UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO YASMIN BRIGATO DE ANGELIS Dimensões espaciais em Casa Vazia, de Kim Ki-Duk BAURU 2020 YASMIN BRIGATO DE ANGELIS Dimensões espaciais em Casa Vazia, de Kim Ki-Duk Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação; Linha de Pesquisa: Produção de Sentido na Comunicação Midiática; Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – para a obtenção do título de Mestre em Comunicação. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Magalhães Bulhões. BAURU 2020 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. de Angelis, Yasmin Brigato. Dimensões espaciais em Casa Vazia, de Kim Ki-Duk / Yasmin Brigato de Angelis, 2020 56 f.: il. Orientador: Marcelo de Magalhães Bulhões Dissertação (Mestrado)– Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2020 1. Espaço fílmico. 2. Mise en Scène. 3. Casa Vazia. 4. Análise interpretativa. 5. Tempo. 6. Corpo I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO Área de Concentração: Comunicação Midiática Linha de Pesquisa: Produção de Sentido na Comunicação Midiática Banca Examinadora: Presidente/Orientador: Professor Doutor Marcelo de Magalhães Bulhões Instituição: FAAC, UNESP – Bauru Titular: Professor Doutor Arlindo Rebechi Júnior Instituição: FAAC, UNESP – Bauru Titular: Professor Doutor Rogério Ferraraz Instituição: Universidade Anhembi Morumbi Bauru, 30 de novembro de 2020 RESUMO A categoria espaço está inserida nas argumentações das artes desde os primórdios de seu entendimento como um todo. Teóricos que discutem as artes plásticas e o cinema, trazem inúmeras e férteis discussões sobre este tema. No cinema, todo e qualquer filme é considerado espaço-temporal (utilizam-se de técnicas de enquadramento, filmagem e montagem que proporcionam manipular estes dois elementos como um só, bem como a criação de um espaço como temporalidade pura). A presente pesquisa propõe avaliar como opera a categoria espaço no filme Casa Vazia (2004) de Kim Ki-Duk, uma vez que no filme o discurso cinematográfico parece manifestar questões do espaço urbano-social na contemporaneidade. Nesta dissertação o filme é utilizado com caráter operativo e exemplar para discutirmos a questão do espaço no cinema, alocado na própria constituição estrutural da narrativa, na relação entre forma cinematográfica e tema. No entanto, em Casa Vazia a questão do espaço se integra de modo mais visceral e direto na própria diegese; os personagens vivem situações em que a relação da solidão e do habitar íntimo da vida moderna é mediada pelo espaço. Esta dissertação compõe-se de duas partes em termos estruturais: a primeira possui natureza teórica e a segunda, analítica-interpretativa, na qual depreenderemos componentes importantes de cenas do filme Casa Vazia, com apontamentos possivelmente férteis para o enriquecimento da apreciação estética do filme. Como base teórica recorremos ao problema da representação do espaço, em autores como Marcel Martin, Éric Rohmer in Cristian Borges e Luiz Carlos de Oliveira. Para a análise fílmica, recorreremos a Laurent Jullier, Michel Marie e Jacques Aumont, entre outros. Palavras-chave: Casa Vazia, espaço fílmico, mise en scène, análise interpretativa. ABSTRACT The space category has been inserted in the arguments of the arts since the beginning of its understanding as a whole. Theorists who discuss fine arts and cinema, bring countless and fertile discussions on this topic. In cinema, any and all films are considered space-time (they use framing, filming and editing techniques that provide manipulation of these two elements as one, as well as the creation of a space as pure temporality). The present research proposes to evaluate how the space category operates in the film Casa Vazia (2004) by Kim Ki-Duk, since in the film the cinematographic discourse seems to manifest issues of the social-urban space in contemporary times. In this dissertation the film is used with an operative and exemplary character to discuss the issue of space in cinema, allocated in the very structural constitution of the narrative, in the relationship between cinematographic form and theme. However, in Casa Vazia the question of space is more viscerally and directly integrated into the diegesis itself; the characters live situations in which the relationship of solitude and the intimate living of modern life is mediated by space. This dissertation is composed of two parts in structural terms: the first is theoretical in nature and the second, analytical-interpretative, in which we will understand important components of scenes from the film Casa Vazia, with possibly fertile notes to enrich the aesthetic appreciation of the film. As a theoretical basis we resort to the problem of representation of space, in authors such as Marcel Martin, Éric Rohmer in Cristian Borges and Luiz Carlos de Oliveira. For film analysis, we will use Laurent Jullier, Michel Marie and Jacques Aumont, among others. Keywords: 3-Iron, film space, mise en scène, interpretive analysis. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9 1. A NOÇÃO DE ESPAÇO NO CINEMA .......................................................................... 12 1.1 Espaço Fílmico e a Mise en Scène .................................................................................. 19 2. ANÁLISE DE CASA VAZIA .............................................................................................. 24 2.1 Do Diretor à Obra ........................................................................................................... 24 2.2 Ressignificações Corpóreas e a “Não Fala”.................................................................... 36 2.3 O Si-Mesmo Como um Outro ......................................................................................... 42 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 48 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 56 9 INTRODUÇÃO Autores frequentemente consultados no campo dos estudos cinematográficos, Aumont & Marie (2012, p. 104) caracterizam o espaço de um ponto de vista empírico, na medida em que nele se desloca o nosso corpo e nossos sentidos (toque). Segundo eles, em um primeiro lado, o espaço foi compreendido como medida temporal, isto é, o espaço-tempo. Mas, em um segundo momento, sua compreensão foi desdobrada e fala-se em espaço fílmico. A partir de então o espaço poderia ser definido conforme se considerasse: o plano, a cena e a sequência, dentre outras formas mais complexas de abordar a linguagem do cinema. Assim, o estudo do espaço passa a tomar vulto, sendo compreendida como categoria crucial no estudo do fenômeno cinematográfico. Tais considerações parecem apontar para um horizonte fértil na avaliação da função do espaço no campo do cinema em “casos” mais particulares. A presente pesquisa propõe avaliar como opera a categoria espaço no filme Casa Vazia de Kim Ki-Duk, uma vez que no filme o discurso cinematográfico parece manifestar questões do espaço urbano-social na contemporaneidade. Diferentemente de alguns outros filmes em que o espaço, por assim dizer, é utilizado como espécie de pano de fundo, em Casa Vazia ele é um componente de peso na narrativa de modo a integrar o próprio eixo temático do filme, a ponto de comparecer no próprio título - pelo menos no título em português. Afinal, o percurso do protagonista do filme de Kim- Ki-Duk, de início ao fim, é tomado pela ação de penetrar e habitar espaços urbanos da vida privada, casas que estão vazias. Em linhas gerais, todavia, pode-se dizer que nesta dissertação o filme é utilizado com caráter operativo e exemplar para discutirmos a questão do espaço no cinema, alocado na própria constituição estrutural da narrativa, na relação entre forma cinematográfica e tema. Naturalmente, todo e qualquer filme é espaço-temporal. No entanto, em Casa Vazia a questão do espaço se integra de modo mais visceral e direto na própria diegese; os personagens vivem situações em que a relação da solidão e do habitar íntimo da vida moderna é mediada pelo espaço. Por outro lado, dialogaremos com outros filmes e diretores nos quais a importância do espaço possua certo caráter exemplar. Porém, comparecerão de modo “ilustrativo" para considerações do campo do cinema, segundo algumas contribuições de distintos autores das teorias do cinema. 10 Esta dissertação compõe-se de duas partes em termos estruturais: a primeira possui natureza teórica e a segunda, analítica-interpretativa, na qual depreenderemos componentes importantes de cenas do filme Casa Vazia, com apontamentos possivelmente férteis para o enriquecimento da apreciação estética do filme. O primeiro capítulo, “O Espaço Fílmico e a Mise en Scène”, trata do processo conceitual da categoria espaço no cinema e sua expressividade. O primeiro momento se dá com a afirmação, proposta por Martin, de que o espaço se realizou de forma plena no percurso do cinema e de como isso se mostrou após o período áureo da montagem, em que cineastas e teóricos do cinema introduziram a expressividade espacial na linguagem cinematográfica com a redescoberta da profundidade de campo. O autor retoma a representatividade da montagem e esclarece a possibilidade de criar um espaço conceptual através de dois elementos no mesmo plano e, a partir do momento em que tais elementos partilham de uma mesma unidade espacial, pode pertencer a tempos semelháveis. Ao descrever a tela do cinema como uma profundidade e não mera superfície, Martin exprime que não se pode falar de um espaço do filme, e sim um espaço no filme, onde a ação será potencializada no universo dramático. Assim, requalifica o cinema como primeiramente uma arte do tempo na medida em que ele é considerado como elemento de intuição, implicado em um sistema quantitativo de tempo, e que somente a sua duração carrega valor estético. Assim, a contribuição teórico-metodológica de Martin se faz necessária para uma conceitualização mais restrita da categoria espaço (ainda que atrelada ao tempo), desde seu surgimento e evolução na linguagem cinematográfica. Em um segundo momento, o capítulo conta com a contribuição de Cristian Borges, que discorre sobre a tese de Doutorado do cineasta francês Éric Rohmer, intitulada A Organização do espaço no Fausto de Murnau, defendida em 1972, a qual estabelece três tipos do espaço no cinema: espaço pictórico, espaço arquitetônico e espaço fílmico. O último tipo é o que nos apresenta maiores embasamentos para compreensão da dimensão espacial estrito senso no cinema. É no espaço fílmico que Rohmer identifica duas operações fundamentais da mise en scène cinematográfica: a decupagem e a montagem. Não em termos de tempo, mas de espaço, pois “decupar e montar um filme é não apenas organizar sua duração, mas seu espaço” (Rohmer, 1991, p. 94 apud Borges, 2017, tradução do autor). O entendimento do conceito de espaço fílmico nos direciona ao terceiro momento que nos interessa, a mise en scène. A expressão surgiu no séc. XIX, mais precisamente nas 11 apresentações de peças teatrais clássicas na França, com o objetivo de desenhar o movimento dos personagens no cenário e a disposição dos objetos no palco, ou seja, está relacionada à encenação ou ao posicionamento da cena no palco teatral. Ao pé da letra, mise en scène é tudo o que é posto em cena e abrange os elementos identificáveis: cenário, atores, figurino, maquiagem e até mesmo a luz. O termo foi ganhando espaço no cinema, tornando-se um conceito central para os estudos da sétima arte, fazendo parte de discussões desde a estética geral de um filme até mesmo a decupagem das cenas, permitindo-nos atribuí-lo aos nossos objetivos de ressoar