UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DOCÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INCLUSIVAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: VÍDEO-HISTÓRIAS NA PERSPECTIVA DO DESENHO UNIVERSAL PARA APRENDIZAGEM NAIARA MARIA DE FARIAS BAURU 2024 NAIARA MARIA DE FARIAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INCLUSIVAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: VÍDEO-HISTÓRIAS NA PERSPECTIVA DO DESENHO UNIVERSAL PARA APRENDIZAGEM Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre à Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Faculdade de Ciências, Campus de Bauru – Programa de Pós- graduação em Docência para a Educação Básica, sob orientação da Profª Titular Drª Vera Lucia Messias Fialho Capellini. BAURU 2024 A todos que superam a zona de conforto. A todos que deixam de ser egoístas. A todos que se colocam à mostra. A todos que se importam que irão sofrer, retaliações, por defender assuntos polêmicos. Mas, ainda assim, o fazem. A todos que compreendem que a própria vida só é, verdadeiramente boa, quando todos, também, podem viver bem. AGRADECIMENTOS É difícil agradecer sem esquecer de alguém. Infelizmente, somos criados em um mundo que valida mais os defeitos e destacam pessoas que nos fizeram mal; a nossa traiçoeira lembrança fixa essas e acaba limpando seu HD das coisas boas, para dar espaço a essa malvada tendência do mundo. Agradeço a todos que convivem comigo e passaram por mim, tal como o pensamento de Martin Luther King, ao afirmar que todos, de alguma forma, permitiram e contribuíram, a curto ou a longo prazo, na passagem pelas nossas vidas para que não fôssemos mais quem éramos: nós não somos o que gostaríamos de ser. Nós não somos o que, ainda, iremos ser. Mas, graças a Deus, não somos mais quem nós éramos. E assim, com minha memória desculpada, continuo a agradecer à minha fé, que permitiu que minhas forças fossem renovadas, com a intercessão de Nossa Senhora e o consentimento de Deus, para que eu terminasse esta pesquisa em meio às intempéries causadas pelas consequências da Covid-19 e gestação. Ao Luiz Octávio, meu “Papi” todo poderoso, que sempre me acompanha e não mede esforços para ser pilar das pontes, nem sempre novas, pelas quais eu decido caminhar. À tia Sandra, gastrônoma renomada, que me manteve saudável. À minha irmã e terapeuta nas horas vagas, Taimara. À tia Ivete, que sempre mostrou que temos força para conquistar o que desejarmos. À minha irmã Uiara por cuidar de mim, mesmo de longe, me alegrando e ajudando a recuperar as energias. Ao meu esposo Gustavo, que me ama e “re-ama”. https://www.pensador.com/autor/martin_luther_king/ À minha amiga Daniela, que me presenteia diariamente com sua fidelidade e amor de irmã, me ajudando a ser uma pessoa melhor no mundo. À Raquel, que nunca deixa eu me distanciar dos meus sonhos e me ajuda a trilhar os caminhos cristãos; Ao meu bebê, João Vicente, que me faz entender por que é preciso viver, lutando, pelas coisas que acreditamos. Agradeço aos parceiros que aceitaram participar desta pesquisa: às professoras das turmas do Infantil V: Ana e Lilian, e suas respectivas diretoras. Às professoras pesquisadoras: Elizabete Rendenrs, Enicéia Mendes, Ana Paula Zerbato, Kátia Fonseca, Geisa Bok e Ana Miranda. Ao Fabiano, editor, que organizou a bagunça dos arquivos do documentário sem perder a calma e, ainda, mantendo o sorriso amigo. À grande amiga e pedagoga Denise Myabe, especialmente responsável por minha entrada no Mestrado, cuja palavra amiga fez abrir a minha caixinha acadêmica (já trancada com muitos cadeados), que sempre acolheu minhas ideias, me incentivando a buscar uma teoria bem fundamentada e coerente aos meus anseios. Aos amigos gênios, que compartilharam seus ouvidos e pensamentos possibilitando minhas catarses: Alessandra, Isabela, Paty, Gabi, Naty; integrantes do grupo de estudo Latedip e Gepellin. Aos professores de inteligência ímpar, que, humildemente, compartilharam seus conhecimentos comigo: Elena Andrei (in memorian); Marcia Argenti; Rosa Manzoni, Dariel, Eliana Zanata, Jaqueline Prais e, a amável orientadora, Vera Lucia Capellini. Farias, Naiara Maria de. Práticas Pedagógicas Inclusivas na Educação Infantil: Vídeo-Histórias na Perspectiva do Desenho Universal para Aprendizagem. Orientadora Vera Lucia Messias Fialho Capellini. 2024, 215 f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Docência para a Educação Básica. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Bauru, 2024. RESUMO Diante da questão: se todas as crianças são capazes de aprender, porque algumas demonstram não se apropriar dos conteúdos sistematizados propostos, estruturou-se esta pesquisa, visando responder duas perguntas: professores de Educação Infantil conhecem o Desenho Universal para Aprendizagem e utilizam essa fundamentação nas atividades-guia propostas? A utilização de Vídeo-Histórias na Educação Infantil com conteúdo curricular do uso social da escrita e o traçado das letras, desenvolvido nos princípios do Desenho Universal para Aprendizagem, contribuem para o desenvolvimento de práticas pedagógicas inclusivas, segundo a concepção dos professores? Nesse sentido, o objetivo foi avaliar a possibilidade de aliar a práxis de contação de história digital no gênero storytelling seguindo os princípios do Desenho Universal da Aprendizagem, como ferramenta/ação pedagógica inclusiva na Educação Infantil. Caracterizada como uma pesquisa participante do tipo interventiva, com abordagem qualitativa, a coleta dos dados foi realizada por meio de Grupo Focal e oficina temática com os professores, bem como intervenção em sala com crianças de cinco anos da educação infantil, que subsidiaram a criação e testagem de dois protótipos de produtos educacionais que contribuíram como referencial teórico e ferramenta didática inclusiva para crianças e professores. Os resultados apontaram que ao incorporar os princípios do DUA no sistema de ensino, apresentá-los ao professor durante o processo de ensino e aprendizagem, bem como, as vídeo- histórias que abordam o conteúdo curricular do uso social da escrita e o traçado das letras, pode-se afirmar que estes, contribuem para eliminar as barreiras que impedem as crianças de aprender. O movimento realizado no decorrer da pesquisa de “ir e vir”, encontrando resultados positivos em todos os testes de partilhas e requalificá-los, adicionando itens necessários, possibilita afirmar que os protótipos dos produtos e pesquisas apresentados, alcançaram os objetivos propostos. Palavras-chave: Educação Infantil, Educação Inclusiva, Desenho Universal para Aprendizagem. Farias, Naiara Maria de. Inclusive Pedagogical Practices in Early Childhood Education: Video-Stories from the Perspective of Universal Design for Learning. Advisor Vera Lucia Messias Fialho Capellini. 