GABRIEL FERNANDES XAVIER RECOMPOR ENTRE ESCOMBROS: Música Transtextual e a Identidade Reificada São Paulo 2024 GABRIEL FERNANDES XAVIER RECOMPOR ENTRE ESCOMBROS: Música Transtextual e a Identidade Reificada Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Música. Linha de pesquisa Criação Musical: Composição e Performance. Orientador: Prof. Dr. Florivaldo Menezes Filho São Paulo 2024 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. X3r Xavier, Gabriel Fernandes, 1992- Recompor entre escombros : música transtextual e a identidade reificada / Gabriel Fernandes Xavier. -- São Paulo, 2024. 333 f. : il. + apêndices Orientador: Prof. Dr. Florivaldo Menezes Filho. Tese (Doutorado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Música - Filosofia e estética. 2. Crítica musical. 3. Música - Sociedades, etc. I. Menezes Filho, Florivaldo, 1962-. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 780.1 Bibliotecária responsável: Luciana Corts Mendes - CRB/8 10531 GABRIEL FERNANDES XAVIER RECOMPOR ENTRE ESCOMBROS: música transtextual e a identidade reificada Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Música. São Paulo, 27 de março de 2024 BANCA EXAMINADORA ____________________________________ Prof. Dr. Florivaldo Menezes Filho Departamento de música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ____________________________________ Prof. Dr. Maurício Funcia De Bonis Departamento de música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ____________________________________ Prof. Dr. Vladimir Pinheiro Safatle Departamento de filosofia da Universidade de São Paulo ____________________________________ Prof. Dr. Sergio Kafejian Cardoso Franco Departamento de música da Faculdade Santa Marcelina ____________________________________ Prof. Dr. Rodolfo Nogueira Coelho de Souza Departamento de filosofia, ciências humanas e letras da Universidade de São Paulo AGRADECIMENTOS Sem o contato, discussão e colaboração com algumas pessoas, este trabalho nunca poderia ter tomado o rumo e a forma que tomaria; a elas, destino a minha gratidão. Ao meu orientador, Flo Menezes, pela luz artística e intelectual capaz de iluminar os mais diversos problemas da Música Nova de maneira engajada e contundente, agradeço imensamente. Sem a sua visão crítica e sugestões, este texto não chegaria à forma que chegou. No mesmo sentido, agradeço a Maurício De Bonis, cujas críticas no exame de qualificação, assim como as recomendações bibliográficas, foram levadas em ampla consideração no desenvolvimento subsequente do trabalho analítico. Minha participação no Atelier de Composição Lírica do Theatro São Pedro possibilitou a composição de, muito provavelmente, a maior obra em que pude investigar a poética transtextual em suas múltiplas matizes, a ópera O Presidento – Banda dos Ministérios (2022). Por esta oportunidade artística, agradeço à Santa Marcelina Cultura e ao seu diretor artístico-pedagógico e idealizador do projeto, Paulo Zuben. Aos meus caros amigos que dispuseram não apenas de sua consistente companhia mas, sobretudo, empreenderam calorosas discussões que em muito contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho, minha profunda gratidão, em especial a Ana Guariglia, Gustavo Bonin, João Batista de Brito Cruz e Wellington Gonçalves. Aos amigos intérpretes que igualmente contribuíram com inestimáveis ensinamentos sobre a prática real da qual parte e retorna toda abstração da poética musical, e agradecimento especial àqueles músicos que trouxeram à vida as obras expostas neste trabalho: Fabio Simão, Fernando dos Santos, Jefferson Machado, Laiana Oliveira e Rodrigo Prado. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. RESUMO A música transtextual, caracterizada pelo entrecruzamento de textos musicais, encontra-se em ampla conexão com os processos histórico-sociais que determinam o surgimento do objeto musical enquanto objeto aparentemente independente de seu contexto produtivo. Esta conexão ocorre a partir do espelhamento, expresso em determinados processos composicionais, de uma razão reificada que naturaliza as relações econômicas em enunciados objetivos. O entrecruzamento de textos musicais, então, assume a feição de uma relação abstrata entre objetos e, simultaneamente, internaliza no material musical o princípio de equivalência que guia as relações produtivas e econômicas. Agindo no sentido contrário, diversas obras expressarão criticamente este estado de coisas e, a partir de posições diferentes, colocarão em questão o estatuto reificado do objeto musical. Neste sentido, a poética transtextual oferecerá uma – entre inúmeras – respostas para esta problemática, foco principal do trabalho. Para abordar este problema, investigaremos a transformação do trabalho do músico em relação ao objeto musical sob uma ótica marxista valendo-nos, principalmente, dos trabalhos de György Lukács e Isaak Rubin. Em um segundo momento, colocaremos o problema da atual crise da crítica conforme analisado por Peter Sloterdijk na obra Crítica da Razão Cínica. Os resultados desta primeira abordagem auxiliarão no entendimento de como, a partir do dialogismo linguístico, as formas ideológicas verter-se-iam na prática transtextual. Por fim, analisaremos quatro obras do próprio autor que expressam distintos métodos e categorias transtextuais em correlação com a crítica da reificação. Palavras-chave: transtextualidade; poética musical, crítica da reificação; razão cínica. ABSTRACT Transtextual music, characterized by the intertwining of musical texts, is in broad connection with the historical and social processes that determine the emergence of the musical object as an object apparently independent of its productive context. This connection occurs through the reproducing, expressed in certain compositional processes, of a reified reason that naturalizes economic relations in objective statements. The intertwining of musical texts then takes on the appearance of an abstract relationship between objects and simultaneously internalizes in the musical material the principle of equivalence that guides productive and economic relations. Acting in the opposite direction, various works critically express this state of objects and, from different positions, question the reified status of the musical object. In this sense, transtextual poetics will offer one – of many – answers to this problem, which is the main focus of this work. To address this problem, we will investigate the transformation of the musician‟s work and the musical object from a marxist perspective, drawing mainly on the works of György Lukács and Isaac Rubin. Secondly, we will place the problem in the current crisis of criticism as analyzed by Peter Sloterdijk in his work Critique of Cynical Reason. The results of this first approach will help us understand how, based on linguistic dialogism, the ideological forms that are poured into transtextual practice. Finally, we will analyze four of the author‟s own works that express different transtextual methods and categories in correlation with the critique of reification. Keywords: transtextuality; musical poetics; critique of reification; cynical reason. LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURAS Figura 1 – Redução de Sinfonia de Navios Andantes de Gilberto Mendes ................... 74 Figura 2 – Estrutura harmônica de Sinfonia de Navios Andantes ................................ 75 Figura 3 – Primeiros compassos de Solo I (2002) para violoncelo ............................... 76 Figura 4 – Parte de trompete da terceira seção (Militiamen) de Living Toys ................ 80 Figura 5 – Compassos iniciais de Paraphrase on Powder Her Face ........................... 82 Figura 6 – Redução da Missa L’Homme Armé de Guillaume Dufay ......................... 110 Figura 7 – Série dodecafônica do Concerto para violino de Alban Berg e citação da Cantata de Bach .................................................................................................. 114 Figura 8 – Redução de dois trechos do Concerto para violino .................................. 115 Figura 9 – Fragmentos de dois recitativos de L’Orfeo de Claudio Monteverdi ........... 116 Figura 10 – Resumo dos quatro primeiro compassos d‟O Canto do Cisne Negro (1917) de Heitor Villa-Lobos ................................................................................... 119 Figura 11 – Três fragmentos da terceira das Cinco peças para piano op. 23 de Arnold Schoenberg .................................................................................................. 122 Figura 12 – Redução de fragmento da sexta seção (VI) de Le Marteau Sans Maître de Pierre Boulez ........................................................................................... 122 Figura 13 – Trecho do Ragtime (A) da Histoire du Soldat de Igor Stravinsky ........... 125 Figura 14 – Dois trechos dos minuetos I e II da Suíte Antiga op. 11 de Alberto Nepomuceno ............................................................................................................ 128 Figura 15 – Início da quarta fuga de Ludus Tonalis de Paul Hindemith .................... 133 Figura 16 – Dois fragmentos da Walzer da op. 23 de Schoenberg e dois fragmentos de valsas de Johann Strauss I ................................................................. 140 Figura 17 – Conjuntos intervalares dos esboços de Palimpsesto-Sonata .................... 144 Figura 18 – Três modos derivados dos grupos intervalares ....................................... 145 Figura 19 – Duas perspectivas dos modos em Palimpsesto-Sonata ............................ 146 Figura 20 – Modo reduzido à oitava produzido com os intervalos de terça maior e terça menor .............................................................................................................. 146 Figura 21 – Oito modos hexacórdicos formados a partir de diferentes grupos intervalares .............................................................................................................. 147 Figura 22 – Modulação intervalar progressiva do motivo da sonata op. 111 ............. 148 Figura 23 – Estrutura harmônica da seção A.4. de Palimpsesto-Sonata .................... 149 Figura 24 – Primeiros compassos da Sonata op. 111 de Beethoven ........................... 149 Figura 25 – Dois trechos da primeira página de Palimpsesto-Sonata ........................ 150 Figura 26 – Exposição da sonata de Beethoven e sétima página de Palimpsesto ....... 151 Figura 27 – Análise motívica do Trio op. 82 de Haydn e de L’Essere è Deriva ......... 153 Figura 28 – Representação espacial de uma matriz de [1, 3, 4] horizontal e [1, 2] vertical ..................................................................................................................... 155 Figura 29 – Exemplo de uma escala de durações ...................................................... 156 Figura 30 – Análise motívica de Chorinho na Praia e série dodecafônica depreendida deste motivo ......................................................................................... 161 Figura 31 – Exemplo de técnica de “verticalização” paródica ................................... 161 Figura 32 – Técnica de permutação com variação de oitavas .................................... 162 Figura 33 – Identidade harmônica “E”, acorde geratriz da estrutura harmônica da ópera O Presidento .................................................................................................. 166 Figura 34 – As nove simultaneidades moduladas ...................................................... 167 Figura 35 – O decacorde assimétrico E (EP) ............................................................. 168 Figura 36 – Nove modos deduzidos dos decacordes ................................................. 170 Figura 37 – Três camadas de duração da Passacalha ................................................ 