tais elementos na análise-interpretativa do filme Casa Vazia. O segundo capítulo da dissertação traz uma breve abordagem da obra do diretor Kim Ki-Duk, seu percurso no cinema, seguido de um momento de análise do filme Casa Vazia, dirigindo alguns apontamentos aos objetivos desta pesquisa. Em “Ressignificações Corpóreas”, concebemos uma introdução para a questão da corporeidade retratada no cinema, interpretada como performance e situando o corpo, em grau restrito, como suporte e motor da ação dramática na narrativa do filme, e suas correlações com os elementos apontados. As últimas considerações da análise apontam para uma certa questão de identidade observada na narrativa, que provém de uma construção estabelecida entre as personagens e o desapego como caminho para combater a solidão. Essa questão da identidade é assimilada por Stuart Hall como “crise de identidade” e faz parte de um processo de “descentralização” entre os sujeitos e os processos das sociedades modernas. A investigação das relações espaciais iniciou-se na minha graduação em Arquitetura e Urbanismo, quando tive contato com disciplinas que expandiram minha percepção sobre distintas formas de habitar espaços, bem como novas percepções do que é o espaço em si. O filme Casa Vazia nos foi apresentado com o propósito de, primeiramente, absorvermos essas novas percepções dentro do espaço arquitetônico e, posteriormente, criarmos uma instalação espacial, em qualquer espaço da faculdade. O que desenvolvo aqui faz parte de outro momento de minha trajetória, dedicada a avaliar como a categoria espaço está inserida intrinsecamente no filme Casa Vazia, uma vez que o espaço no filme opera de modo incisivo, pois não é mero “cenário” ou elemento modificável. Em tese, outras produções cinematográficas poderiam servir de objeto de estudo para compreender as relações espaciais no cinema, bem como não negamos que, nesse sentido, nossa análise pode ter finalidade operativa para outros filmes. No entanto, parece haver pertinência no fato dos protagonistas de Casa Vazia não usarem diálogo para expressão da narrativa, o que leva a depositar na questão do espaço - o espaço da civilização, privado, doméstico que, por excelência, é a casa - um relevo peculiar. 12 1. A NOÇÃO DE ESPAÇO NO CINEMA Neste primeiro capítulo, é válido considerarmos alguns conceitos sobre espaço, a partir do teórico do cinema Marcel Martin; e tangenciar um pouco as categorias narrativas basilares como elementos articulados na linguagem cinematográfica. Em sua obra A Linguagem Cinematográfica - há algum tempo tida como clássica -, o autor compõe capítulos com pendor didático e com certa feição aplicativa, ou seja, dirigindo os componentes ou categorias a exemplos ilustrativos em alguns filmes. Aqui as discussões propostas por Martin se fazem necessárias, por um primeiro momento, para apresentarmos como o cinema lida com a expressividade do espaço de uma forma mais abrangente para, posteriormente, afinarmos em elementos mais específicos a classificação desta categoria. A Linguagem Cinematográfica de Marcel Martin (2013) encontra-se na lista das “cartilhas” clássicas da bibliografia sobre a linguagem cinematográfica. Teve sua edição original publicada na França, em 1955 e a primeira edição traduzida para o português do Brasil em 1963. O livro de Martin associa-se aos estudos da fenomenologia no cinema: um conjunto de teóricos e críticos do cinema que utilizavam a filosofia da fenomenologia, uma importante corrente filosófica abordada em meados do século XX, que representa o pensar sobre o ser- estar no mundo. Os autores idealizavam desenvolver um olhar teórico e crítico da linguagem do cinema baseados na experiência com o cinema; deslocar-se até a sala escura e, em seguida, deixar ecoar nos pensamentos a reflexão a partir do que tal experiência havia proporcionado por meio dos sentidos. Depois disso, carregados de rígida metodologia analítica, interpretariam o filme. Ao mesmo tempo, Martin compõe sua obra com pendor didático, explicando de maneira segmentada elementos, categorias, funções e processos formais na obra cinematográfica. Além da magnitude (e pioneirismo) de tal material teórico, o autor traz um repertório rico em exemplos, ilustrando as teorias e propostas redigidas, retirados de filmes clássicos do percurso histórico do cinema. A partir dessa proposta didática, o autor divide os capítulos de acordo com os diferentes elementos da linguagem cinematográfica. Dentre eles, o espaço é categoria expressiva. Desde a consolidação da linguagem narrativa clássica do cinema (em um percurso que vai de Porter a Griffith; e a Eisenstein), autores iniciaram discussões sobre a continuidade do espaço, do contra-campo, da ação-reação e do tempo sujeito ao encadeamento lógico dos acontecimentos. Martin inicia sua discussão sobre como a linguagem cinematográfica lida com 13 a expressividade espacial afirmando que, “o cinema é a primeira arte em que a dominação do espaço pôde realizar-se de forma plena” (2013, p. 219). O autor lembra que o período áureo da montagem tornou esse pensamento mais evidente, por trazer discussões sobre o espaço dramático (onde se desenvolve a ação fílmica) e o espaço plástico (onde se constrói a expressividade espacial na imagem por elementos estéticos), uma vez que a montagem muito mais se expressa do que se descreve. Quando cineastas e teóricos redescobriram a “essência” da profundidade de campo (termo técnico para o que está em foco), a expressividade espacial foi reintroduzida nos pensamentos da imagem. Isso proporcionou que os movimentos de câmera pudessem cada vez mais substituir a montagem, uma vez que os planos de longa duração apresentam um valor natural do espaço, pois não resultam em uma imagem fragmentada. Uma vez decidido o local de observação, a distância focal e a profundidade de campo definem, rapidamente, a quantidade de objetos que estarão dentro do quadro, no sentido lateral, pela distância focal, e no sentido do eixo da objetiva, pela profundidade de campo. Trata-se, portanto, de parâmetros regulando a construção do ponto de vista (JULLIER; MARIE, 2009, p. 29). Figuras 1 e 2: Cidadão Kane (1941), de Orson Welles. Foi um filme revolucionário na história do cinema por usar o foco, de uma só vez, em toda extensão da tela. As câmeras cinematográficas da época possuíam uma profundidade de campo muito curta, não conseguindo valorizar o espaço fílmico (em sua grandeza) mesmo inserido em planos sequência. A solução do diretor para conseguir gravar com uma profundidade maior, foi de projetar grandes sets de filmagem e usar a profundidade de campo a seu favor. Destacamos na fig. 1 dois elementos acontecendo na cena: o primeiro plano acontecendo frente à câmera, enfatizando a ação, e em segundo plano temos o menino Kane brincando na neve. Fonte: http://movieimages.tripod.com/citizenkane/ acesso em 31/10/2020 Para o autor, o cinema lida com a expressão espacial em dois âmbitos: Ou se contenta em reproduzi-lo e em fazer com que o experimentemos através dos movimentos de câmera (“Com os movimentos de câmera”, escreve Balazs, “o próprio espaço torna-se sensível e não simplesmente a imagem do espaço representada na perspectiva fotográfica”, ou então o produz ao criar um espaço global, sintético, percebido pelo espectador como único, mas feito da justaposição-sucessão de espaços fragmentários que podem não ter nenhuma relação material entre si (MARTIN, 2013, p. 220). http://movieimages.tripod.com/citizenkane/ 14 Didática e estrategicamente, Martin emprega o experimento de montagem de Kulechov, intitulada “geografia criadora”, como exemplo ilustrativo desse diálogo reprodução-produção, uma vez que o diretor soviético reuniu cinco planos gravados em espaços categóricos diferentes e afastados uns aos outros, representando um efeito de perfeita unidade de lugar. Os planos respectivamente representavam: 1. um homem caminha da esquerda para a direita, 2. uma mulher caminha da direita para a esquerda, 3. ambos se encontram para um aperto de mãos, 4. um prédio branco precedido de uma grande escadaria, 5. os dois subindo juntos a escadaria. “Assim, o espaço fílmico frequentemente é feito de peças e fragmentos, e a unidade advém de sua justaposição numa sucessão criadora” (Martin, 2013, p. 220). O autor ainda se refere a uma conceptualização do espaço em que, através de fragmentos do espaço real, Kulechov produz empiricamente um espaço artificial. Martin ressalta que com a noção de geografia criadora esbarramos novamente com a montagem, uma vez em que ela também é criadora do espaço. O autor utiliza como exemplo os filmes de caçada, em que nunca estavam no mesmo plano a caça e o caçador e que estas situações eram comuns por questões de segurança ou facilidade. Mas a montagem é capaz de criar um espaço fílmico onde ambos se encontram na mesma espacialidade. Assim, o autor exemplifica a criação de um espaço puramente conceptual e de ordem mental: A montagem tende a estabelecer, entre os respectivos conteúdos de dois planos consecutivos, uma relação de contiguidade espacial puramente virtual. A aproximação pode justificar-se primeiramente por uma analogia de conteúdo nominal. Assim, um homem em estado febril chama sua noiva, que, longe dali, desperta em sobressalto, como se tivesse ouvido o chamado. Gardiens de Phare, Grémillon. (IDEM, 2013, p. 221) Outra questão é especulada por Martin: a relação puramente intelectual, em que a transição de um espaço para outro acontece naturalmente por meio de expressões e movimentos de câmera similares e expressões idênticas. O autor traz como exemplos o clássico Outubro, de Eisenstein, com a sequência do canhão sendo baixado na fábrica com um guindaste e no plano seguinte, em que os soldados na trincheira baixam a cabeça. Martin discorre que o espaço conceptual também pode suceder através da coincidência de dois elementos no mesmo plano que possuam o mesmo grau de realidade figurativa, sem que exista idêntico grau de existência dramática. Na medida em que esses elementos partilham da mesma unicidade espacial podem, a princípio, pertencer a tempos idênticos. É o que ocorre quando um personagem se vê confrontado com um ou vários outros que só existem em sua imaginação. Há um exemplo desse procedimento em 15 Privideniie, kotoroie ne vozvrachtchaietsa – O fantasma que não voltará (Abram Room): na cela de um prisioneiro aparecem de repente, e sem nenhuma transição visual, personagens que evidentemente ali não se encontram em realidade (sua esposa, seu pai, seus colegas de trabalho) e que só existem na sua imaginação. (MARTIN, 2013, p. 222) Figuras 3 - 5: Cenas do filme Três Homens em Conflito (1966), de Sergio Leone, e de como a montagem/edição se expressa de forma a ir afunilando os rostos dos personagens, intensificando a tensão mental da cena, onde quem for o mais rápido no gatilho, sobreviverá. Fonte: Screenshots elaborados pela autora Com esses exemplos e por meio do que interpretará sobre os cineastas em seus filmes, Martin avalia a possibilidade de pertencimento entre dois grupos de personagens a dois mundos dramaturgicamente diferentes, mas que se entrelaçam cinematograficamente. A partir disso, ele questiona a possibilidade de afirmar que o cinema seja uma arte do espaço. Contudo, toma como nota que, ao entrarmos em contato mais profundo com o filme e apesar dos elementos estéticos da imagem, é o tempo que se impõe a nós com mais força; e que seria plausível idealizar um filme que consistisse em temporalidade pura. O autor exemplifica tal idealização com o filme de Duras, L’homme Atlantique, que possui sequências em que praticamente não há imagens figurativas, apenas