintura71. Figura 41 – Robert Ryman, Gate, 1995. / Coleção particular Artífice do mundo, a pintura seria capaz de dar existência visível ao que se crê invisível, fazendo o olho habitar as texturas do mundo como uma morada e, como um espelho do universo, revelar ao corpo, através da visão, a gênese das coisas visíveis72. “Essência e existência, imaginário e real, visível e invisível, a pintura confunde todas as nossas 70 GASQUET, J., apud. MERLEAU-PONTY, 2013, p. 15. 71 Ibid., p. 21. 72 Ibid., p. 23-25. 63 categorias ao desdobrar seu universo onírico de essências carnais, de semelhanças eficazes, de significações mudas”73. Diante disso, seria preciso ressaltar os limites do discurso sobre a pintura e esgarçar seus caminhos, trazendo ao percurso verbal uma multiplicidade de aspectos e parâmetros. É o que parece ter tentado o historiador da arte Hubert Damisch em seu trabalho. Doutor em filosofia pela Sorbonne, onde foi aluno de Merleau Ponty e Pierre Francastel, Damisch fundou o Centre d'histoire et théorie des arts (CEHTA) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em Paris, onde foi professor de 1975 a 1996. Em constante diálogo com a antropologia, a semiologia, a psicanálise e a linguística, sobretudo em suas correntes estruturalistas e pós-estruturalistas, desviou-se no entanto constantemente das categorizações e escolas, trabalhando de forma a compor uma trama complexa e ampla o bastante para capturar as múltiplas facetas de seus objetos de estudo, em um constante esforço de "deslocar conceitos", jogar com eles e torná-los mais elásticos74. Segundo Yves Alain Bois, as frases labirínticas do filósofo que "fagocitam o leitor" são parte de uma espécie de "modelo pedagógico" que fricciona disciplinas de forma a mobilizar o pensamento e fazê-lo explorar zonas mais amplas. Uma espécie de "banho forçado" que exige um lento e ativo trabalho de digestão e reflexão por parte de quem se aventura, fazendo dos obstáculos as alavancas para alcançar novos panoramas75. Aqui também a metáfora de "deixar-se capturar'', de deixar-se envolver por uma trama composta de clarezas e obscuridades parece se encaixar. Um método que parece querer escapar da linearidade do discurso e penetrar em formas mais complexas de pensamento. No seu livro A pintura como modelo, Yves Alain Bois presta tributo a Damisch, seu professor e precursor que, segundo ele, "levou à sério" a pintura no sentido de “compreendê-la não como uma ilustração de uma teoria, mas como um modelo, um modelo teórico em si mesmo"76. Segundo Bois, Damisch se posiciona no "centro da invenção pictórica" para apresentá-la como uma forma modelar para a elaboração do mundo, um "operador teórico" 73 MERLEAU-PONTY, 2013, p. 28. 74 DAMISCH; BANN, 2016, p.30 75 BOIS, 2018, p. 17-18. 76 Id., 2009, p. XL. 64 conduzido por mecanismos e procedimentos próprios77. Este "modelo" seria relativo a quatro âmbitos: − Perceptivo (como a desestabilização da percepção que se dá diante da ambiguidade da relação figura/fundo, por exemplo). − Técnico (como nos modos de "entrelaçar" linhas e superfícies em relação à espessura da tinta, em uma espécie de "tecer" de camadas). − Simbólico (na constituição de imagens que oferecem chaves para a interpretação do mundo tanto na ciência quanto na linguagem). − Estratégico (nas relações não lineares que cada obra estabelece com suas técnicas, símbolos, contexto, público, etc.. perfazendo uma lógica que é da ordem do "jogo")78. A posição de Damisch em relação à pintura também é explicitada em seu texto Oito teses sobre a pintura, em que analisa a possibilidade da pintura ser apreendida (ou não) fora de seu campo específico (no terreno da semiologia por exemplo, que tende a pensá-la como um "sistema de signos")79. Quanto a isso, o autor defende que a pintura, apesar de ser composta por um conjunto de sinais e marcas, contém uma multiplicidade, heterogeneidade e um uso de elementos não-miméticos que faz com que a tentativa de levá-la para a ordem discursiva (classificando-a e interpretando-a segundo a organização sígnica do discurso) não deixe de ser uma redução e restrição de sua apreensão enquanto campo específico80. Se cada sistema só pode ser totalmente apreendido em sua própria maneira de expressar e significar, a pintura só poderia responder a uma ordem de signos caso estes fossem vistos a partir de um outro recorte – um lugar “transdisciplinar” ou “trans- histórico”, muito além de suas contingências correntes. Teríamos nesse caso que buscar uma "semiologia da imagem'' que não se reduza à instância do signo, mas que se localize sobretudo em um campo de articulação, um espaço de distanciamento entre o visível e o legível, entre o simbólico e o semiótico81. 