171 Figura 38 – Melodia da Marcha Rancho .................................................................. 173 Figura 39 – Modo maior em comparação com sete décimos do modo “A” ................ 173 Figura 40 – Combinação do “enquadramento” modal e modulação diferencial em Mamãe eu Quero ..................................................................................................... 174 Figura 41 – A melodia de Coco Capim da lagoa e sua paródia em fabordão.............. 175 Figura 42 – Paródia de Sederunt Principes de Pérotin ............................................... 176 QUADROS Quadro 1 – Seis categorias hipertextuais definidas por Gérard Genette ..................... 130 Quadro 2 – Quadro bidimensional da identidade harmônica da seção B de L’Essere è Deriva .................................................................................................... 155 Quadro 3 – Quatro parâmetros aleatorizados em JUKEBOX Paródia Tour ................ 159 Quadro 4 – Quadro de combinações das dez primeiras seções .................................. 159 Quadro 5 – Sobreposição de materiais referenciais a partir da 11º seção ................... 160 Quadro 6 – As oito séries principais d‟O Presidento ................................................. 169 SUMÁRIO 1 Introdução ............................................................................................................ 12 2 O objeto musical no processo social de produção: o fetichismo da música ....... 19 2.1 A forma mercadoria .................................................................................. 21 2.2 O fetichismo da mercadoria ....................................................................... 26 2.3 O objeto musical e seu processo de transformação social ........................... 28 2.4 As primeiras instituições musicais: as capelas e o mecenato ...................... 33 2.5 Do artesanato das cortes à manufatura do grande teatro ............................. 36 2.6 O mercado editorial no século XIX: concreção do objeto musical enquanto mercadoria ........................................................................................ 41 3 A reificação do objeto musical ............................................................................ 45 3.1 A influência da forma mercadoria na formação subjetiva e social: o fenômeno da reificação ................................................................................. 45 3.2 Divisão e racionalização do tempo de trabalho em correlação com a reificação do objeto musical ............................................................................. 49 4 Potenciação cínica do objeto musical: é possível a crítica da reificação na atualidade? .............................................................................................................. 55 4.1 “Sabem o que fazem, mas ainda assim o fazem”: o cinismo ...................... 56 4.2 A crise da crítica da música no século XX ................................................. 64 4.3 Figuralidade ambivalente: há uma composição cínica? .............................. 69 4.4 A distinção entre crítica e cinismo: a heterogeneidade de opostos versus a homogeneidade de elementos ........................................................................ 72 5 Intertexto: do grau zero ao palimpsesto criativo ................................................ 84 5.1 A música sob o prisma da intertextualidade ............................................... 89 5.2 Identificação e interpretação do intertexto ................................................. 92 5.3 Composição e a tensão entre textos musicais ............................................. 95 5.4 A formação do contexto ideológico do sujeito-criador ............................... 98 5.5 Entre a liberdade e a memória: a escritura como elo entre o sujeito e a criação intertextual ......................................................................................... 100 5.6 A peculiaridade da escritura musical ....................................................... 103 5.7 Uma síntese do universo referencial: a transtextualidade ......................... 105 6 Os modos transtextuais ..................................................................................... 107 6.1 O intertexto: citação e alusão ................................................................... 108 6.1.1 A citação ..................................................................................... 109 6.1.2 A alusão ...................................................................................... 112 6.2 O paratexto: títulos e esboços .................................................................. 118 6.3 O metatexto: a crítica pelo contra-texto ................................................... 120 6.4 O arquitexto: gêneros e formas ................................................................ 123 6.5 O hipertexto: transformação e imitação ................................................... 126 6.6 As seis categorias hipertextuais, entre elas a paródia ............................... 130 6.6.1 Paródia e pastiche ........................................................................ 132 6.6.2 Travestimento e charge ............................................................... 135 6.6.3 Transposição e forjação ............................................................... 138 7 Poética hipertextual em quatro obras .............................................................. 142 7.1 Palimpsesto-sonata (2020) ...................................................................... 143 7.2 L’Essere è Deriva (2020) ........................................................................ 153 7.3 JUKEBOX Paródia Tour (2021) ............................................................. 158 7.4 O Presidento – Banda dos Ministérios (2022) ......................................... 164 8 Conclusão ........................................................................................................... 177 Referências ............................................................................................................. 180 Apêndice A – Palimpsesto-Sonata ........................................................................... 192 Apêndice B – L’essere è Deriva ............................................................................... 201 Apêndice C – JUKEBOX Paródia Tour ................................................................... 213 Apêndice D – O Presidento – Banda dos Ministérios ............................................... 228 Apêndice E – Código (python) da Modulação Intervalar Progressiva ...................... 333 12 1 INTRODUÇÃO Ao discutir o legado musical que é transmitido ao longo dos séculos, Igor Stravinsky (1996, p. 58) relembrará que “o paradoxo segundo o qual tudo o que não é tradição[,] é plágio[,] tem sua razão de ser...”. Nesta afirmação, estaria Stravinsky – compositor que antecipa o Modernismo com A Sagração da Primavera (1913) – rejeitando toda criação autônoma e reduzindo, assim, a música à reprodução da tradição? Ainda que possa confirmar um importante aspecto da poética de Igor Stravinsky, o papel que as formas da tradição musical desempenham nas suas composições, este paradoxo igualmente aponta para uma constatação empírica: a relação explícita e implícita que as obras musicais estabelecem entre si e, mais particularmente, a mútua determinação das estruturas, materiais e formas em diferentes momentos da história da música. Observado por este ponto de vista, o paradoxo se resolveria no entendimento de que toda e qualquer obra musical está inserida em um contexto linguístico que não apenas influencia a criação, mas a determina desde o início. Entre a tradição, o plágio e a invenção, encontram-se inúmeras aproximações com o legado musical que, de uma maneira ou de outra, compreendem em si diferentes abordagens desta, por vezes evidente, “relação determinada”. Tomada no plano da poética musical, a dinâmica “intermusical” incita a composição de obras que se pautam por uma rede consciente de remissões na construção de seu material. O processo criativo que seleciona trechos, elementos estilísticos ou longas seções de uma ou mais composições, reintegrando-os – transformados ou não – em uma nova obra musical, pode ser compreendido como uma postura deliberada frente à potência expressiva e significativa da “relação determinada”: levada ao primeiro plano, é tornada uma poética. Isto ocorre, por exemplo, no uso da paródia, da alusão ou citação, do tom sério ou satírico dos pastiches inventivos, entre outras modalidades. Do neoclassicismo de Apollon Musagète (1928) à variedade estilística de Agon (1957), Stravinsky estabeleceu sua poética no entrecruzamento que nos referimos. A partir da tradição das danças (Gaillarde, Pas de deux, Ragtime, Tango, etc.), o compositor russo produziu uma invenção irredutível tanto às referencias que são seu ponto de partida – tal como 13 ocorreria no pastiche – quanto ao seu próprio e inovador material musical. A esta perspectiva poética que se vale do atravessamento de músicas como fundamento composicional podemos, em analogia ao cruzamento de textos verbais, chamar de transtextualidade: postura ativa que alça a necessária interconexão de obras da linguagem musical, ou intertextualidade, ao patamar de processo criativo livre e consciente. Se o trabalho sobre as obras musicais é uma postura poética, por outro lado, sendo um aspecto estrutural da linguagem musical e comum às demais linguagens artísticas, a ação da relação entre obras prescinde de uma postura ativa frente à transtextualidade: é uma determinação que atua sob os discursos musicais. Na teoria literária, esta estrutura é descrita pelo conceito de intertextualidade ou, mais propriamente, o estudo “entre textos”. Aplicado ao campo da música, este conceito indica que, assim como certo texto encontra-se conectado com outros textos (e.g. negando-os ou afirmando-os), a música também é caracterizada não apenas pelos materiais internos, mas pelos materiais externos que implicaram sua produção (inclusive por contraposição). Sendo assim, uma obra “única” não se imiscui da coletividade linguística que a inclui como “subconjunto”. Por esta razão, toda composição musical será necessariamente determinada pelo movimento dialético situado entre a invenção individual e a linguagem coletiva que compreende a sua invenção. Se limitarmos o problema a seu aspecto unicamente teórico, o panorama apresentado seria suficiente para a construção de um conhecimento categorial que investigaria exclusivamente as modalidades de conexão entre certa obra musical e as remissões que ela estabelece. Assim, depreenderíamos de casos concretos métodos e técnicas de operacionalização da transtextualidade que poderiam ser variadas ou reproduzidas na composição de novas obras. Se, de um lado, este expediente é fundamental na caracterização do trabalho em relação à composição, de outro, mostra-se muito limitado diante da complexidade do tema e, em específico, frente ao ponto central: através de qual razão uma obra é relacionada com outra? Para compreender o trabalho criativo direto e indireto sob esta totalidade linguística, necessitamos igualmente compreender as estruturas inferiores que condicionam, ao longo da história, tanto a manifestação intertextual em geral quanto os modos transtextuais expressos em técnicas particulares. Argumentamos que a relação entre 14 estas estruturas inferiores – relativas às práticas sociais ao longo da história – e o entrecruzamento de músicas é fundamental para a adequada compreensão deste problema. Tendo em vista este argumento, devemos inscrever a discussão sobre a intertextualidade 1 da música no horizonte das práticas sociais concretas. Se ela é caracterizada por uma espécie simbólica dentro de um gênero de relações de troca, encontra-se submetida à razão dos sujeitos