UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – CÂMPUS DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS JEFFERSON LUÍS DA SILVA POLÍTICAS DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO: A LÓGICA DA OCDE E AS IMPLICAÇÕES PARA O SUBDESENVOLVIMENTO Marília 2023 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – CÂMPUS DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS JEFFERSON LUÍS DA SILVA POLÍTICAS DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO: A LÓGICA DA OCDE E AS IMPLICAÇÕES PARA O SUBDESENVOLVIMENTO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – campus de Marília -, para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Relações Internacionais e Desenvolvimento Orientação: Prof.ª Dr.ª Marina Gusmão de Mendonça Marília 2023 JEFFERSON LUÍS DA SILVA POLÍTICAS DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO: A LÓGICA DA OCDE E AS IMPLICAÇÕES PARA O SUBDESENVOLVIMENTO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais na linha de pesquisa Relações Internacionais e Desenvolvimento. BANCA EXAMINADORA Prof.ª Dr.ª MARINA GUSMÃO DE MENDONÇA Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais / UNESP Prof. Dr. MARCOS CORDEIRO PIRES Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais / UNESP Prof.ª Dr.ª REGIANE NITSCH BRESSAN Departamento de Relações Internacionais - Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (EPPEN-UNIFESP) Marília, 6 de setembro de 2023 Para Rafaela e Pedrinho, com carinho e amor. AGRADECIMENTOS Este trabalho permaneceria incompleto se dele não constassem alguns agradecimentos especiais: À Prof.ª Dr.ª Marina Gusmão de Mendonça que, desde a graduação, tem-se mostrado grande mestre, e cuja orientação, repleta de diligência e sabedoria, foi primordial para que pudesse desenvolver o Mestrado; À Prof.ª Dr.ª Karen Fernandez Costa que, com inestimável generosidade, orientou meus primeiros passos como pesquisador, contribuindo em muito para minha formação humana e intelectual; À Prof.ª Dr.ª Regiane Nitsch Bressan, pelas preciosas sugestões feitas durante o Exame de Qualificação; Ao Prof. Dr. Marcos Cordeiro Pires, pelas ricas indicações bibliográficas, pelas cuidadosas observações feitas no Exame de Qualificação, bem como pelo estímulo cordial que me ofereceu por meio do Estágio de Docência; Ao Prof. Dr. Antonio Roberto Espinosa (in memoriam) e ao Prof. Dr. Raphael Cezar da Silva Neves, pela motivadora experiência em docência que me propiciaram quando fui monitor de suas disciplinas ainda em minha graduação; A todos os funcionários da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN), da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Campus de Osasco e da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Marília, sempre dispostos a me ajudar em tudo que fosse necessário; Aos meus amigos que, de tão amigos que são, não precisam ser nomeados; Às minhas irmãs, Rouchele Pereira da Silva Souza e Jenifer Freitas da Silva, que, com paciência e ternura, têm compartilhado comigo todas as caminhadas de nossas vidas; E, finalmente, a Rosemary Freitas Pereira da Silva e Sandoval Luis da Silva, meus pais, pelo vibrante exemplo de honradez e trabalho e por todo o amor dado a mim. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Sem eles, certamente eu não teria conseguido chegar ao fim da empreitada. “Quem ainda não sabe que o Brasil é useiro e vezeiro em acertar por equívoco, não sabe da missa a metade. Se estivermos certos no fundamental – ou seja, se acreditarmos no país – iremos corrigindo os erros currente calamo.” Ignácio Rangel, Economia Brasileira contemporânea RESUMO O desenvolvimento é processo multidimensional e multifacetado, que envolve interesses entre Estados, economia e sociedades. Em perspectiva histórica e desde a lógica específica da OCDE, as políticas de C, T&I, vitais nos processos contemporâneos de desenvolvimento, constituem elementos apreciados neste trabalho, em termos de parâmetros de políticas públicas. Intenciona- se, assim, analisar a conformidade do padrão firmado nos países desenvolvidos, preconizado pela OCDE, como quadro referencial para o mundo subdesenvolvido, de tal sorte a apreender e aclarar os pressupostos que orientam a sua visão sobre C, T&I, em particular, e desenvolvimento, de modo geral, tanto quanto o papel histórico da instituição na governança global. Nesse sentido, o estudo apresenta o quadro teórico-analítico estabelecido no âmbito da OCDE, bem como seus diagnósticos, que reproduzem os modelos de políticas implementados no mundo desenvolvido, sem atentar para as propriedades e as singularidades dos países subdesenvolvidos. A análise envolve também a controversa relação do Brasil com a OCDE, em suas faces de pensamento político-econômico e de estratégias em política externa. Ademais, reúnem-se elementos necessários à crítica ao discurso de Governança Global, que ampara e legitima a instituição, e ao seu modelo de desenvolvimento, que a anima. Para tanto, enfatiza- se a abordagem de Celso Furtado sobre as questões do progresso tecnológico e do processo de desenvolvimento. Palavras-chave: OCDE; C, T&I; desenvolvimento; Celso Furtado; política externa brasileira. ABSTRACT Development is a multidimensional and multifaceted process involving interests between States, economies and societies. In a historical perspective and from the specific logic of the OECD, S, T&I policies, vital in contemporary development processes, constitute elements appreciated in this work, in terms of public policy parameters. The intention is thus to analyze the conformity of the pattern established in developed countries, recommended by the OECD, as a reference framework for the underdeveloped world, in order to apprehend and clarify the assumptions that guide its vision on S, T&I, in particular, and development, in general, as well as the historical role of the institution in global governance. In this sense, the study presents the theoretical-analytical framework established within the OECD, as well as its diagnoses, which reproduce the policy models implemented in the developed world, without paying attention to the properties and singularities of underdeveloped countries. The analysis also involves Brazil's controversial relationship with the OECD, in its political-economic thinking and foreign policy strategies. In addition, elements necessary to criticize the discourse of Global Governance, which supports and legitimizes the institution, and its development model, which animates it, are gathered. To this end, Celso Furtado's approach to the issues of technological progress and the development process is emphasized. Keywords: OECD; S, T&I; development; Celso Furtado; Brazilian foreign policy. ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES LISTA DE FIGURAS Figura 1 Estrutura organizacional da OCDE .................................................................47 Figura 2 Quadro da organização ....................................................................................47 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Brasil como membro ou associado em órgãos da OCDE .............................48 Quadro 2 Brasil como participante ou observador em órgãos da OCDE .....................49 Quadro 3 Os 82 instrumentos que a OCDE considera como aderidos pelo Brasil ......51 Quadro 4 Resumo do relatório McCracken ................................................................101 Quadro 5 Relatório Ajustes estruturais e desempenho econômico ............................105 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Ajuda econômica dos EUA à Europa Ocidental .............................................46 Tabela 2 Produto Interno Bruto (1870-1973) (Taxas anuais médias de crescimento) ..46 Tabela 3 Performance dos países da OCDE após a implementação dos ajustes estruturais .......................................................................................................................................107 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................12 CAPÍTULO 1 – A LÓGICA DA OCDE ...........................................................17 1.1 A reconstrução da Europa e a OECE ..................................................16 1.2 A OCDE ..............................................................................................24 1.3 O modus operandi da OCDE ..............................................................27 1.4 A abertura seletiva da OCDE ..............................................................36 1.5 O Brasil e a OCDE ..............................................................................39 CAPÍTULO 2 – POLÍTICAS DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO NA OCDE ..............................................................................................................57 2.1 Políticas e perspectivas dos sistemas de inovação: uma introdução ....57 2.2 Inovação e desenvolvimento pela ótica da OCDE ...............................62 2.3 Os horizontes em C, T&I na visão da OCDE ......................................65 2.3.1 Grandes tendências e suas implicações em C, T&I ..............66 2.3.2 Demografia ...........................................................................67 2.3.3 Crescimento populacional ....................................................67 2.3.4 Envelhecimento da população ..............................................67 2.3.5 Migração populacional .........................................................68 2.3.6 Recursos naturais e energia ..................................................68 2.3.7 Água .....................................................................................68 2.3.8 Alimentos .............................................................................69 2.3.9 Energia .................................................................................70 2.3.10 Meio ambiente e mudança climática ..................................70 2.3.11 Globalização .......................................................................71 2.3.12 Papel dos governos .............................................................72 2.3.13 Economia, emprego e produtividade ..................................72 2.3.14 Sociedade ............................................................................73 2.3.15 Saúde, desigualdade e bem-estar ........................................73 2.4 As políticas de inovação na OCDE .....................................................74 2.4.1 Capacitar as pessoas a inovar ...............................................76 2.4.2 Desencadear inovações ........................................................78 2.4.3 Criar e aplicar o conhecimento ............................................79 2.4.4 Enfrentar desafios globais e sociais por meio da inovação .83 2.4.5 Melhorar a governança e a mensuração ..............................84 2.5 As políticas de C, T&I na OCDE e os países subdesenvolvidos .......86 CAPÍTULO 3 – C, T&I, O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO E A LÓGICA DA OCDE ..........................................................................................93 3.1 A questão do progresso técnico para o desenvolvimento ...................93 3.2 A OCDE como expressão neoliberal ..................................................99 3.3 A OCDE como estratégia na política externa brasileira ...................107 3.4 A estratégia de adesão brasileira à OCDE sob lentes críticas ..........111 3.5 Uma estratégia em política externa virtuosa: os eixos combinados de cooperação horizontal e vertical .............................................................117 CAPÍTULO 4 - DAS CRÍTICAS À GOVERNANÇA GLOBAL E AO MODELO DE DESENVOLVIMENTO DA OCDE .........................................................124 4.1 A OCDE e a governança global ........................................................123 4.2 Governança Global: prisma conceitual e analítico em Política Internacional ...........................................................................................125 4.3 O discurso de Governança Global ....................................................129 4.4 Críticas ao discurso de Governança Global ......................................134 4.5 Uma compreensão acerca do processo de desenvolvimento brasileiro..................................................................................................137 4.6 A questão da integração regional e o desenvolvimento ...................144 4.7 Os sistemas de inovação e o desenvolvimento ................................145 4.8 A face cultural do desenvolvimento ................................................146 4.9 Um projeto de desenvolvimento verdadeiramente nacional versus a lógica da OCDE ..................................................................................147 CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................149 REFERÊNCIAS ..............................................................................................154 12 INTRODUÇÃO A escolha do tema para a concepção desta dissertação foi determinada pela busca de respostas para algumas questões que muito nos intrigavam a respeito da importância e da influência da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) nas esferas de política externa brasileira e de governança econômica global. A formalização do pedido de ingresso do Brasil na instituição ocorreu em maio de 2017. Apesar das controvérsias em torno do assunto, a avaliação do governo brasileiro era de que integrar a instituição traria confiança às suas políticas econômicas e poderia facilitar a entrada de investimentos externos no Brasil. A princípio, questionamentos sobre as possíveis fragilidades encerradas nesses argumentos, em termos de estratégia em política externa e de pensamento político e econômico, nos intrigaram. Ainda no primeiro ano do governo Bolsonaro, em outubro de 2019, o Brasil, por exigência dos EUA, renunciou ao status de “país em desenvolvimento” nas negociações de acordos comerciais com os países desenvolvidos, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), em troca do apoio estadunidense ao pleito de ser aceito como membro pleno da OCDE. A decisão em apreço, exemplar do alto grau de influência exterior que a possibilidade de acesso do Brasil à OCDE suscitava, muito nos intrigou, na medida em que sinalizava para a impossibilidade de estabelecer coalizões e enfrentamentos vitais em um sistema internacional extremamente hierarquizado. Considerando o exposto, algumas indagações se impuseram ao trabalho. Do que se trata realmente a OCDE? Qual a sua origem? Como ela se estrutura? De que maneira exerce o seu poder de cumprimento? Na verdade, além da lógica da OCDE, interessava-nos apreender, com certa profundidade, a ótica da instituição em face do processo de desenvolvimento e da governança global. Para esse propósito, elegemos o quadro teórico-analítico da instituição que diz respeito a ciência, tecnologia e inovação (C, T&I), tendo em vista que, desde 1963, a organização internacional tem dirigido suas reflexões para o acompanhamento e as proposições de políticas econômicas, atribuindo, em sua agenda, valor eminente às políticas de C, T&I, itens basilares para o processo de desenvolvimento. No que se refere ao desenvolvimento, questionamos qual a visão da entidade sobre C, T&I. Por conseguinte, coube-nos perguntar qual o “lugar” dos países subdesenvolvidos na OCDE. 13 Quanto à governança global, foi pertinente indagar sobre a importância e o papel da OCDE para a governança econômica global. Desse modo, ao dar início à pesquisa, procuramos fontes que pudessem satisfazer à nossa curiosidade. Nesse aspecto, destacam-se os estudos de Pinto (2000) e Godinho (2018), uma vez que esses autores têm por objetivo esclarecer, em suas obras, a especificidade das características essenciais da organização: seletividade de composição, amplitude de áreas temáticas e natureza de seus instrumentos, centrados na provisão de incentivos internacionais a políticas domésticas. Ainda no tratamento da lógica da OCDE, Pinto (2000) explora a vertente normativa das atividades da organização que se reveste de particular importância para o desenvolvimento e a consolidação da ordem econômica internacional. Os trabalhos de Cassiolato e Lastres (2000; 2005) foram extremamente importantes para a compreensão dos principais conceitos relacionados aos sistemas de inovação e ao fenômeno inovativo propriamente dito. Os autores (2005) discutem uma coevolução das ideias conceituais e analíticas a respeito do processo inovativo e da formulação de políticas nos países desenvolvidos, sustentando que a incompreensão das particularidades do processo inovativo e de suas consequências para desenvolvimento podem levar a equívocos na proposição e na implementação de políticas públicas que respondam a desafios e oportunidades atuais que se colocam para a economia brasileira. Nesse sentido, expressamos concordância com Cassiolato e Lastres (2005) e Guimarães et al. (2007) quando apontam que o papel do progresso técnico constitui força motriz da dinâmica capitalista, sujeita, no entanto, a projeções globais diferenciadas. As assimetrias internacionais, econômicas e tecnológicas, por seu turno, podem aprofundar-se principalmente pelas assimetrias também estabelecidas em relação ao conhecimento e ao aprendizado. Na formulação de Guimarães et al. (2007), mais importantes do que as assimetrias tecnológicas, são as assimetrias que implicam a impossibilidade de acessar, compreender, absorver, dominar, usar e difundir conhecimento. Das diversas linhas que estão postas em debate sobre o processo de desenvolvimento, realçamos as contribuições do método histórico-estruturalista cepalino, que se preocupa com os determinantes históricos, econômicos e sociais a condicionarem a heterogeneidade estrutural, impactando negativamente a distribuição de renda, o avanço da produtividade e as condições de oferta na América Latina. 14 Dessa maneira, alinhamo-nos à conceituação do processo de desenvolvimento de Bertoncelo (2011), para quem o desenvolvimento é processo multidimensional e multifacetado que supõe relações complexas entre o Estado, a economia e a sociedade, e em cujo cerne repousa o desafio de investigar os arranjos institucionais e estruturais que sustentam essas relações, interna ou externamente, exigindo graus variados de autonomia e de capacidade dos Estados nacionais para imprimir um padrão específico ao processo de desenvolvimento. Porque não é linear e sequencial, o desenvolvimento é processo único, dependente de aspectos que envolvem singularidades políticas, econômicas, históricas e culturais. Tanto a teoria quanto as recomendações de política são intrinsecamente relacionadas a cada contexto particular. Tal definição fundamentou, em larga medida, as críticas aos relatórios sobre C, T &I propostos pela OCDE. Fortes (2020) contribui para o presente texto porque demonstra que, a partir dos anos 1970, a OCDE se converteu em um ator considerável na propagação de políticas neoliberais, ao apoiar esforços de coordenação econômica, desenvolver análises e recomendações sobre desenvolvimento. Nesse contexto, comprova que as organizações internacionais possuem um papel crucial no que se refere ao campo ideológico para a manutenção da hegemonia do neoliberalismo, contribuindo para o entendimento da lógica da instituição. Azzi (2021) serve de fundamentação teórica para este trabalho visto que trata o acesso do Brasil à OCDE como elemento na estratégia de poder das potências ocidentais. Dados qualitativos e quantitativos amparam a análise do autor. De modo correlato, Pecequilo (2008) avalia a política externa do Brasil da primeira década do século XXI. Assim, verifica uma evolução significativa marcada por uma posição internacional e uma projeção de poder assertivas, dinamizando parcerias estratégicas com países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Dessa forma, é possível depreendermos que a estratégia em política externa denominada os “eixos combinados de cooperação horizontal e vertical” é virtuosa, podendo servir de exemplo histórico racional e coerente para a ação diplomática nacional. A governança global é estruturada em função das estratégias de poder das grandes potências e da inserção de política externa de países como o Brasil. À vista disso, Leslie Pal (2012), Rosenau (1995) e Dingwerth e Pattberg (2006) foram autores centrais para a reunião de elementos descritivos da Governança Global que passaram por exame crítico nesta dissertação. 15 Nossa análise se baseou nas ideias expostas por Celso Furtado (1963; 1976; 1968; 1978; 1986; 1992; 2009), que sugere uma abordagem histórica, sistêmica e contextualizada, em evidente divergência com o método da OCDE, assentado na transposição de modelos de desenvolvimento próprios dos países desenvolvidos. Por consequência, enfatiza, de modo minucioso, a endogeneização da tecnologia, o papel determinante do Estado na inserção no sistema internacional, a questão do poder no desenvolvimento do país, o combate ao mimetismo cultural e a necessidade de profundo conhecimento da realidade nacional. Para a realização desta pesquisa, foi feita uma revisão da bibliografia especializada no tema, abarcando a produção científica nacional e internacional. A investigação tomou por base principalmente três tipos de fontes: livros, artigos publicados em periódicos e relatórios produzidos pela OCDE. Cumpre salientar que este trabalho está estruturado em quatro capítulos. O primeiro deles apresenta os elementos essenciais para a compreensão do nosso objeto de estudo: a OCDE. Para tanto, expusemos o contexto político-econômico do período posterior à Segunda Guerra Mundial em que a instituição se estabelece, evidenciando os vínculos entre a reconstrução da Europa e a Organização Europeia de Cooperação Econômica (OECE). Em seguida, descrevemos a consolidação da OCDE, as suas características distintivas, o seu processo de abertura seletiva e a sua relação histórica com o Brasil. No segundo capítulo, buscamos discutir um possível entendimento acerca dos sistemas de inovação e do fenômeno inovativo propriamente dito. A seguir, tratamos de aspecto específico do quadro teórico-analítico da OCDE, qual seja, as suas recomendações de políticas de C, T&I. Nessa abordagem, foram fundamentais as leituras dos relatórios Innovation for development (OECD, 2012), Science, Technology and Innovation Outlook (OECD, 2016) e Innovation strategy: Getting a head start from tomorrow (OECD, 2010). O contraste entre as proposições da OCDE em matéria de C, T&I e a realidade dos países subdesenvolvidos dá o tom à seção final do capítulo. No terceiro capítulo, ressaltamos a reflexão feita por alguns autores, com ênfase na abordagem de Celso Furtado, com respeito aos limites que o avanço tecnológico (ou sua falta) impõem aos países subdesenvolvidos. Subsequentemente, expusemos a OCDE como expressão neoliberal nos anos 1970 e 1980, período no qual a entidade se converteu em ator de relevo na definição do consenso quanto ao neoliberalismo. Analisamos ainda a OCDE como estratégia na política externa brasileira. 16 O quarto capítulo deste trabalho reuniu elementos para que articulássemos críticas ao discurso de Governança Global e ao modelo de desenvolvimento da OCDE. Com esse intuito, apresentamos uma revisão bibliográfica acerca da Governança Global como prisma conceitual e analítico em Política Internacional e como discurso político-econômico. Partindo especialmente da concepção de Celso Furtado no que concerne ao processo de desenvolvimento, criticamos o modo de funcionamento e os métodos da instituição internacional. Ao final, apresentamos considerações finais a respeito da investigação sobre o tema. Destarte, ensejamos poder contribuir para o debate no qual os objetos deste trabalho estão inscritos. 