77 BOIS, 2009, p. 312-313 78 Ibid, p. 302-313 79 DAMISCH, 2012, p.163-164. 80 Ibid, p.166-167. 81 Ibid, p.169-172 65 Em sua complexidade, o significante proveniente dessa espécie de "textualidade pictórica'' não poderia ser produzido ou reconhecido da exterioridade. Ao contrário, ele só se apresentaria por si mesmo, e "se revelaria" a nós apenas quando nos deixamos ser por ele "capturados"82. Se voltarmos à questão inicial, da "dupla existência" dos elementos presentes na pintura, talvez poderíamos dizer que, se por um lado os elementos materiais e formais de uma pintura talvez possam ser "lidos" separadamente (tal como "mancha, traço, pincelada, etc…") o conjunto por eles formado constitui uma imagem que se apresenta aos olhos como um todo complexo, um tecido que nos envolve e nos transporta para além da definição discursiva. Qualquer tentativa de dissecar e definir suas partes parece dissolver a inteireza da experiência corporal e algo misteriosa dessa "captura'', uma totalidade que parece ter sua definição discursiva situada numa espécie de “ponto cego”. Mesmo assim, é preciso tentar. E Damisch vai construir seu pensamento em um esforço constante de abarcar o fenômeno pictórico em sua complexidade. Para isso, vai abrir a trama da pintura em um diálogo amplo com outros campos, apoiando seu discurso nas múltiplas perspectivas que a experiência humana comporta. Em seu texto sobre a obra do historiador da arte, Ernst Van Alphen realça como, para Damisch, a pintura é a concretização de um "projeto filosófico", um ato, uma reflexão ativa que não pode ser reduzida a termos históricos ou ilustrativos83. Em vez disso, o espectador deve pensar com a obra, iniciando um diálogo amplo com questões mais gerais, filosóficas, amplas e “trans- históricas” que a transpassam (e que nos transpassam) para que assim possa abrir caminho para perspectivas mais surpreendentes e profundas da obra. Tendo como processo de pensamento essa trama de caminhos e percursos, Damisch escolherá o elemento nuvem como protagonista de sua primeira obra de grande extensão. Este fenômeno meteorológico tão mutável e volátil quanto visível e cotidiano, consequência do cruzamento e da fricção de diversos elementos atmosféricos e tão variado em suas formas quanto o são as inumeráveis combinatórias entre vento, pressão, clima, umidade e temperatura do ar, parece se adequar à complexidade do pensamento de 82 DAMISCH, 2012, p. 172. 83 VAN ALPHEN, 2006, p. 93-95. 66 Damisch. Um elemento múltiplo e impalpável que se desfaz no ar, mas que ainda assim é indicador de uma série de fenômenos do ambiente circundante. Se consultarmos o termo nuvem em um dicionário, teremos os seguintes aspectos principais: − METEOR. Condensação atmosférica visível, formada por alta concentração de minúsculas gotas de água ou de cristais de gelo em suspensão no ar, e que dá origem às chuvas. − POR EXT. Qualquer porção acumulada de fumaça, pó, gases etc... que se eleva no ar. − Grande quantidade de coisas (geralmente insetos) em movimento; montão. − Embaçamento temporário que escurece a visão; escurecimento passageiro. − FIG. Aquilo que impossibilita ou dificulta a compreensão e o raciocínio.84 Fig. 42 – Gerhard Richter. Nuvem, (óleo sobre tela), 1970 / National Gallery of Canada, Ottawa. Ainda que as questões atmosféricas não estejam no escopo do tratado de Damisch, os conceitos de "condensação visível”, "acumulação'', "embaçamento temporário" e "grande quantidade de coisas em movimento'' parecem refletir o próprio método de trabalho do autor. Esse, como uma nuvem, parece desdobrar-se em formas diversas para, da multiplicidade e da complexidade de seus elementos, ir aos poucos expondo e elucidando os princípios que o organizam. Como na experiência com a pintura, é um pensamento que 84 Disponível em , acesso em 14 de janeiro de 2021. 