2024, 215 f. Dissertation (Master's). Postgraduate Program in Teaching for Basic Education. São Paulo State University “Júlio de Mesquita Filho”, Bauru, 2024. ABSTRACT In view of the question: if all children are capable of learning, why do some demonstrate that they do not appropriate the proposed systematized proposals, this research was structured, aiming to answer two questions: do Early Childhood Education teachers know Universal Design for Learning and use this foundation in the proposed guide activities? Does the use of Video Stories in Early Childhood Education with curricular content on the social use of writing and letter tracing, developed according to the principles of Universal Design for Learning, contribute to the development of inclusive pedagogical practices, according to the teachers' conception? In this sense, the objective was to evaluate the possibility of combining the practice of digital storytelling in the storytelling genre, following the principles of Universal Design for Learning, as an inclusive pedagogical tool/action in Early Childhood Education. Characterized as interventional participatory research, with a qualitative approach, data collection was carried out through a Focus Group and a thematic workshop with teachers, as well as classroom intervention with five-year-old children in early childhood education, which supported the creation and testing of two prototypes of educational products that contributed as a theoretical reference and inclusive teaching tool for children and teachers. The results showed that by incorporating the principles of UDL into the teaching system, presenting them to the teacher during the teaching and learning process, as well as the video stories that address the curricular content of the social use of writing and the tracing of letters, it can be stated that these contribute to eliminating the barriers that prevent children from learning. The movement carried out during the research of “back and forth”, finding positive results in all the sharing tests and requalifying them, adding necessary items, makes it possible to state that the prototypes of the products and research presented achieved the proposed objectives. Keywords: Early childhood Education, Inclusive Education, Universal Design for Learning. LISTA DE IMAGEM Imagem 1 - Escolaridade dos docentes na Educação Infantil Brasil-2018-2022…… Imagem 2 - Representação da arte rupestre com pintura.......................................122 Imagem 3 - Representação do gênero Textual Receita.........................................123 Imagem 4 - Representação da letra "E" espelhando o movimento dos guerreirinhos.............................................................................................................124 Imagem 5 - Representação imitando a letra A.......................................................124 Imagem 6 - Representação da letra "B" espelhando o movimento dos guerreirinhos.............................................................................................................125 Imagem 7 - Palavras conhecidas que começam com a letra D.............................126 Imagem 8 - O que eu sei sobre o alfabeto? 130 Imagem 9 - Criança desenhando a partir do que aprendeu na vídeo-história, utilizando-se das mãos como referência.................................................................131 Imagem 10 - Quadro para sondagem inicial da forma gráfica das letras do alfabeto.....................................................................................................................136 Imagem 11 - Vamos fazer uma receita?..................................................................139 Imagem 12 - Ilustração das discussões presentes no documentário......................147 Imagem 13 - Indicação de legislação atual na perspectiva inclusiva que propõe a abordagem do DUA..................................................................................................148 Imagem 14 - Professores experts no tema, partilhando seus conhecimentos sobre o DUA e assuntos correlatos.......................................................................................149 Imagem 15 - Esclarecendo o assunto do vídeo "Tempo da Exclusão"...................151 Imagem 16 - Modernização das letras....................................................................152 Imagem 17 - Trechos do vídeo sobre a evolução do registro.................................152 Imagem 18 - "Aventura tão legal” faz referência às atividades que o público infantil mais gosta de vivenciar e compartilhar...................................................................153 Imagem 19 - Ensinando que existem gêneros textuais diferentes.........................154 Imagem 20 - Vamos aprender a segurar a caneta com o movimento do bico do patinho?...................................................................................................................155 Imagem 21 - Várias formas de apresentar a letra C...............................................155 Imagem 22 - A história da letra "C".........................................................................156 Imagem 23 - Várias possibilidades de ensinar a letra “F”.......................................157 Imagem 24 - Crianças assistindo ao vídeo sobre a origem da história da escrita. como possibilidade de apresentar conteúdos de formas diferentes........................157 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Imagem representativa do diálogo: o que é inclusão?…....................… 77 Figura 2 - Gráfico sobre a escolaridade dos docentes na Educação Infantil Brasil de 2018 a 2022.............................................................................................................. 88 Figura 3 - Gráfico sobre os recursos relacionados a tecnologia e infraestrutura. Base nos dados do censo Escolar da Educação Básica. ........................................ 90 Figura 4 - Conceituação do Desenho Universal para a Aprendizagem................ 98 Figura 5 - Atividades realizadas para identificar área de reconhecimento, área de estratégia e área afetiva............................................................................................119 Figura 6 - Amostra dos produtos educacionais criados ………….………………....146 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Princípios Orientadores do Desenho Universal da Aprendizagem ……94 Quadro 2 - Meios e modos para exequibilidade do desenho universal para aprendizagem na educação infantil............................................................................99 Quadro 3 - Etapas da pesquisa e participantes......................................................103 Quadro 4 - Fluxograma das etapas crianças..........................................................104 Quadro 5 - Avaliação sobre o produto - Zezinho em: Quem teve essa ideia de escrever? ................................................................................................................ 142 Quadro 6 - Avaliação sobre o produto: Você quer aprender a desenhar as letras?.......................................................................................................................143 Quadro 7 - Sugestões de ampliação do uso da coleção Itan.................................159 SUMÁRIO INTRODUÇÃO……………………………………..........………………………………....18 1 DO PIÃO AO BEYBLADE: TRAJETÓRIA E CONCEITO DE CRIANÇA E INFÂNCIA…...............................................................................................................22 2 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL: DO DIREITO A PROTEÇÃO AO CONCEITO SOBRE O QUÊ APRENDER NA EDUCAÇÃO INFANTIL…….….38 2.1 O que se deve aprender na creche? O acesso à creche como possibilidade de garantia do direito de ser criança e a trajetória da legislação brasileira………...…48 2.2 Consciência do uso social da escrita, currículo da Educação Infantil e a preservação do direito de ser criança e viver a infância………………………...…..66 2.3 Educação inclusiva na educação infantil: brincadeira ou realidade?............... 85 2.4 O desenho Universal para Aprendizagem e o ensino para todos…………...…92 3 MÉTODO DA PESQUISA……………………………………………………………. 101 3.1 Procedimentos éticos……………………………………………………………...106 3.2 Local da pesquisa…………………………………………………………………106 3.3 Participantes……………………………………………………………………….106 3.4 Instrumentos:.................................................................................................. 107 3.5 Materiais…………………………………………………………………………….108 3.6 Procedimentos da coleta de dados………………………………………………108 3.7 Análise de dados………………………………………………………………...…111 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO………………………………………………........…113 4.1 1ª fase: Observações oriundas do Grupo focal com as professoras da turmas de crianças de 5 anos...................................................................................................113 4.2 2ª fase: Observações sobre a experiência na escola com as crianças apresentando as Vídeo histórias Zezinho em quem teve essa ideia de escrever? Você quer aprender a desenhar as letras?................................................... 