o quadro escuro da 16 tela. “Somos, portanto, capazes de perceber o tempo do filme (duração vivida), mesmo na ausência do tempo no filme (tempo da ação)”. (2013, p. 223). Martin discute que não seria adequado falar de um espaço do filme da mesma forma como o associaríamos à pintura, em que existe um espaço “organizado”, que é possível distinguir de um espaço “representado”. Refere-se a espaço organizado enquanto plano quadrangular da tela. E espaço representado como o universo que o quadro mostra, nas suas três dimensões. Martin justifica esse pensamento relatando a tela do cinema como uma abertura e uma profundidade, e não como mera superfície. E reitera que não se pode falar de um espaço do filme, mas um espaço no filme, ou seja, o espaço do universo dramático onde se potencializa a ação. (2013, p. 224) Dessa forma, remodela seu pensamento de que o cinema é primeiramente uma arte do tempo na medida em que o espaço é um elemento de percepção, um quadro fixo e objetivo que independe de nós, mas que permite que nos encontremos nesse espaço constituinte do filme da mesma maneira que nos encontraríamos no espaço da realidade empírica. Já o tempo, é elemento de intuição, e que se também é um quadro fixo e objetivo, (implicado em um sistema socialmente aludido em tempo quantitativo: dias, meses e anos), somente a duração carrega valor estético pois, embora vivenciamos o tempo, a duração está emanada em nós, subjetivamente. Isso porque o espaço fílmico não é fundamentalmente diferente do espaço real, ainda que o cinema nos permita uma ubiquidade que somos incapazes de realizar na vida normal. Em compensação, a dominação absoluta que o cinema exerce sobre o tempo é um fenômeno inteiramente específico. Ele não apenas o valoriza, mas também o subverte: transforma o fluxo irresistível e irreversível que é o tempo numa realidade totalmente livre de qualquer constrangimento exterior – a duração. Aí reside, sem dúvida, um dos segredos essenciais da fascinação e do arrebatamento (no sentido etimológico dessa palavra) que ele exerce: pois, na realidade, só percebemos a duração quando a vida consciente prevalece em nós sobre a vida subconsciente e automática: eis porque a duração cinematográfica, decupada, decantada, reestruturada, é tão próxima de nossa intuição pessoal da duração real. (MARTIN, 2013, p. 224) Deste modo, o universo fílmico “é um complexo espaço-tempo (ou ainda, um continuum espaço-duração), afirma Martin, em que a essência do espaço não altera sua natureza, apenas nossas concepções de vivenciá-lo, senti-lo. A natureza da duração se deleita na emancipação de sua fluidez, uma vez que seu curso pode alternar em ser “acelerado, retardado, invertido, interrompido ou simplesmente ignorado” Assim, ainda que o espaço seja conceituado dentro de um formato emancipado e austero, o autor conceitua a inviabilidade de definir o cinema como uma arte do espaço. 17 Como todo filme se submete antes de tudo ao tempo, a decupagem-tempo prevalece sempre sobre a decupagem-espaço, e a representação do espaço, portanto, é sempre secundária e contingente: o espaço implica sempre o tempo, mas a recíproca não é evidentemente verdadeira (idem). Martin aponta que para uma melhor compreensão da representação do espaço e de sua duração no cinema, é importante declarar que essa representação advém das artes plásticas. “O espaço plástico (representado) da pintura é o que prefigura melhor, com efeito, o que hoje é o espaço fílmico”. (Martin, 2013, p. 225) O autor retoma rapidamente estudos da relação tempo- espaço na pintura, trazendo análises de quadros e sempre permeando em como a questão da duração se coloca no espaço plástico e de como, posteriormente, esses elementos se anunciaram na cena do teatro e no espaço fílmico. Seria errado, de fato, acreditar que a questão da duração não se coloca na pintura só porque ela mostra um aspecto estático do mundo: pelo contrário, é por causa dessa relativa deficiência que os artistas procuraram compensar por meios visuais a impossível expressão da temporalidade (idem). Passando do espaço plástico na pintura, na época do renascimento italiano, Martin anuncia que esse espaço será a cena do teatro clássico, ou seja, uma moldura que formam os limites de uma cena, e que a profundidade é limitada tanto na tela do quadro quanto no fundo preto do teatro. Dessa forma, o espaço não possui valor representativo, ele se configura como um suporte à ação, pois é construído através das necessidades da mise en scène, “é um meio e não um fim plástico”. Dentre tantos movimentos surgidos na história da arte, Martin analisa em quadros específicos, a evolução da representação de espaço e duração na pintura e como a mesma afirma o surgimento de pontos de vista que, futuramente, serão os do cinema. A plongeé, os enquadramentos inclinados, o flou, a panorâmica, dentre outros, são elementos do cinema identificados em pinturas de séculos atrás de seu surgimento. Dessa forma, Martin formula duas considerações importantes: Em primeiro lugar, parece que toda a história da pintura nos encaminha para a liberdade de ponto de vista que será a do cinema; poderíamos mesmo afirmar que a história estética do cinema é um resumo da história da pintura. (...) Segunda conclusão importante: toda a história da pintura, considerada do ponto de vista de expressão da temporalidade, é um “apelo” ao cinema. (idem, p. 229 e 230) O autor segue anunciando que “o cinema “tritura” o espaço e o tempo a ponto de transformá-los um no outro mediante uma interação dialética” (idem, p. 233), isso ocorre porque nossa percepção cotidiana não nos permite capturar o tempo como um todo. Quando 18 experimentamos ativamente o espaço, estamos vivendo no tempo e o mesmo se esvai a cada fração de segundo, ao contrário do que ocorre quando experienciamos o espaço fílmico, que permanece em nós em estado de virtualidade. Martin exemplifica com exemplos de câmera lenta e da imagem acelerada: a trajetória de uma bala de fuzil: quando experienciado em câmera lenta, o que nos impressiona é seu aspecto temporal, ao contrário de quando vimos em imagem acelerada, onde o movimento da bala no espaço se dá em um piscar de olhos. O cinema tem, portanto, o privilégio de ser uma arte do tempo que goza igualmente de um domínio absoluto do espaço. Se é inegável que a dominação que exerce sobre o tempo e o vigor com que pode tornar sensível a duração são suas características mais específicas e originais, nem por isso deixa de ser a única arte que, rematando tentativas pictóricas seculares, pôde criar um espaço vivo e intimamente integrado ao tempo, a ponto de torná-lo um continuum espaço-duração absolutamente específico (idem, p. 231). Martin, portanto, define o espaço fílmico como um espaço vivo, figurativo, tridimensional, (p. 232) que assim como o espaço real, é dotado de temporalidade e sua realidade estética pode ser comparada à da pintura, assim como o tempo torna-se denso sob as perspectivas da decupagem e montagem. E segue anunciando que o cinema é competente ao nos amparar a vencer o espaço, “transportando-nos num instante a qualquer ponto do planeta”. (Martin, 2013, p. 234) Fechando seu discurso sobre o espaço no cinema, o autor anuncia cineastas modernos, como Wim Wenders, Theo Angelopoulos, Chantal Akerman e André Téchiné que utilizavam o espaço como caráter essencial no universo fílmico e suas intervenções limitariam apenas ao quadro objetivo da ação. Empregando a nova “regra das três unidades” - o plano fixo, o plano geral e o plano- sequência -, esses cineastas (e alguns outros como Philippe Garrel, Marguerite Duras ou Jean-Marie Straub) assumiram, a partir da metade dos anos 1970, a extrema vanguarda do “novo cinema”, valorizando o espaço (e consequentemente o tempo) pela fixidez e a objetividade do olhar posto sobre ele: ao fazerem isso, instauravam um espaço não pitoresco e não simbólico, mas puramente psicológico e plástico, ou seja, especificamente fílmico (idem, p. 235). Para nossos objetivos, a obra de Martin representa uma espécie de marco, de ponto de partida, a partir da qual buscaremos subsídios buscando elementos que embasem teoricamente o entrelaçamento de conceitos fundamentais para, posteriormente, ecoarem na análise, com intenção também interpretativa, do filme Casa Vazia. 19 1.1 Espaço Fílmico e a Mise en Scène Em meados dos anos 70, enquanto os cineastas da época estavam argumentando sobre a questão do espaço fílmico na era do “novo cinema”, Éric Rohmer, personalidade importante da Nouvelle Vague, defendia sua tese de Doutorado intitulada A Organização do Espaço no Fausto de Murnau”. Em 1955, Rohmer publica em uma série intitulada “O Celulóide e o Mármore”, um artigo na Cahiers du Cinéma em que retoma uma abordagem já proposta em outro artigo, publicado sob seu pseudônimo Maurice Schérer: “o cinema é uma arte do espaço, isso não prova que ele deva buscar auxílio neste ramo particular das artes da forma que é a pintura, tal como a concebemos desde a Renascença” (Rohmer, 1955, p. 10-15, apud Borges, 2017). Sendo assim, utilizando como objeto de estudo o filme Fausto (1926), do alemão F. W. Murnau, Rohmer identifica e analisa três tipos de espaço no cinema: pictórico, arquitetônico e fílmico. O termo pictórico advém da pintura, a noção de seu conceito no espaço cinematográfico surgiu com a finalidade de demonstrar como cineastas alcançavam uma profunda “cultura pictórica” em seus filmes, onde suas composições eram semelhantes à do pintor. Pictórica no sentido da imagem, da fotografia, ou seja, “a técnica empregada no cinema concernente aos registros de imagens sobre a película - o que a língua inglesa denomina cinematography” (Borges, 2017, p. 3). Sobre espaço arquitetônico, Rohmer se refere aos cenários, objetos e figurinos. O autor explica que tal conceito pode ser encontrado desde a pintura até o romance, e pode ser denominado como uma “visão arquitetônica da vida”. Trata-se de pintores que integram em suas telas “monumentos como se fossem paisagens, e paisagens como monumentos” (Rohmer, 1955, p. 22-30 apud Borges, 2017, p. 5). Borges esclarece a visão de Rohmer sobre espaço arquitetônico mencionando como o autor observou tais elementos em Fausto. Trata-se de que, apesar do cenário do filme possuir caráter “puramente decorativo”, é a encenação do ator que o determina, e não ao contrário, pois “os lugares não servem apenas de moldura para a ação, seu receptáculo; eles pesam sobre as atitudes dos personagens, influenciam sua atuação, ditam seus deslocamentos” (Rohmer, 1991, p. 57 apud Borges, 2017, p. 5, tradução do autor). Ele insiste que a importância do espaço arquitetônico não aparece na fase do roteiro, mas só se manifesta no exercício da mise en scène. É somente a partir da articulação dos fragmentos de espaço com o tempo, e com o auxílio do espectador, que se esboça esse espaço no cinema, ainda assim, imaginário. (BORGES, 2017, p. 5) 20 O que Rohmer denomina espaço fílmico, diz respeito à decupagem e a montagem da mise en scène, ou como ele também nomeia um “jogo” entre a forma do filme e seu conteúdo, o qual considera elementos harmônicos para a construção de um filme. Em outras palavras, trata-se de um espaço dinâmico e em movimento, executando dois tipos de mobilidade: “a do motivo filmado, no interior do quadro e a mudança de posição da câmera”, (idem, p. 7, grifo meu) e não mais um espaço estático onde os elementos se organizam em seu entorno, como podemos identificar na pintura/arquitetura. Os três espaços, no cinema, correspondem aos três panoramas que o espectador capta a percepção, ou seja, a fotografia, o cenário e os elementos fragmentários no qual se dedicam a essa junção. Esses três fragmentos variam de cineasta para cineasta, pois cada um utiliza uma técnica diferente, além de resultar em abordagens de pensamentos distintos. Cada operação é fracionada por colaboradores, os quais, ainda permanecem sob o desejo do cineasta e de suas perspectivas, para que no fim o todo fique coerente. Figuras 6 e 7: Cenas do filme Os Excêntricos Tenenbaums (2001), de Wes Anderson. Se analisarmos atentamente a sua composição visual, trabalhada a partir de uma estruturada mise en scène, podemos depreender o propósito narrativo para entrar no universo do cineasta. Elementos como a máquina de escrever com a pilha de papéis ao lado e a estante repleta de livros pode denotar o desejo da personagem pela escrita e pela leitura, sem a presença de diálogos. Fonte: screenshots do filme, elaborados pela autora. 