67 inicialmente aparenta estar repleto de "opacidades", mas que através do acúmulo e da sobreposição de “camadas” acaba por nos "deixar ver" algo. Uma escrita que demanda uma exploração quase arqueológica do destrinchar das frases e conceitos, mas que dessa forma alcança camadas mais profundas do seu objeto de estudo – a obra em si85. Além disto, na Théorie du /nuage/: pour une históire de la peinture86, o ‘objeto’ nuvem será justamente uma demonstração do que ele irá chamar de sintoma. Contrariando as abordagens que seguem a lógica formalista de Heinrich Wölfflin e a iconologia de Erwin Panofsky, Damisch vai justamente relativizar a pretensão de "legibilidade absoluta da obra" e cunhar o conceito de sintoma como um elemento capaz de subverter a hegemonia e a homogeneidade dos sentidos da imagem, produzindo dilaceramentos e quebras de padrões87. Segundo Stéphane Huchet, o sintoma seria "a via promovida pelas imagens para revelar (...) sua estrutura complexa e suas latências incontroláveis"88. E é para demonstrar essas latências e abrangências que Damisch irá trazer a questão da nuvem, um conceito que o fará explorar a história da arte pelas vias do teatro, da linguística e da história das ciências, dentre outros aspectos. Vale observar, como vemos no próprio título do tratado, que o autor irá servir-se do termo nuvem entre barras ( /nuvem/ ) de forma a indicar sua utilização enquanto significante da pintura, visto que é dessa forma que ela marcará sua presença no âmbito da imagem. Enquanto parte da complexidade que o discurso visual constrói, a /nuvem/ implicará questões que vão muito além do sentido denotativo e do significado corrente da palavra89. A seguir, será feito um percurso pelas principais ideias desenvolvidas por Damisch na Théorie du /nuage/, de forma a explorar seus aspectos, ampliar o olhar para a presença e o significado desse elemento na pintura e desdobrar as possibilidades poéticas que ele contém. 85 Para a qual ele cunharia o termo "objeto teórico" (SALZSTEIN, 2018). 86 DAMISCH, 1972. 87 BARROS, 2012, p. 106-107. 88 HUCHET, 2010, p. 17. 89 Aqui, utilizaremos a mesma forma gráfica proposta pelo autor quando nos remetermos à esses mesmo aspectos. Quando da utilização do termo em sentido mais corrente, ele será grafado sem barras ou apenas em itálico. 68 A nuvem – índex Partamos do mesmo ponto de partida de Damisch: as pinturas de Antonio da Correggio (1489-1534) em Parma. Tanto a Visão de São João em Patmos (1520-21), realizada na cúpula da Igreja de São João Evangelista, quanto a Ascensão da Virgem (fig. 43), na Catedral de Parma, são representativas, para o autor, das primeiras questões a serem observadas para a compreensão do sintoma /nuvem/ na pintura. Fig. 43: Antonio da Correggio. Ascensão da virgem, 1526-1530 / Domo da Catedral de Parma. Na estrutura octogonal do domo que é suporte para a pintura da Catedral, uma massa de nuvens densas é representada formando uma espécie de espiral cônica, deixando uma área iluminada e aberta na região central. As dezenas de figuras da cena estão posicionadas ao longo dessa espiral sob uma perspectiva di sotto in su90, que faz com que vejamos em primeiro plano suas pernas balançando por entre pedaços de nuvens (fig. 44). Uma imagem 90 Expressão italiana para o ponto de vista "de baixo para cima", que foi desenvolvido e utilizado em pinturas de teto no Renascimento italiano e muito característico do período Barroco. 