121 4.3 3º fase - Oficina teórico prática com professoras da educação infantil: Os Produtos Educacionais sobre olhar avaliativo de professores da educação Infantil…............................................................................................................. 130 5 DELINEAMENTO DO PRODUTO EDUCACIONAL…………..……………………144 5.1 Título dos produtos………………………………………………………………...145 5.2 Resumo do produto……………………………………………………………..…146 5.3 Diagnóstico local…………………………………………………………………... 158 5.4 Contexto de ensino………………………………………………………………... 158 5.5 Público-alvo…………………………………………………………...…...............158 5.6 Proposta de alteração do contexto……………………………………………....158 5.7 Objetivos do produto……………………………………………………………....160 5.8 Metodologia do produto…………………………………………………………...161 CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………………..165 Perspectivas futuras da pesquisa………………………………………………….. 168 REFERÊNCIAS ………………………………………………….............……………... 169 ANEXOS E APENDICES.........................................................................................179 APRESENTAÇÃO Criada no interior do Estado de São Paulo, desde criança sonhei em colaborar ativamente com a sociedade em prol dos direitos das pessoas. Acreditando que todos deveriam ter acesso a uma vida justa ainda na infância, observava a postura dos meus pais, que eram militantes na igreja católica e em partidos políticos, admirando-os em seus engajamentos, a lutar por justiça, senso de humanidade. Esses princípios são alicerces de quem me tornei hoje. As observações eram manifestadas nas brincadeiras: ora eu era juíza, ora a professora. Na adolescência, a escolha pelas duas opções profissionais, ainda, era difícil. No grêmio escolar, aos 10 anos de idade, já buscava pela qualidade de ensino, participando do processo de conquistas na escola municipal onde frequentava, engajando-me nas festas promocionais para melhorias, nas discussões dos conselhos escolares, nas atividades culturais, como a banda marcial, além de promover eventos estudantis pensando em espaços agradáveis e acessíveis para todas as crianças. Aos 15 anos, a primeira escolha profissional tendeu para o lado da educação e impulsionou-me a cursar o magistério. Todavia, durante os estágios realizados nas periferias me deparava com tanta injustiça, marginalidade social e discursos de que a educação não tinha forças para resolver. Nesse contexto, novamente a profissão de juíza voltou a pairar em meus pensamentos, por acreditar que assim conseguiria combater as injustiças de forma mais eficaz. Aos 17 anos deparei-me com uma situação de assalto à mão armada, realizado por um adolescente, em minha própria casa. Esse fato me fez perceber que eu não queria ser quem iria julgar uma pessoa de tão pouca idade, que não teve quem lhe ensinasse a ter humanidade, mas o contrário. Entendi que o professor era o profissional que teria esse poder, compartilhando o conhecimento capaz de oportunizar um futuro diferente, superando a condição marginalizante na sociedade. E assim, acreditando que o poder da educação é maior que o poder da punição, matriculei-me na Universidade Estadual de Londrina, no curso de Pedagogia, sendo este, o início da busca constante pelo conhecimento. Busca que não findou na graduação. Impulsionada em conhecer mais para poder ensinar, cursei: Especialização em Educação de Jovens Adultos, Especialização em Educação Infantil, Especialização em Coordenação Pedagógica e Especialização em Educação Especial. Também fiz a segunda graduação em Artes, porém, foi na Especialização em Educação Especial, somada à longa experiência em sala de aula, que me motivou a cursar o Mestrado. Após 21 anos trabalhando em diferentes espaços educativos, assumir-se como professor, protagonista de sua própria história, e ter coragem de canalizar esforços para contribuir na minimização das problemáticas encontradas nesse percurso. Todavia, compartilhar conhecimentos de forma simplória e, parcialmente, fundamentada é pouco quando se tem a pretensão de ajudar a dirimir a problemática do “dever dos professores de serem plenamente inclusivos no processo de ensino aprendizagem”, para que se tenham crianças que aprendam de fato. Se “ser” diferente é normal, o título “aluno típico” abre questionamentos à veracidade e principalmente, nos leva a refletir se esse é genuinamente digno desta nomenclatura. Ser professor é partir do reconhecimento de que a classificação do “diferente e típico”, não pode passar do espaço indicativo, o qual o instrui a pesquisar, conhecer, amparar as ramificações das condições da subjetividade humana no desenvolvimento do processo da aprendizagem do aluno e, desta maneira, estar preparado para esmiuçar estratégias de ensino, dominando-as, para contemplar a multiplicidade do público o qual se pretende ensinar. 18 INTRODUÇÃO Uma rotina de seres humanos, aqui, em específico, crianças com cinco anos de idade, pode nos remeter a algo simples. Ora, à primeira vista pensar em levantar- se da cama, vestir-se, alimentar-se, transportar-se, manusear objetos, como por exemplo: livros, brinquedos, enfim, relacionar-se com outros da mesma espécie, fazendo uso dos meios de comunicação culturais por eles utilizados diariamente, pode tendenciar o pensamento ingênuo de quem observa, remetendo à ações quase que automatizadas, denotadas em termos de facilidade. A criança opera com os objetos que são utilizados pelos adultos e, dessa forma, toma consciência deles e das ações humanas realizadas com eles. A criança, durante o desenvolvimento dessa consciência do mundo objetivo, por meio da brincadeira, tenta integrar uma relação ativa não apenas com as coisas diretamente acessíveis a ela, mas também com o mundo mais amplo, isto é, ela se esforça para agir como um adulto. Ela ainda não dominou e não pode dominar as operações exigidas pelas condições objetivas reais da ação dada, como, por exemplo, dirigir um carro, andar de motocicleta, pilotar um avião. Mas, na brincadeira, na atividade lúdica, ela pode realizar essa ação e resolver a contradição entre a necessidade de agir, por um lado, e a impossibilidade de executar as operações exigidas pela ação, de outro." (Leontiev, 1998, p. 121). Ledo engano. Independentemente da idade para realizar tais ações, requer- se que o ser humano despoje de capacidades complexas, que precisam ser previamente ensinadas, e que se especificam ainda mais quando pensado em apropriar-se da gênese de cada ação e de tudo que está atrelado a ela (Vygotsky, 1991), principalmente no que tange a apropriar-se da linguagem oral e escrita. Transpassada a rotina descrita acima em viés do conceito de educação para que tais ações cotidianas ocorressem, problematiza-se: quantos objetos e pessoas precisou interagir? Qual a forma de se comportar nos diferentes espaços sociais? Quais conhecimentos são exigidos para que se sintam realmente parte do grupo social do qual faz parte? Quais habilidades e ferramentas são necessárias empenhar e manusear com destreza para sobreviver nesse grupo? Quais as formas de comunicar- se e registrar sua história neste grupo? Quanto tempo leva para apropriar-se de tudo? São inúmeros os espaços que subsidiam à criança condições e experiências para que consiga desempenhar todas as funções embutidas nesses questionamentos. Mas é na escola que a criança terá maior oportunidade de vivenciar sistematicamente 19 processos de ensino repletos de conhecimentos historicamente estruturados e incutidos em cada uma das ações da rotina, denominados nesse espaço como conteúdos curriculares (Gasparim, 2003). Nesse sentido, como se dá a relação das crianças de cinco anos com os conteúdos curriculares? Quais são os espaços, condições, meios e modos de interação que atendem sua individualidade durante o ambiente de ensino desses conteúdos? Em busca de compreender e contribuir para que esse processo de ensino seja inclusivo se propôs esta pesquisa, utilizando-se como