21 Ressaltando de maneira sintética, o espaço pictórico seria a imagem cinematográfica, sua fotografia. O espaço arquitetônico; os cenários, figurinos, composição em cena de partes reais ou fabricadas, podendo ser fiel ou não ao que se deseja representar. E por tanto, o espaço fílmico, no qual se resulta a mise en scéne, ou, a junção de todos esses elementos dialogando em cena, auxiliando na concepção que o filme fornece, reconstruindo a passagem virtual na ilusão de quem assiste. David Cook, em seu livro A History of Narrative Film (1980), explica que a mise en scène é formada por todos os elementos mostrados em tela. Se há um elemento em cena e o mesmo está sendo gravado pela câmera, faz parte da mise en scène. De acordo com o Luiz Carlos Oliveira Jr. (2013), podemos compreender a mise en scène clássica como uma ordem do real, ou seja, fazendo o pensamento ganhar corpo no movimento narrativo de um filme, implicando por sua vez, numa estética das artes cênicas (aquele que coloca em cena) que monta a ação no palco, cabendo também ao conjunto da obra: iluminação, figurino, cenário e interpretação dos atores, levando em conta a duração, o movimento, o enquadramento e o foco, como se o cineasta posicionasse no enquadramento seu olhar sob o mundo. Sendo assim, ordenando um arranjo significante dos espaços e das durações (excluindo hoje a estética moderna que compreendemos, ou seja, mergulhada no caos das matérias). A mise en scène aí defendida é um pensamento em ação, a encarnação de uma ideia, a organização e a disposição de um mundo para o espectador. Acima de tudo, trata-se de uma arte de colocar os corpos em relação no espaço e de evidenciar a presença do homem no mundo ao registrá-lo em meio a ações, cenários e objetos que dão consistência e sensação de realidade à sua vida. Expressão cunhada, em sua origem, para designar uma prática teatral, a mise en scène adquire no cinema essa dimensão fenomenológica: mostrar os dramas humanos esculpindo-os na própria matéria sensível do mundo (OLIVEIRA, 2013, p. 9). Não pretendemos aqui apresentar a análise dos diversos filmes apresentados por Oliveira, mas sim, apresentar recursos para compreensão do leitor e fazer com que ele dialogue com o autor pelos caminhos da mise en scène desde sua origem clássica até a discussão abordada no contemporâneo, sem se tratar de uma definição conclusiva sobre tal. Constatamos também que o principal do cinema, ou seja, sua essência, se encontra na forma como o filme nos faz “teletransportar” para um universo singular e desconhecido no qual a passagem na tela nos oferece. A mise en scène, desta forma, nos aparece como uma grande arma com que o autor (cineasta) se deleita e faz com que pelo movimento e conjunto (enquadramentos, movimentos de câmera, iluminação, montagem) se tornem capazes de dar 22 sentido e sirvam de ferramenta para que o espectador compreenda o universo do diretor (seus pensamentos). No final de seu livro, O Cinema e a Encenação (2008), Jacques Aumont se pergunta: Será o fim da mise en scène? O autor debate sobre O Intruso (2004), de Claire Denis, e anuncia que no filme não existe encenação, no sentido da disposição do plano enquanto quadro objetivo. Ao invés de construir a cena, o plano a desconstrói e a deslocaliza. Aumont segue articulando que, dentro de uma relação de espaço-tempo integralmente ambígua, os planos do filme de Denis são elementos mínimos que compõem sua especificidade. O conceito de uma “anti” mise en scène não é novidade na história cinematográfica. O cinema narratológico clássico se debruça nessa ideia para tentar romper um certo cânone, na recusa de uma encenação clássica. Aumont (2008) cita Godard como exemplo, pioneiro no movimento de filmes franceses da Nouvelle vague dos anos 1960, cujo não seguia uma cartilha de roteiro e se prezava mais com a forma do filme enquanto sua composição. O que Aumont identifica e explana em seu livro, é uma tendência global do cinema contemporâneo em comprometer a solidez da mise en scène, enquanto direção de cena. Começam a surgir filmes que estão mais preocupados em demonstrar sua essência em uma permutação sensorial do que em sua encenação clássica. O cinema de fluxo desafia as noções tradicionais da mise en scène, reforçando as sensações puras, fazendo com que o espectador se entregue pelas luzes, cores, sons, movimentos de corpos no espaço, construindo ritmos e dando valor aos significados, o essencial no cinema de fluxo é a fluidez, gerando dessa forma uma circulação de forças e dando continuidade na dança dos personagens, se assemelhando em certos pontos com a arte barroca, como afirma Oliveira: O que estaria em jogo, então, seria uma nova era barroca do cinema, que nada teria a ver com o barroco de cineastas virtuosos como Max Ophüls ou Orson Welles, nem com o colorismo delirante de Douglas Sirk, tampouco com o maneirismo revisionista dos anos 1970-1980 (Brian De Palma, Raúl Ruiz, Sam Peckinpah, John Woo). O barroco dos anos 2000 seria, antes, uma dissolução das formas, um transbordamento das matérias, uma profusão sensorial que parece em sintonia com um estado vaporoso do mundo, com uma nova realidade em que as relações de espaço-tempo se acham em processo de interpenetração e confusão (OLIVEIRA, 2013, p. 10). Há um questionamento na mise en scène de que alguns filmes “contemporâneos”, vão de contrapartida e não tem se utilizado dessa técnica, são chamados por outros conceitos como: 23 “dispositivos”, ou seja, diferente do que ocorre na mise en scène (a organização do ambiente em si, em todos os aspectos) nos dispositivos, ficando assim à caráter de quem dialoga com a cena, propondo desta maneira uma espécie de jogo de significados, onde as ações se tornam mais importantes e se representam por si mesmas, o diretor estabelece as coordenadas, mas o conjunto em si não depende apenas dele, mas dos acasos que possam ocorrer nessas lacunas que se estabelecem na construção. O autor salienta: Já não se parte do mundo para chegar a uma ideia ou a uma forma (mise en scène); parte-se da ideia, ou do conceito, para chegar ao mundo. [...] Já não se trata de encenar o evento, mas de explorar os efeitos de estrutura derivados do dispositivo arquitetado pelo diretor. O filme promove uma experimentação de ambiências, um transporte fluido do olhar, que tem por tarefa permitir um reconhecimento sensorial do espaço (OLIVEIRA, 2013, p. 12). Oliveira (2013, p. 16) depreende duas “vocações” que o cinema se divide: “a reinvenção da arte e o alargamento da percepção”, essas duas formas permitiram com que o homem descobrisse novos acessos por meio da imagem, potencializando dessa forma, sua noção de realidade, ou como apresentada posteriormente na Cahiers du cinéma, a mise en scène era a conciliação perfeita de ambas “vocações”: “uma combinação da arte de inventar ficções com o livre exercício de um olhar e de uma percepção” (Oliveira, 2013, p.16). Nosso objetivo é, portanto, ao apresentar esses termos e os momentos que apresentamos na mise en scène (clássica/barroca/fluxo e dispositivo), é de entender sua problematização no contemporâneo ao analisar o filme Casa Vazia, onde os eventos narrativos se sucedem por meio do espaço habitado e a “não fala” torna-se fundamental para compreensão do conjunto, brotando desta forma na própria duração do plano, das relações espaciais, percebendo dessa maneira a variação de cores e luzes e da captação do movimento dos personagens, provocando em nós uma nova experiência do espaço, do olhar e da fala, cabendo à nós (espectadores) a contemplação do universo emblemático que o filme se apresenta. Sob essa perspectiva, poderíamos aferir que o filme Casa Vazia carrega esses componentes do “novo cinema de fluxo”? Tal indagação deve ser retomada nesta dissertação. De todo modo, avaliar o conceito de mise en scène é fundamental para se aprofundar no universo da análise cinematográfica, seu conjunto de elementos são combinados para a construção da diegese. Assim, de modo geral, no capítulo seguinte partiremos para a análise a de Casa Vazia a partir destes aspectos fílmicos e de que forma tais elementos estão inseridos na narrativa do filme, por meio da elucidação do espaço, trazendo o foco da análise na ação dos personagens (mediadas pelo espaço) e da “não fala” enquanto expressão narrativa. 24 2. ANÁLISE DE CASA VAZIA 2.1 Do Diretor à Obra Sul-coreano, Kim Ki-Duk é diretor de uma variedade de obras. Seu nome pode não ecoar com todo fervor em certos cantos do mundo, todavia, quem o reconhece pode considerá- lo um explorador do sofrimento nas suas películas, utilizando, muitas vezes, um ritmo pausado e com forte conteúdo visual. Representando a “vanguarda cinematográfica” do país, Duk não teve a oportunidade de conceber formação técnica como cineasta, iniciando tardiamente sua carreira como diretor e roteirista Aliás, seus roteiros parecem advir de suas experiências de vida. Dentre as dezenas de obras realizadas, algumas se destacam por enfatizar elementos da sociedade sul-coreana - e contemporânea de modo geral - e ponderando o uso de diálogos (filmes como Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera (2003), Casa Vazia (2004), e algumas se destacam por explorar temas como a dor e a misoginia, (como Crocodilo, (1996), Moebius (2013) e Dente por Dente (2014), fixando um padrão de violência. Duk (entrevista youtube) justifica viver dentro de um padrão de violência em seu mundo e esta, por sua vez, se transforma em um tipo de linguagem que as pessoas se comunicam. Dentro dos seus filmes, a violência pode ser depreendida enquanto forma de comunicação e não como mero distúrbio. Figuras 8 e 9: Cenas do filme Moebius (2013), cuja narrativa percorre entre a violência e o ódio da personagem pelo seu marido infiel, e como forma de vingança, mutila o próprio filho. Fonte: https://www.blu-ray.com/movies/Moebius-Blu-ray/111339 acesso em 30/10/2020 e https://www.thecinetourist.net/maps-in-films/632-moebiuseu-ki-duk-kim-2013 acesso em 30/10/2020 https://www.blu-ray.com/movies/Moebius-Blu-ray/111339 https://www.thecinetourist.net/maps-in-films/632-moebiuseu-ki-duk-kim-2013 25 Figuras 10 e 11: Cenas do filme Crocodilo (1996), de Kim Ki-Duk. Crocodilo é um assassino que reside debaixo de uma ponte sob a companhia de um idoso sem teto e uma criança de rua. Eventualmente, ele salva a vida de uma garota que pretendia cometer suicídio e depois a consome com frequentes estupros. Fonte: https://www.revistatransas.com/2019/10/17/animales_salvajes_villabon_kiduk/ acesso em 30/10/2020 Mas há muito mais em Kim Ki-Duk do que a suposta predileção por mostrar corpos feridos e machucados. E no percurso de uma carreira de abrangência temática, Primavera, Verão, Outono, Inverno e ... Primavera, de 2003, foi seu primeiro sucesso internacional. Narra a