17 CAPÍTULO 1 - A LÓGICA DA OCDE Iniciaremos a abordagem do tema apresentando a lógica da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Para tanto, pretendemos abordar a constituição e os atributos essenciais da OCDE, caracterizando o contexto político-econômico do período posterior à Segunda Guerra Mundial, em que se estabeleceu a OECE (Organização Europeia de Cooperação Econômica). A seguir, descrevemos a relação guardada entre a OECE e a reconstrução da Europa, assim como a reconstituição da OECE e a sua consubstanciação em OCDE. 1.1 A reconstrução da Europa e a OECE De acordo com Saes e Saes (2013), ao longo da Segunda Guerra Mundial, deu-se uma nítida dicotomia em relação aos países nela envolvidos. A economia estadunidense, animada pela forte demanda de produtos bélicos, recuperara, já no ano de 1937, os níveis de produção anteriores à crise de 1929. A europeia, por seu turno, revelava uma condição inteiramente distinta. Na Europa, as brutais perdas humanas durante a Segunda Guerra Mundial foram estimadas em 60 milhões de mortos, entre civis e militares1. Ademais, havia feridos, doentes e incapacitados em proporção elevadíssima2, representando uma enorme redução da força de trabalho dos países envolvidos. Tony Judt (2008, p. 14) delineia a realidade de guerra total3 Na sequência da Segunda Guerra Mundial, a perspectiva da Europa era de miséria e desolação total. Fotografias e documentários da época mostram fluxos patéticos de civis impotentes atravessando paisagens arrasadas, com cidades destruídas e campos áridos. Crianças órfãs perambulam melancólicas, passando por grupos de mulheres exaustas que reviram montes de entulho. 1 Incluindo aqui a União Soviética, que, sozinha, sofreu a perda de 20 milhões de pessoas (SAES; SAES, 2013). 2 No Japão, eram dois milhões de mortes, e quatro milhões que apresentavam alguma sequela da guerra (SAES; SAES, 2013). 3 Foi na Segunda Guerra Mundial que, pela primeira vez, mobilizou-se todo o poderio do Estado europeu moderno, e com o objetivo de conquistar e explorar outros europeus. Para lutar e vencer a guerra, os britânicos exploraram e pilharam seus próprios recursos: no final do conflito, Grã-Bretanha gastava mais da metade do seu Produto Interno Bruto (PIB) no esforço de guerra. A Alemanha nazista, entretanto, guerreou – especialmente nos anos finais – com o auxílio decisivo das economias saqueadas das vítimas (assim como procedera Napoleão, depois de 1805, embora com uma eficiência incomparavelmente maior). Noruega, Holanda, Bélgica, Boêmia-Morávia e, de modo especial, França fizeram grandes contribuições involuntárias ao esforço de guerra alemão. Minas, fábricas, fazendas e estradas de ferro desses países foram destinadas a atender às exigências da Alemanha, e as respectivas populações viram-se obrigadas a trabalhar em prol da produção bélica germânica, inicialmente, em seus próprios países; mais tarde, em solo alemão. Em setembro de 1944, havia na Alemanha 7.487.000 estrangeiros, a maioria dos quais forçada a permanecer no país, e o referido contingente constituía 21% da força total de trabalho (JUDT, 2008, p. 14). 18 Deportados e prisioneiros de campos de concentração, com as cabeças raspadas e vestindo pijamas listrados, fitam a câmera com indiferença, famintos e doentes. Até os bondes parecem traumatizados – impulsionados por corrente elétrica intermitente, aos trancos, ao longo de trilhos danificados. Tudo e todos – exceto as bem nutridas forças aliadas de ocupação – parecem surrados, desprovidos de recursos, exauridos. Somava-se a essas circunstâncias a dramática destruição material, como pontes, rodovias, ferrovias, frota mercante, portos, quase desaparecimento de veículos motores particulares, casas e outros edifícios4, redução dos rebanhos de gado, escassez de fertilizantes e devastação de terras agrícolas. Em síntese, no fim da guerra, a Europa e o Japão enfrentavam falta de meios de produção e de força de trabalho para iniciar o processo de recuperação. Impuseram-se, portanto, severos ônus à população: escassez de produtos (inclusive alimentos), fome e mortes por falta de meios de subsistência, agravadas pela insuficiência de carvão que, além do impacto sobre a produção, também dificultava o atendimento doméstico, essencial na época do inverno (SAES; SAES, 2013, p. 436). No contexto do pós-guerra, notou-se uma clara tendência à supressão ou a alguma restrição das instituições que orientavam a economia até 1913. Prova cabal disso foi a criação de diversos organismos internacionais no pós-guerra, a saber: Fundo Monetário Internacional (FMI) (1944) para o arranjo do sistema monetário internacional; o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) (1944), mais conhecido como Banco Mundial, para financiar a reconstrução europeia, e que, posteriormente, se dedicou ao atendimento dos países subdesenvolvidos; para a regulação do comércio mundial, foi criado o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT) (1947), embrião da futura Organização Mundial do Comércio (OMC) (1995). Em uma dimensão mais geral, constituiu-se a Organização das Nações Unidas (ONU) (1945) que, além de exercer funções propriamente políticas, instalou vários órgãos de caráter econômico e social, como a Organização Educacional, Científica e Cultural (UNESCO) (1945), Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO) (1945), Organização Mundial da 4 Na Alemanha, 40% das habitações estavam destruídas ou inabitáveis; na Grã-Bretanha, 30%; no Japão, 25% e dois milhões de pessoas sem teto (SAES; SAES, 2013). Sob o ponto de vista dos contemporâneos, o impacto da guerra não foi aferido em termos de lucros e perdas da indústria ou valor líquido do patrimônio em 1945 em comparação com o de 1938, mas em termos dos prejuízos visíveis ao meio ambiente e às comunidades (JUDT, 2008). 19 Saúde (OMS) (1948), Organização Internacional do Trabalho (OIT) (1919)5 e a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) (1948) (SAES; SAES, 2013, p. 433). As instituições supracitadas denotavam a necessidade de sólida intervenção na ordem econômica e social para atingir objetivos de coordenação econômica que a livre ação dos “mercados” não permitiria lograr6. Nesse sentido, em 1948, foi constituída a OECE (SAES; SAES, 2013; GODINHO, 2018). Com efeito, a OECE remete fundamentalmente aos primeiros embates da Guerra Fria, que passou a dividir o mundo e opor as duas grandes potências – Estados Unidos (EUA) e União Soviética (URSS) - a partir de 1946-19477. A existência da bipolaridade estrita representava um fenômeno novo no sistema internacional, trazendo consigo um conflito ideológico global, na medida em que os EUA e a URSS opunham-se em seus valores e interesses, bem como uma dependência dos países europeus em face das potências ocupantes8 (ALMEIDA, 1996). Na expressão de Eric Hobsbawm (1995, p. 224), A peculiaridade da Guerra Fria era a de que, em termos objetivos, não existia perigo iminente de guerra mundial. Mais que isso: apesar da retórica apocalíptica de ambos os lados, mas sobretudo do lado americano, os governos das duas superpotências aceitaram a distribuição global de forças no fim da Segunda Guerra Mundial, que equivalia a um equilíbrio de poder desigual, mas não contestado em sua essência. A URSS controlava uma parte do globo, ou sobre ela exercia predominante influência – a zona ocupada pelo exército vermelho e/ou outras Forças Armadas comunistas no término da guerra – e não tentava ampliá-la com o uso de força militar. Os EUA exerciam controle e predominância sobre o resto do mundo capitalista, além do hemisfério norte e oceanos, assumindo o que restava de velha hegemonia 5 Em 1946, após a criação da ONU em 1945 e consequente extinção da Liga das Nações, é que a OIT se tornou a primeira agência especializada da ONU, passando a integrar, oficialmente, a sua estrutura. 6 Cabe salientar que essa sólida intervenção na ordem econômica e social esteve no bojo da tradição política do Estado de bem-estar social, uma das marcas da “Era de Ouro”. que “significou mais do que um simples incremento das políticas sociais no mundo industrial desenvolvido. Em termos gerais, significou um abandono da ortodoxia da pura lógica do mercado, em favor da existência de extensão da segurança e do emprego e dos ganhos como direitos de cidadania; moralmente, a defesa das ideias de justiça social, solidariedade e universalismo. Politicamente, o Welfare state foi parte de um projeto de construção nacional, a democracia liberal, contra o duplo perigo do fascismo e do bolchevismo” (ANDERSEN, 1994, p. 73). 7 Nas palavras do professor de Economia da Universidade de Harvard, Gottfried Haberler, de abril de 1948, “Os fatores e motivos políticos e econômicos entrelaçam-se inseparavelmente no Plano de Reconstrução da Europa. Os objetivos básicos são tanto econômicos como políticos. A recuperação econômica da Europa Ocidental não é apenas um fim em si, mas também um meio de preservar a paz e de sustar a marcha para o ocidente do totalitarismo comunista”. 8 A interdependência crescente entre as economias dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos foi elemento determinante, assevera Pinto (2000), a acelerar a transformação da OECE. No fim da década de 1950, com o término do processo de descolonização, a URSS passou a exercer substantiva pressão, como modelo para os países do Terceiro Mundo. O risco da desestabilização fez os EUA incentivarem um aumento do volume da eficácia dos recursos alocados à ajuda ao desenvolvimento. Washington passou a exigir que os países europeus aumentassem sua participação nos programas de ajuda ao desenvolvimento e empreendessem maior coordenação entre países doadores. 20 imperial das antigas potências coloniais. Em troca, não intervinha na zona aceita de hegemonia soviética. A reconstrução do mundo pós-guerra tomava por traço essencial evitar os erros cometidos ao cabo da Primeira Grande Guerra, quando a humilhação política e a punição econômica dirigidas à Alemanha compreenderam os germes da Segunda. Nesse particular, as instituições de caráter monetário e financeiro criadas em 1944 em Bretton Woods, aquela dedicada ao comércio que se desenhava em 1947-1948 na Conferência de Havana e, sobretudo, o Plano Marshall9 formavam, para Almeida (1996, p. 18), “importantes inovações conceituais e pragmáticas em relação aos esquemas puramente reivindicatórios implementados depois do Tratado”. Neste ponto, o autor refere-se, em específico, ao Tratado de Versalhes de 1919, o mais importante dos vários acordos impostos pelas nações vitoriosas – lideradas pelos EUA, o Reino Unido, a França e a Itália – aos vencidos de 1918: Alemanha, Império Austro-Húngaro, Bulgária e Turquia. O Tratado marcou de forma indelével o período 1919-1945, em primeiro lugar por ter sido visto nos anos 1920 e 1930 como demasiado duro com a Alemanha, tanto pela maioria dos alemães, como por muitos nos países aliados, que rapidamente se arrependeram do que tinham negociado, e depois, no final da Segunda Guerra Mundial, por ter sido usado como exemplo de como não pôr fim a uma guerra (MENESES, 2008). Nesse tocante, J. M. Keynes atesta que Ali, o futuro da Europa não constituía uma preocupação; seus meios de subsistência não causavam ansiedade. As preocupações da Conferência10, boas e más, se relacionavam com fronteiras e nacionalidades, com o equilíbrio de poder, a expansão imperialista, o futuro enfraquecimento de um inimigo forte e perigoso, com a vingança e a transferência pelos vitoriosos de uma carga financeira insuportável para os ombros dos vencidos (KEYNES, 1971, p. 37). [...] As virtudes mais comuns dos indivíduos faltam muitas vezes nos porta-vozes das nações; o estadista que representa não a si mesmo, mas o seu país pode ser vingativo, pérfido e egoísta sem ser excessivamente culpado - 9 Lançado em junho de 1947, assumia mais a forma de verbas que a de empréstimos. Trata-se de um plano para a economia pós-guerra de livre comércio, livre conversão e livre mercados, dominada pelos EUA (HOBSBAWM, 1995). 