69 que inicialmente parece produzir uma certa confusão visual, dada a quantidade de elementos corporais aparentemente desconexos do conjunto. A organização da imagem retorna, no entanto, quando atentamos novamente à estrutura espiralada da nuvem e ao núcleo de claridade onde flutua a figura do Cristo com suas pernas voltadas ao centro geométrico da cúpula (curiosamente próximo ao calcanhar da figura). A Virgem, personagem supostamente principal da obra, está enredada em meio às nuvens, quase invisível na região onde o conjunto de figuras é mais denso (fig. 45). A impressão inicial desse quadro é no mínimo intrigante, dada a ambiguidade que ele provoca, entre uma estrutura praticamente geométrica da imagem e o jogo complexo e tumultuado do entrelaçar das figuras humanas por entre as volumes de nuvens. Figura 44 e 45: Antonio da Correggio. Detalhes da Ascensão da virgem, (1526-1530). Ao contrário dos pintores de sua época, que ainda aplicavam nas pinturas de cúpulas e tetos as figuras e os efeitos da pintura de cavalete, Correggio, segundo Damisch, buscou uma "negação" do edifício e de seu fechamento, efetuando uma pintura que parece "furar" a cúpula e se abrir para o infinito do céu que está por cima dela91. Um tipo de perspectiva que, tendendo para o infinito, parece se desfazer do cubo perspectivo e do espaço ortogonal fechado e regularmente iluminado do Quattrocento, vindo a ser considerada por muitos historiadores da arte uma manifestação inaugural do espaço pictórico designado como 91 DAMISCH, 1972, p.11. 70 barroco92. Este, que virá a se impor enquanto estilo apenas um século depois de Correggio, é reconhecido por seus efeitos ilusionistas, teatralizados, movimentados e espetaculares tal como é possível reconhecer nas cúpulas de Parma. E o elemento /nuvem/ terá, segundo Damisch, justamente um papel central nessa "teatralidade'' do barroco. No caso da Ascensão de Parma, são as nuvens que irão proporcionar à cúpula a imagem de um túnel ascensional em direção às alturas divinas reveladas pelo centro iluminado. Uma espécie de cenografia que simula o movimento de voo da passagem bíblica correspondente. Uma cena ambígua, no entanto, visto que é representada por massas compactas e “sólidas” que pretendem se subtrair ao peso e levar consigo os corpos das figuras. No entanto, para além das características da composição, a imagem levanta uma outra questão que terá para Damisch uma grande relevância ao longo de todo seu estudo. Pois ao subtrair o peso das figuras, as massas de nuvens também irão aparentemente subtraí-las da organização da perspectiva linear que rege a imagem do espaço renascentista93. Essa organização geométrica do espaço, que detalharemos mais adiante, organiza o campo pictórico através de contornos retilíneos que produzem a ilusão de profundidade e foi amplamente utilizada pelos pintores contemporâneos a Correggio. As nuvens do domo de Parma, no entanto, apesar de aparentemente camuflarem as linhas da perspectiva, também não se prestam a uma ambientação etérea de uma suposta perspectiva atmosférica (organização espacial baseada nos efeitos de cor). Ou melhor, segundo Damisch, talvez elas flutuem justamente numa espécie de zona intermediária entre as duas formas de espacialidade. Uma ambiguidade que parece interessar ao artista, visto que o elemento /nuvem/, com os efeitos e justaposições que proporcionam esse tipo de paradoxo visual, será um elemento recorrente nas suas pinturas. Para além de recurso estilístico, a /nuvem/ forneceria material para um certo tipo de construção espacial, favorecendo uma situação ambígua capaz de assumir diferentes registros e atuar em níveis distintos da imagem, simultaneamente94. Algo que, como já mencionado, parece ser caraterístico do próprio registro pictórico. 92 DAMISCH, 1972, p.15. 93 Ibid , p 28. 94 Ibid, p. 28-31. 71 Tal como exposto inicialmente, a pintura é uma estrutura visual que joga com a simultaneidade de planos, entre a materialidade de suas substâncias e a virtualidade de suas imagens, entre a opacidade e a transparência. O próprio Damisch nos recorda que a pintura não se reduz a “ícones”; mas é composta por um complexo jogo de textura e materialidade que não é desimplicada de seus efeitos95. Para o autor, as teorias que pretendem que a materialidade de um objeto seria “neutralizada” pela imagética que ele provoca em nós fracassam diante da constatação que é a própria matéria que compõe a imagem, não ape