fundamentação teórica a abordagem do Desenho Universal para Aprendizagem (DUA) e os autores Cast (2024), Sebastián-Heredero (2020), Renders, Gonçalves e Santos (2021), Prais e Rosa (2017) e Zerbato (2018). A ideia central apresentada por essa teoria está relacionada à eliminação das barreiras, as quais impedem o processo de apropriação da criança dos conteúdos curriculares. Essa prática resulta na expansão de ações inclusivas no processo de ensino aprendizagem ofertado, bem como, contribui para suprir a demanda pela aproximação dos princípios do currículo acessíveis. Crendo na importância de aproximar teoria e prática, nesta pesquisa propõe- se a construir material pedagógico somados aos recursos didáticos viabilizadores de qualidade no atendimento escolar sob o viés inclusivo. Neste, aborda-se o conteúdo curricular de Língua Portuguesa, relacionado à função social da escrita, que encontra- se delimitado em dois pontos: história da escrita e desenho da grafia das letras. Tais conteúdos são indicados a partir do levantamento de demanda da práxis pedagógica apontada por docentes. Dessa maneira, o recurso pedagógico escolhido para atender a necessidade foi a contação de história digital, com base nos princípios do DUA. Esses artefatos digitais são problematizados como resposta à pesquisa teórica desenvolvida em uma cidade do interior do Estado de São Paulo, que buscou entender duas inquietações: professores de Educação Infantil conhecem o Desenho Universal para Aprendizagem? Utilizam essa fundamentação nas atividades-guias propostas? A utilização de Vídeo Histórias na Educação Infantil com conteúdo curricular do uso social da escrita e o traçado das letras desenvolvido a partir dos princípios do Desenho Universal para a Aprendizagem, contribuem para o desenvolvimento de práticas pedagógicas inclusivas segundo a concepção dos professores? 20 Considerando as questões de pesquisa apresentadas, este estudo se alinhou seguindo o objetivo geral de: avaliar possibilidades de aliar a práxis de contação de história digital no gênero storytelling seguindo os princípios do Desenho Universal da Aprendizagem, como ferramenta/ação pedagógica inclusiva na Educação Infantil. Os objetivos específicos delimitam ações em: ▪ Construir dois materiais didáticos digitais inclusivos a partir de demandas docentes compilados em: um documentário para que os professores se apropriem da teoria proposta, sensibilizando-se para a importância da inclusão, para além da mera obrigação; e uma dupla de histórias para as crianças que ensinam a importância do uso social da escrita e o desenho das grafias das letras. ▪ Oportunizar momentos de aprendizagem aos docentes participantes da pesquisa acerca do Desenho Universal para a Aprendizagem por meio de grupo focal. ▪ Analisar a usabilidade do material didático digital produzido, das histórias para as crianças, verificando se são recursos pedagógicos viáveis. Os objetivos traçados nesta pesquisa foram colocados em prática a partir da abordagem qualitativa, com o propósito de desenvolver uma investigação participante do tipo interventiva desenvolvimental, cujo encaminhamento metodológico dividiu-se em quatro partes: pesquisa de fundamentação teórica e coleta de dados; desenvolvimento dos protótipos dos produtos, testagem do protótipo dos produtos e análise dos resultados. A fundamentação teórica é apresentada em três capítulos. O primeiro capítulo parte do levantamento teórico sobre a história temporal da educação, no qual propõe- se uma reflexão e definição do conceito de infância almejando demarcar um permeável perfil da criança que subsidia a construção dos protótipos dos produtos. Assim, debruçou-se em marcos reincidentes nas múltiplas infâncias1, com olhar histórico, econômico, político, social e cultural. No segundo capítulo, propôs-se a pesquisar a história da origem da escola de Educação Infantil, mapeando marcos que 1 Considerando a diversidade de pessoas existentes produtoras de história e cultura, é impossível retratar o todo. Cada vida vivida conta uma história. A infância vivida pelos filhos de Dom Pedro por exemplo, não é mesma vivida pelos filhos das amas de leite, mesmo estando todos na mesma cidade e ano. Assim, é importante reconhecer que ocorrem e ocorreram múltiplas infâncias, e os relatos nessa pesquisa se centralizam nos acontecimentos mais comuns encontrados em repetidas falas dos historiadores, não representam o todo de forma estanque e rígida. 21 deram origem ao atual currículo escolar da língua portuguesa, elencando-se os conteúdos sobre a importância do uso social da escrita, apresentados nos protótipos de produtos para as crianças de cinco anos, nos temas da origem da história da escrita e grafia das letras. O terceiro capítulo conceitua o que é educação inclusiva e apresenta a abordagem do DUA sinalizando práticas pedagógicas. Em continuidade, a partir da delimitação da fundamentação teórica, é apresentado o protótipo do produto, seu percurso metodológico de desenvolvimento, os resultados e discussão. 22 1 DO PIÃO AO BEYBLADE: TRAJETÓRIA E CONCEITO DE CRIANÇA E INFÂNCIA Polidez2 É tão bonito ser polida! Polida eu quero ser E sendo assim, serei querida De quem me conhecer! Pião é um brinquedo comumente feito de madeira torneada, com uma ponta afiada que acompanha seu formato cônico. É um brinquedo típico de criança que perpassou gerações, e se modifica tal como o conceito de infância de acordo com a cultura e tempo histórico. Beyblade também é um pião e apesar do nome e roupagem novos mantém o movimento de giro potente ao ser arremessado, igual ao pião tradicional de madeira, possibilitando tal como seu ancestral um momento de contemplação do giro simétrico ou um convite a uma boa briga por território e demonstração de força. Assim como o brinquedo pião, o conceito de infância se modifica sendo influenciado pelas tendências culturais e socioeconômicas de cada tempo histórico, delimitando o significado de criança. Pensar a história do pião até se tornar Beyblade a partir do resgate histórico feito por Ariès (1981), nos faz problematizar sobre qual tipo de criança tiveram acesso a esses brinquedos nos marcos históricos e a qual concepção de educação essas se sujeitaram até acessarem o brinquedo ofertado nos dias de hoje em formato de material plástico agora denominado Beyblade. Toda essa transformação do brinquedo sujeitou-se igualmente com os conceitos de criança e infância, as mudanças do processo produtivo da sociedade, evoluções, retrocessos, supressões, regenerações, invenções adequações entre outros. E se problematizamos o espaço da educação formal comparando a todo processo que envolve o acesso das crianças aos brinquedos industrializados ao longo do histórias iremos nos deparar com questões chave: o que é ser criança em cada tempo da história? Anjos assexuados, improdutivos ou pessoas ativas de ideias próprias? Adultos em miniaturas, ou objetos 2Poema não assinado, disponível no livro: Infância e educação infantil: uma abordagem histórica (Kuhlmann, 1998, p.161). 