10 Trata-se da Conferência de Paz de Paris, iniciada em 18 de janeiro de 1919, com a participação de 70 delegados, representando os 27 países participantes na Primeira Guerra Mundial e cujo principal documento resultante foi o Tratado de Versalhes, assinado em 28 de junho de 1919 com a Alemanha (PORTUGAL, 2022). 21 como registra a história. Essas características são comuns nos tratados impostos pelos vencedores (KEYNES, 1971, p. 40)11. De acordo com Almeida (1996, p. 17), o quadro institucional que serviu de base para o surgimento da OECE foi o Programa de Recuperação da Europa, historicamente conhecido como Plano Marshall. Tal programa foi arquitetado como resposta às dificuldades para a reconstrução europeia. O plano12 elevara a escala de ajuda financeira estadunidense, demandando, compensatoriamente, o engajamento dos países europeus na criação de instância multilateral a fim de implementar a reconstrução13 (GODINHO, 2018). Intencionando repartir a ajuda dos EUA aos países europeus em penúria pela guerra e pôr fim às barreiras comerciais e monetárias, provenientes do período da Grande Depressão da década de 1930, em 16 de abril de 1948, foi assinada em Paris a convenção que deu origem à nova organização. Entrando em vigor em 28 de julho de 1948, a direção da OECE coube a um conselho, composto por representantes dos países-membros14, assistido por um conselho executivo, de um comitê técnico e de um secretariado (PINTO, 2000). A repartição do Plano Marshall, vital para o melhoramento das economias europeias, foi objetivo mestre de curto prazo da OECE. A instituição determinou mecanismo de financiamento de importações fundamentais, com o intuito de retomar o crescimento econômico para ulteriormente aumentar o nível de consumo das populações da Europa ocidental. Essa partilha foi arbitrada e supervisionada pelos comitês técnicos da OECE15, tendo por finalidade assegurar o crescimento rápido da produção, em setores basilares como agricultura, transportes e siderurgia. Para além dessa meta precípua da OECE, de restabelecer 10 O sistema econômico alemão existente antes da guerra dependia primordialmente de três fatores: i) o comércio ultramarino representado pela sua marinha mercante, suas colônias, seus investimentos estrangeiros, suas exportações, e as ligações dos seus comerciantes com o exterior; ii) a exploração do seu ferro e carvão, e as indústrias baseadas nesses produtos; iii) seu sistema de transporte e suas tarifas. Deles, o primeiro era certamente o mais vulnerável, embora não o menos importante. O Tratado buscou a destruição sistemática de todos os três, mas sobretudo dos dois primeiros (KEYNES, 1971, p. 43). 12 É mister observar que o Plano Marshall tinha como principal objetivo impedir o avanço do socialismo na Europa e o crescimento dos Partidos Comunistas, como são os casos do Partido francês e do italiano. 13 Verifique a Tabela 1 na parte final deste capítulo que diz respeito à ajuda estadunidense à Europa Ocidental àquela época. 14 Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Irlanda, Islândia, Itália, Luxemburgo, Noruega, Holanda, Portugal, República Federal da Alemanha, Reino Unido, Suécia, Suíça e Turquia. Observa-se que os EUA e o Canadá estiveram presentes como Estados associados. 15 A OECE debruçava-se, por meio de comitês técnicos, em temas como balança de pagamentos, pagamentos intereuropeus, intercâmbio extra europeu, programas de alimentação e agricultura, aço, carvão, eletricidade, matérias-primas, máquinas agrícolas, produtos químicos, madeira, papel, têxteis, não-ferrosos, carburantes, transportes marítimos e internos (ALMEIDA, 1996, p. 21). 22 o funcionamento da economia europeia, emerge outra vertente, dominantemente regulatória, que consiste não apenas na capacitação de pessoal na área científica e tecnológica, mas também na criação de mecanismos com o propósito de liberalizar o comércio16 e de realizar pagamentos multilaterais17. Antecessora da OCDE, a OECE possuía, na coordenação econômica entre os países receptores e no fornecimento de informações estatísticas e dados sobre o funcionamento das diferentes economias, os principais itens de seu funcionamento (PINTO, 2000). Nessa atmosfera, a OECE fomentou o intercâmbio regional por meio de estudos pioneiros, os quais conformariam os primeiros projetos integracionistas da região. França e Alemanha Federal capitanearam, no âmbito da OECE, tentativas de criação de uma união aduaneira. Essas iniciativas, contudo, não alcançaram convergência, em consequência da instauração de duas grandes tendências no interior da organização, das quais derivaram negociações próprias de liberalização comercial, colocando em xeque o aprofundamento dessa política, no domínio da OECE18. Na avaliação de Denis Pinto (2000), essa circunstância marcou o esgotamento do modelo institucional da OECE, desencadeando seu processo de reforma. Efetivamente, com o término do trabalho de reconstrução da Europa e, em particular, com a introdução da conversibilidade das moedas europeias, a organização obteve seus objetivos. No final dos anos 1950, a OECE, basicamente concebida para administrar a reconstrução da Europa de maneira concertada, concluiu o seu propósito mais central. Para Godinho (2018), dois processos paralelos compuseram o eixo de transição entre a OECE e a OCDE, principalmente sob a perspectiva estadunidense. Em primeiro lugar, a nova organização teria de superar a lógica doador-beneficiário própria da dinâmica da OECE, por 16 A OECE procurou, desde o início, desempenhar papel protagonista na liberalização do comércio entre os países- membros, especialmente na diminuição de restrições quantitativas, uma vez que a questão das tarifas foi delegada ao GATT (GODINHO, 2018). 17 Veja-se que o artigo 4º da convenção da OECE, em larga medida resultado de pressões do governo estadunidense, explicitava que se deveria criar um regime de pagamentos multilaterais e reduzir as restrições ligadas às trocas comerciais e pagamentos intra-europeus. Deste modo, foi instituído um plano de eliminação progressiva das restrições quantitativas no comércio da região, previsto no Código de Liberalização, inicialmente restrito ao comércio de bens e depois, em 1951, estendido aos serviços. Um segundo código foi adotado, em 1959, acerca da liberalização dos movimentos de capitais. Já a partir de 1951, 75% do comércio intra-europeu estavam isentos de cotas. Em decorrência de mecanismos financeiros complementares, os países da OECE conseguiram, no final da década de 1950, suprimir quase completamente as restrições quantitativas no comércio intrarregional e superar os déficits em balanço de pagamentos, abrindo margem à conversibilidade de suas moedas (PINTO, 2000). 18 De um lado, Alemanha, França, Itália e Benelux iniciaram, a partir dos anos 1950, a negociação de um mercado único, o Tratado de Roma de 1957. De outro, Áustria, Dinamarca, Noruega, Portugal, Suécia, Suíça e Reino Unido que instituíram a Associação Europeia de Livre Comércio (AELC). À diferença do mercado comum, a AELC não previa uma tarifa externa comum (PINTO, 2000, p. 16). 23 meio da participação dos países europeus e dos EUA em bases compartilhadas do ônus econômico da cooperação. Além disso, teria de ser capaz de ampliar a cooperação transatlântica afora dos domínios alcançados pela OECE, quais sejam, energia, agricultura, indústria, trabalho e turismo. Em segundo lugar, em consequência da constituição do Pacto de Varsóvia (1955)19, o valor simbólico da cooperação transatlântica seria fortalecido. A priori centrada ao redor dos pilares da democracia ocidental e do sistema capitalista, a organização ganhou sentido estratégico por ocasião do processo de descolonização, a partir da emergência de novos atores no sistema internacional20. De modo geral, reforçou-se o imperativo de cooperação estratégica com os novos atores, em um panorama de competição geoestratégica entre as duas superpotências (GODINHO, 2018). Dessa sorte, estão dados os pressupostos de uma nova organização, um centro para o pensamento dos países desenvolvidos comprometidos com o fortalecimento do sistema de economia de mercado. O pressuposto de que o desenvolvimento econômico envolveria cooperação e interdependência, um dos principais legados da OECE, acrescido pela necessidade de coordenação político-econômica, própria da polarização que se intensificava na Guerra Fria, compõem o mosaico político, cuja consequência é a decisão de criar uma nova organização transatlântica por parte dos países desenvolvidos (PINTO, 2000). Em dezembro de 1959, decidiu-se pela reforma da OECE. Um grupo de peritos21 passou a preparar os estatutos de uma nova organização, propondo a manutenção nos métodos de trabalho e do conjunto das decisões normativas da OECE, ou seja, todos os atos da OECE seriam incorporados pela nova instituição. A composição da OCDE manteria o modelo da 19 Em 1955, após a Alemanha ter ingressado na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a URSS assinou o Pacto de Varsóvia, um acordo de defesa mútua com os sete países da Europa Oriental - Albânia, Bulgária, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental, Hungria, Polônia e Romênia. Por meio desse acordo, haveria tropas soviéticas em cada um dos países-membros. Todos os exércitos do Pacto de Varsóvia permaneceriam sob a liderança de um comandante soviético em Moscou. 20 Pode-se afirmar que, do fim da Segunda Guerra Mundial a meados dos anos 1970, houve a liquidação dos impérios coloniais da Grã-Bretanha, França, Holanda, Bélgica, Itália e Portugal. Antes disso, a Alemanha já havia perdido suas colônias (ao fim da Primeira Guerra por decisão dos vencedores), assim como o Japão em consequência de sua derrota na Segunda Guerra. O mapa político do mundo foi redesenhado a partir de então: as cores dos velhos impérios foram substituídas pelas de inúmeras nações independentes cujos nomes procuravam, quase sempre, apagar a lembrança de seu passado colonial (SAES; SAES, 2013, p. 496). Originalmente, colonialismo e dependência se tornaram inaceitáveis mesmo para os que até então se beneficiavam com eles (HOBSBAWM, 1995). 21 Reunião ocorrida em Paris entre Konrad Hermann Joseph Adenauer, chanceler da República Federal da Alemanha, Dwight David Eisenhower, presidente dos EUA, Charles De Gaulle, presidente do Conselho de Ministros da França e Maurice Harold Macmillan, primeiro-ministro do Reino Unido. 24 OECE: o Conselho, órgão supremo, composto de representantes dos países-membros, assistido de comitês especializados e de um secretariado. No fim da década de 1950, os países desenvolvidos constataram que a continuidade das conquistas do pós-guerra22 dependia dos rumos do processo de desenvolvimento global. Intentando manter a estabilidade do crescimento de suas economias decidiram por agir em concertação sobre a ordem econômica internacional, afiançando o modelo liberal de economia de mercado. Diferentemente da OECE, vertida unicamente para os interesses internos de 18 países, a OCDE foi criada para ter vocação internacional, sendo um foro de consulta e coordenação entre os países-membros, dedicado à consolidação do modelo econômico adotado pelos países desenvolvidos no pós-guerra, em complementação aos dispositivos das demais organizações econômicas criadas em Bretton Woods: FMI, Banco Mundial e GATT. 1.2 A OCDE Os objetivos da nova organização eram mais abrangentes. Sua própria denominação – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – é indicativa do caráter eminentemente econômico de seus objetivos e da expansão do escopo geográfico de sua atuação23. De timbre fortemente liberal, a Convenção de 14 de dezembro de 1960, que aconteceu em Paris, dizia respeito, nas suas linhas gerais, à essencialidade da força econômica e da prosperidade para a consecução dos objetivos das Nações Unidas, a preservação da liberdade individual e o aumento do bem-estar geral. À vista disso, destacava o reforço da tradição de cooperação, reconhecendo os contributos da participação da OECE para a recuperação e o progresso europeus, abrindo novas perspectivas para adensar essa tradição e aplicá-la a novas tarefas e a objetivos mais abrangentes (OECD, 1960). 