produtivos, isto é, à lógica de trocas materiais dentro de certo modo de produção. A intertextualidade, neste sentido, é definida não apenas como relação entre objetos musicais, mas como relação entre sujeitos produtivos que são, eles sim, portadores de certa linguagem musical. O surgimento de partes de uma música dentro de outra procederá, portanto, da racionalidade produzida dentro de um modo de produção que delimita os regimes econômicos de troca. Se no modo de produção pós-industrial e capitalista uma “melodia” é juridicamente considerada uma propriedade privada, o mesmo não se aplicaria às melodias de cantochão utilizadas nos motetos do século XIII. Um compositor da Idade Média, ele próprio anônimo, nunca poderia, evidentemente, ser acusado de plágio. A questão, contudo, não é apenas “jurídica”. A geração de formas sociais tão distintas possui uma raiz comum: o desdobramento superestrutural de relações concretas entre os sujeitos produtivos. A poética transtextual, portanto, encontra-se condicionada por certa razão do mundo que produz dialeticamente as formas musicais – pois depende, insistimos, da postura criativa frente à estrutura intertextual. A partir da correlação entre a poética transtextual e a razão dos sujeitos produtivos, alguns problemas são suscitados: em primeiro lugar, de que maneira a fisionomia das práticas transtextuais mudaria à luz dos diferentes contextos histórico-materiais? Restringindo o problema ao conjunto da história da música Ocidental, identificamos duas transições produtivas que acompanham as grandes “divisas” de períodos musicais. A saber, a passagem da produção artesanal à manufatura, situada entre a Idade Média e a Renascença, e desta ao modelo 1 A intertextualidade é, conforme indicamos brevemente acima, uma função inerente à linguagem tanto verbal quanto musical. A transtextualidade, por sua vez, decorre do trabalho poético sobre esta característica essencial. Destarte, toda e qualquer obra musical é intertextual, ao passo que apenas algumas se utilizam de métodos transtextuais. Por outro lado, podemos nos perguntar se há algum processo criativo que, ainda que de maneira inconsciente, não se utilize de alguma metodologia transtextual. 15 industrial-capitalista, entre os séculos XVIII e XIX. Se a precisão de cada transição demandaria a análise comparativa de um extenso repertório, por outro lado, dois importantes fatores históricos determinariam o conjunto: de um lado, a formação e regularização de estratos de trabalhadores da música (cantores, instrumentistas e compositores), de outro, a transformação de partituras, e posteriormente discos, em mercadoria. Ambos os fatores modificaram a relação entre os sujeitos produtivos e objeto musical e, em paralelo, condicionaram 2 os agentes criadores na composição musical. Se o primeiro problema se refere à internalização de condutas objetivas decorrente de fatores econômicos e culturais, um segundo problema pode ser caracterizado pela produção de obras transtextuais e as decisões que semelhantes produtores assumem – em termos técnicos e estéticos – frente às determinações encontradas de antemão. Sobre este ponto, podemos perguntar: quais processos criativos e métodos heurísticos poderiam, no contexto atual, buscar respostas ao problema assim delineado? Dividindo-o em duas partes, teríamos de um lado a investigação sobre o trabalho de compositores que ao longo dos séculos buscaram responder, dentro do contexto em que estavam inseridos, à questão transtextual; de outro lado, a busca por novos processos composicionais que lidem, elaborem e desenvolvam a temática da composição transtextual dentro da atual fisionomia do problema. Para abordar essas questões, partimos da hipótese de que a transformação do trabalho do músico na sociedade ocidental levou à formação de um objeto – em princípio ligado à prática musical – marcado pela estrutura, ou forma, das relações econômicas que o produzem, isto é, o objeto musical enquanto mercadoria. Esta modificação qualitativa incide não somente no material musical, mas também, de maneira mais relevante, no próprio sujeito-produtor. Ao internalizar as condutas adquiridas pelos hábitos econômicos, entre eles as relações de trabalho (i.e. força produtiva) e a finalidade social da produção (i.e. a troca de mercadorias), o sujeito poderia passar a considerar certas relações humanas – em especial as artes – como expressão destes mesmos hábitos econômicos. O fenômeno conhecido pelo termo 2 Da arte de artesão à arte de “artista” do século XIX, estabelecem-se categorias estéticas como o “pastiche” em oposição ao que é “original”. Estas oposições, internalizadas subjetivamente, modificam a prática na medida em que favorecem certas condutas frente ao material musical. Neste caso, o “fazer bem” do artesão é desfavorecido frente ao “fazer original”. 16 reificação corresponde a esta internalização: no momento em que a relação entre pessoas se torna o mesmo que a relação entre coisas, o objeto da música – que é essencialmente uma projeção técnica e sensível dos músicos e ouvintes – se torna autônomo em relação aos participantes e, portanto, a prática da música se torna “distorcida”. Este movimento ocorre em paralelo com a desvinculação da música de um campo restrito de representações. Segundo Jacques Rancière (2005, p. 34), o regime estético, momento histórico em que as artes se libertam das imposições retóricas do passado, “implode a barreira mimética que distinguia as maneiras de fazer arte das outras maneiras de fazer e separava suas regras da ordem das ocupações sociais”. Superada essa barreira, ao mesmo tempo em que pôde a música fundar sobre si mesma as leis de sua criação – impulso que levaria ao Modernismo e à vanguarda estética –, viu-se impelida a participar do universo de mercadorias que, em certo sentido, possibilitou esta implosão. O modo de produção capitalista havia tornado possível este processo em função, de modo objetivo, da superação do sistema de trabalho anterior, o mecenato. Sem ter de responder aos desígnios do mecenas, no entanto, o compositor deparou-se com outra determinação: o mercado editorial, os teatros e, por fim, a indústria fonográfica. O sujeito, então, encontra-se cindido: ou produz conforme a determinação de um mercado ou, em sentido contrário, desvela novas sensibilidades que, de modo pungente, criticam as limitações novamente impostas. Se uma das soluções do impasse entre a absoluta submissão à “mercadoria musical” e a produção, conforme aponta Theodor Adorno, da “música cuja estrutura traz à plena luz algo essencial da estrutura social [e, portanto,] não tem nenhum mercado”, seria a radicalização em um dos polos, outra partiria da retomada do elemento representativo com vistas à crítica desta mesma contradição histórica (ADORNO, 2009, p. 343). Os resultados ambíguos do pós-modernismo, que retoma elementos figurais perdidos e ao mesmo tempo denega novamente a potência emancipatória da música 3 , se traduziriam na intensificação do aspecto mercantil do objeto musical: ao introjetar na própria forma o princípio de equivalência que 3 Neste sentido, Jacques Rancière afirmaria que “muito rápido a alegre licença pós-moderna, sua exaltação do carnaval de simulacros, mestiçagens e hibridizações de todos os tipos, transformou-se em contestação dessa liberdade e autonomia que o princípio modernitário dava – ou teria dado – à arte a missão de cumprir” (RANCIÈRE, 2005, p. 42). 17 corresponde, em geral, à forma mercadoria, o pós-modernismo solaparia o ideal pluralista que, ao menos em aparência, aliar-se-ia com uma resolução da cisão modernista. Através da atenuação da “resistência opositiva” entre os materiais, correspondente às diferenças semânticas e sonoras, alguns compositores buscariam conciliar universos musicais que outrora causariam um choque estético. Nessa insensibilização pela homogeneização dos elementos, a “resistência opositiva” se expressaria pelo avesso: uma “aceitação colaborativa” entre a invenção livre e a subserviência mercantil representada, no plano material, pelos objetos musicais ideologizados. Neste sentido, ao se colocar centralmente na crítica do objeto musical, a transtextualidade – ao menos uma manifestação específica desta poética – poderia recuperar o genuíno potencial crítico sustentado por alguns compositores desde a década de 1960. Lidando diretamente com a problemática delineada acima, a obra transtextual nunca se encontraria subtraída da estruturação estético-social em que é concebida e circulada e, portanto, é uma das linhas de fuga para o contemporâneo e persistente problema da reificação do objeto musical. Neste trabalho, buscaremos investigar a proposição de que por meio de uma abordagem consciente dos modos transtextuais – como poética ou “fazer” musical – em correlação com a crítica da reificação, a composição de novas obras também pode oferecer uma distinta solução estética para o impasse, ou crise, do modernismo, ou seja, favorecer uma prática não-reificada. Para tanto, dividiremos os problemas em três eixos que correspondem às seções deste trabalho. A primeira seção (cap. 2, 3, 4) buscará compreender o fenômeno da reificação do objeto musical a partir das condições econômico-sociais estabelecidas desde meados do século XIX. Esta temática será dividida em três capítulos que correspondem à fundamentação econômica e histórica da transformação do objeto musical em mercadoria (cap. 2), a descrição dos efeitos da reificação nas práticas musiciais (cap. 3) e, por fim, a crítica estética da prática musical “distorcida” em confronto com a racionalidade cínica das formas ideológicas da atualidade (cap. 4). A segunda seção se direcionará, sobretudo, ao entendimento da intertextualidade e do aspecto dialógico da linguagem musical (cap. 5) e, em seguida, o exame da poética transtextual e a definição de modos e categorias de entrecruzamento musical (cap. 6). Tendo em vista a correlação das temáticas abordadas nas duas primeiras seções, 18 apresentaremos no último capítulo (cap. 7) a análise poética e descritiva de quatro composições do autor que partiram do problema estético e técnico da crítica da reificação. Na investigação das condições atuais que é colocada a prática musical, pretendemos questionar a perspectiva que sustentaria a impossibilidade de se transformar o mundo pela sensibilidade musical – esta univocamente relegada à irrefletidamente refletir as imagens turvas que lhe são apresentadas pelo universo mercantil ou, ao contrário, estando subtraída da realidade e alheia a qualquer determinação humana, relegada ao plano de pura abstração. Tudo o que não é “estranho” à música encontra-se, em um só tempo, situado nos limites entre uma determinação e outra liberdade, isto é, na dualidade de escolha do sujeito frente à realidade. O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem, Homo sum, como dizia o célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais, sonha de noite as belas visões palpáveis de acordado. Tem nervos, fibra e tem artérias – isto é, antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. (Álvares de Azevedo, Lira dos Vinte Anos). 19 2 O OBJETO MUSICAL NO PROCESSO SOCIAL DE PRODUÇÃO: O FETICHISMO DA MÚSICA Em uma das passagens mais agudas da crítica à indústria cultural feita na Dialética do Esclarecimento (1944), Adorno e Horkheimer discorrem sobre a modificação do caráter mercantil da obra de arte. A partir de uma espécie de “autoevidência” de sua utilidade econômica, a obra de arte deixaria de desfrutar da relativa autonomia produtiva dos séculos XVIII e XIX. O frágil equilíbrio entre a autodeterminação e o estatuto de mercadoria, determinado por leis de produção, penderia para um lado da balança no momento em que a obra de arte abdicaria, contraditoriamente, da limitada autonomia que sucede de sua inserção no mercado burguês. O novo não é o caráter mercantil da obra de arte, mas o fato de que, hoje, ela se declara deliberadamente como tal, e é o fato de que a arte renega sua própria autonomia, incluindo-se orgulhosamente entre os bens de consumo, que lhe confere o encanto da novidade. A arte como um domínio separado só foi possível, em todos os tempos, como arte burguesa. Até mesmo sua liberdade, entendida como negação da finalidade social, tal como esta se impõe através do mercado, permanece essencialmente ligada ao pressuposto da economia de mercado. As puras obras de arte, que negam o caráter mercantil da sociedade pelo simples fato de seguirem sua própria lei [estética], sempre foram ao mesmo tempo mercadorias: até o século dezoito, a proteção dos patronos preservava os artistas do mercado, mas, em compensação, eles ficavam nesta mesma medida submetidos a seus patronos e aos objetivos destes. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 130) Se esta constringida liberdade não tardaria a, novamente, submeter-se às determinações alheias, desta vez às leis do mercado e não ao gosto do patrono, igualmente permaneceria em potência – atualizada principalmente no modernismo artístico. Não obstante, a contraditória defesa e ao mesmo tempo denegação da autonomia sucede de transformações produtivas de base que possibilitaram o surgimento da tensão, nesta apresentação, entre estes dois termos. A modificação do estatuto econômico da obra de arte deriva, até certo ponto, da reconfiguração dos vínculos produtivos iniciada no final do século XVIII. O sistema de patronato, estabelecido desde o final da Idade Média, seria neste momento gradualmente substituído pelo novo sistema capitalista. Livre do gosto de um patrono, o artista poderia produzir obras que obedecessem a suas próprias leis e, inserindo-as em um mercado, estabeleceria o processo de troca que garantiria a continuidade produtiva. Colocada no mercado, no entanto, a obra adquire um aspecto que nunca tivera – ao menos sistematicamente – até então, um valor de troca. Torna-se, portanto, algo 20 diferente de uma obra de arte, destinada ao uso estético, ao ser transformada em mercadoria. Isto tem consequências diretas não apenas no aspecto produtivo, conforme Adorno e Horkheimer apontaram, diminuindo novamente a promessa de liberdade (e autonomia), mas nas condutas dos sujeitos que, habituados a se relacionar com os objetos estéticos a partir do seu valor de troca, passam a considerá-los pelo prisma da utilidade mercantil. Portanto, o uso estético – que pressupõe a invenção autônoma – reduz-se ao “uso mercantil”, se assim poderíamos concebê-lo. A partir da distinção entre valor de uso e troca, categorias presentes na teoria do valor de Karl Marx (1818-1883), os autores da Escola de Frankfurt declararam que “o que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor” (ADORNO e HORKHEIMER, p. 131). Dito de maneira diferente, não apenas o objeto de arte surge cindido entre dois valores, mas tende a socialmente limitar-se ao caráter mercantil em detrimento do uso estético que, até meados do século XIX, era seu motor produtivo e, inclusive, fonte de valoração econômica. Esta transição econômica tomaria forma de maneira particular no campo da música, sobretudo com o estabelecimento do mercado editorial no século XIX e a reprodução musical dos séculos XX e XXI. Em paralelo à modificação do estatuto mercantil da obra musical, o uso criativo da transtextualidade passaria por uma transformação: o que até então servia como representação de certo “estilo” (e.g., composição de dança em um estilo nacional), paródia (satírica ou não) ou citação temática (do cantus firmus ao tema e variação), se tornaria um procedimento que propiciaria a representação da distância de objetos musicais distintos, isto é, da distância entre estruturas musicais que seguem leis diversas. Isto é ilustrado, por exemplo, pelo uso simbólico do cantochão Dies Irae – de estrutura modal – em contextos eminentemente tonais. Longe do suposto cosmopolitismo do classicismo vienense, em que há uma fusão entre estilos, no século XIX as diferenças seriam colocas como diferenças. Entre elas, a diferença entre a “minha” música e a apropriação da música alheia (não por acaso processo chamado pela literatura anglófona de musical borrowing). Conforme discutiremos adiante, este processo é marcado pela mudança das relações produtivas e, mais especificamente, dos hábitos 21 decorrentes das trocas econômicas. Neste contexto, podemos discutir o papel da reificação em direção à subjetividade dos produtores e o condicionamento que as linguagens, assim como a composição transtextual, recebem de uma “prática social distorcida”. Antes de investigarmos a reificação, tema solidamente discutido por Georg Lukács (1885-1971) na obra História e Consciência de Classe (1923), mostra-se pertinente o exame do fundamento metodológico da tese lukácsiana: a teoria da mercadoria, ou a teoria do valor, desenvolvida em detalhes por Marx no primeiro volume d‟O Capital (1867) e, em seguida, o fetichismo da mercadoria – fenômeno analisado pelo autor que, posteriormente, desenvolveu-se na categoria analítica da reificação. A partir deste exame inicial (cap. 2), que abrange o surgimento da forma mercadoria ao longo da história da música, passaremos ao entendimento da reificação e suas implicações na prática musical (cap. 3). Ao final da seção, considerando o fenômeno da reificação na atualidade, propomos uma crítica dos discursos musicais transtextuais que tendem a representar – em termos estéticos e formais – uma postura cínica em relação à emancipação linguística proposta pelas vanguardas dos séculos XX e XXI, em específico através da expressão estética da forma mercadoria (cap. 4). 2.1 A FORMA MERCADORIA Ainda que muitas vezes aplicado como categoria autônoma da análise, o conceito de fetichismo – particularmente aquele atribuído a Marx – encontra-se umbilicalmente ligado à teoria econômica do valor e, de forma geral, à forma mercadoria. Esta teoria, de grande importância no campo da economia, consiste na dialética externa e interna da mercadoria como “valor de uso” e “valor de troca” e coloca-se contra o fundo (e fundamento) do conceito de “trabalho abstrato” para, a partir desta conjunção, compreender os efeitos do modo de produção mercantil no sujeito. A exaustão com que este tema foi tratado não poderia nos impedir de, ainda outra vez, buscar compreender o “fetichismo da mercadoria” sob sua perspectiva fundacional, isto é, a partir da teoria do valor em Marx. 22 O produto do trabalho humano, observado pelo prisma do valor, possui dois aspectos: o primeiro aspecto, chamado por Marx de valor de uso, é o conteúdo qualitativo e “útil” presente em qualquer espécie de produto (seja ele um violoncelo, uma obra musical ou uma monografia); o segundo aspecto do valor, produzido formalmente, surge no momento em que este produto é inserido no processo de troca, sendo, assim, chamado de valor de troca. Um produto é, por assim dizer, “transformado em mercadoria” quando inserido no processo de troca: apenas neste momento a ele é atribuído um valor específico em relação às demais mercadorias. Tal divisão subsiste somente na mercadoria enquanto produto tornado mercadoria e, invariavelmente, em circunstâncias que tornaram este produto apto a ser trocado. Não há qualquer traço do valor de troca no valor de uso. Mesmo com o enorme avanço técnico desde o século XIX, o enunciado de Marx (2019, p. 105) mantém sua validade: “Até hoje, nenhum químico descobriu valor de troca em pérolas e diamantes”. Se o primeiro aspecto deriva da multiplicidade de funções atribuídas aos produtos (técnica, utilitária, ou estética) por grupos e indivíduos, a segunda se revela somente na relação entre os produtos tornados mercadorias. Isto quer dizer que o produto “A” apenas adquire valor de troca quando colocado em relação a “B”, isto é, quando há uma expressão em que “x quantidade de A = y quantidade de B”. Marx chamará esta relação de forma simples do valor. Antes mesmo de alcançar a generalização do equivalente geral no dinheiro, em que tais relações de base se apresentam metamorfoseadas, a forma simples do valor revela uma contrariedade imanente da mercadoria: ao mesmo tempo em que apresenta qualidades distintas de outra mercadoria é, em certas proporções, passível de se tornar equivalente a outra mercadoria. A oposição, por assim dizer, “interna” entre a qualidade diferente e a capacidade de tornar-se quantidade equivalente é realizada formalmente por uma unidade “externa”. Uma das forçadas resoluções desta oposição é, como hábito, considerar a unidade entre, de um lado, os produtos (valor de uso) e, de outro, a formalização do equivalente no dinheiro. No entanto, esta resposta à “contradição imanente” da mercadoria também visa “ocultá-la enquanto oposição nos dois polos da relação, concentrando em cada um [dos polos] apenas uma das determinações opostas” (GRESPAN, 2019, p. 105). A naturalização da troca, cristalizada pela repetição de determinadas relações produtivas entre seus agentes (proprietários de mercadorias, 23 vendedores da força de trabalho), tende a apresentar o valor do segundo tipo como destacado da mercadoria ao invés de apresentá-lo numa fisionomia dupla. Nesta segunda apresentação, em que os polos se mantêm em estado de tensão interna, não apenas o processo social de troca é visto de frente, como também o processo efetivo de transformação da natureza em produtos úteis. Isto, contudo, tende a ser uma visão desprivilegiada: O valor de uma mercadoria só adquire expressão geral porque todas as outras mercadorias exprimem seu valor através do mesmo equivalente, e toda nova espécie de mercadoria tem de fazer o mesmo. Evidencia-se, desse modo, que a realidade do valor das mercadorias só pode ser expressa pela totalidade de suas relações sociais, pois essa realidade nada mais é que a “existência social” delas, tendo a forma do valor, portanto, de possuir validade social reconhecida. (MARX, 2019, p. 88) Devemos igualmente compreender a mercadoria como “valor” social que precede o ato de troca. Como depósito de esforço humano, o produto é fruto do trabalho. A abordagem do trabalho deve, evidentemente, considerar as contingências reais em que ocorre, sendo, portanto, dependente de fatores objetivos na economia capitalista. No seu modo de produção correspondente, o trabalho assume um caráter duplo: o trabalho concreto, referente à qualidade e técnica empregada, e o trabalho abstrato, enquanto dispêndio geral de esforço humano (quantificado em horas de trabalho). Se, por um lado, a concretude na transformação do mundo é inerente à produção de qualquer produto, por outro lado, o caráter abstrato emerge da sociedade voltada à produção de mercadorias. Abstraído de sua especificidade na divisão entre as inúmeras profissões da cadeia produtiva, o trabalho passa a ser considerado quantidade geral de trabalho humano. Levando em consideração esta homogeneidade, ou abstração, resta compreendermos o trabalho em seu aspecto quantitativo como tempo de trabalho (tempo médio para a produção de determinado produto dentro das circunstâncias produtivas, tecnológicas, etc.). Apenas na introdução deste dispositivo universal, a atividade individual adquire equivalência com as demais atividades e, portanto, é passível de ser introduzida no sistema de trocas mercantis como força de trabalho humano (PIMENTA, 2020, p. 622). Na medida em que o produto, e por consequência a mercadoria, é resultado do trabalho, seu “valor” é teoricamente atribuído pela quantidade de trabalho contido em si. Este é o fundamento real da produção do valor, 24 excluídas as transformações subsequentes (e.g., lucro). Pois, “uma vez que a grandeza do valor de uma mercadoria representa apenas a quantidade de trabalho nela contida, devem as mercadorias, em determinadas proporções, possuírem valores iguais” (MARX, 2019, p. 67). 