23 animados? Quem teve o direito de ser minimamente criança, usando como padrão o conceito que se conhece hoje? E atualmente, quais crianças conseguem ser criança? Com efeito, crianças existiram sempre, desde o primeiro ser humano, e a infância como construção social — a propósito da qual se construiu um conjunto de representações sociais e de crenças e para a qual se estruturaram dispositivos de socialização e controlo que a instituíram como categoria social própria — existe desde os séculos XVII e XVIII (Sarmento, 1997, p.7). Nesse sentido, a infância caracteriza-se fundamentalmente pelo período em contexto do complexo social da vida da pessoa, o qual denominamos criança. O período, “reflete-se também na controvérsia e no debate sobre diferentes perspectivas, imagens e concepções de infância, (...) Ela é inerente à própria construção do objecto, isto é, ao que se entende por infância” (Sarmento, 1997, p. 8). Enquanto isso, o conceito de criança é definido sobretudo correspondente à faixa etária da pessoa humana. Hoje no Brasil é considerada criança a pessoa de 0 a 12 anos incompletos de idade. Segundo Saviani (2013, p. 252), a criança define-se como “um corpo; um corpo entre outros corpos, uma coisa entre muitas coisas que perfazem o Universo. Mais precisamente, descubro-a como um corpo (ela mesma) noutro corpo (o mundo).” Quando a concepção do que é “criança” atrela-se à palavra “ser”, no contexto de “ser criança”, o conceito se aproxima da definição de infância. Isso sugere que ser criança envolve não apenas a idade, mas também uma experiência única de desenvolvimento, aprendizado e descoberta que caracteriza essa fase da vida. A infância, portanto, é vista como um período que vai além de definição biológica, englobando aspectos sociais, emocionais e culturais. A trajetória do conceito de ser criança está atrelada ao conceito de infância, e se reformula no tempo sofrendo direcionamentos afetados pelas perspectivas econômicas, evolução do comércio e indústria, força de trabalho/mão de obra e cultura local. As experiências diárias às quais a criança é exposta moldam a identidade do conceito de infância dentro de um grupo social. Segundo Muricy (1998, p. 63), “a compreensão da infância não se alcança no horizonte de uma temporalidade linear. Simultaneamente futuro e passado, ela é uma densidade temporal de conexões descontínuas”. Assim, cada grupo social define quais concepções são aceitáveis para as crianças em sua cultura. 24 O pião se remodelou e permaneceu com sua essência lúdica. A concepção de criança também se modifica, e sua essência lúdica ganha espaço e proteção, mas sempre está condicionada às regras sociais as quais não consegue se impor a não ser que lhes deem voz. Neste contexto, é importante manter em mente, consciência crítica e olhar histórico sobre: quais são as adversidades que atropelam o conceito de criança e ao invés de dar plasticidade, plastificam sua desenvoltura genuína? A menção comparativa entre um sujeito (criança) e um objeto (pião) é proposital, para nos invocar a pensar: quantas vezes no processo educativo ou na própria concepção de infância, colocamos o sujeito criança como um objeto de estudo isolado? Quantas vezes não se considera as variantes ambientais que contaminam todo o complexo do ser criança, sem perceber que mesmo um singelo objeto como o pião se influencia pelo movimento das transações diversas do mundo e se modifica? Tal como, por quanto tempo a criança foi considerada um objeto a ser mantido vivo, até poder dar retorno financeiro e deixar de ser objeto onerador? Por que se ignora ou não se reconhece alguém como “pessoa de direitos” quando sua essência é ingênua, e muda o posicionamento sobre o mesmo ser, quando esse apresenta pensamento elaborado com julgamento de valores sociais e de produtividade? Ou ainda, quantas vidas custaram para que crianças passassem a ser consideradas como seres humanos? Por que ouvir e validar crianças ainda gera posicionamentos tão paradoxais e excludentes? Na vida das crianças, os sentimentos se manifestam com pureza e sem ambiguidade. A criança goza da faculdade de se interessar vivamente pelas coisas, mesmo pelas mais triviais em aparência. A experiência infantil se realiza como embriaguez, isto é, como reconhecimento e imersão na poderosa força vital que emana das coisas (Schlesener, 2011, p.129). As variantes sociais conduzem a definição do significado da palavra criança, e esta hoje, pode ser interpretada à luz da citação mencionada como fase da vida do ser humano. Neste momento do desenvolvimento humano, a inocência, a curiosidade, o espaço ao brincar e o entusiasmo em viver e se apropriar do mundo sem condição de julgar certo e errado por parâmetros sociais de moralidade se sobressaem e, hoje, são compreendidos pela sociedade. Outro ponto favorável adquirido na modernidade é o resguardo da legislação, independentemente de sua classe social, para permitir que 25 a criança viva plenamente essa etapa, entendendo que à ela deve ser promovido o direito de saúde, proteção, alimentação e educação como prioridade. O resgate histórico encontrado em Ariès (1981), traz reflexão que é viva nos dias atuais, quando afirma que o ser criança está atrelado às condições econômicas, sociais e culturais. Hoje, muita coisa mudou e se tem clara a concepção de preservação do tempo peculiar do desenvolvimento da criança, porém, mesmo assim, esta ainda se sujeita a resquícios negativos, referentes as mesmas condições identificadas nos primórdios dos estudos sobre essa fase da vida, como exemplo, a submissão automática às relações do trabalho. Pensemos, se a criança é responsabilizada em ficar com os irmãos menores para que os pais possam trabalhar, terá oportunidade de vivenciar a infância, de forma diferente da criança que tem um adulto para cuidar dela, enquanto seus pais trabalham? Pensar a definição de criança a partir da análise da trajetória evolutiva do brinquedo pião é abrir ludicidade no diálogo e convidar o leitor a trazer olhar já carregado dos âmbitos sociais, culturais e econômicos gerais dos marcos históricos. Por exemplo, a partir da leitura de Ariés (1981), observa-se que na idade média, até o século XVIII, a criança era considerada um adulto em miniatura, ou seja, não era reconhecida como sujeito que necessitasse de cuidados específicos e o alto índice de mortalidade era naturalizado, “[...] não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido [...] a infância era um período de transição, logo ultrapassado, e cuja lembrança também era logo perdida.”, (Ariés, 1981, p. 51). Já na modernidade, inicia-se um olhar com especificidade para o desenvolvimento infantil e no século XX, caminha para ser um problema social, para então ser considerada como sujeito de direitos. A historiografia mais recente sobre a infância (e.g., Pollock,1983; Hendrick,1994; Becchi e Julia, 1998; Heywood,2002) tem considerado que, mais do que ausência da consciência da infância, na idade Média e na pré- modernidade existiam concepções que foram profundamente alteradas pela emergência do capitalismo, pela criação da escola pública e pela vasta renovação das ideias com a crise do pensamento teocêntrico e o advento do racionalismo. Os séculos XVII e XVIII, que assistem a essas mudanças profundas na sociedade, constituem o período histórico em que a moderna da infância se cristaliza definitivamente, assumindo um carácter distintivo e constituindo-se como referenciadora de um grupo humano que não se caracteriza pela imperfeição, incompletude ou miniaturização do adulto, mas por uma fase própria do desenvolvimento humano (Sarmento, 2007, p. 28). 26 Todo esse percurso longo da história demonstra que o conceito de criança se sujeitou às concepções do trabalho físico exploratório da persistente impaciência capitalista, também marcante na revolução industrial, tendo refrigério nas ideias modernistas que impulsionaram a preservação desse período da vida humana, respeitando suas peculiaridades tal como encontra-se na atualidade. Ao pensar na história da infância no Brasil, a partir das leituras de Del Priori (2015), é possível estabelecer uma compreensão conceitual do que hoje se define como infância e criança. É importante compreender que toda narrativa escolhe um prisma para descrever. Nesse sentido os tempos do Brasil colônia, Império e República são descritos pelos historiadores com vários olhares e neste trabalho não estarão todos aqui representados. Aqui, o resgate histórico continua com o objetivo de ilustrar de forma geral a concepção que se tem atualmente sobre a infância, a qual não se forma de um dia para o outro, assim como, demonstrar que sua trajetória não é estática. Dessa maneira, os recortes de relatos são selecionados pontuando os registros mais recorrentes que favorecem panoramas gerais da história desses períodos, porém, mostram um pequeno lado da história. É um ponto de vista entre