22 É notável a retomada do crescimento no pós-guerra, depois do período entre guerras. São altamente expressivos os desempenhos das economias francesa, alemã e japonesa com taxas de crescimento de 5%, 6% e 9% ao ano entre 1950 e 1973. Por sua vez, os EUA recuperaram o ritmo de expansão anterior à Primeira Guerra Mundial, superando o impacto negativo da Grande Depressão da década de 1930 (SAES; SAES, 2000). Verifique a Tabela 2, na parte final deste capítulo. 23 Juntaram-se aos 20 países de origem da organização: Japão (1964), Finlândia (1969), Austrália (1971), Nova Zelândia (1973), México (1994), República Tcheca (1995), Hungria (1996), Polônia (1996), Hungria (1996), Polônia (1996) e República da Coreia (1996). 25 Eram objetivos fundamentais da referida Convenção: cooperação mais ampla; relações pacíficas e harmoniosas entre os povos do mundo; crescente interdependência econômica; crescimento econômico sustentável; consulta e cooperação, eficiência de capacidades e potencialidades por parte de seus membros; bem-estar econômico e social dos seus povos; processo de desenvolvimento econômico a partir da cooperação das nações economicamente mais avançadas; expansão do comércio mundial; aperfeiçoamento das relações econômicas internacionais; e coerência com as obrigações das outras instituições internacionais (OECD, 1960). Citam-se, textualmente, os três primeiros artigos da Convenção de 1960 (OECD, 2022, tradução nossa): Artigo 1º Os objetivos da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (doravante designada por organização) são a promoção de políticas concebidas para: (a) alcançar o mais elevado crescimento econômico e emprego sustentável e um nível de vida crescente nos países-membros, mantendo a estabilidade financeira, e assim contribuir para o desenvolvimento da economia mundial; (b) contribuir para uma expansão econômica sólida tanto nos países-membros como nos países não membros no processo de desenvolvimento econômico; e (c) contribuir para a expansão do comércio mundial numa base multilateral e não discriminatória, de acordo com as obrigações internacionais. Artigo 2º Na prossecução destes objetivos, os membros concordam que o farão, tanto individualmente como em conjunto: (a) Promoverão a utilização eficiente dos seus recursos econômicos; (b) No campo científico e tecnológico, promoverão o desenvolvimento dos seus recursos, incentivarão a investigação e promoverão a formação profissional; (c) Perseguir políticas destinadas a alcançar o crescimento econômico e a estabilidade financeira interna e externa e evitar desenvolvimentos que possam pôr em perigo as suas economias ou as de outros países; (d) Prosseguir os seus esforços para reduzir ou abolir os obstáculos ao intercâmbio de bens e serviços e aos pagamentos correntes e manter e alargar a liberalização dos movimentos de capitais; e (e) Contribuir para o desenvolvimento econômico dos países-membros e não membros no processo de desenvolvimento econômico por meios adequados e, em particular, pelo fluxo de capitais para esses países, tendo em conta a importância para as suas economias de receber assistência técnica e de assegurar a expansão dos mercados de exportação. Artigo 3º Com vista a alcançar os objetivos estabelecidos no Artigo 1º e a cumprir os compromissos contidos no Artigo 2º, os membros concordam que: 26 (a) Vão manter-se mutuamente informados e fornecerão à organização as informações necessárias para o cumprimento das suas tarefas; (b) Consultar-se-ão em conjunto numa base contínua, realizarão estudos e participarão em projetos acordados; e (c) Vão cooperar estreitamente e, quando apropriado, tomar medidas coordenadas. O arranjo da nova organização preservava o empenho em manter estatísticas confiáveis sobre o quadro macroeconômico dos países-membros e um sistema sofisticado de apuração das contas nacionais. A relevância da nova organização era considerável, pois englobava, no início dos anos 1960, mais de dois terços da produção mundial de bens e quatro quintos do comércio internacional (PINTO, 2000, p. 19)24. A complexidade da organização repousava nas suas características e nos seus métodos de funcionamento: misto de fórum de pensamento, repositório de conhecimento, de clube, voltado à formulação de estratégias e à coordenação de posições entre os países-membros, ou de tribunal das políticas dos países, com o seu dispositivo de pressão pelos pares, ou de criador de regras, por intermédio de suas recomendações. A OCDE encerrava certa originalidade na sua capacidade de combinar a teoria econômica com análise factual e geração de recomendações que, em princípio, correspondam às necessidades dos países-membros25. A capacidade de persuasão do organismo advém singularmente da troca de informações e de consultas sobre um amplo espectro de atividades: economia, estatística, agricultura, comércio, energia, meio ambiente, administração pública, educação, emprego e temas sociais, ciência e tecnologia, políticas industriais, fiscais e financeiras. Dado o exposto, é possível afirmar que a origem da OCDE perpassava o interesse de reforçar a cooperação entre os países capitalistas desenvolvidos, desde os efeitos da interdependência e a imposição do cunho liberal ao desenvolvimento da economia global. 24 Os 38 países-membros da OCDE são responsáveis, atualmente, por 61% do PIB mundial (BRASIL, 2022). 25 A OCDE não dispõe de poder financeiro como o FMI e o Banco Mundial, tampouco de competência supranacional como a União Europeia, nem dispõe de dispositivo de caráter legalmente vinculatório como o regime de solução de controvérsias da OMC (PINTO, 2000). 27 1.3 O modus operandi da OCDE Desde que foi instituída, a OCDE mantém a sua estrutura organizacional e a natureza de suas atividades, a despeito da evolução em seu tratamento de temas e em suas relações com países não membros. Estruturalmente, a OCDE é composta por Conselho, Secretariado, núcleos regionais, centros de pesquisa e cerca de 30 comitês intergovernamentais especializados em múltiplos temas26. O Conselho da OCDE é o órgão de decisão fundamental da organização. É composto por embaixadores dos países-membros e da Comissão Europeia, e é presidido pelo Secretário- Geral. Reúne-se regularmente para pautar o trabalho da instituição, partilhar preocupações e tomar decisões por consenso27. Uma vez por ano, os membros do Conselho da OCDE encontram-se para a reunião do Conselho Ministerial, que congrega chefes de governo, de economia, e de comércio e ministros dos negócios estrangeiros dos países-membros para acompanhar e estabelecer prioridades de atuação, discutir o contexto econômico e comercial global e aprofundar questões como o orçamento ou o processo de adesão (OECD, 2022). Segundo Godinho (2018, p. 36), de maneira geral, o Conselho imprime direção à OCDE, haja vista que autoriza o tratamento de determinados tópicos pelo secretariado, examina seus relatórios, autoriza o ingresso de novos membros e adota os atos da organização. Assim, mantém controle administrativo, ao tomar decisões sobre o estabelecimento e a aprovação do orçamento da organização. No nível de representantes permanentes, as reuniões do Conselho dizem respeito a tópicos e decisões mais rotineiras, enquanto as reuniões em nível ministerial conferem orientação estratégica e impulso político à agenda de trabalho da organização. O Secretariado da OCDE leva a cabo o trabalho do organismo. É dirigido pelo Secretário-Geral e composto por direções e divisões que trabalham com decisores políticos em cada país, fornecendo conhecimentos e experiência para ajudar a orientar a elaboração de políticas com base teórica, técnica e prática, em estreita coordenação com os comitês. As direções prestam contas ao Secretário-Geral. Os 3.300 funcionários do Secretariado incluem 26 Os principais tópicos presentes na pauta da OCDE são: agricultura e pesca, suborno e corrupção, segurança química e biossegurança, concorrência, governança corporativa, desenvolvimento, economia, educação, emprego, meio ambiente, finanças, crescimento verde e desenvolvimento sustentável, saúde, indústria e empreendedorismo, inovação, seguro e pensões, internet, investimento, migração, governança pública, desenvolvimento regional, urbano e rural, reforma agrícola, ciência e tecnologia, questões sociais e de bem-estar, imposto e comércio (OECD, 2022). 27 À exceção de casos especiais que admitem decisão por maioria qualificada (GODINHO, 2018). 28 economistas, advogados, cientistas, analistas políticos, sociólogos, peritos digitais, estatísticos e profissionais da comunicação. Além da sua sede em Paris, a OCDE tem também centros em Berlim, México, Tóquio e Washington D.C., que fazem parte do grupo de trabalho de assuntos públicos e comunicação da OCDE (OECD, 2022). Intermediado pelo Secretariado, o processo de intercâmbio e análise de dados e estatísticas nacionais avaliza certa harmonização da base de informações atinente ao funcionamento das diferentes economias, aumentando significativamente o nível de conhecimento mútuo entre os membros. Contribui, em última instância, na geração de convergência de políticas nacionais nas áreas de trabalho da OCDE (PINTO, 2000). Comitês, peritos e grupos de trabalho reúnem países e parceiros para compartilhar experiências políticas, inovar e rever a implementação e o impacto das políticas (OCDE, 2022)28. De outro lado, os comitês exercem função fiscalizadora, de análise e exame das políticas setoriais dos países-membros. Ao fim do exame, após um processo de monitoramento em diferentes campos de trabalho da OCDE, podem ser feitas recomendações a serem implementadas pelos países alvos do exercício. Em outros casos, decorre processo normativo, cujo resultado é recomendado ao conjunto dos países-membros (PINTO, 2000). Godinho (2018) mostra que o relacionamento entre o Secretariado e os países-membros da OCDE tem caráter complementar e corresponde à base estrutural da organização29. Em simultâneo, resulta em tensões ocasionais entre os caracteres intergovernamental e internacional da instituição. O funcionamento da OCDE divide-se em etapas diferentes, a saber, (i) levantamento de estatísticas e elaboração de estudos e análises pelo secretariado; (ii) discussão sobre políticas públicas e intercâmbio de experiências nacionais30; (iii) negociação internacional de instrumentos; e (iv) avaliação de políticas públicas e compromissos nacionais, nos marcos da revisão por pares31. 28 Com respeito à estrutura organizacional da OCDE, veja a Figura 1 deste capítulo. 29 A Figura 2 deste capítulo exibe a disposição institucional da OCDE. 30 As publicações da OCDE, é próprio afirmar, divulgam amplamente os resultados de coleta e investigação estatística dos estudiosos e pesquisadores da organização sobre questões econômicas, sociais e ambientais, bem como as convenções, diretrizes e normas acordadas pelos seus membros (OECD, 2011, p. 316). 31 A revisão por pares pode ser descrita como avaliação e exame metódicos do desempenho de um Estado por outros, com o objetivo final de ajudar o Estado analisado a melhorar seu processo de estabelecimento de políticas, adotando aquilo que é considerado como as melhores práticas, e a cumprir com os padrões e princípios difundidos pela organização. 