história de um jovem vivendo sob os ensinamentos de um Mestre Budista, em um templo flutuante no lago. Ambos vivem isolados durante o aprendizado. Cada estação do ano corresponde a um estágio da vida do jovem, simbolizando suas transformações, desde a infância até o dia em que poderá substituir seu ancião. Com a chegada de uma garota, o pupilo acaba se desviando dos ensinamentos de seu mestre, fugindo do templo para reencontrá-la. Retorna anos depois, representando outra estação e, assim, outra transformação em sua vida, escapulido da polícia pelo assassinato da sua amada. https://www.revistatransas.com/2019/10/17/animales_salvajes_villabon_kiduk/ 26 Figuras 12 e 13: Cenas do filme Primavera, Verão, Outono, Inverno … e Primavera (2003), de Kim Ki-Duk. Fonte:https://lakarenysuspeliculas.wordpress.com/2013/08/04/sobre-la-pelicula-spring-summer-fall-winter-and- spring/ acesso em 30/10/2020 e https://loscuentahistorias.com/grandes-directores-kim-ki-duk-o-el-sublime- abismo-de-la-belleza/ acesso em 30/10/2020. Nenhum personagem possui nome no filme. Na filosofia budista, há o entendimento e o desprendimento de se abandonar como indivíduo na sociedade e se reconhecer como parte do todo. O diretor desejou demonstrar esse sentimento neste filme, escolhido para representar a Coréia do Sul no Oscar de 2004. E, embora a violência na interação humana permaneça, o filme se concentra em nossos esforços mais contemplativos e meditativos. Kim Ki-Duk surge ano depois com o que continua sendo seu melhor filme, 3-Iron. Figura 14: Kim Ki-Duk atuando no que seria a última transformação do jovem, antes de se tornar um Mestre Budista, em seu filme Primavera, Verão, Outono, Inverno … e Primavera. Fonte: http://blog.multiplexcomic.com/wp-content/uploads/2010/09/spring1.jpg acesso em 30/10/2020 https://lakarenysuspeliculas.wordpress.com/2013/08/04/sobre-la-pelicula-spring-summer-fall-winter-and-spring/ https://lakarenysuspeliculas.wordpress.com/2013/08/04/sobre-la-pelicula-spring-summer-fall-winter-and-spring/ https://loscuentahistorias.com/grandes-directores-kim-ki-duk-o-el-sublime-abismo-de-la-belleza/ https://loscuentahistorias.com/grandes-directores-kim-ki-duk-o-el-sublime-abismo-de-la-belleza/ http://blog.multiplexcomic.com/wp-content/uploads/2010/09/spring1.jpg%20acesso%20em%2030/10/2020 27 3-Iron (tradução em português, Ferro-3) foi o título oficial internacional dado a Casa Vazia, (título oficial no Brasil) de 2004. O filme, produzido entre o Japão e a Coréia do Sul, narra o drama e o romance silencioso entre Tae-Suk e Sun-Hwa. No decorrer do longa, presenciamos momentos em que os protagonistas tentam se encontrar dentro da vida ordinária, em que os dias corriqueiros e as vidas secundárias não parecem compreendê-los. Figura 15: Poster internacional (em inglês) do filme Casa Vazia Os personagens vivem dias aflitos, presos dentro de si, buscando respostas para um mundo particular e novas formas de sobreviver. Inseridos em um modo de vida social onde as cidades, as pessoas, as regras e o próprio anseio por novas vidas os sufocam, é possível identificar que os protagonistas, de forma singular, buscam o pertencimento que lhes falta e buscam diariamente novas identidades para habitar e pertencer. Casa Vazia tem um início despretensioso. Uma música com sonoridade terna introduz uma escultura na tela, o estampido grosseiro de bolas de golfe rompe a estaticidade das imagens através de seus movimentos bruscos sob uma espécie de tela de proteção, repetidas vezes. Um jovem aparece dirigindo uma motocicleta, depois cruza a rua distribuindo panfletos publicitários nas portas de casas e apartamentos. Uma buzina ecoa dos ruídos urbanos, é sua moto atrapalhando na frente do portão. O motorista denota irritação com o jovem. 28 Figuras 16 - 21: Cenas dos primeiros planos do filme, do plano geral ao close-up. Fonte: Screenshots do filme, elaborados pela autora. O filme inicia-se apresentando o personagem através de planos gerais e longa distância focal, inserindo o jovem em seu ambiente, a cidade. Ainda nesse início (imagens 16 - 21) nota- se a câmera parada, gravando o espaço urbano em primeiro plano e mantendo-se longo o comprimento do eixo da objetiva, permitindo que Tae fosse percorra o espaço numa espécie de zigue-zague, primeiro da direita à esquerda e depois da esquerda para a direita, (deixando ele em segundo plano), enquanto se aproxima da câmera, sempre cruzando o centro do quadro. O plano médio (fig. 20) e o close-up (fig. 21) situam o personagem em sua unidade: as casas. 29 Figura 22: Ênfase no plano em que Tae deixa um panfleto na casa que posteriormente vai invadir, por acreditar que seu morador (motorista da buzina) saiu de viagem. Nesse momento, Duk utiliza o plano geral, mas para descentralizar o protagonista, situando-o no canto da imagem e trazendo evidência para a casa, destacados em azul. Fonte: Screenshots do filme, elaborados pela autora. Em uma concepção clássica do cinema ligando o fundo à forma, a profundidade de campo fraca permite representar um personagem perdido em seus pensamentos, ou que deixe de prestar atenção no que se passa à sua volta para se concentrar em algo determinado. Inversamente, a grande profundidade de campo ressalta uma profusão de detalhes ou fornece um meio que permite contar várias coisas ao mesmo tempo - uma cena na frente (primeiro plano), uma cena atrás (segundo plano). (JULLIER; MARIE, 2009, p. 31) No dia posterior ou até mesmo ao final do mesmo dia, ele observa as residências que ainda mantêm os folhetos intactos, grudados às portas, subentendendo que a casa está vazia. Observando o espaço ao seu redor, o jovem, que possui uma pequena maleta repleta de ferramentas, rapidamente as utiliza para arrombar – sem danificar – as fechaduras e invadir as casas. Entra e liga a secretária eletrônica. É a sua primeira reação ao entrar nas casas, para saber por quanto tempo poderá habitar essas casas enquanto seus donos regulares não retornam. A voz humana gravada na mensagem interrompe o silêncio pela primeira vez. Nos primeiros minutos do filme, é um tanto difícil compreender o que realmente está acontecendo e qual é a verdadeira face de Tae-Suk e o que o impulsiona a tais atos. Em um primeiro momento, é compreensível acreditar que o jovem é um marginal em busca de bens materiais. Porém, o roteiro surpreende ao demonstrar que ele apenas está à procura de um banho, roupas limpas, um prato de comida, uma noite de sono e, talvez, novas experiências para 30 viver. O protagonista fotografa na casa o que ele acredita ser mais marcante nos moradores que ali residem. Além disso, ele fotografa a si mesmo ao lado destes objetos e de porta-retratos das famílias que visita, como se fizesse parte daquela cena. Figuras 23 e 24: Frames de Tae-Suk fotografando-se ao lado da família, denotando a presença de uma vida solitária e uma ausência de pertencimento. Fonte: Screenshots do filme, elaborados pela autora. Na manhã seguinte, como forma de retribuição, ou por possivelmente acreditar que é uma relação de troca, Tae-Suk ajuda em alguns serviços da casa: recolhe e lava as roupas sujas, conserta itens e objetos quebrados. Observa na janela a família que retorna. Os moradores entram discutindo, palavras em volume alto e tom áspero. Mais uma vez o silêncio é interrompido pela voz humana. O menino pega sua arma de brinquedo (antes consertada por Tae) e se distrai, a mãe pede para que atire e ele o faz. Mais uma vez o ruído. Tae é visto deixando a rua em sua moto. Esses primeiros oito minutos do filme proporcionam uma unidade, posta na atitude do protagonista de invadir casas. E pode haver, por parte do espectador, certo estranhamento mediante o silêncio que perpassa os planos, fazendo com que cada interrupção sonora adentre os espaços vazios. Numa de suas invasões, o personagem acredita que a casa está vazia, mas nela reside uma mulher que sofre agressão doméstica do marido, o qual está fora da cidade, em viagem de negócios. Sun-Wha, personagem sempre calada e encolhida nos cantos da casa, sofrendo pela vida aprisionada em que habita, percebe a presença de alguém. Ela o vê, o segue, o observa em todos os momentos, escondida na casa vazia e silenciosa, como uma espécie de figura fantasmagórica. Ele permanece fazendo o mesmo de sempre: se alimenta, joga golfe, conserta itens, lava roupas e sapatos, toma banho de banheira olhando ao book da modelo, se apropria do que a casa tem a oferecer. 31 Figuras 25 - 34: Sun-Wha camuflando-se na casa e observando o estranho que invade sua casa, mas não lhe faz nenhum mal. Seu olhar opaco e o enquadramento fotográfico criam uma composição com a casa de tonalidade pálida e reforçam o aprisionamento em que a personagem vive. Nesse momento, Sun é quem assume a figura fantasmagórica que deixa rastros imperceptíveis. Fonte: screenshots do filme, elaborados pela autora. 32 Finalmente, ela se mostra a ele. A identificação e o olhar intenso entre os protagonistas são imediatos, o diálogo é sensorial, corporal, mudo. As personagens parecem projetar no outro as dores, a solidão e o silêncio que vivem. No silêncio, eles são capazes de suprir o sentimento que o outro necessita. As personagens iniciam uma nova vida juntos. Tae-Suk a leva para conhecer sua vida, a rotina repentina, a experiência, o acaso, o afeto. Figuras 35 - 40: A câmera parada em plano geral enquadra Sun e Tae nas experiências mundanas de invadir casas e experienciar-se com o espaço (fig. 35). Corte para o plano detalhe, enquadrando a mesa, como se estivesse aguardando a chegada do casal (fig. 36 – 38). A câmera volta a enquadrar em plano médio, o casal, que vai permitindo ser afectado em sua completude (fig. 39 e 40). Fonte: screenshots do filme, elaborados pela autora. Permanecem mudos o filme todo, estabelecendo uma relação dolorosa entre o isolamento e a solidão, que antes já era vivenciada por eles, porém, de forma individual. Outras personagens de Casa Vazia dialogam entre si e isto provoca uma relação dicotômica entre o verbal e o não-verbal e nos ajuda a compreender a existência banal e cotidiana que a sociedade vive, enquanto os protagonistas constroem valores opostos. 33 Figuras 41 - 48: Cena que os protagonistas terminam de “arrumar” a casa para partirem para a próxima. A câmera está parada e são os corpos que deslizam no espaço tão organizado e austero. Como uma espécie de “fade out”, o diretor vai sobrepondo (e subtraindo) seus corpos do espaço, como se jamais estivessem habitado aquele lugar. Fonte: screenshots do filme, elaborados pela autora. Juntos pela vida ordinária, os protagonistas, ao invadirem mais uma residência, deparam com o corpo de um senhor, que havia falecido há algum tempo, algumas horas, ou talvez, alguns dias. A reação deles é imediata: seguem a tradição, cuidam do corpo com afeto e o enterram no jardim da casa. Acontece um conflito com os familiares do senhor e eles acabam sendo levados à delegacia. Ela fica livre e ele preso. Em momento algum ele usa sua voz para responder às perguntas ou expressar o que sente. Tae-Suk sofre violência, mas permanece mudo. Cumpre sua pena desenvolvendo técnicas para se tornar, de vez, invisível para o resto do mundo. 34 A narrativa do filme não só relata que reciprocamente os protagonistas se identificaram e supriram a ausência singular um no outro, mas também conota que ambos se completaram e se apoiaram mutuamente. A paleta de cores do filme vai se modificando conforme novos acontecimentos vão surgindo. Enquanto Tae-Suk busca sua sobrevivência sozinho, as cores se mostram mais frias, variando os tons entre o branco e o azul, o filme flui mais lentamente, nada acontece. A partir do momento em que eles estão prestes a se encontrar, a tonalidade percorre um caminho oposto, surgem cores mais quentes, a fluidez do filme começa a cursar outros caminhos, o acaso surge com consistência. 