tantos outros presentes na diversidade da humanidade, e ainda outros que não foram nem vistos ainda. Os descritos aqui, ora ou outra, ilustram problemáticas atuais, que o tempo não foi capaz de apagar. “Não será a primeira vez que o saudável exercício de olhar para trás ajudará a iluminar os caminhos que agora percorremos, entendendo melhor o porquê de certas escolhas feitas por nossa sociedade” (Del Priore, 2015 p. 25). A história das crianças do Brasil pode ser contada considerando as descrições gerais do âmbito europeu traçadas até aqui, porém com ressalvas. Ela é manifestada no Brasil pela cultura vivida pelos colonizadores, aqui já descrita anteriormente. A visão deles sobre a infância e as crianças refletia um desprezo pelas pessoas que viviam no Brasil, tratando-as como se não fossem verdadeiramente humanas, o que se estendia também à forma como percebiam as crianças. Destarte, o olhar para criança e infância vem prioritariamente com a distinção embasada nas classes sociais, poder econômico, gênero e questões étnico raciais. Um exemplo de representação da infância no Brasil colonial, conforme abordado por Ramos (2015), ilustra os enfrentamentos à sobrevivência mínima vivenciados por essa população. 27 (...) Essas crianças navegavam em condições extremamente adversas; ao longo da viagem, sofriam abusos sexuais de marujos rudes e violentos. Muitas eram levadas como escravas por navios piratas, sendo entregues à prostituição e, quando não, acabavam morrendo de exaustão. A viagem era marcada por uma dramática história de violência sexual, trabalhos forçados e riscos constantes de falecimento, sendo poucas as crianças que sobreviviam e chegavam ao Brasil. (...) as crianças subiam a bordo somente na condição de grumetes ou pajens, como órfãs do rei enviadas ao Brasil para se casar com os súditos da Coroa ou como passageiros embarcados em companhia dos pais ou de algum parente (Ramos, 2015, p.30). A história acima narrada, rodou por anos, somando à outras histórias e ainda continuam a rodar. E ainda hoje ao soltar o Beyblade para rodar, crianças dividem os momentos de brincar com altas estatísticas de abuso sexual. Principais agressores são familiares e conhecidos, especialmente do sexo masculino. Em 2021, o número de notificações foi o maior registrado ao longo do período analisado. No período de 2015 a 2021, foram notificados 202.948 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, sendo 83.571 contra crianças e 119.377 contra adolescentes. Em 2021, o número de notificações foi o maior registrado ao longo do período analisado, com 35.196 casos. (...) a residência das vítimas é o local de ocorrência de 70,9% dos casos de violência sexual contra crianças de 0 a 9 anos de idade e de 63,4% dos casos contra adolescentes de 10 a 19 anos. Familiares e conhecidos são responsáveis por 68% das agressões contra crianças e 58,4% das agressões contra adolescentes nessas faixas etárias. A maioria dos agressores são do sexo masculino, responsáveis por mais de 81% dos casos contra crianças de 0 a 9 anos. As vítimas são predominantemente do sexo feminino: 76,9% das notificações de crianças (Brasil, 2023). O silenciamento, a naturalização histórico-cultural de não dar oportunidade de voz e/ou validar a fala das crianças afeta a análise sobre esses dados e inibe a denúncia. Na contramão, a didática de professores acolhedores com viés humanizador, que promovem atividades nas quais as crianças possam se expressar é oportunidade de resistência e impulsionamento positivo na trajetória de reafirmar a criança como ser humano de direito e prioridades. Outro recorte interessante que ecoa do passado nas problemáticas atuais é a negação da cultura e experiência das crianças na proposta de ensino. Historicamente essa postura foi apresentada no projeto Jesuíta, para as crianças na chegada dos portugueses. Eles refletem a ideia prevalente na Europa de que as crianças precisavam ser moldadas, disciplinadas e educadas, oriundos dos primeiros tratados de educação que sugeria a criança como ser puro, o que, caso não fosse educado segundo suas concepções anulando sua história e cultura, seria corrompido pelo ambiente social. 28 Ao cuidar das crianças índias, os jesuítas visavam tirá-las do paganismo e discipliná-las, apresentando-lhes normas e costumes cristãos, (...) catequização e o ensino dessas “crianças da terra” estariam entre as principais estratégias criadas no processo de colonização, pois convertendo- as e disciplinando-as haveria “futuros súditos dóceis do Estado português e ainda influenciaram a conversão dos adultos às estruturas sociais e culturais recém-importadas”. Essa ideia de enxergar a criança como “papel branco” era fruto das novas concepções da infância que estavam surgindo na Europa, que contribuíram para que a Companhia de Jesus se enquadrasse no novo pensamento e aos poucos construísse, juntamente com o Estado, condutas específicas em relação às crianças (Chambouleyron, 2015, p. 56). Os Jesuítas em lógica cristã, arrebanhavam as crianças indígenas, mestiças ou filhas de portugueses sobreviventes das embarcações, com tratamento diferenciado, deixando clara a divisão da família patriarcal/elite, no qual o cenário de proteção e cuidados mesmo com uma visão de adulto em miniatura, onde a criança a partir dos sete anos quando menina fosse educada para os serviços domésticos e os meninos ao acesso aos estudos dos conhecimentos clássicos, diferenciavam-se muito das crianças oriundas das famílias pobres e das crianças abandonadas. A visão da criança como papel em branco foi perpetuada por muito tempo, e ponto de partida para estudos da aprendizagem com viés desenvolvimentistas que discordam dessa teoria, validando as experiências sociais e culturais como conhecimento a ser considerado quando se propõe ensinar alguém. Ainda pode ser sutilmente encontrada quando em uma abordagem de ensino se desconsidera o que Vygotsky (1991) denomina como Zona de Desenvolvimento Real (ZDR) da criança, propondo conhecimentos de que a criança é uma tabula rasa. Segundo Marcílio (2011), na transição do Brasil Colônia para o Brasil Império encontra-se o alargamento das políticas assistencialistas, que apesar de demonstrar singela consciência de que a criança precisava de cuidados especiais, ganhava força no propósito de ocultar o problema social que gerava a criança não desejada, percebido na política da roda dos expostos. As crianças eram majoritariamente oriundas das famílias de elite, uma vez que os filhos dos escravizados logo eram encaminhados para o mercado escravo, ou destinados à força de trabalho. Segundo o autor, cerca de 80% das crianças acolhidas nas Santas Casas de Misericórdia eram lá colocadas por famílias da própria elite. A política da roda dos expostos, importada da Europa e trazida pelos portugueses, ocupou longo tempo na política assistencialista brasileira, aproximadamente de 1926 a 1950. Foram criadas como 29 estratégia de proteção à criança e marca o início da educação infantil, tema do próximo capítulo. Embora as primeiras políticas públicas voltadas para as crianças tenham começado a ser implementadas no fim da época do Brasil colônia, isso ainda não representou um marco na realidade do tratamento degradante das crianças e na compreensão do conceito de infância. Observa-se ainda que Dos escravos desembarcados no mercado do valongo. no RJ do início do século XIX, 4% eram crianças. Destas, apenas um terço sobrevivia até os 10 anos. A partir dos quatro anos, muitas delas já trabalhavam com os pais ou sozinhas, pois perder-se de seus genitores era coisa comum. Aos doze anos o valor de mercado dessas crianças já tinha dobrado. E por quê? Pois considerava-se que seu adestramento já estava concluído e nas listas dos inventários já apareciam com sua designação estabelecida: Chico “roça”, João “pastor", Ana “mucama”. transformados em pequenas e precoces máquinas de trabalho (Del Priore, 2015, p.14). As questões do trabalho norteiam grande