29 Para Godinho (2018), os países-membros conferem direção estratégica ao organismo, pois definem sua agenda e seus resultados substantivos em quatro dimensões: (i) as delegações permanentes perante a OCDE promovem alinhamento entre o programa de trabalho da organização e as prioridades nacionais; (ii) os estados-membros financiam as atividades da organização, por meio de suas contribuições regulares e voluntárias ao orçamento; (iii) representantes governamentais dos membros presidem a maior parte dos comitês e grupos de trabalho da OCDE, nos quais as principais atividades são conduzidas; e (iv) representantes dos países-membros, reunidos no Conselho da organização, são responsáveis pela designação do secretário-geral (GODINHO, 2018, p. 35). O orçamento e o programa de trabalho da OCDE são determinados com frequência bienal pelos países-membros. O planejamento, o orçamento e a gestão da instituição são organizados a partir de um sistema alicerçado em resultados. A auditoria externa independente das contas e gestão financeira da organização é realizada por uma Instituição Suprema de Auditoria de um país membro da OCDE, nomeada pelo Conselho (OECD, 2022). As contribuições nacionais ao orçamento anual são função de uma fórmula relacionada com o PIB de cada país membro. O orçamento total consolidado da OCDE para 2019 correspondeu a 386 milhões de euros32. Os EUA responderam por 20,5% do orçamento da instituição, constituindo-se seu maior financiador (OECD, 2022). Como visto, a atuação dos membros apresenta assimetrias muito importantes no que toca ao orçamento institucional, fato que se reflete na presidência de instâncias e na designação de postos centrais no secretariado. Nessa esteira, os países do G733 são responsáveis por cerca de 55% das contribuições ao orçamento regular da OCDE. Os três principais contribuintes da organização, EUA, Japão e Alemanha, responderam por 37,1% do orçamento regular em 2019 (OECD, 2022). Os países do G7 têm assumido mais de 50% das presidências e grupos de trabalho, em especial no que se 32 Cota percentual dos países-membros nas contribuições orçamentárias regulares destinadas à OCDE, em 2019 (100%): Austrália 3,1%, Áustria 1,5%, Bélgica 1,7%, Canadá 3,5%, Chile 1,2%, República Checa 1,1%, Dinamarca 1,4%, Estônia 0,9%, Finlândia 1,3%, França 5,2%, Alemanha 7,2%, Grécia 1,1%, Hungria 1,0%, Islândia 1,4%, Itália 4,0%, Japão 9,4%, Coreia 3,3%, Letônia 0,9%, Lituânia 0,9%, Luxemburgo 0,8%, México 2,7%, Países Baixos 2,2%, Nova Zelândia 1,1%, Noruega 1,6%, Polônia 1,6%, Portugal 1,2%, Eslováquia 1,0%, Eslovênia 0,9%, Espanha 3,0%, Suécia 1,6%, Suíça 2,2%, Turquia 2,2%, Reino Unido 5,4% e EUA 20,5% (OECD, 2022). 33 Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos. 30 refere às instâncias primordiais da organização34. Constata-se, de igual modo, que três das quatro vagas de secretário-geral adjunto da instituição, responsáveis pela supervisão das diretorias do secretariado, têm sido ocupadas por representantes indicados por EUA, Japão e, alternadamente, pelos principais contribuintes europeus, isto é, Alemanha, França e Reino Unido (GODINHO, 2018). Depreende-se das assimetrias assinaladas e dos constrangimentos conseguintes nas relações políticas internas à OCDE uma certa medida de ordenação a qual informa a extremada hierarquia do próprio sistema internacional. No caso de países subdesenvolvidos, arranjos assim caracterizados podem produzir mitigação da autonomia e aumento da dependência em sua prática política35. Desde a sua fundação, a OCDE tem desenvolvido diretrizes e padrões para o aperfeiçoamento de políticas públicas. Atualmente, conta com 247 instrumentos legais que pertencem a cinco categorias distintas: decisões, recomendações, declarações, entendimentos e acordos internacionais36. Esses instrumentos são elaborados no âmbito dos comitês técnicos e aprovados pelo Conselho de Ministros. A seguir, são apresentadas as referidas categorias de instrumentos e suas respectivas características: (i) Decisões: atos juridicamente vinculantes, ou seja, implicam obrigatoriedade de implementação por parte de todos os países-membros da OCDE. (ii) Recomendações: atos que, apesar de não serem juridicamente vinculantes, representam a vontade política dos países-membros e, como tal, impõem forte incentivo para a sua implementação37. 34 A exemplo do Comitê de Política Econômica, tradicionalmente presidido por representantes de EUA, Japão, Alemanha ou Reino Unido (GODINHO, 2018, p. 36). 35 Em um sistema internacional caracterizado pela hierarquia (PUIG, 1980), conforme esse significado, presente na visão latino-americana sobre o tema, autonomia é um direito que os Estados podem ou não possuir, que se insere em um continuum entre dois tipos ideais extremos: dependência total (ou alinhamento) ou completa autonomia. Ou seja, é capacidade de um país praticar uma política externa livre de constrangimentos exteriores provocados por países poderosos, como os Estados Unidos, a qual pode ser tida como uma extremidade de um espectro que vai da dependência à autonomia (VIGEVANI; CEPALUNI, 2016). 36 Dentre eles há, no âmbito da OCDE, 170 recomendações, 28 declarações, 24 decisões, 10 acordos internacionais e 15 instrumentos legais de outras naturezas (BRASIL, 2021). 37 De acordo com Pinto (2000, p. 30), apesar de a implementação das recomendações, na ordem interna dos países- membros, ser facultativa, a experiência do Secretariado revela que a quase totalidade das recomendações da organização é posta em prática pela grande maioria dos seus membros, logo após a sua adoção pelo Conselho, tendência que reitera o caráter consensual da aceitação da desejabilidade da regulamentação. 31 (iii) Declarações: atos que estabelecem compromissos políticos, mas não possuem caráter vinculante. (iv) Entendimentos: atos que não são oriundos da OCDE, porém foram negociados e adotados pela organização. Não são atos vinculantes. (v) Acordos Internacionais: são tratados internacionais construídos no âmbito da organização. São juridicamente vinculantes para os países-membros (BRASIL, 2021). Ainda que haja instrumentos formais e impositivos no âmbito da organização, de acordo com Leslie Pal (2009), a OCDE configura-se substancialmente como uma rede de trocas de ideias e experiências complementadas pela pesquisa com influência exercida principalmente por meio de mecanismos de política branda38. Em linhas gerais, constata-se, pois, que os atos normativos da OCDE, por suas características elementares, privilegiam um processo progressivo de aplicação e de adoção, por parte dos países-membros. O comprometimento é, grosso modo, acompanhado por um comitê a respeito de sua aplicação e dos resultados obtidos, objetivando o possível aprimoramento do seu teor. Essa construção gradual de legislação em setores, na maioria das vezes pioneira no Direito Internacional, é típica da OCDE (PINTO, 2000). A OCDE define-se como uma instância em que os governos podem comparar experiências políticas, buscar respostas para problemas comuns, identificar práticas e coordenar as políticas e normas nacionais e internacionais. É um fórum no qual a pressão dos partícipes pode agir como um poderoso incentivo para melhorar a política39. Tenciona disseminar e uniformizar normas de políticas econômicas e de relacionamento comercial em diversas áreas temáticas, incluindo políticas de consumo, assuntos tributários, previdência, governança e investimento estrangeiro. Produz instrumentos, decisões e recomendações por meio de acordos multilaterais (OECD, 2011, p. 11). 38 Com muita concisão, enuncia-se um possível sentido para instrumentos de política branda como “regras de conduta as quais, em princípio, não têm força jurídica vinculativa, mas que, no entanto, podem ter efeitos práticos” (SNYDER, 1994, p. 198). 39 Segundo os documentos da OCDE, a instituição “é um fórum único onde os governos trabalham em conjunto para enfrentar os desafios econômicos, sociais e ambientais da globalização. A OCDE está também na vanguarda dos esforços para compreender e ajudar os governos a responder a novos desenvolvimentos e preocupações, tais como a governança empresarial, a economia da informação e os desafios de uma população em envelhecimento” (OECD, 2011, p. 316). 32 Na expressão de Pal (2012), a OCDE compreende um grande fórum de articulação dos países desenvolvidos, líder do processo de padronização de conceitos e métodos, assim como da construção de indicadores comparáveis internacionalmente em políticas públicas. Resta claro que a instituição exerce limitado poder de cumprimento. Em documento da própria instituição (OECD, 1994, p. 35), afirma-se, entretanto, que o caráter facultativo das normas da OCDE pretende preservar seu perfil exploratório. A experiência tem demonstrado que essa vertente facultativa da maioria das normas da organização, antes de enfraquecer sua capacidade de ação, tem fortalecido seu impacto político, por possibilitar uma progressiva adoção dos seus parâmetros pelos países-membros e por facilitar sua expansão internacional, em decorrência da força de irradiação dos procedimentos adotados pelos principais membros da organização. Isto posto, evidencia-se um perfil de organização vinculado às demandas e aos objetivos dos países desenvolvidos, no qual o espaço para o reconhecimento das especificidades e necessidades dos países subdesenvolvidos é absolutamente limitado. A década de 1980 foi um momento histórico emblemático, sensível dessa lógica de atuação da OCDE na governança40 econômica internacional e que explicita tal descrição. Nos anos 1980, Rubens Ricupero (1998) concebeu que a OCDE, liderada pelos EUA, foi um espaço relevante na articulação da agenda e das demandas dos países desenvolvidos em temas de comércio internacional41. Mais especificamente, na Rodada Uruguai do GATT - da qual se originou a OMC - o consenso alcançado entre os países da OCDE foi decisivo para a inclusão, na agenda da organização, de novos temas, quais sejam, comércio de serviços, investimentos, propriedade 40 O termo governança tem sido usado frequentemente tanto no discurso acadêmico quanto em discussões comuns sobre como o setor público, e outras instituições, se administram e como administram suas relações com a sociedade mais ampla. A ênfase na governança reflete, de muitas maneiras, as preocupações públicas sobre a capacidade de seus sistemas políticos agirem efetiva e decisivamente para resolver problemas políticos. A raiz da palavra governança vem de um vocábulo grego que significa direção. Assim, logicamente, o significado fundamental da governança é dirigir a economia e a sociedade visando a objetivos coletivos. O processo de governança envolve descobrir meios de identificar metas e depois identificar os meios para alcançar essas metas (PETERS, 2013, p. 29). 41 As relações no GATT eram ditadas pelos interesses comerciais e pelo poder de barganha das partes (CRUZ, 2017). “A diferença é que as obrigações contratuais são negociadas no âmbito do GATT, enquanto somente os documentos declaratórios são aprovados pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) e outras negociações pelas Nações Unidas. Não haveria espaço no GATT para esse tipo de negociações, que costumava ocorrer na Unctad [...] quando as obrigações contratuais são negociadas, interesses concretos impõem sua própria lógica e cruzam fronteiras grupais, minando a solidariedade interna e, às vezes, gerando as alianças mais inesperadas.” (RICUPERO, 1998, p. 15). 33 intelectual e patentes, contrários aos interesses dos países subdesenvolvidos. A resistência à inclusão dessa temática foi liderada pelos países subdesenvolvidos, principalmente, Argentina, Brasil, Cuba, Egito, Índia, Nicarágua, Nigéria, Peru, Tanzânia e Iugoslávia, que formaram um bloco de oposição à inclusão deles sem que questões pendentes, tais como comércio agrícola e têxteis, fossem renegociadas e resolvidas. O fato é que, sob a liderança estadunidense, a articulação dos países da OCDE foi elemento decisivo na consequente divisão, desorganização e derrota dos países subdesenvolvidos nas negociações (COSTA; SILVA, 2019). Por outro aspecto, o século XX foi marcado pela alternância de momentos nos quais havia maior presença do Estado como promotor de crescimento e desenvolvimento econômicos, levando-se em conta a centralização de serviços básicos, como se verificou nos períodos que se seguiram às Grandes Guerras até os anos 1980, em contraposição a momentos de menor presença do Estado, como se constatou a partir dos anos 1980, com a intensa adoção do neoliberalismo42. Em vista disso, na quadra histórica dos anos 1980, o sentido geral do movimento da economia política internacional encadeou-se por uma tentativa de diminuir expressivamente o tamanho dos governos e a sua participação na economia43. A teoria neoliberal, mormente em sua versão monetarista, passou a influenciar, na prática, variados campos políticos. Por exemplo, ao longo do governo Jimmy Carter (1977- 1981), a desregulação da economia surgiu como um dos reflexos ao estado crônico de estagflação44 que prevalecera nos Estados Unidos por toda a década de 1970. A dramática 42 Minsky (1986), designa uma mudança radical. Em suas palavras, o contexto do pós-Crise de 1929 e da Segunda Guerra Mundial correspondeu à transição de uma postura de Estado pequeno para Estado grande. Assim, no terceiro quartil do século XX, para elevar sua capacidade de respostas anticíclicas estabilizadoras em enquadramentos de crise, diferentemente do que se deu em 1929, a queda do investimento privado poderia ser contrabalanceada pelo setor público, por meio de mecanismos fiscais, como o déficit público, por exemplo. Harvey (2008) assinala que a doutrina neoliberal se contrapunha profundamente às teorias do Estado intervencionista, a exemplo das de Keynes, as quais alcançaram prevalência nos anos 1930 em resposta à Grande Depressão. 