2.2 O FETICHISMO DA MERCADORIA O ponto central da teoria da mercadoria, e que resulta na sua mistificação fetichizada, é a oposição entre a mercadoria finalizada e a relação produtiva que a engendrou. Estando no mundo como objeto acabado, a mercadoria tem ocultado o processo transformativo que a levou a ser. Encontra-se como parte integrante de um coletivo de mercadorias autônomas dotadas de “valor inerente”, como se fosse uma apresentação, porém invertida, da relação entre o sujeito e objeto da produção. Em outras palavras, transformado em mercadoria, o produto tem escamoteadas as relações sociais que determinam sua produção e, inserido no mercado, o produto superficialmente passa a ser valorado por suas características materiais. A esta dissociação, ou dissimulação, Marx chamará de fetichismo da mercadoria. O uso do termo “fetiche”, que detém sua raiz no português arcaico fetisso (“feitiço”), indica ilusão e ao mesmo tempo “misticismo”. Assim como a religião, que busca alienar a relação dos homens com o mundo, a mercadoria congrega em si o mistério oculto de sua existência. Este ocultamento, no entanto, não resulta apenas de operações subjetivas, que analisaremos adiante, mas de fatores objetivos determinados pela “constância” do surgimento da relação produtiva como representação 4 : esta relação entre sujeitos encontra-se mediada pelas coisas, enquanto as coisas assumem a fisionomia das relações produtivas “cristalizadas” pelo hábito. Isto ocorre, por exemplo, no 4 Na obra Marx e a crítica do modo de representação capitalista (2019), Jorge Grespan realiza uma análise crítica dos conceitos de “apresentação” (Darstellung) e “representação” (Vorstellung) no pensamento de Marx. Segundo esta interpretação, de maneira geral, a apresentação se dá nas formas sociais decorrentes de certa relação produtiva e, posteriormente, a representação se desdobra como reaparição simbólica desta mesma forma social na consciência dos agentes sociais. Isto ocorre, por exemplo, no processo em que o trabalho real, relativo ao trabalho concreto apresentado no trabalho abstrato, é representado pela “qualidade” do produto: na inversão da representação, o produto como qualidade simboliza sua forma social de base, isto é, a quantidade de trabalho nele depositado. Aprofundando a distorção, a qualidade passará a ser representada pelo valor no equivalente geral – não mais na representação de primeiro tipo, da quantidade de trabalho abstrato, e menos ainda no trabalho qualitativo. 25 enrijecimento do vínculo entre o trabalhador e o empregador como venda de uma mercadoria específica, a força de trabalho, de tal modo que o vínculo social é representado pela troca de horas de trabalho. O economista russo Isaak Rubin (1886-1937) analisa esta estrutura “cristalizada” a partir do caráter duplo da troca comercial capitalista: de um lado, qualquer produtor encontra-se indiretamente conectado com a totalidade produtiva, ou mercado, de outro lado, não estabelece relações produtivas diretas com os indivíduos desta totalidade, mas tão somente relações mediadas pelas mercadorias trocadas. Por relações diretas, compreendemos vínculos sólidos dentro de um sistema produtivo socialmente ordenado como, por exemplo, ocorre na economia planificada. A fragmentação e descontinuidade são características inerentes à aparição das relações sociais sob a forma mercantil – representadas, de forma invertida, como “fidelidade” do consumidor e seguridade trabalhista. No trabalho autônomo, por exemplo, contratos são estabelecidos entre duas pessoas com a condição de que, após a entrega da mercadoria (serviço ou bem) de A para B e do pagamento de B para A, o vínculo entre ambos é quebrado. Nestas condições, a relação é resumida a vínculos temporários. A indissolúvel conexão indireta, pulverizada em trocas privadas, é assumida pela relação entre coisas como, neste exemplo, entre serviço ou bem e o dinheiro. Sendo assim, as pessoas inseridas neste universo são possuidoras de mercadorias: o trabalhador, da força de trabalho; o empreendedor, dos meios de produção; o proprietário rentista, da moradia e da área agriculturável; o banqueiro, do capital de investimento. Isaak Rubin (1990, p. 16) dirá que este tipo de relação produtiva “une indivíduos particulares na ocasião de transferências de coisas entre si, e isto é limitado a esta transferência de coisas; as relações entre as pessoas assumem a forma de equalização entre coisas” 5 . Este movimento, entendido como “coisificação”, nos dá uma primeira definição do termo reificação: as relações entre os indivíduos produtivos são representadas, ou personificadas, pelas “coisas” que são sua propriedade. Esta espécie de inversão não pode ser entendida apenas nos seus aspectos materiais, de ordem econômica, mas nas reverberações subjetivas decorrentes da cristalização deste hábito mercantil. O movimento de autonomização do objeto, 5 Neste trabalho, todas as citações não publicadas em português foram traduzidas pelo autor. 26 distanciado do sujeito producente, encontra-se remetido às representações da consciência humana. Esta, por sua vez, reestrutura a prática social em formas ideológicas. Isto é observado quando os produtos culturais, como a música, são apartados de sua vida material e adquirem uma existência própria à parte do sustentáculo sobre o qual se equilibram. Antes de serem produtos autônomos, desarraigados do solo social, são elaborações das consciências que previamente conheceram por meio das condições produtivas, isto é, brotaram da experiência da linguagem 6 : fruto nem do acidente, nem da escolha. Tudo se passa como se a consciência, submetida à lógica fetichizante, transformasse os predicados (ou propriedades) de um sujeito no próprio sujeito. Nas suas formas ideológicas, ela é representada de modo palindrômico, pois o sujeito torna-se o “objeto” do objeto tornado “sujeito”. Disto decorre que, assim como a mercadoria aliena a materialidade do produto em função de seu valor de troca, a consciência tem alienada de si o sujeito que, agora, apenas a “encarna” – assim o indivíduo tem o destino governado por um “fantasma” que, ao mesmo tempo, lhe é exterior e interior. Esta é a reflexão que, invertida novamente na retomada de consciência, converte-se em potência ativa: transforma-se a consciência pela transformação do mundo. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. Na primeira forma de considerar as coisas, partimos da consciência como sendo o indivíduo vivo; na segunda, que corresponde à vida real, partimos dos próprios indivíduos reais e vivos, e consideramos a consciência unicamente como sua consciência (MARX e ENGELS, 1998, p. 20). Ao mesmo tempo em que se encontram determinados por estes fatores econômicos, os indivíduos são impelidos contra esta determinação na produção de variadas formas sociais ou, na acepção geral, formas ideológicas – que tanto podem variar e aprofundar o caráter fetichista quanto, igualmente, produzir horizontes de reconfiguração deste estado de consciência. Tais formas sociais adquirem o grau de constância conforme se depositam em discursos e se reproduzem na linguagem 6 As linguagens são constituídas no interior de um processo histórico e refletem, direta e indiretamente, o sistema de ideias que a transforma. No contexto em que as trocas comerciais se tornam indistintas das relações entre os indivíduos, a linguagem se constitui nesta e por esta dinâmica fetichizadora. A linguagem verbal, mas não apenas, guarda ampla conexão com a própria consciência. Segundo Marx e Engels (1998, p. 24), “a linguagem é a consciência real, prática, que existe também para os outros homens, que existe, portanto, também primeiro para mim mesmo e, exatamente como a consciência, a linguagem só aparece com a carência, com a necessidade de intercâmbio com os outros homens”. 27 disseminada. Isto não apenas ocorre verbalmente, e de maneira certamente evidente, mas igualmente nas linguagens musicais. Devemos, assim, examinar especificamente como tais formas sociais e ideológicas se depositam nas formas estético-linguísticas da música. Por forma social, compreende-se uma organização delimitada, operada pela estruturação de elementos dentro de um conjunto lógico-discursivo. Se isto se faz concretamente a partir da formação dos elementos materiais de cada linguagem, resultando em múltiplas manifestações peculiares, ao menos uma estruturação generalizada – e, portanto, formal – podemos deduzir da “inversão” fetichista. O fetichismo da mercadoria opera, incialmente, uma ocultação: relações produtivas determinadas encontram-se subsumidas em representações que colocam “atrás” e no “fundo” o processo de produção. A apresentação – manifestação das relações concretas – é incorporada na representação que, contudo, não é capaz de anulá-la. Em segundo lugar, a representação adquire a aparência de autonomia em relação ao processo que a engendrou – se torna um gênero objetivo. Ambas as operações ocorrem, por exemplo, no fetichismo do dinheiro. A externalização da contradição interna do valor (uso e troca), realmente apresentada na tensão entre qualidade e equivalência com outros produtos (equivalente relativo), adquire do equivalente geral uma “resolução” forçada. Da pluralidade de produtos do trabalho, correspondente aos seus múltiplos usos, encontramos um único representante: o dinheiro. O equivalente geral, assim, em um só golpe oculta a rede de equivalências relativas, mantendo-as “ocultas” na troca de dinheiro e mercadorias, e torna-se uma coisa objetiva. Destas duas operações, podemos deduzir duas considerações formais e uma metodológica antes de nos debruçarmos, mais especificamente, sobre o fetichismo na linguagem musical: primeiro, a oposição de elementos que encontram uma síntese “resolutiva” em uma das polaridades desta mesma tensão; em segundo lugar, a naturalização ou cristalização desta “resolução” em um sistema autônomo, objetivo, racionalizado. Ambas as formas surgem, e insistimos neste ponto, no interior de relações produtivas específicas. Na medida em que estas duas formas não são autoevidentes, estando soterradas e ao mesmo tempo presentes no fenômeno, a metodologia empregada deve mobilizar uma “autorreflexão” contrária à “reflexão” obtida pela análise descritiva. Deve, portanto, ser um método crítico: a busca de processos interpretativos que façam transparecer, do cerne das representações, os 28 mecanismos de produção e reprodução das formas sociais no interior das formas estéticas. A crítica social da música se faz, portanto, necessária para que a fundação concreta, apresentada nas relações produtivas concretas, surja sob os escombros do edifício estético-musical, e seus inúmeros enunciados, cristalizados nas formas fetichizadas. A crítica, neste sentido, deve “desnaturalizar” a representação unidimensional, dando-lhe consequência em outros planos significativos. Herbert Marcuse (1973, p. 93) afirma que, sem a mediação da crítica, “a linguagem tende a expressar e a promover a identificação imediata da razão e do fato, da verdade e da verdade estabelecida, da essência e da existência, da coisa e de sua função”. Intermediada pelo ato interpretativo, a crítica sem dúvida pode defrontar-se com ambiguidades, sobretudo na correlação da linguagem musical com suas condições produtivas. Por outro lado, uma postura meramente descritiva incorreria em um risco maior: a aparência reduziria a complexidade do produto da consciência, e sua multiplicidade significativa, numa (re)apresentação fetichizada. O movimento em direção à crítica requer, necessariamente, a definição do objeto de crítica: isto é, a definição dos aspectos da linguagem musical e, mais especificamente, do objeto musical, submetidos ao processo de fetichização. 