35 Figuras 49 e 50: quadro de frames do filme demonstrando a mudança na paleta de cores e denotando o sentimento mútuo entre ambos. Fonte: screenshots do filme, elaborados pela autora. Tal aspecto cromático pode representar a fluidez que os protagonistas desenvolvem ao começarem uma vida juntos: novas experiências nascem com novas dores e angústias, mas também nasce o sentimento de que, por um momento, a vida parece fazer mais sentido, como se esta fosse a ausência mais pertinente que ambos carregavam; a ausência de uma companhia que preenchesse o vazio interno e não os espaços externos ocupados temporariamente. Estes seriam apenas um complemento para a busca por novos pertencimentos. 36 2.2 Ressignificações Corpóreas e a “Não Fala” Migrando de considerações de teor mais geral para nossos interesses específicos, buscamos avaliar como a Casa Vazia aborda a questão da corporeidade entre os protagonistas e novas formas de habitar espaços. Ao mesmo tempo, modelemos tais questões com o conceito de performance e os possíveis objetivos/critérios do “movimento”, trazendo o aporte teórico de Jorge Glusberg, em A arte da Performance e Renato Cohen, com Performance como Linguagem. Segundo Deleuze & Guatarri (2012), Artaud declarou guerra aos órgãos no dia 28 de novembro de 1947, Para Acabar com o Juízo de Deus, porque atem-me se quiserem, mas nada há de mais inútil do que um órgão. [...] Corpus e Socius, política e experimentação. Não deixarão você experimentar em seu canto”. É um ensaio político que atrai repreensões e julgamentos para si. (DELEUZE & GUATARRI, 2012, p. 9) Ao declarar guerra aos órgãos, Artaud revela que nossos sentidos estão atrofiados pelos dilaceramentos contemporâneos, ou seja, tornamo-nos apenas uma máquina produtora de dias corriqueiros, incapaz de fornecer momentos de revolta do pensamento. Ele nos convida a experimentar a revolta, não a palavra carregada de ódio, mas como objeto de algo que nos move e nos destranquiliza. Precisamos abrir abcessos que estão presos no nosso corpo, para isso é necessário que nosso corpo se mova conforme a vida e que compreendamos que é possível destravar pensamentos estagnados no tempo. Para Cohen (2011, p. 14), na esfera da expressão artística a performance surge com foco de resistência e passou por distintos pontos de significação. Desde a década de 1990, a performance tem migrado entre questões “antropológicas e investigativas da corporeidade humana”. É o caso das realizações do La Fura del Baus, da performer Orlan, de Marina Abramovic, de Tunga e outros, que colocam sua psique e corpo na busca das extensões – e, curiosamente, grande parte deles está nomeada como pesquisa do “Corpo Extenso” – e, em outra frente, das ações e performances com tecnologia, desde trabalhos com mediação de corpo até inúmeras produções na Arte WEB (Internet), que democratizam a veiculação de cenas e acontecimentos e criam ambientes de produção, semelhantes às ações dos anos de 1960 (COHEN, 2011, P.14) Dos conceitos da performance, pode-se caracterizá-la, a princípio, como uma expressão cênica. “Um quadro sendo exibido para uma plateia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro, ao vivo, já poderia caracterizá-la” (COHEN, 2011, p. 28). Tendo isso 37 definido, podemos entendê-la como uma atribuição do tempo-espaço. Para ser caracterizada, segundo Cohen, como performance, algo precisa acontecer no mesmo local e no mesmo instante. Nesse sentido, a exibição pura e simples de um vídeo, por exemplo, que foi pré- gravado, não caracteriza uma performance, a menos que este vídeo esteja contextualizado dentro de uma sequência maior, funcionando como uma instalação, ou seja, sendo exibido concomitantemente com alguma atuação ao vivo (COHEN, 2011, p.28). Por outro lado, Glusberg (2011, p.11) afirma que o conceito de performance surgiu do “uso” do corpo humano como sujeito e força motriz do ritual”. Geralmente, as performances (ou protoperformances, segundo o autor) surgiam com exercícios improvisados e gestos instintivos, espontâneos. Porém, ao mesmo tempo, incorporaram-se técnicas advindas de outras artes existentes, como a dança, o teatro, a mímica, a fotografia, a música e o cinema -que havia acabado de surgir como uma nova mídia. Entre os principais precursores da arte da performance devem ser considerados os poetas, pintores, músicos, dançarinos, escultores, cineastas, dramaturgos e pensadores que buscaram um reestudo dos objetivos da arte. (GLUSBERG, 2011, p.27) Tais considerações operam aqui como um percurso que atravessa alguns conceitos importantes para a construção de uma nova forma de entendimento da relação entre corpo- espaço: o caráter corporal dos personagens do filme Casa Vazia como performers. É preciso avaliar, assim, como se dá a relação de corpo e espaço; o que é um corpo habitando um espaço e o que isso implica. A relação corpo-espaço acontece de uma maneira empírica, ou seja, são passagens que se sustentam em experiências vividas, na observação das coisas, na visibilidade; quando há percepção do espaço vivenciado espontaneamente, constrói-se um sentido. Esse modo de vivenciar as coisas é também conhecido como senso comum, em que cada indivíduo o compreende à sua maneira; é uma herança afetiva, gravamos diariamente essas experiências através das nossas sensações. Para que exista tal herança afetiva, o geógrafo Milton Santos cita que é preciso lugarizar o espaço; entende que é preciso apropriar-se dele, dar sentido. Existe uma dialética (contradição de forças) entre espaço e lugar; o espaço conta uma história quando se lugariza, é uma ideia que só produz sentido quando o corpo o habita e conecta-se com afetos e percepções (experiência); espaço é um lugar praticado. 38 Deleuze, por sua vez, declara a existência da possibilidade das ocupações do espaço, fortalecendo a ideia da capacidade de afetar e ser afetado, ideia essa que nasce de sua interpretação de Espinosa, construindo assim uma subjetivação articulada em torno da noção de espaço. Resulta daí que a vontade de poder se manifesta como um poder de ser afectado. Esse poder não é uma possibilidade abstracta: é necessariamente preenchido e efetuado a cada instante por outras forças com as quais está em relação. [...] A vontade de poder manifesta-se, em primeiro lugar, como sensibilidade das forças; e, em segundo lugar, como devir sensível das forças [...] (DELEUZE, 1976, p.94 e 96). No movimento do personagem performar, nas cenas, para atingir outro estado físico do corpo cria relações com a “desterritorialização” dos corpos e a temática da liberdade do indivíduo, já discutidas. Em seu livro, Cohen discute a linguagem da performance e algumas de suas características: “o predomínio do símbolo sobre a palavra, o uso de estrutura não narrativa, a forma de ocupação do espaço etc.” (COHEN, 2011, p.22) Figuras 51 - 56: Cenas de Tae-Suk persistindo o corpo no desejo de se sentir livre. O protagonista cartografa o espaço através de seu corpo e eleva-se a um estado virtual da invisibilidade. Fonte: screenshots do filme, elaborados pela autora. 39 Nas cenas acima, o diretor usa a câmera de vários pontos de vista, seguindo os personagens em suas atuações e ao mesmo tempo elevando, abaixando e girando a câmera para compreendermos a extensão deste espaço e os limites que estes opera ao corpo. Tae faz uma espécie de mapeamento do espaço, compreendendo suas extensões para elevar-se a um estado virtual de invisibilidade. Já nas cenas abaixo, Duk realiza o que chamamos de “quebra da quarta parede”. Expressão advinda do teatro, a qual consiste em uma barreira imaginária entre palco/público, denotando que, quando ocorre essa quebra, acaba a ilusão do que se está vivendo. Por outro lado, o que Tae nos implica, é mais um jogo de suas técnicas para se tornar invisível. O personagem olha sorrindo para nós, subjetivamente, e desliza seu corpo para o lado esquerdo. A câmera subjetiva indicando nosso olhar sob a cena o segue, mas não mais o encontra no espaço. A câmera, independente do espaço onde tem lugar o espetáculo, parece realizar trajetos livres. Pode até fazer o espetáculo girando rapidamente; é a figura da wandering câmera (“câmera errante”. [...] Essa cenografia torna-se às vezes uma “pista de circo esférica”, onde se poderia girar em torno do indivíduo em todos os planos e não somente no plano horizontal. [...] Todos os pontos de vista são possíveis – por isso essa figura tem a preferência dos cineastas pós-modernos mais relativistas, aqueles que acreditam que todos os pontos de vista (no sentido espacial, moral e ideológico), têm seu valor (JULLIER; MARIE, 2012, p. 52). Figuras 57 - 60: Tae subverte o olhar a nós, espectadores, como uma maneira de brincar com suas técnicas fantasmagóricas. A câmera trepidante remete ao nosso olhar de procurá-lo pelo espaço. Fonte: screenshots do filme, elaborados pela autora. 40 Segundo Cohen (2011, p.30), a performance caminhou entre a body art, onde o artista é a obra de arte. O mesmo se transforma em atuante, seu corpo é o objeto de sua arte, atuando como um performer. O que existe é uma multifragmentação, isto é, existem vários níveis de “máscaras”. O performer quando atua, se polariza entre os papéis de ator e a “máscara” personagem. A questão é que o papel do ator também é uma máscara; quando o performer está em cena, ele está compondo algo, ele está trabalhando sobre sua “máscara-ritual” que é diferente de sua pessoa do dia-a-dia (COHEN, 2011, p. 58). Glusberg (2011, p. 42) contempla propostas da body art e cita que uma delas era de “desfetichizar o corpo humano”, trazendo o corpo para os questionamentos sobre a sua verdadeira função: o corpo é instrumento do homem. “Eliminando toda exaltação à beleza a que ele foi elevado durante séculos pela literatura, pintura e escultura. [...] Em outras palavras, a body art se constitui numa atividade cujo objeto é aquele que geralmente usamos como instrumento” (GLUSBERG, 2011, p.42). O autor ainda citou em sua obra um trecho de René Berger, pronunciando-se sobre as performances: O corpo, se não chega a se vingar, aspira ao menos escapar da sujeição do discurso, que é um prolongamento de sua sujeição ao olho. Não somos e nunca fomos criaturas falantes ou criaturas visuais: nós somos criaturas de carne e sangue. [...] A performance e a body art devem mostrar não o homo sapiens – que é como nos intitulamos do alto de nosso orgulho – e sim o homo vulnerabilis, essa pobre e exposta criatura, cujo corpo sofre duplo trauma do nascimento e da morte, algo que pretende ignorar a ordem social (René Berger apud GLUSBERG, 2011, p. 46). 41 Figuras 61 - 63: Cenas da comunicação corporal através do espaço que os protagonistas partilham. Tae joga uma bola de golfe na direção de Sun, que entende a sugestão e rebate a bola de volta no espaço. Fonte: screenshots do filme, elaborados pela autora. 