43 De acordo com a doutrina neoliberal, as decisões do Estado em questões de investimentos e acumulação de capital estariam fadadas a ser erradas porquanto as informações à disposição do Estado não poderiam rivalizar com as contidas nos sinais do mercado. Dessa maneira, os neoliberais opuseram-se ferrenhamente a teorias do planejamento estatal centralizado, alegando que as decisões do Estado estariam fadadas à tendenciosidade política, que dependia da força dos grupos de interesses envolvidos, como os sindicatos, os ambientalistas ou os grupos de pressão corporativos (HARVEY, 2008). 44 ESTAGFLAÇÃO. Situação na economia de um país na qual a estagnação ou o declínio do nível de produção e emprego se combinam com uma inflação acelerada. O fenômeno contraria a teoria clássica segundo a qual a inflação tenderia a declinar com o aumento do desemprego. Fenômeno típico do pós-guerra, a estagflação tem se acentuado em quase todas as economias capitalistas desenvolvidas depois da chamada crise do petróleo (1973- 1979). As medidas essencialmente monetaristas adotadas pelos governos estadunidense e britânico para reverter 34 consolidação do neoliberalismo como nova ortodoxia econômica de regulação da política pública no nível do Estado no mundo capitalista avançado ocorreu propriamente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha a partir de 197945 (HARVEY, 2008). Em maio daquele ano, Margareth Thatcher (1979-1990) foi eleita na Grã-Bretanha com a firme intenção de reformar a economia. Duas questões essenciais pautavam seu programa governamental: i) combater o arrasador processo de estagnação inflacionária, iniciado nos anos 1960 e ii) combater o sindicalismo inglês. Ambas as pautas experimentaram a mesma estratégia de combate, o receituário ortodoxo-recessivo liberal (SILVA, 2013). A partir do abandono do keynesianismo e da ideia de que as soluções monetaristas do lado da oferta eram fundamentais para a superação da estagflação, Thatcher reconhecia o significado de uma revolução em políticas fiscais e sociais, corroborando uma determinação de acabar com as instituições e práticas políticas do Estado social-democrata que se sedimentaram naquele país desde 1945. Desta feita, a governante enfrentou o poder sindical, atacou todas as formas de solidariedade social, desmantelou ou reverteu os compromissos do Estado de bem-estar social, privatizou empresas públicas, reduziu impostos, promoveu as iniciativas dos empreendedores e gerou um clima de negócios favorável para induzir um forte fluxo de investimento externo, particularmente do Japão46 (HARVEY, 2008). Subscreveu-se, desse modo, parte do corolário neoliberal, fundamentalmente do “Consenso de Washington”47, isto é, sugestões de políticas econômicas, imanentes das essa tendência têm sido acompanhadas, no entanto, por considerável elevação dos preços, dos índices de desemprego e da recessão econômica (SANDRONI, 1999, p. 221). 45 Em outubro de 1979, Paul Volcker, presidente do Federal Reserve Bank no governo Carter, promoveu uma mudança draconiana na política monetária dos Estados Unidos. O compromisso de longa data do Estado democrático liberal com os princípios do New Deal, que significava, em termos gerais, políticas fiscais e monetárias keynesianas, e tinha o pleno emprego como objetivo central, foi abandonado em favor de uma política destinada a conter a inflação sem medir as consequências para o emprego. A taxa real de juros, que com frequência fora negativa durante o surto inflacionário de dois dígitos dos anos de 1970, tornou-se positiva por ordem do Federal Reserve. A taxa nominal de juros aumentou repentinamente, depois de algumas elevações e quedas, ficando, em julho de 1981, perto dos 20%. Iniciou-se assim “uma duradoura recessão profunda que esvaziaria as fábricas e destruiria os sindicatos nos Estados Unidos, além de levar países devedores à beira da falência, dando início à longa era de ajustes fiscais”. Essa, argumentou Volcker, era a única saída para a tenebrosa crise de estagflação que caracterizara os Estados Unidos e boa parcela da economia global por todos os anos 1970 (HARVEY, 2008). 46 Tornou-se famosa sua declaração: “a sociedade não existe, apenas homens e mulheres individuais” – e, acrescentou depois, “suas famílias” (HARVEY, 2008). 47 É válido salientar que as reuniões que culminaram no Consenso de Washington foram realizadas a partir de 1989, em função da crise da dívida externa dos países subdesenvolvidos, especialmente de Brasil, Argentina e México. 35 instituições financeiras do mundo desenvolvido, que deveriam ser aplicadas nos países da América Latina, de tal modo a produzir redução dos gastos públicos, disciplina fiscal, juros e câmbio de mercado, abertura comercial, eliminação de óbices ao Investimento Direto Estrangeiro (IDE), privatização de estatais, além de desregulamentação de leis econômicas e trabalhistas, segundo preconizava Williamson (1990). Nesse quadro, a crise econômica enfrentada nos anos 1980 foi vista como fruto da ineficiência estatal, desconsiderando-se todos os aspectos econômicos e estruturais, domésticos e internacionais que a favoreceram. O Estado, demonizado e visto como intrinsecamente ineficiente, foi alçado ao posto de principal responsável pela crise e pelas mazelas econômicas e sociais enfrentadas naquele momento. Sob o discurso de busca por eficiência na gestão governamental, estabelecia-se uma prescrição geral que pouco atentava para as especificidades dos países, vislumbrava a homogeneização de políticas e incluía, invariavelmente, a ampla liberalização econômica, as privatizações e a redução do tamanho do Estado como condições sine qua non para superação da crise (COSTA; SILVA, 2019)48. Os seguintes excertos lançam luz sobre as decorrências da adoção do neoliberalismo para a economia política De produtores de bens e serviços materiais e imateriais, de agentes dinamizadores dos grandes projetos industriais e de obras públicas, de grandes arquitetos das estruturas produtivas nacionais, de reguladores ativos e participativos dos diversos mercados, dos seus tempos e dos seus ritmos de [...] guardi[ães] do[s] tempos, o[s] que fornece[m] a lentidão necessária à gestão do futuro, os Estados são forçados a reduzirem-se à caricatura de si mesmos e passam a exercer quase apenas funções reguladoras, e no mínimo possível. (DELMAS, 1993, p. 119, tradução nossa). Uma fé cega no mercado como árbitro em quase todos os assuntos humanos, uma independência irracional da lógica dos participantes do mercado, desdém por parte do Estado, expresso no mito do big government e aplicação uniforme das prescrições econômicas do Consenso de Washington. (THER apud ASH, 2017, p. 51, tradução nossa). As instituições de mercado, que garantiam condições laborais, de emprego e salariais onde existiam, vão sendo desconstruídas em favor da flexibilização e da crescente liberdade do empregador. (MOTA; LOPES; ANTUNES, 2010, p. 83). 48 Com respeito a questões como o poder do monopólio e falhas de mercado, há, na posição neoliberal, contradições suficientes para tornar as práticas neoliberais em desenvolvimento irreconhecíveis diante da aparente pureza da doutrina neoliberal. Por conseguinte, merece cuidadoso exame a tensão entre a teoria do neoliberalismo e a pragmática concreta da liberalização (HARVEY, 2008). Na prática, os resultados da implementação da cartilha do Consenso não foram satisfatórios, produzindo baixas taxas de crescimento e colapso da produção (RODRIK, 2006). 36 1.4 A abertura seletiva da OCDE Ao analisar as nuances da governança global, Andrew Hurrel (1999) detectou um amplo movimento coercitivo no período pós-Guerra Fria. Logo, afirmou surgirem novas e múltiplas formas de condicionalidades – ou seja, a aplicação institucionalizada de condições aos fluxos de recursos econômicos com o intuito de induzir mudanças nas políticas domésticas. O autor não se refere, neste particular, à permuta da condicionalidade como parte integrante de uma barganha econômica específica, ou de um contrato, como na condicionalidade típica do FMI, nos anos 1980. Trata-se, verdadeiramente, da propensão a se utilizar a condicionalidade para promover objetivos inteiramente desvinculados de um fluxo específico de recursos, senão em termos de direitos humanos, democracia, boa governança; de níveis de gastos militares; de políticas relativas à proliferação do uso de energia nuclear; e de políticas ambientais: formas de condicionalidade política evidente que passam a ser institucionalizadas nas políticas praticadas pela comissão de desenvolvimento da OCDE. De tais formas depende a preservação de sua identidade como instituição, traduzida nos compromissos de manutenção do acervo compartilhado, de participação nos debates e de câmbio de informações quando solicitado. Diante disso, a quantidade de membros da OCDE tende a ser limitada. Em última análise, busca-se, por meio dessa contenção, compartilhar uma solidariedade institucional íntegra, eximida de demandas conflitantes ou mesmo contraditórias por parte dos membros incorporados. Denis Pinto (2000) esquadrinha, então, que as perspectivas da OCDE são regidas por pressupostos e regras que permeiam um “clube de cavalheiros ocidental”, cujas tintas carregam um primordial sentido de confraria e de interdependência entre seus associados e conclui que a organização não tem vocação universal, embora exerça influência global. O fim da Guerra Fria e a interdependência crescente da economia mundial resultaram em uma nova conformação da política internacional a partir do início da década de 199049, de sorte a causar reflexos na OCDE, centro irradiador de pensamento econômico para países industrializados, intimamente ligado ao processo de consolidação dos países ocidentais, notadamente, uma percepção de perda de funcionalidade da instituição e uma crise em sua 49 Boaventura de Souza Santos (2005, p. 26), no que lhe toca, baliza o processo de globalização a partir dos seguintes eventos: o aumento dramático das desigualdades entre países ricos e países pobres e, no interior de cada país, entre ricos e pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambiental, os conflitos étnicos, a migração internacional massiva, a emergência de novos Estados e a falência ou implosão de outros, a proliferação de guerras civis, o crime globalmente organizado, a democracia formal como condição política para a assistência internacional, etc. 37 identidade vocacional. Por conseguinte, a OCDE ampliou o número de membros, incorporando não apenas alguns países subdesenvolvidos, como também os países em transição do Leste Europeu50. A fronteira de expansão da organização, em termos do número de seus membros, é função do padrão do desenvolvimento socioeconômico dos países postulantes e do desencadear do movimento de reforma interna que a animava, tendo sido conduzida por dois processos paralelos: o Diálogo sobre Políticas com as economias dinâmicas e o Programa “Parceiros para a Transição”, pactuado com os países do Leste Europeu. O mecanismo de Diálogo sobre Políticas, cujos participantes eram representantes dos governos e dos setores privado e acadêmico de cada país, amparava-se na realização de seminários sobre temas múltiplos: investimentos, políticas comerciais e fiscais e meio ambiente, admitindo [...] por finalidade promover melhor compreensão das relações econômicas entre a área OCDE e o conjunto das economias dinâmicas, uma maior convergência sobre políticas econômicas de interesse comum e, eventualmente, buscar influenciar a formulação de políticas nos países participantes. (OECD, 1993, p. 124-127). O “Programa Parceiros para a Transição” consistiu de uma série de instrumentos de assistência técnica aos países da Europa Oriental nos marcos do fim do socialismo real. A estratégia norteou a assistência na concepção e na condução de reformas orientadas para a implementação de mecanismos de ajuda de mercado, assim como a assistência na criação de um ordenamento jurídico e institucional e o desenvolvimento de um sistema de estatística. Nessa conjuntura, a organização passou a prezar por uma aproximação maior com países subdesenvolvidos, sob a condição de que contassem com significativo relacionamento com os principais países-membros e empenho em se relacionar com a OCDE. Proveu-se, então, a possibilidade da condição de observadores nos comitês aos países selecionados51. 