2.3 O “OBJETO MUSICAL” E SEU PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Na obra Música e Homem (1980), o musicólogo húngaro János Maróthy (1925-2001) ilustra seu entendimento da música, enquanto fenômeno linguístico e comunicativo, com a metáfora do gravador analógico: a totalidade vivenciada pelo indivíduo é como uma gravação em múltiplos canais, cada um contendo uma informação linguística. No ato criativo-musical, esta totalidade é reduzida à sensibilidade da escuta 7 , como uma redução de múltiplos canais em um único canal mono. A escuta musical, num segundo momento, reintegra a complexidade inicial, reverberando-a no interior da construção subjetiva deste ouvinte que, ele próprio, inscreve a informação da escuta em múltiplos “canais” de significação. A homogeneidade da matéria acústica encontra-se integrada na heterogeneidade da 7 Neste caso, não nos referimos à ópera e às obras intersemióticas – em que há a incursão de múltiplas linguagens artísticas – surgidas, em especial, a partir dos anos 1960. 29 emissão e recepção da mensagem estética. Maróthy aponta que a música, em sua totalidade, demanda que certo sujeito realize a virtual complexidade por meio das vibrações acústicas: as conexões formais suscitadas por um canal, o acústico, se realizam nas ramificações sensíveis e intelectuais de um sujeito cognoscente (MARÓTHY, 1987, p. 21). Disto resulta que, enquanto uma totalidade, nosso objeto deve comportar igualmente o meio sonoro, com sua forma interna, e o meio social – consciência histórica que estabelece os modelos gerais de representação. Esta dualidade, com frequência contraditória, pode ser definida por objeto musical: o dado sensível informado pelo sujeito em sociedade. Pode-se objetar tal proposição da seguinte maneira: o mesmo dado sonoro é capaz de proporcionar diferentes representações mentais em diferentes indivíduos, o que tornaria essa correlação não verificável e, portanto, uma afirmação falsa. Ora, lembremos que toda ciência é construída sobre induções eficazes, permitindo variações aceitáveis. Defendemos que não apenas o sujeito é deduzido do átomo social, o indivíduo e sua agência, mas igualmente dos grupos societários aculturados dentro das mesmas circunstâncias de classe. Neste sentido, as condições materiais do desenvolvimento do indivíduo, incluindo a sua classe, gênero, etnia, etc., concorrem no estabelecimento de modelos de representação musical, isto é, um contexto ideológico – ou ideologema, em termos linguísticos – capaz de tanto interpretar quanto criar objetos musicais. Modelos “verticais” que, entretanto, se transformam horizontalmente em razão das mudanças materiais e individuais. Subtrair do objeto musical o sujeito, tornando-o uma “forma sonora em movimento”, não contradiz, por outro lado, as diferentes perspectivas de escuta, reduzindo, em última instância, este objeto à unidimensionalidade auditiva? A complexificação, por outro lado, ao introduzir o erro não busca realisticamente adequar-se ao objeto da música, isto é, partir da evidência de que a representação musical, assim como a estética, se transforma em conjunto com as transformações materiais? Se a postura exclusivamente voltada ao fenômeno sonoro dificilmente encontra árduos defensores, na prática continua a existir em algumas correntes da pesquisa em música, em específico na análise e composição, embora revestida de sutilezas terminológicas e glosa científica. A postura que se volta à totalidade da experiência estética, por outro lado, ainda que tenha vocais defensores, é com 30 frequência reduzida às notas de programa. Ainda na década de 1960, em forte intercâmbio com Henri Pousseur (1929-2009) devido à sua colaboração na ópera transtextual Votre Faust (1964), Michel Butor (1926-2016) escreveria no artigo “A música, arte realista”: Este fracasso em reconhecer as capacidades representativas da música […] está intimamente ligada a certa concepção de realidade, cuja insuficiência tem sido constantemente apontada pelo pensamento moderno em todas as suas formas há mais de um século, e também está relacionada àquela falsa petrificação científica e materialista que a crítica marxista mostrou corresponder a um momento particular no triunfo da burguesia. Essa concepção, que torna a música literalmente inexplicável e, portanto, o último bastião para os crentes da arte pela arte, baseia-se na identificação absoluta do real com o visível [audível], como se não tivéssemos outros sentidos. (BUTOR, 1981, p. 448). Esta petrificação, concomitante à subtração do meio social, não poderia ser entendida como a transformação de uma relação representativa – a música nas determinadas condições produtivas, isto é, seu uso simbólico dentro do contexto econômico e artístico – em uma coisa fruída à parte da realidade em que se insere? Antes de abordarmos este assunto, podemos levantar uma segunda objeção à nossa proposição: o artista poderia, como ato de liberdade, produzir uma obra musical desconectada de um rigoroso controle sobre o resultado final como, por exemplo, ocorreria na automação serial ou com uso da inteligência artificial e, desta forma, produzir uma obra supostamente alienada da consciência do sujeito social. Como resposta a esta objeção, reproduzimos o argumento de Henri Pousseur escrito no “Prólogo” do livro Música, semântica, sociedade (1970). Nada poderá impedir que ao longo da escuta, tal ou tal obra de música “pura”, aparentemente afastada de qualquer pretensão ilustrativa, me revele toda uma série de coisas precisas e práticas sobre a ação que a produziu e sobre os agentes de sua produção (“material”). […] Toda música, inclusive aquela que se pretende pura e autônoma, constitui um verdadeiro teatro primeiramente mental, mas ao mesmo tempo “exterior”, em que se representam as alegorias de nosso destino. (POUSSEUR, 1984, p. 13) Retomando o argumento de Maróthy: um meio homogêneo é convertido em heterogêneo a partir da escuta musical. O contrário poderia ser dito em relação à composição: a multiplicidade do sujeito é canalizada, por mediações formais, na homogeneidade da matéria sonora. Não se fundará, portanto, em uma perspectiva precisamente traçada no tempo histórico, mais especificamente na hegemonia da mercadoria musical, a postura de subtração do sujeito de seu objeto de criação? Em outras palavras, a alienação do objeto de sua produção artística não representa a 31 manifestação do fetichismo enquanto não reconhecimento do trabalho depositado naquela obra de arte? O meio heterogêneo, correspondente às formas ideológicas que alienam o trabalho humano, é espelhado no meio homogêneo (i.e., o texto musical). Dizer “a máquina escolheu para nós” é, neste sentido, o mesmo que dizer “nós escolhemos a máquina”. Ao discutir a relação entre homem-máquina na composição eletroacústica, o compositor Philippe Manoury (1952-) afirma que “dentre as milhares de operações efetuadas por um processador, não existe nenhuma pela qual ele manifeste certa preferência” (MANOURY, 1988, p. 209). Ainda que a máquina pareça manifestar alguma opinião significativa, os dados de entrada bem como a seleção (estética) na saída são, a rigor, fornecidos por humanos. Se a permutação estatística de dados das inteligências artificiais pode deslumbrar o olhar desavisado, o pastiche elaborado é ainda mais capaz de convencer aquele ouvinte que, ao escutar a fuga à la Bach, confunde-a com a “verdadeira” música do gênio barroco. Em ambos os casos, o resultado reside na capacidade de copiar modelos. Para um, é a força bruta da estatística; para o outro, o estudo e o virtuosismo técnico. Em ambos os casos, no entanto, falamos de compositores copiados e ouvintes que escutam música. Não podendo se imiscuir da sua própria consciência, ainda que alienada, o sujeito é responsável pelos produtos de sua invenção poética – expressando-a ou não como fetiche. Se o objeto musical se realiza na conexão entre os sujeitos e as músicas, nos resta investigar a relação entre estes lados para, então, compreendermos o desdobramento do fetichismo da mercadoria nessa linguagem artística. Antes de prosseguirmos na avaliação histórica desta relação, é importante distinguir entre a separação metodológica e a separação ontológica dos lados. O sujeito, enquanto totalidade, abarca o objeto a ele compelido através da percepção e do conhecimento. Isto ocorre, a título de exemplo, na análise das propriedades acústicas (frequência, amplitude e duração etc.) que, como resultado final, produz o conhecimento físico-acústico. Inscrito na linguagem matemática, o objeto acústico se torna conhecimento matemático do sujeito e, ao mesmo tempo, um segundo objeto transformado pela análise acústica. O objeto musical surge, portanto, do processo gnosiológico em que o sujeito representa, ou imagina, múltiplos objetos estéticos a partir da escuta. Faz-se necessário, portanto, uma separação metodológica entre a 32 concretude do objeto e o objeto tornado representação – no âmbito estético – por um sujeito. Esta concretude, dada na materialidade do som e da partitura, carece de objetividade no plano ontológico caso tenha de si subtraída sua transformação gnosiológica e, portanto, sempre aparecerá na relação do sujeito com o objeto representado. Tendo esta separação metodológica em vista, poderíamos investigar as propriedades do objeto musical. Ao invés de empreender o exame exaustivo dessas interpretações, abordaremos neste momento apenas as relações necessárias para a compreensão de nosso objeto, isto é, o objeto musical tornado mercadoria – que, conforme pretendemos demonstrar, resulta de um processo que visa soterrar a complexidade do objeto (em especial, o sujeito-produtor). Para tanto, o exame deve voltar-se à investigação das transformações históricas do processo de produção da música que possibilitaram o afastamento, ou ocultamento, do sujeito produtor e do objeto produzido. Ao dizer que no fetichismo da mercadoria “uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”, Marx (2019, p. 94) indica que as “coisas” são apresentadas como objetos despossuídos de sujeitos. Os modos de produção, e consequentemente as relações sociais, condicionam a apresentação de nosso objeto musical, mesmo que não de maneira unívoca. Identificamos diferentes apresentações conforme determinadas condições produtivas em função do uso social, da inserção da música no contexto econômico geral, e da posição de classe da maior parcela dos músicos (cantores, compositores e instrumentistas). O surgimento da partitura, do concerto público, do disco e das plataformas de “transmissão em fluxo” (streaming) como mercadorias e “bens de consumo” é dependente não somente da circulação nos mercados, mas da profunda transformação das relações produtivas no capitalismo. Ainda que apenas no início do século XIX possamos identificar as primeiras manifestações claras deste processo, ele é verificado desde o final da Idade Média. Indissociada dos músicos, a mercantilização de música era naquela época realizada a partir da contratação de trabalhadores. A compra e venda da mão de obra diretamente para as instituições palacianas será o início deste longo processo de transformação do objeto e trabalho musicais. 