42 2.3 O Si-Mesmo Como um Outro Em Casa Vazia, o problema da identidade provém de uma construção estabelecida entre as personagens e o desapego como caminho para combater a solidão. Assim, o filme funcionaria como espécie de ilustração alegórica da alteridade e identidade fluídas. As personagens vivem sem uma identidade e não se sabe quais mediações trazem. A narrativa permeia a busca por novos pertencimentos, incide sobre uma ausência de si que as personagens carregam. HALL (2015), relata velhas identidades, que por muito tempo foram responsáveis por uma estabilidade social no mundo. Para ele, essas velhas identidades “estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado” (Hall, 2015, p.11). Cria-se, assim, o que se denominaria “crise de identidade”, a qual faz parte de um processo amplo de mudança capaz de “descentrar” os processos e as estruturas centrais das sociedades modernas. O “descentramento” das novas identidades modernas, isto é, o deslocamento ou fragmento destas novas identidades, abalou a ancoragem estável que os indivíduos carregavam no mundo social, perdendo o que Hall identifica como o “sentido de si”. Esta perda produz o anseio por novas transformações e identidades. Para aqueles teóricos que acreditam que as identidades modernas estão entrando em colapso, o argumento se desenvolve da seguinte forma: um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século xx. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Essas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Essa perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. Como observa o crítico cultural Kobena Mercer, “a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (1990, p.43). (HALL, 2015, p.10) Tae-Suk, ao invadir temporariamente as casas vazias, pega emprestada a vida das famílias que vivem ali. Isso conota sua busca por um “sentido de si”, procurando saber quem ele é e qual o seu espaço no mundo social. Quando as personagens se encontram pela primeira vez e identificam em si a ausência individual que cada um carrega, saem juntos em busca de novas vidas para experimentar, novos lugares para pertencer e novos “sentidos de si”. As casas estão vazias geograficamente, mas historicamente carregam um preenchimento social e cultural de cada indivíduo que as habitava e é disso que os protagonistas se apropriam; essas mediações 43 encontradas em casas vazias, uma vida que eles buscam habitar, como se cada “invasão” fosse um pequeno ensaio para o que a vida viria ser. Hall (2015) relata sobre esta busca de preenchimento sobre novos espaços e habitações e a relação que cada um cria com os lugares que ocupam, temporariamente. A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós mesmos” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis. (HALL, 2015, p.11) A narrativa do filme não só relata que os protagonistas se identificaram repentinamente e supriram a ausência singular um no outro, mas também conota que ambos se completaram e se apoiaram um no outro. A paleta de cores do filme reage e evolui conforme novos acontecimentos vão surgindo. Quando Tae-Suk buscava sua sobrevivência sozinho, as cores se mostravam mais frias, variando os tons entre o branco e o azul, o filme fluía mais lentamente. A partir do momento em que os protagonistas estavam prestes a se encontrar, a tonalidade percorre um caminho oposto, surgem cores mais quentes. Em outra dimensão, o tempo do filme flui mais rápido. Novas experiências nascem com novas dores e angústias, mas também nasce o sentimento de que, por um momento, a vida começa a fazer mais sentido, como se esta fosse a ausência mais pertinente que ambos carregavam. A ausência de uma companhia que preenchesse o vazio interno e não os espaços externos ocupados temporariamente. Estes seriam apenas um complemento para a busca por novos pertencimentos. Os protagonistas, ao viverem vidas secundárias, se apropriam da vida particular que cada um vivia, sentindo que, temporariamente, aqueles são seus costumes e cultura. Na casa de um, eles tomam uísque e assistem à televisão, mais especificamente a jogos de boxe, pois o morador é pugilista. Na casa de outro, tomam chá à meia luz e conversam com olhares e gestos. Explorar o sentido de identidade identificado na narrativa abre uma discussão de fundo ao conceito de mediações modulado por Martín-Barbero em Dos Meios às Mediações. A vida das personagens se transforma pelas mediações vivenciadas nas casas, nos espaços, nas ruas, nos gestos. Ver o que o outro vê, se colocar no lugar de alguém que não é nada como você, viver a vida do outro, tudo isso pode comparecer no debate teórico do conceito de mediações pelo gancho trazido da ideia de alteridade. 44 As mediações com as quais lidamos com a mídia, textos, interpretações que vivenciamos de diferentes narrativas e da própria vida são formas com as quais trazemos instituições, localidades, temporalidades, espacialidades e também convivências das mediações do cotidiano, da comunidade. São mediações com as quais convivemos e isso faz com que nos deixemos permear por eles também, os outros que trazemos dentro de nós. Abre-se assim ao debate um novo horizonte de problemas, no qual estão redefinidos os sentidos tanto da cultura quanto da política, e do qual a problemática da comunicação não participa apenas a título temático e quantitativo – os enormes interesses econômicos que movem as empresas de comunicação – mas também qualitativo: na redefinição da cultura, é fundamental a compreensão de sua natureza comunicativa. Isto é, seu caráter de processo produtor de significações e não de mera circulação de informações, no qual o receptor, portanto, não é um simples decodificador daquilo que o emissor depositou na mensagem, mas também um produtor (Martín-Barbero, 1997, p.287). Hélio Salles Gentil analisa em seu texto o tema essencial da filosofia de Paul Ricoeur, na qual o outro está presente de diversas maneiras e isso não implica que é apenas um sujeito frente ao outro. Ricoeur defende a importância da interlocução com nosso outro, nossos outros, e a justifica enquanto troca de presença, um “modo de presença do outro, de dar presença ao outro”, são novas formas de alteridade que se entrelaçam. Esse outro não é acessório à constituição desse sujeito nem lhe é simplesmente exterior, não mantém com ele uma relação contingente que possa ser cortada ou descartada. Esse outro é ontologicamente constitutivo desse sujeito. Só poderemos compreender o que é o sujeito humano se compreendermos de que maneira esse outro está presente nele de forma assim tão íntima intersubjetividade. [...] Um sujeito que só pode se conhecer por meio de múltiplas mediações, principalmente pelas obras da cultura que produz e em que se reconhece. Um sujeito que não é o “eu” de uma representação dada a si mesmo como ponto de partida, mas um sujeito que se descobre como si-mesmo ao ponto de chegada de um longo percurso, pela retomada reflexiva de suas ações e criações intersubjetividade (Hélio Salles Gentil, p.9 e 10, grifo meu). O que nos interessa da filosofia de Ricoeur, portanto, são evidências de um processo entre o ponto de partida e o ponto de chegada onde tudo se transforma. Que o tempo é constituinte do sujeito, pois é no tempo que se encontram as mediações desses sujeitos, suas histórias e suas vidas. E é dentro do tempo experienciado que o sujeito sofre mudanças e se transforma em outro. “É ele mesmo, mas é outro. Já não é mais o mesmo de quando partiu, no entanto, ainda é ele mesmo. Si-mesmo como um outro” (GENTIL, 2008, p. 10). O ato de conscientizar-se ao reconhecer o outro revela o caráter de alteridade, como uma experiência que altera o sujeito, onde ele mais sofre do que a domina. “Trata-se justamente daquele sujeito descentrado, deslocado, não mais identificado consigo mesmo ou com sua representação imediata de si a que nos referimos antes” (2008 p.11). 45 Pode-se dizer que esses outros – a vida, o caráter, o inconsciente, os poderes e os motivos, na última formulação, tanto quanto a carne, o outrem e a consciência, na formulação anterior – são constitutivos do si-mesmo, que se afirmar e se atesta na reapropriação que faz deles, reconhecendo-os como seus, reconhecendo-se neles. Reapropriação reflexiva através das mediações da ação da linguagem, da narrativa de sua própria história. Esse reconhecimento de si não se dá isoladamente, passa pelo reconhecimento do outro e pelo reconhecimento de si pelo outro (Hélio Salles Gentil, p. 11). O conceito de mediações culturais de Martín-Barbero modula o lugar social do indivíduo onde cada sujeito aprende e se relaciona da sua forma, conforme seu “universo particular”. As mediações se encontram em espaços que estão entre a produção e a recepção; há um espaço em que a cultura cotidiana se concretiza. Figuras 64 e 65: cena do filme de quando o casal de protagonistas habita temporariamente a primeira casa juntos. Sun-wha encontra uma fotografia sua emoldurada na parede (figura 8). As cenas seguintes são da protagonista recortando a fotografia em várias partes iguais e remontando a moldura, construindo um quebra- cabeça (figura 9) e denotando seu anseio por descobrir qual é sua verdadeira identidade e em qual espaço vai sentir o pertencimento que busca. Fonte: Screenshots do filme, elaborados pela autora O enfoque territorial temporário é conduzido no filme como algo que vai além de aspectos meramente geográficos. Quando os protagonistas ocupam as residências vazias, eles preenchem o vazio historicamente e geograficamente. Criam uma nova relação de identidade com o vazio e as pessoas que ali habitam, pois além de absorver suas particularidades, deixam suas particularidades presentes. O comportamento que eles têm, de entrar nas casas e criar novas afinidades e identidades com os espaços, cria uma relação com os conceitos embasados a partir das relações líquidas e da “desterritorialização” dos corpos. Não obedecer às regras da racionalidade é movimentar-se por impulso, não dar limite ao nosso corpo é provocá-lo e ver até onde ele é capaz de chegar, ou seja, é necessário chegar ao extremo do nosso osso, da pele, da carne, para saber que ele está ali porque você foi capaz de retorcê-lo em um novo corpo, que até então estava morto. Como diz Leminski, nós precisamos da dor para nosso corpo entender que somos capazes de curá-la: “Não me toquem nessa dor, ela é tudo o que me sobra”. (Dor elegante, 46 poema de Paulo Leminski). É por meio dela que não ficamos paralisados, uma ligação é movida ao nosso cérebro que produz a informação de que determinada parte de nós ainda existe. Vivemos uma identidade multifacetada, com diversas formas de nos encontrarmos e nos significarmos como pessoas. Os protagonistas de Casa Vazia percorrem caminhos opostos à organicidade e versatilidade moderna, buscando pertencer todos os dias a uma identidade que os preencham. Um filme pode ser recoberto de várias interpretações. Em Casa Vazia pudemos analisar e problematizar questões que tocam em pontos delicados da formação entre identidade e pertencimento na sociedade contemporânea. Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. [...] Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a “identidade” e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos “eus” divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude. (HALL, 2015, p.25) É possível então entender o processo de “ser e permanecer livre” e “sentidos de si” enquanto a construção de um CsO (Corpo sem Órgãos) no sentido em que ao desterritorializamos nossos corpos tornamo-los em constante movimento. Como afirmam Deleuze e Guatarri, “não se pode desejar sem fazê-lo, é um conjunto de práticas” (2012, p. 12). Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar, ele é um limite. Diz-se: que é isto – o CsO – mas já se está sobre ele – arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto e nômade da estepe. [...] (DELEUZE; GUATARRI, 2012, p.12) É uma relação de deriva: deixamos o espaço nos afetar e sentimos em conjunto, engendramos determinado lugar pela maneira que ocupamos. Pois os primeiros filtros do conhecimento acontecem através das percepções vividas, dos encontros; o espaço é uma ideia abstrata e só produz sentido quando o corpo o habita; e o corpo enquanto coisa é um corpo vibrátil, afetivo. Entendemos a partir disso que os conceitos embasados se comunicam por meio de espacialidades que se agenciam entre o meio e os usuários. Toda relação de corpo e espaço é 47 construída por uma dimensão afetiva, pois o espaço não é uma entidade abstrata e metafísica. O modo como ele é construído revela seus múltiplos significados. 