espaço na trajetória da infância no Brasil, e ainda nos dias atuais as questões de estudo sobre a evasão da escola majoritariamente circundam a relação de trabalho, ou de si próprio necessitar ausentar-se da escola para trabalhar ou pela ausência dos pais, que demandam da criança em casa para atribuir-se dos serviços domésticos, tendo em vista uma rotina familiar incerta que não subsidia condições para que as crianças frequentem a escola. Crianças escravas eram desprovidas de qualquer direito desde o nascimento; nem sempre podiam ficar com a mãe, sendo vendidas mesmo bem pequenas. Apenas em 1869 foi instituída a lei que proibia a separação de famílias escravas por meio de venda, mas mesmo assim muitas vezes não era cumprida. Com cerca de quatro ou cinco anos de idade, ficavam reservadas às crianças escravas várias tarefas consideradas mais simples: “aos doze eram entregues ao trabalho mais pesado após a devida conclusão de seu ‘adestramento’” (Góes; Florentino, 2011, p.184). É espantoso notar no relato acima que as crianças escravizadas são descritas sem serem vistas como seres humanos que precisam de cuidados, mesmo enquanto servem outras crianças, que em virtude de seu poder econômico, já são vistas com o olhar afetado da cultura europeia vinda dos colonizadores como necessitadas de atenção especial, tendo alguma preservação para que se pudesse viver a infância. Já no contexto das crianças indígenas que viviam no Brasil nessa mesma época, eram forçadas a trabalhar em atividades como a agricultura ou, em alguns casos, na 30 escravidão. Além disso, houve uma tentativa adestradora de impor a religião e os costumes europeus, o que afetou suas identidades culturais. O mais surpreendente é a evidência do questionamento anteriormente feito sobre os tipos de oportunidade para usufruir da infância (se a criança é responsabilizada em ficar com os irmãos menores, para que os pais possam trabalhar terá oportunidade de vivenciar a infância de forma diferente da criança que tem um adulto para cuidar dela enquanto seus pais trabalham), serem totalmente pertinentes na atualidade. Dentre os registros sobre a criança e a concepção de infância na transição do Brasil Império para o Brasil República, recorta-se aqui a reincidência nos relatos sobre a visão de cuidados e afetos a crianças sendo percebido como cultura disseminada pelas mães de leite. Elas que iniciam a propagação da tradição de carinho para com os pequenos. Sobre isso, contextualiza-se que a questão do cuidar está atrelada a criança, e é de tal importância que os documentos regulamentadores não se deixam dissociar o conceito de educar e cuidar. A necessidade de institucionalizar os cuidados das crianças erradicando os espaços informais sem garantia de cuidados também consideram conceitos de moral e bons costumes da época, que não era passado as crianças, uma vez que tais locais eram desconsiderados como detentores de dignidade, o que também era ponto de preocupação entre as autoridades da época. Crianças brasileiras estão em toda parte. Nas ruas, à saída das escolas, nas praças, nas praias. Sabemos que o seu destino é variado. Há aquelas que estudam, as que trabalham, as que cheiram cola, as que brincam, as que roubam. Há aquelas que são amadas e, outras, simplesmente usadas (Del Priore, 2015, p. 8). Pensando na questão histórica da definição de criança e infância com foco no processo de ensino aprendizagem problematiza-se: quais são os empecilhos que atropelam o conceito de criança e ao invés de dar plasticidade, plastificam sua desenvoltura genuína? Qual o tempo de aprendizagem de cada criança? Qual espaço é dado a criança quando inserida no sistema de ensino e sujeita ao currículo escolar? Quanto se diferencia da negação das peculiaridades da criança nos primórdios da evolução histórica, quando se depara com processos educativos não inclusivos? E, fundamentalmente, quanto é considerado a periodização do desenvolvimento da criança nas práticas pedagógicas? Como essas questões participam na definição do que é ser criança na atualidade? 31 A infância é, simultaneamente, uma categoria social, do tipo geracional, e um grupo social de sujeitos activos, que interpretam e agem no mundo. Nessa acção estruturam e estabelecem padrões culturais. As culturas infantis constituem, com efeito, o mais importante aspecto da diferenciação da infância (Sarmento, 2007, p. 36). Ao pensar o ato educativo a partir do conceito de civilização visto aqui nos recortes históricos, surgem duas vertentes: a educação moral, que historicamente é atribuída primeiro como responsabilidade da família e a instrução para escola. Neste momento da história, Marcílio (2011) aponta que era recorrente relatos de que crianças da elite, por volta dos sete anos, se pensasse em formalizar instruções, mas que a mulher não tinha direito à educação e, quando tinha acesso à escola, era para aprender tarefas domésticas consideradas como femininas, como o corte e costura. Já os meninos tinham acesso à escola para aprender os conteúdos formais além de as vezes até receber apoio financeiro para concluir os estudos no exterior e retornar como doutor. Na realidade das crianças escravizadas, como visto na citação anterior, nenhuma oportunidade lhes era permitida, nem mesmo a de garantia à vida. Ilegitimidade da criança, hora da mulher, falta de recursos e até mesmo controle de natalidade foram algumas das razões encontradas pelos historiadores para exposição de crianças durante um longo período da história do Brasil. Esses pequenos expostos, apesar de receberem cuidados do poder público, das Santas Casas e de famílias caridosas, nem sempre conseguiam sobreviver. Quando não eram comidos por animais das ruas, eram vítimas de moléstias, mantendo elevada taxa de mortalidade infantil no país. O infortúnio de não sobreviver ou não ser criado pela própria família sinaliza o fato de que a infância estaria sob processo de construção (Marcilio, 2011. p.8). Nesse movimento de resgate histórico, o olhar foi direcionado para qual infância e quem eram as crianças com deficiência, as histórias encontradas são de silenciamento. Mendes (2010, p.11) aponta que “de fato, o acesso à educação dos portadores de deficiências3 foi sendo muito lentamente conquistado, e essa conquista ocorreu na medida em que se ampliaram as oportunidades educacionais para a população em geral.” 3 Atualmente o termo utilizado é pessoa com deficiência. Pessoas com deficiência são aquelas pessoas com lesão que são colocadas em situação de deficiência pela sociedade (...) a importância das terminologias para a identificação das pessoas, existe para o reconhecimento da própria história e para não rotular a deficiência (Nepomuceno; Carvalho-Freitas, 2020, p. 20). 32 Januzzi (2017), retratando a educação da pessoa com deficiência no Brasil, dá pistas de que a infância e o conceito de criança andavam na sombra do mesmo ritmo encontrados nas narrativas até aqui descritas, todavia, percebe-se que, no caso de crianças com deficiência, as tendências segregadoras e excludentes tinham marcas negativas ainda maiores. a educação de crianças deficientes encontrou no país pouca manifestação. Poucas foram as instituições que surgiram e nulo o número de escritos sobre sua educação. [...]. Em 1730, em Vila Rica, havia a irmandade de Santa Ana, que previa no artigo 2º do seu estatuto uma casa de expostos e asilo para desvalidos, surgida para cuidar de órfãos e crianças abandonadas. Neste sentido, as Santas Casas de Misericórdia, seguindo a tradição europeia transmitida por Portugal, que atendiam pobres e doentes, devem ter exercido importante papel [...] percebe-se que a partir da criação do hospital, que acentuou-se o acolhimento das crianças abandonadas até a idade de 7 anos [...] pode-se supor que muitas dessas crianças traziam defeitos físicos ou mentais [...] a criação da roda dos expostos podem ter facilitado a entrada de crianças com algumas anomalias, [...]