33 2.4 AS PRIMEIRAS “INSTITUIÇÕES” MUSICAIS: AS CAPELAS E O MECENATO As primeiras sistematizações do trabalho musical no Ocidente foram determinadas pelo desenvolvimento do Estado absolutista que, desde o século XV, propiciou o surgimento de estruturas estáveis de produção musical. Isto ocorre no momento em que o continente europeu passa por grandes transformações políticas e econômicas. Ao contrário do caleidoscópio político da Idade Média, em que a propriedade fundiária encontrava-se subdividida em pequenas unidades de terra (feudos), neste regime o imperador atraiu para si, e de maneira concêntrica, todo o poder religioso e político do Estado. As disputas de poder dentro da igreja cristã ocorridas no final da Idade Média (como, por exemplo, o Grande Cisma) produziram sucessivas crises que criaram condições para a emergência de novas lideranças religiosas. A partir do século XIV, os monarcas passaram a adotar os rituais e simbolismos reservados exclusivamente aos papas. Estabelecendo uma equivalência entre a unção papal e a coroação do rei, se unificaria o poder político e religioso na figura do monarca absolutista 8 que, a partir de então, teria o “direito divino” de concentrar em si, e apenas para si, o domínio do Estado (BORGHETTI, 2008, p. 188). Paralelamente, a indústria manufatureira (ainda artesanal, em essência) gradualmente passou a substituir o modo de produção agrário e das corporações de ofício. Este novo sistema de produção, caracterizado pela divisão do trabalho, impulsionou a expansão das cidades na medida em que artesãos e trabalhadores passaram a migrar para os centros urbanos em busca de trabalho. Isso resultou no aumento significativo da população urbana e na expansão das cidades como centros industriais e comerciais. A partir do século XVI, são estabelecidos as práticas econômicas que resultariam na formação da classe burguesa: as Bolsas e praças de comércio, nas quais a continuidade das trocas econômicas é diária, substituem as grandes feiras que funcionavam em datas fixas, além disso, o crescente volume de commodities importadas das colônias somam elementos que, junto aos primeiros 8 A Missa L’homme armé de Guillaume Dufay (c. 1400-1474) pode ser interpretada como uma precisa representação da união entre clero e nobreza sob a figura do monarca. A melodia popular L’homme armé (“O homem armado”), cujo texto proclama os homens a armarem-se e vestirem suas armaduras para a guerra, é citada no cantus firmus da missa. Ainda que este texto esteja ausente na missa (tratando-se do texto próprio ao ordinarium), a citação melódica intervém na missa como símbolo da monarquia: o deslocamento do conteúdo clerical, indicado pelo cantochão, para o conteúdo símbolo da cavalaria, expresso pela melodia profana, ocorre com a manutenção da forma polifônica da missa. A contradição entre forma e conteúdo se manifesta por meio de uma paródia em que a melodia profana é revestida de texto e de forma musical sacros. 34 bancos, promovem as condições materiais de acumulação que, séculos mais tarde, levaram à sublevação burguesa. A vida em torno da corte tornou-se, neste momento, o palco privilegiado das Artes. Representação sensível do humanismo e racionalismo modernos, as Artes floresceram com o amplo investimento na forma do mecenato: modelo que seria replicado nas cortes europeias. Se o músico da Idade Média assumia, de forma predominante, vínculos esporádicos com seus patrões, exceção esta na igreja, o mecenato engendrará o estabelecimento de contratos duradouros entre músicos e patronos. Menestréis e troubadours puderam atuar de forma itinerante e, muito provavelmente, sua permanência no círculo cortesão não era mantido por contratos formais. Com a instituição de grupos musicais nas capelas a partir do século XV podemos identificar o movimento de formalização do músico como, de fato, um profissional dedicado à prática musical. A complexa música polifônica realizada nas capelas requeria um conjunto altamente treinado de músicos, assim como uma hierarquia em que o mestre de capela fosse superior ao cantor e ao solista. Este tipo de verticalização que, séculos adiante, se estabeleceria como verdadeira divisão de trabalho, poderia ser encontrado nas grandes cortes europeias, o que nos indica a sistematização de uma relação definida (ainda que não específica) entre a força produtiva e o modo de produção. Esta universalização possibilitou, de um lado, a circulação de obras e músicos entre as cortes e, de outro lado, a formação do modelo produtivo em relação ao qual a concreção particular, nos diferentes Estados, estaria direcionada. Se a similaridade estrutural possibilitava a ampla circulação de obras, assim como a mobilidade dos músicos, as condições dispostas na relação produtiva respeitavam a lógica do regime aristocrático: a relação entre o músico individual – assim como a obra musical, criação sua ou de outrem – e a instituição fundava-se na relação direta, e servil, entre o trabalhador e o mecenas. Por um lado, o trabalhador encontrava-se sob um tipo de contrato vitalício diretamente com o nobre. Os termos definiam que o mesmo deveria servi-lo até a sua morte ou revogação unilateral do contrato – o que aconteceria, por exemplo, caso fosse concedido seu ingresso em qualquer outra corte o que, de fato, poderia ocorrer nos bons termos entre empregadores. No caso da quebra do contrato, ele poderia até mesmo ser preso (RAYNOR, 1978, p. 116). De outro lado, a produção artesanal no interior da corte 35 obedecia a diretrizes definidas pelo grau de controle do patrono que, por sua vez, costumava compreender e até mesmo exercer a prática musical. Se este não era um controle direto sobre o trabalho, pois a liberdade do compositor será encontrada na suspensão local da regra, pairava acima, mesmo em suspenso, o julgamento do seu mecenas. O deslocamento de músicos entre as cortes poderia nos indicar, sob certa perspectiva, a formação de uma “protomercado” em que trabalho e obras musicais poderiam assumir a forma de mercadoria. Músicos agiriam como empreendedores capazes de planejar onde e quando vender sua força de trabalho. Isto repousaria, evidentemente, sobre um mercado (marketplace) de trabalho, conforme certa interpretação nos sugere (STARR, 2004). No entanto, do ponto de vista que sustentamos, este não parece ser o caso. Em termos jurídicos, restava ao músico convencer seu patrão a demiti-lo, na medida em que os termos dos contratos impossibilitavam sua rescisão. A ausência de intermediários comerciais, tais como editoras, entre as esferas da produção e consumo, impossibilitava o compositor de difundir sua obra como mercadoria – considerando que a mercadoria requer universalidade para, de fato, tornar-se valor de troca em um mercado relativamente estabelecido. Neste contexto, não encontramos a aparência fetichizada da forma mercadoria. As relações produtivas não se encontram, como mercadoria, soterradas em uma suposta autonomia do objeto do trabalho: eram, na realidade, evidentes na sujeição do músico ao mecenas como dependência direta, ainda que assimétrica, entre ambos. Apesar de não estar impregnada da dissociação operada pela lógica da forma mercadoria, a música na corte assumiu o papel de representar os atributos simbólicos da nobreza. Neste sentido, poderia ser observada com instrumento de “fetichização” destes atributos. Podemos compreendê-la, para além de sua riqueza composicional “interna”, também segundo sua função “externa”, isto é, através da correlação entre músicos e o sistema produtivo cortesão. Assim como nas outras instâncias ligadas à corte, os grupos musicais deviam servir aos desígnios do nobre (e.g., ao duque) e, por extensão, representar o seu poder e prestígio. A música é apresentada, nessas circunstâncias, com as características que simbolizam o poder principal. A execução de música polifônica com sua complexidade técnica exige do músico uma formação excepcional que, até os dias atuais, requer anos de estudo e 36 prática. Ao contrário dos pequenos grupos itinerantes da Idade Média eventualmente anexados às cortes, sustentar um grupo especificamente capacitado para a execução polifônica requeria recursos consideráveis e excedentes. Enquanto na igreja ocorria, segundo os registros, apenas em grandes festividades, a polifonia na corte era indispensável no “ritual de ostentação do príncipe” (PERKINS, 1984, p. 515). Com a fundação das capelas, a música mudou de uma prática costumeira para o instrumento de representação de poder, carregado de uma função ideológica precisa, a de defender, preservar, e acima de tudo exibir os valores identitários da classe dominante. […] Graças ao privilégio da polifonia, a música nas capelas da corte assumiu uma função essencialmente ideológica. (BORGHETTI, 2008, p. 193) Contraditoriamente à apresentação externa do status garantido pelo poder aristocrático que, como tal, buscava elevar-se acima da prática comum, a polifonia apresenta em sua estrutura uma negação dessa representação. Assim como uma tapeçaria de luxo, o grupo musical e sua música assume a função de objeto que representa um valor – neste caso, valoração do luxo principesco. Nisto reside a “fetichização” de um tipo específico: o aspecto qualitativo, dado na complexidade polifônica e mais ainda no trabalho requerido por esta prática, é fetichizado “externamente” no potencial simbólico assumido no conjunto dos luxos – objetos igualmente trabalhados por artesãos altamente treinados. Nesta externalização, que intensifica a qualidade como quantidade simbólica (quanto mais complexo, mais luxuoso), a linguagem retém algo que nega a morfologia concêntrica do poder absolutista. Em tensão com esta ideologia, a linguagem polifônica formaliza musicalmente, ou mesmo representa concretamente, a consciência coletivizada do trabalho. Isto é, o material polifônico é a textura sonora que, enquanto prática real, alinha-se com o trabalho cooperativo do músico – aspecto herdado da polifonia medieval. 2.5 DO ARTESANATO DAS CORTES À MANUFATURA DO GRANDE TEATRO À medida que o enfrentamento entre a burguesia e a nobreza é acirrado, diferentes correlações entre as forças e sistemas produtivos são formadas no campo musical. Mantendo uma relação simbiótica com a aristocracia durante séculos, a 37 burguesia pôde, por meio da usura 9 , acumular grandes quantidades de capital, ou “capital primitivo”, que a partir do século XVI seria investido na construção de indústrias e comércio. Este processo, no entanto, só pode ser completado pela suplantação dos resquícios do feudalismo, como a propriedade comunal, que se tornaram um obstáculo para o desenvolvimento capitalista. Utilizando-se da expropriação da terra, em um só golpe a burguesia pôde concentrar para si a propriedade privada, capitalizando a produção agrária, e forçar grande parte da população, despossuída de seu antigo modo de vida, a viver como trabalhadores assalariados. Tais condições formaram a classe trabalhadora, ou proletariado, e a oposição entre esta e a burguesia – condição permanente até a atualidade. Ambos os processos, acumulação e expropriação, permitiram à burguesia redesenhar o poder, antes reservado ao Estado nacional, em escalas globais. Surge, assim, o mercado mundial em que todo o capital industrial subjuga os interesses nacionais e antigos vínculos de trabalho, como o patronato musical. Isto ocorreria, pois “por toda a parte onde penetrou, ela [a grande indústria] destruiu o artesanato e, de modo geral, todos os estágios anteriores da indústria” (MARX e ENGELS, 1998, p. 71). Se a prática musical individual, realizada pelo intérprete e compositor, não poderia, naquele momento, ser inserida na “automação” do método industrial em virtude de impossibilidades técnicas (seu resultado máximo seria o realejo e o orquestrião), a aplicação de sistemas produtivos de escala ampliada, como a manufatura, reconfiguram a organização do trabalho musical e sua distribuição no século XIX. Nessas condições sociais, em que a burguesia demandava tanto chapéus quanto sonatinas, formou-se um amplo mercado englobado por grandes teatros, empresas de edição, indústria de instrumentos (em especial, o pianoforte), educação musical, etc. No momento em que as ofertas de trabalho nas capelas das cortes se tornavam raras por motivos variados, o mercado burguês demandava, inclusive, o crescimento da mão de obra disponível (DENORA, 1991). Em função da grande expansão dos teatros a partir da segunda metade do século e, consequentemente, das orquestras, um elevado número de músicos especializados era requerido para a execução de sinfonias, concertos e, em especial, óperas. Paralelamente, orquestras amadoras são gradualmente substituídas por orquestras profissionais assim como 9 Segundo o historiador Ferdinand Braudel (1987, p. 47), a “„burguesia‟, ao longo dos séculos, terá parasitado essa classe privilegiada [nobreza], vivendo perto dela, contra ela, tirando proveito de seus erros, de seu luxo, de sua ociosidade, de sua imprevidência, para se apoderar de seus bens”. 