48 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Casa Vazia foi tomado com função operativa, um entre diversos “casos” cinematográficos para este estudo, que teve como objetivo principal avaliar como a categoria espaço está inserida no espaço fílmico, no cerne da mise en scène. A princípio, nosso trabalho partiu do acolhimento teórico de Marcel Martin, introduzindo a categoria espaço no cinema e articulando sua essência. O autor questiona a veracidade do cinema ser uma arte do espaço, debate sua relação com o tempo e afirma que o universo fílmico “é um complexo espaço-tempo (ou ainda, um continuum espaço-duração), em que a essência do espaço não altera sua natureza, apenas nossas concepções de vivenciá-lo, senti-lo. A natureza da duração se deleita na emancipação de sua fluidez, uma vez que seu curso pode alternar em ser “acelerado, retardado, invertido, interrompido ou simplesmente ignorado” Posteriormente, avaliamos a natureza do espaço fílmico, no qual resulta a mise en scéne, ou, a junção de diversos elementos atuantes em cada cena, a serviço do universo diegético que o filme fornece, reconstruindo a passagem do “virtual” para a ilusão a ser vivida pelo espectador. 49 Figuras 66 - 71: O diretor gravou essa cena em plano sequência (fig. 66 – 69), deixando a câmera parada e permitindo que os protagonistas fossem percorrendo o espaço urbano. Posteriormente, enquadrou a câmera frontalmente em seus rostos. A linguagem corporal é dimensão fundamental da comunicação que os dois partilham no cerne da encenação e agenciamento do corpo. Sun se põe à frente da bola de golfe algumas vezes, insinuando a Tae que isso não lhe agrada. Esse gesto sugere a ela a violência que viveu e que não deve mais fazer parte de sua rotina. Fonte: Screenshots do filme, elaborados pela autora Casa Vazia é um filme “poético”, ou seja, tomado a todo momento por um encaminhamento cinematográfico que não se basta a dar vazão ao desenvolvimento da trama, mas a articula à dimensão expressiva do cinema no âmbito de uma estilização, na relação da mise en scène com a dimensão espacial. Assim, convida o espectador a inúmeras interpretações, no campo do simbólico e do alegórico. Por isso mesmo, não cabe a esta dissertação apontar para o filme um caminho interpretativo que indique-lhe um “sentido” único. O que propus aqui foi apontar para as relações entre forma e conteúdo do filme dirigindo-me ao problema do espaço, aspecto fundamental para o campo dos estudos cinematográficos. Como pudemos flagrar e explanar, a categoria espaço é inseparável de outras. Assim, dirigi-me, especialmente, à articulação do espaço com o desempenho dos personagens (seus corpos), a que estabelecem com o silêncio, a representação do vazio. Nesse ponto, a falta de diálogo apresenta-se como recurso expressivo de peso, naturalmente articulada às dimensões semânticas do filme. 50 Figuras 72 - 75: A câmera parada enquadrando os personagens lateralmente ecoa a voz de Sun pela primeira vez no filme todo. Ela olha na direção de seu marido e diz que o ama. Nós, espectadores, sabemos a quem ela realmente se dirige. Fonte: Screenshots, elaborados pela autora. Não devemos apostar em que no filme o silêncio está sempre à espera de algo para se concretizar (fazer sentido). Na cena em que Tae está preso com mais três homens, jogando seu golfe imaginário, um deles pega a bola, “invisível”, e isso o irrita completamente. Essa cena prefigura uma certa “loucura” do ser (de roubar uma bola imaginária e saber que isso terá causa- efeito), mas se considerarmos a invisibilidade das coisas, no caso, a invisibilidade da palavra, podemos notar quão fortes são as coisas imaginárias e o silêncio que podem conter; e significar. 51 Figuras 72 - 77: Cenas de Tae na prisão sem a posse material de taco e bola de golfe. Mesmo preso em um espaço apertado sob quatro paredes, o personagem não se entrega às elucidações mentais da sociedade e seu imaginário perpassa o encarceramento, fazendo com que seu corpo e mente transcenda virtualmente. Fonte: Screenshots, elaborados pela autora. Kim Ki-Duk não utilizou grandes planos-sequência para dar peso ou mais valor ao espaço e às cenas. O filme vai sendo narrado através de sequências de planos relativamente breves. Ora em planos gerais, situando os personagens em seus devidos ambientes: da cidade para as casas, conotando destinos âmbitos de suas relações; ora em planos médios, aportando o espaço fílmico em uma dimensão de significado mais específica, das casas aos personagens; e ora em close-up, apresentando os detalhes e nos aproximando com maior intimidade aos personagens. Por outro lado, sempre em uma minuciosa e detalhada mise en scéne que precisa suprir e dar significado ao silêncio que opera entre os personagens e os espaços vazios. Embora breve, a análise que busquei fazer aqui parece nos demonstrar que o silêncio opera como “expressão do diálogo”, capaz de reconfigurar os espaços habitados. Poderíamos associar a invasão de Tae à casa de Sun como algo corriqueiro de sua rotina. Por outro lado, ao 52 destrancar a porta da casa da personagem, cria-se uma dicotomia entre aprisionamento e liberdade, uma vez que, abrindo a porta e invadindo sua residência, está libertando-a de seu cativeiro. Em entrevista apresentada no YouTube por David Lamble (tradução minha), Kim é questionado de onde surgiu a ideia de inserir o golfe no filme, jogo que se destaca na narrativa. Duk responde que, além de pensar o golfe como esporte, compreendeu-o como um instrumento significativo para retratar a violência, que no filme é delineada com certa particularidade destrutiva. O cineasta segue afirmando que poderia ser uma contribuição pertinente para o filme. 53 Figuras 78 - 80: Na figura 78, temos a abertura do filme: uma espécie de escultura renascentista representando o corpo de uma mulher, uma rede de proteção entre ela e a bola, e a bola de golfe certeira na sua direção. Na figura 79, temos a cena em que Sun espreita Tae enquanto ele segue sua rotina, a escultura aqui, já não se encontra no mesmo lugar da figura 78, porém, a sobreimpressão das imagens do espaço que ele ocupa e o que ela ocupa através de sombras, coloca Sun sobreposta à imagem da escultura, remetendo ocupar a posição de quem sofre violência doméstica. Já na figura 90, a escultura não se encontra em cena, podendo denotar uma certa elevação mental de Min-kyu (parceiro de Sun), o qual compreende ter sido deixado pela questão da violência. Fonte: Screenshots, elaborados pela autora. Outro questionamento apresentado na entrevista diz respeito ao modo como o diretor retrata o protagonista Tae, um personagem solitário que ocupa as casas vazias como uma forma de preencher a si mesmo nesses espaços do cotidiano. David pede para que Duk descreva este personagem, seu sustento psicológico, o que ele pensa deste jovem que invade a casa de outras pessoas, mas que não causa mal a ninguém. O cineasta rebate anunciando que não há necessariamente um motivo para tudo no filme ou por detrás de cada personagem. Este personagem foi criado particularmente para o filme Casa Vazia, para contar uma determinada história através dele. Histórias incomuns, que não estamos esperando na nossa vida cotidiana. De todo modo, tal situação insólita é modo - diremos de nossa parte - para a criação de uma alegoria que nos toca frontalmente, que tangencia questões de nossa contemporaneidade solitária e “líquida’. A ausência de diálogo foi outro aspecto abordado na entrevista. David compreende que o cineasta utiliza dessa característica em outras produções e questiona se é uma preferência estética, seja para atingir uma maior audiência, seja apenas pela forma peculiar com que Duk intenta representar o mundo em suas películas. Ele retruca que sim, existe uma preferência pela “estética do silêncio”, e segue enunciando não acreditar que as palavras, dentro de qualquer língua/linguagem, consigam expressar certas dimensões da vida; que mais significados podem ser manifestados através de nuances e ações. O cineasta acredita que, dentro de um contexto 54 internacional, tal estética tem ajudado seus filmes a suplantar um plano mais limitado de significação. Lamble cita a cena em que Tae invade uma casa que pensa estar vazia, porém se depara com Sun, personagem que sofre violência doméstica de seu marido, inserida em uma espécie de encarceramento virtual. Quando Tae, de certo modo, intervém naquela situação, na concepção da audiência ocidental, a narrativa passa de uma percepção da realidade para, talvez, um estado metafísico. Não se sabe, exatamente, o que acontece ao final do filme, se tudo é um sonho ou a realidade. Lamble pede a Kim, que comente um pouco sobre esses dois estados que o filme parece ocupar e o que ele teria buscado exprimir em seu final. Duk rebate: De muitas formas, o final mais fantástico não poderia funcionar sem seu mais realístico início. Sem estabelecer em qual instância os personagens vão ocupar essas casas vazias, em sua retratação mais real, vai contra a fantasia que se mostra posteriormente. Em respeito às cenas da prisão, onde Tae aprende a se transformar em um fantasma (enquanto existência, sua presença “não existente”), no final ele consegue ocupar até mesmo as casas não-vazias, sem perturbar seus respectivos moradores. Esse é o final irônico que eu desejei explanar sob essa transição de realístico para o fantástico (KIM KI-DUK, entrevista à David Lamble, tradução minha). Com as invasões às casas vazias, o filme nos faz refletir sobre nossos espaços privados deixados vazios em nossa ausência e a infinidade de espaços privados que parecem pertencer- nos. Esses espaços são, de fato, nossos? 55 Figuras 81 - 84: Últimas cenas de casa vazia. Kim deixa a câmera parada enquadrando Tae e Sun sob a balança. Sua marcação está no zero. Em uma espécie de “fade out”, o diretor vai esmaecendo a cena e tirando seu foco. Antes que tudo desapareça, a seguinte frase surge na tela “É difícil saber se o mundo que vivemos é realidade ou sonho” (Kim Ki-Duk). Fonte: Screenshots, elaborados pela autora. 56 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. São Paulo: Papirus, 2012. BARROS, Laan Mendes de. Comunicação sem anestesia. Intercom – RBCC, v.40, n.1, jan/abril. São Paulo, 2017 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi; tradução, Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. _____________. Modernidade líquida; tradução, Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. _____________. Vida líquida; tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. COHEN, Renato. Performance como linguagem. 3. Ed. São Paulo. Perspectiva, 2011. DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs: Como criar para si um Corpo sem Órgãos? Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 2012. _____________. Mil Platôs: O Liso e o Estriado. Vol. 5. São Paulo: Editora 34, 1997. DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Lisboa: Rés Editora, 1976. _____________. Espinosa: Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. _____________. Cinema I – A imagem-movimento. São Paulo: Editora 34, 2018. _____________. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2013. GENTIL, H. S. Paul Ricoeur: A presença do outro. In: Mente, Cérebro e Filosofia. S