50 Fazem parte da OCDE os membros fundadores: Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Grécia, Islândia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Noruega, Países Baixos, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça e Turquia (1948); os posteriormente admitidos, Alemanha (1955) e Espanha (1959), os que foram incorporados em sua reforma em 1961, Canadá e Estados Unidos, além dos incorporados depois, Japão (1964), Finlândia (1969), Austrália (1971) e Nova Zelândia (1973), México (1994), República Tcheca (1995), Hungria (1996), Polônia (1996), Coreia do Sul (1996), Eslováquia (2000), Chile (2010), Eslovênia (2010), Israel (2010), Colômbia (2020) e Costa Rica (2021). 51 Presentes às reuniões dos comitês, os observadores, na prática, dispõem de bem poucos direitos, o que reduz, em grande medida, sua participação no processo decisório. Não há, assim, da parte do país observador, qualquer obrigação em relação às conclusões ou proposições dos comitês. No início da década de 1990, o status de observador foi concedido a países não-membros: México, Coreia, Hungria, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Rússia e ulteriormente Brasil, Argentina e Chile. 38 Como signo máximo da racionalidade assinalada, a instituição expandiu-se, após intensos debates, abarcando, na sua composição, os principais países em transição do Leste Europeu – República Tcheca (1995), Hungria (1996), Polônia (1996), - e a Coreia (1996), que manifestou tempos de confluência entre movimentos interno e externo em torno de distintos aspectos de liberalização financeira52. Para além dos critérios mais modelares, inspirados por um ideário comum cooperativo e consensual, como democracia pluralista ocidental, respeito aos direitos humanos e liberalização da economia e da política, a assistência ao desenvolvimento passou a ser elemento basilar no teste de admissão53. Desse modo, Pinto (2000) extrai três parâmetros gerais, não formalizados, tampouco explicitados dos processos de admissão descritos à luz da linha de discurso da organização: enfoque pragmático, ausência de critérios rígidos e aplicados caso-a- caso.54 De um viés mais crítico, todavia, aclara que a componente decisiva foi a busca de uma acomodação dos interesses dos membros mais influentes, concertada com a existência de “interesses recíprocos” e a percepção de que o país analisado pudesse ser considerado um “ator importante”. Por esse raciocínio, um conceito é sublinhado, isto é, a noção de “valor agregado” do país candidato, o que exprime o aporte adicional à organização. 52 A entrada nesse clube seleto testemunhava os avanços produtivos no quadro institucional coreano àquele vigente nas economias capitalistas avançadas. A esta altura, as taxas de juro estavam quase totalmente desreguladas; os bancos tinham adquirido liberdade para aumentar o capital, estabelecer agências e explorar outras atividades financeiras; as “corretoras de valores” podiam fazer operações de câmbio, que tenham sido significativamente liberalizadas; a bolsa de valores estava aberta aos investidores estrangeiros, que estavam autorizados também a negociar com títulos públicos e privados, ao passo que os residentes podiam investir em ações no exterior e tomar empréstimos comerciais no mercado externo sem autorização prévia (CRUZ, 2007, p. 272). 53 A esse respeito, a OCDE buscou estreitar o diálogo com o Brasil e outros parceiros-chaves sobre temas relacionados à assistência ao desenvolvimento, com (i) realização de missões ao país; (ii) convites sistemáticos para as reuniões técnicas e de alto nível do Comitê a partir de 2010; (iii) convites para o Brasil participar como avaliador em revisões por pares de membros do Comitê; (iv) propostas de cooperação em matéria de troca de estatísticas; e, mais recentemente, (v) proposta para a realização de projeto-piloto, no Brasil, baseado nos parâmetros do apoio oficial total ao desenvolvimento sustentável (GODINHO, 2018, p. 231). 54 No que tange aos países latino-americanos subdesenvolvidos, entre as exigências feitas pela OCDE para a entrada do México, estava a saída do país do G77, do qual era um membro fundador, tendo presidido o grupo em duas ocasiões: 1973-1974 e 1983-1984. Das reformas que foram exigidas do Chile, quatro merecem destaque: i) uma sobre a responsabilidade legal das empresas quanto a questões de suborno de funcionários públicos; ii) uma que previa o intercâmbio de informações bancárias entre os países-membros da OCDE; iii) uma sobre a governança da Codelco (mineradora); e iv) a última sobre o sistema de pensões. Na Colômbia, entre as principais condicionalidades exigidas pelo crivo da OCDE, vale destacar as reformas trabalhistas, de abertura comercial, de governança das estatais, do sistema de justiça e do sistema previdenciário. Além disso, foram incluídas questões que lidam com sustentabilidade, como políticas de tratamento de resíduos químicos industriais e esgoto. O crivo desenvolvido para a Costa Rica é bastante semelhante ao que foi dado para a Colômbia – o pacote de reformas exigido pela OCDE não foi simples. A organização se debruçou sobre um amplo conjunto de áreas e identificou que a “liderança e a coordenação do governo costa-riquenho são frágeis em comparação com seus padrões” (NEVES, 2021). 39 1.5 O Brasil e a OCDE A aproximação inicial entre o Brasil e a OCDE efetuou-se no princípio da década de 1990, quando o país integrou o Comitê do Aço55 como associado. Nesse período, o desenvolvimento de relações com a organização passou a constituir prioridade da ação externa governamental, coincidindo com a posse do novo presidente brasileiro - Fernando Collor de Mello - comprometido com o que Francisco Rezek, então ministro das Relações Exteriores, chamou de “aprimoramento das relações com o Primeiro Mundo” (PINTO, 2000)56. Nesse contexto, foi enviada uma missão exploratória à OCDE, tendo em vista levantar informações, avaliar as verdadeiras dimensões do processo de admissão de novos membros e examinar o funcionamento dos principais órgãos a comporem a organização para averiguar aqueles a que o Brasil poderia vir a ter interesse em se filiar. À ocasião, procurou-se mais propriamente aprofundar informações sobre o funcionamento da OCDE e das posições dos países-membros com respeito a uma colaboração maior com o Brasil do que solicitar ingresso imediato na instituição. A missão ratificou o interesse de vários dos países-membros em apoiar um diálogo mais intenso com o Brasil, guiando-se por um processo gradual de aproximação, por meio de participação em número limitado de áreas selecionadas. O adensamento da inserção do Brasil na OCDE, ao longo dos anos, definiu-se, de modo geral, como um “processo complexo de aproximação, conhecimento mútuo e superação de resistências”. De acordo com Pinto (2000), tal processo passaria, invariavelmente, pela capacidade brasileira em delinear suas áreas de atuação na organização57, pela elaboração de mensagem 55 De acordo com Pinto (2000), em 1978, quando da constituição do Comitê do Aço na organização, o Brasil, em decorrência de sua expressiva participação no mercado siderúrgico mundial, foi convidado a participar de seus trabalhos. Na ocasião, não pareceu ao governo brasileiro oportuna a aceitação do convite, porque a estrutura do setor era majoritariamente estatal. Em 1986, o Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) solicitou à Embaixada em Paris informações sobre a política brasileira na área da cooperação com outros países em desenvolvimento: programas de cooperação, bolsas de estudos concedidas, financiamento de projetos. Em 1987, por sua vez, a OCDE envia missão técnica ao Brasil que manteve contato com diferentes instituições nacionais: Ministério das Relações Exteriores (MRE), Ministério de Minas e Energia (MME), Ministério de Inovação, Ciência e Tecnologia (MICT), Fazenda, Banco Central (Bacen), Secretaria de Planejamento e Assuntos Econômicos (Seplan). 56 Segundo Cassiolato e Erber (1997), os anos 1990 apresentaram uma considerável descontinuidade em relação ao passado. Sob o ângulo político, com a realização de eleições diretas para a Presidência, pelas mudanças no pacto federativo introduzidas pela Constituição de 1988 e pela consolidação de um partido de massas, de esquerda – o Partido dos Trabalhadores (PT); sob o institucional, pela introdução de amplas reformas no aparato estatal, como a privatização das empresas públicas e no plano econômico, pela hegemonia da perspectiva liberal, referendada por duas eleições presidenciais. 57 Em um primeiro momento, o Brasil expressou interesse em estabelecer laços com o Centro de Desenvolvimento e a Agência Internacional de Energia, observando-se que o governo brasileiro excluía da cooperação aquelas áreas nas quais teria de assumir obrigações legais, que não estava em condições de cumprir. Destarte, atribuiu-se maior 40 oficializando essa proposta e por um programa de trabalho conjunto no plano regional, selecionando-se alguns países, a exemplo de Argentina, México e Venezuela, e pela implementação de uma série de medidas administrativas de suporte. No que tange ao primeiro ponto, foi encaminhado ao Secretariado, em janeiro de 1992, um documento em que constavam as seguintes áreas de interesse: (i) Departamento Econômico, em particular no que concernia aos assuntos relativos à contabilidade nacional e às previsões econômicas; (ii) Comitê de Revisão Econômica e de Desenvolvimento (EDRC); (iii) Comitê de Administração Pública; (iv) Comitê de Indústria; (v) Comitê do Aço e (vi) Comitê do Meio Ambiente. O estabelecimento do programa de trabalho no plano regional foi implementado parcialmente. No fim de 1992, países selecionados da América Latina, a saber, Brasil, Argentina e México, foram convidados para participar do programa de Diálogo sobre Políticas da organização com as economias subdesenvolvidas, antes limitado aos países do Extremo Oriente. No que se refere às providências administrativas que dariam apoio à atuação brasileira na OCDE, houve duas sugestões: criação de núcleo na Embaixada em Paris e na Secretaria de Estado e determinação de pontos focais na administração brasileira para estudo dos documentos e a participação nos trabalhos da instituição. Avalia-se que essas propostas não foram implementadas a contento, originando deficiências que têm em muito restringido, nos últimos anos, a atuação do Brasil na organização e o efetivo aproveitamento do esforço envidado e dos recursos alocados. Progressivamente, contudo, o Brasil passou a com