38 concertos ao ar livre (promenade), de caráter informal, cedem aos eventos musicais realizados em grandes teatros (WEBER, Wiliam, 1991). Além do acréscimo quantitativo, o modo de produção capitalista teve forte impacto na organização do trabalho. Na corte, o músico atuava sob o desígnio do patrono, e seus interesses musicais, de forma análoga ao método de produção do artesanato: tal como o mestre artesão, um músico executava suas próprias obras (e.g., Mozart que, nos salões vienenses e franceses, executava suas sonatas) e com frequência as dedicava, sendo ou não encomendas, para certo duque, condessa ou membro da nobreza. Nos teatros, por outro lado, o músico é integrado em função de uma específica divisão do trabalho. De forma análoga ou idêntica ao sistema de produção manufatureiro, o instrumentista forma o corpo de orquestra em função de uma especialidade (flautista, oboísta, clarinetista, fagotista, etc.) em certo setor ou naipe; o regente atua exclusivamente na coordenação do grupo; o compositor, possivelmente subtraído da prática instrumental, trabalha intermediado pelo texto musical – este que, nesta circunstância, deveria detalhar no andamento, dinâmica, fraseado, articulação, etc., a parcela de informação que antes poderia ser transmitida oralmente. Cada qual assumiu uma função no interior da estrutura pré-determinada da orquestra sinfônica, reproduzível mundialmente, assim como ocorre no sistema de produção manufatureiro. Esta transformação da base produtiva acompanha mudanças de relações sociais entre a esfera da produção e consumo. Se no mecenato as relações tinham um caráter direto, música para certo patrono, no capitalismo as relações indiretas se tornam preponderantes: a música é feita para o “mercado anônimo”, ou público dos teatros. Este processo, no entanto, apenas se consolidaria a partir de 1850. Até a década de 1840, os bilhetes apenas poderiam ser vendidos para membros exclusivos da aristocracia e alta burguesia. A abolição desta restrição teve como resultado o crescimento massivo de salas de concerto a partir da metade do século. Nesta altura, concertos com público de até mil pessoas se tornaram uma realidade nas capitais europeias, como Paris e Londres (WEBER, Wiliam, 1991). A mudança rumo ao “grande público” nos sugere a ideia de que, não mais sendo coagido pelo gosto do patrono, o músico se libertaria do esquematismo formal e estético determinado por outrem. Desatados da “subordinação a um padrão social de produção artística”, os artistas criadores supostamente poderiam, por intermédio da liberdade adquirida, 39 compor obras “individuais” e “livres”. Este é o argumento do importante sociólogo Norbert Elias (1897-1990). Na fase da arte artesanal, o padrão de gosto do patrono prevalecia, como base para a criação artística, sobre a fantasia pessoal de cada artista. A imaginação individual era canalizada, estritamente, de acordo com o gosto da classe dos patronos. Na outra fase, os artistas são, em geral, socialmente iguais ao público que admira e compra sua arte. […] Com seus modelos inovadores, podem guiar para novas direções o padrão estabelecido de arte, e então o público em geral pode ir lentamente aprender a ver e ouvir com os olhos e ouvidos dos artistas (ELIAS, 1995, p. 47) Tal promessa, no entanto, encontra limites determinados. A liberdade assim adquirida encontra-se conectada com o princípio democrático dentro do modelo capitalista e deste retém suas premissas: caso tenha aprovação popular, ou grande público, qualquer compositor é capaz de vender sua obra como mercadoria, seja bilheteria ou partitura. Por outro lado, ao contrário do que sugere Norbert Elias, o público deste período não era passivo e simplesmente “guiado” por modelos inovadores. Este era, na realidade, composto pelo grupo que se encontrava apto a integrar as novas instituições musicais – isto é, poder econômico para adquirir os bilhetes, partituras, instrumentos musicais, periódicos, etc. Assim como na política, interesses de classe possuem expressão no campo da estética. Por meio da sociedade civil e seus instrumentos (e.g. periódicos), tais grupos atuam “democraticamente” na formação de balizas que mobilizam igualmente os interesses econômicos de certas instituições. Assim poderíamos observar esta complexa inversão: o público, anteriormente individualizado (patrono), torna-se consumidor “anônimo”; o músico criador, de artesão anônimo, é alçado ao estatuto de gênio e virtuose. Não seria esta inversão a que melhor representaria a consciência deste público? A compulsória liberdade do artista que, de frente, é criador autônomo mas que, de costas, está indiretamente atado ao hegemônico crivo estético, não é fruto do modo de relação dissimulado? Nesta inflação do homem indivíduo, em que o carro passa na frente dos bois, em que a personalidade do artista passa na frente da funcionalidade da obra, há uma perversa mas essencial dessocialização da arte da música. E se esta é agora popularesca por princípio, devido às aparências democráticas que a vida tomava então, em essência ela é uma expressão de classe. […] O que dantes era vício apenas do intérprete, agora é vício do próprio artista criador, que tornou-se, não exatamente um democrata, mas… um capitalista! (ANDRADE, 1963, p. 47) 40 Se a opinião de Mario de Andrade pode soar exagerada, pois o capitalista é aquele ao qual a maioria dos compositores vendem a sua mão de obra, não deixa de sublinhar o fato de que, nesta conjuntura, a música será um dos meios de expressão privilegiados pela burguesia. Lançados no universo concorrencial do capitalismo, compositores viram-se impelidos a adentrar no mercado editorial. O ingresso, no entanto, não era gratuito. Isto produz um efeito duplo e contraditório: não mais subjugado ao gosto cortês, pôde elaborar uma obra individual; ao mesmo tempo, quando é lançada num circuito de produção e consumo, a mercadoria musical defronta-se com as expectativas comerciais das editoras. Quando dizemos que uma mercadoria defronta-se, entendemos que dela é subtraído o artista criador. A obra transformada em mercadoria prescindirá de autoria, pois, inserida no mercado, transforma-se em valor de troca. Por mais que o “ganho de poder do artista em relação ao seu público” seja patente quando comparamos o modelo burguês com o modelo do mecenato, a transformação da obra musical em mercadoria modifica o modo de relação entre os indivíduos que a produzem e consomem (ELIAS, 1995, p. 44). O objeto musical, materializado na partitura, assumirá o papel de intermediário entre estes extremos sociais: o lastro objetivo, dado no laborioso processo criativo de compositores e intérpretes, surge mistificado na partitura e nos palcos; a relação concreta entre o músico e o público surge intermediada pelo livreto e pelo espetáculo. O material musical como mensagem estética na sua multiplicidade (intelecção, representação e sensibilidade) encontra-se, nestas condições, atado não ao meio de veiculação (a partitura como meio criativo e prático), mas à coerção que através deste meio se expressa. Em outras palavras, a partitura receberá do valor de troca o peso da equivalência com qualquer outra mercadoria e, no mundo de mercadorias, será comparada e comprada sob este parâmetro. Resta-nos compreender as condições relativas às pressões econômicas e sociais que produzem a fetichização do objeto musical e, por sua vez, a modificação qualitativa do objeto musical em função da coerção econômica. 41 2.6 O MERCADO EDITORIAL NO SÉCULO XIX: CONCREÇÃO DO OBJETO MUSICAL ENQUANTO MERCADORIA Apesar de existir desde a invenção das primeiras técnicas de reprodução, somente no século XIX a editoração musical se estabeleceria como um amplo e lucrativo sistema de trocas em que atuam compositores, editores, distribuidores, vendedores e compradores. No início do século, provavelmente este mercado não obtinha grandes margens de lucros. Isto ocorria devido a relação do alto valor de produção (chapas, papel e mão de obra), o valor pago pelos direitos autorais 10 e o público relativamente reduzido (LENNEBERG, 1983). Este cenário mudou a partir da metade do século como resultado dos primeiros passos rumo à massificação dos métodos de produção de música. O sistema de assinaturas de pessoa para pessoa, comum no século XVIII, foi lentamente substituído por uma rede internacional de comércio voltada às lojas de música e bibliotecas. Com esta modificação, em que as trocas tornam-se constantes nas lojas, o número de impressões cresceu de algumas centenas para milhares de cópias até o final do século (STRYKOVSKI, 2018, p. 580). A dinâmica do mercado, voltada à maximização do lucro, iria impor uma especulação econômica calculada desde o plano da produção até a venda. E esta especulação, feita sobre os compositores 11 , se mostra na pergunta: “qual o valor potencial de sua obra?”. No momento em que este mercado é firmado, a relação entre o modo de produção, concentrado na indústria e comércio da edição musical, e o compositor passou a ser determinada pela rentabilidade da obra no mundo das mercadorias musicais. O cálculo do lucro passaria, então, por uma racionalidade que busca investimentos acertados a despeito do aspecto qualitativo da obra – ainda que não desapareça, a qualidade é convertida em “marca” distintiva. Neste contexto, a publicação de obras popularescas, de maior fluxo de vendas, rapidamente ganhou espaço, assim como obras no “domínio público”. Nesta lógica econômica, isto é determinado pela correlação de três fatores: o custo operacional ou capital fixo, 10 Quando nos referimos aos “direitos autorais”, o fazemos em livre conexão com as comissões recebidas por compositores das editoras. Apenas no século XX as leis de propriedade artística seriam de fato sistematizadas. 11 Esta especulação econômica, prerrogativa do conservadorismo congênito do mercado, é verificável inclusive na vida de grandes compositores. Ao tentar vender algumas obras de câmara para a editora Breitkopf & Härtel, um compositor tão insuspeito quanto Franz Schubert recebeu a seguinte resposta: “Ainda não temos conhecimento do sucesso comercial de suas composições e, portanto, não podemos oferecer uma remuneração pecuniária fixa (que um editor pode determinar ou conceder somente de acordo com esse sucesso)” (PROBST apud STRYKOVSKI, 2018, p. 574). 42 referente ao custeamento do meio de produção (maquinário da editora, papel, manutenção, etc.), o custo relativo ou capital móvel, respectivo ao pagamento de salários e comissões aos trabalhadores (operários da fábrica, direitos autorais ao compositor, vendedores, etc.), e a mais-valia, valor subtraído do trabalho (isto é, deduzido do capital móvel) com a finalidade de acúmulo e reprodução do modo produtivo (LUXEMBURGO, 1985). Nas diferentes disposições destes fatores, veremos que “objetivamente” – deste ponto de vista – existem claras determinações impostas aos agentes produtores através das coerções econômicas expressas, entre outras coisas, na popularidade e, por conseguinte, rentabilidade de uma corrente estética. Ao menos três disposições são deduzidas destes fatores tendo em vista a comissão paga ao compositor, ou o direito autoral, como custo relativo. No primeiro caso, diminui-se o custo relativo e, por conseguinte, aumenta-se a mais-valia da mercadoria ou barateia-se o valor final (neste contexto, com a única finalidade de desbancar a concorrência). Compositores sem “sucesso comercial” prévio com frequência recebem comissões com valores irrisórios. Assim como a maioria dos trabalhadores que apenas possuem sua mão de obra qualificada, o compositor encontra-se coagido a aceitar tais acordos espúrios caso pretenda editar sua obra. O segundo caso, mais comum do que o precedente e seu desdobramento, se dá pela elevação do custo relativo tendo em vista o estabelecimento de uma “garantia” de