. Em meados do século XIX, algumas províncias mandaram vir religiosas para administração e educação dessas crianças, [...]. Assim, havia possibilidade de não só serem alimentadas como também receberem alguma educação, [...] as meninas permaneciam no seminário até se casarem e os meninos até obterem uma profissão. [...]. Em 1847 foi organizada uma Escola Normal, para as meninas que nela se formavam professoras. Os meninos, desde 1845, eram também enviados para o Arsenal de Marinha. É importante notar o intuito dessas medidas administradas pela Santa Casa de garantir-lhes trabalho futuro, atitude nem sempre comum na época. Também se pode supor que algumas crianças com anomalias não acentuadas tivessem recebido o mesmo encaminhamento, enquanto outras mais prejudicadas permanecessem com adultos nos locais que essas Santas Casas mantinham para doentes e alienados (Januzzi, 2017, p.19 e 20). Estas, com viés filantrópico e assistencialista, nem sempre demonstrando cuidado e interesse de ser preservador da dignidade humana, era um espaço de acolhimento para quem o destino quase certo, era abandono total. Em 1821, a escritora e desenhista inglesa Maria Graham, que foi governanta dos filhos de D. Pedro e da princesa D. Leopoldina, analisou a rede de relações sociais que se desdobrava nessa instituição fechada: [...]. A primeira vez que à Roda dos Expostos (parece impossível) achei que sete crianças com duas amas; nem berços nem vestuário. Pedi o mapa e vi que em treze anos tinham entrado perto de 12.000 e apenas tinham vingado 1.000, não sabendo a Misericórdia verdadeiramente onde eles se achavam (Leite, 1991, p.67). O relato acima expressa a coisificação da criança nessa época, tanto morre quanto nasce, condizente ao pensamento escravagista propagado à época, que elegia quem tinha direito de exercer sua humanidade de acordo com critérios sempre 33 condicionados a condições financeiras. A infância e o direito de ser criança só vai se distanciar dessa realidade de forma considerável em termos no período pós-moderno. O movimento de tratar as crianças preservando principalmente condições de sobrevivência sempre prevaleceu, mas seu êxito não foi um processo rápido. A Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871 proclama o Ventre livre, marcando de forma gradativa a infância das crianças do tempo Brasil império. Segundo Mattos (2009), o conceito liberalismo já espalhado em toda américa, impulsionava o fim da escravidão como um todo e não apenas das crianças. Todavia, o conceito de propriedade e ideia de prejuízo financeiro atrelado ao mito de possível desordem social com a libertação total dos escravizados era um forte entrave que perdurou e postergou a real liberdade dos escravizados, mesmo após o incentivo de indenização do Estado e proclamação da libertação com a Lei Áurea em 1888. Em meio a este contexto em geral, as crianças chamadas de ingênuos que foram decretadas como livres, nascidas pós lei do ventre livre, eram colocadas sobre a responsabilidade dos próprios senhores que ainda escravizavam suas mães, podendo ali ficar até os 8 anos de idade. Posteriormente poderiam entregar para o governo em troca de uma indenização, ou ficar com a criança até os 21 anos, desde que não fosse dado castigos excessivos. E as crianças acabavam se unindo as mesmas condições dos acolhidos nas rodas dos excluídos. As crianças negras, a margem da sociedade e sem acesso ao mínimo oferecido pela sociedade, conta outra face da mesma história na construção do conceito de criança e infância que se tem no presente. É preciso ter em mente ao ler qualquer pesquisa que aborde o resgate da história da criança e conceito de infância, que nesse momento da história, tem-se a origem dos muitos que viriam a ser moradores dos internatos. Crianças classificadas pela cor e pela privação da condição de ensino sobre o que é ser um ser humano já que desde seu nascimento foram majoritariamente privados da cultura oficial do Brasil e, principalmente, de condições dignas de subsistência. Existe um mundo paralelo que acontece junto a história do mundo que permanecem nos relatos orais de geração a geração, pois demoraram a serem considerados dignos de serem escrito, ora ou outra aparecem aumentando os números das estatísticas, como aponta Leite (1991), ao trazer o relato da funcionária que coloca as condições de ser criança: “Pedi o mapa e vi que em treze anos tinham entrado perto de 12.000 e apenas tinham vingado 1.000, não sabendo a Misericórdia verdadeiramente onde eles se achavam”. Entre as 11 mil crianças não sabidas, 34 segundo Freyre (2016) e Machado (2012) estão as histórias orais que ficaram na oralidade. Marcilio (2011) reafirma que em contextos gerais, o final da escravidão deveria ser sinônimo de pura liberdade e condição da dignidade e vida humana, todavia, os problemas sociais continuam, devido às condições às quais as pessoas ex-escravas eram submetidas. Conceitos de conveniência da soberba capitalista transcendem os tempos da história e prevalecem. Pensemos, ora, a pessoa que era até enquanto condição de escravizada capacitada para fazer trabalhos, quando definido que lhe era preciso pagar para que fizesse o mesmo trabalho, foi fortemente vista e blasfemada como incapaz. Várias ações foram implementadas com o viés de separar os ex- escravizados do acesso às boas condições sociais, e as famílias pobres concentram- se longe dos grandes centros, iniciando-se as periferias. As crianças negras e pobres, principalmente nas cidades em crescimento, frequentemente enfrentavam o trabalho infantil como uma das poucas formas de sustento. Elas trabalhavam em empregos informais e precários, como vendedores ambulantes, carregadores e trabalhadores em fábricas ou em plantações no campo. Machado (2012) relata que o trabalho infantil era amplamente aceito e não havia uma legislação efetiva que garantisse a proteção dos direitos das crianças, e as Instituições como orfanatos, abrigos e reformatórios se tornaram o destino de muitas dessas crianças consideradas "em situação irregular", ou seja, aquelas que viviam nas ruas, cometiam pequenos delitos ou simplesmente eram órfãs ou abandonadas. Em 1927 foi criado o primeiro código de menores, acredita-se que foi devido a ascensão que o Brasil vivenciava com movimentos de urbanização, industrialização e modernização de diferentes setores. A convivência das crianças com pessoas que estavam a margem da sociedade e que eram adeptas da criminalidade poderiam influenciar os pequenos a seguirem caminhos que excedem os limites da infância, levando-as a ter atitudes ilícitas. O código criminal da República de 1890 já denotava meios de penalização de menores infratores em seu Art. 30: “Os maiores de 9 anos e menores de 14, que tiverem obrado com discernimento, serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriais, pelo tempo que ao juiz parecer, contanto que o recolhimento não exceda à idade de 17 anos.” (Brasil,1890). O código de menores ou Código Mello Mattos como era chamado foi criado basicamente para disciplinar a criança, proteger, tirando do meio social o delinquente, marginalizado que fora instaurado pelo próprio governo quando não deu condições sociais, pós libertação 35 de pessoas que foram escravizadas ao mesmo tempo em que separou o que é dever do Estado e o que é dever da família. Em um salto histórico, o refinamento do conceito de criança e infância independente da raça, gênero e condições sociais, para se ter amplitude na garantia de direitos das crianças demorou oficialmente quase 100 anos, vindo com a Lei nº 8.069/1990, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual propõe legalmente maior dimensão no que se refere a proteção ampla da criança, para além das condições mínimas de subsistência (Brasil, 1990). Em termos de leis, após a legislação do Código de Menores de 1927, voltada para o controle das crianças marginalizadas, com caráter repressivo, tem-se também a Consolidação das Leis do Trabalho (1943), em que aparecem as primeiras regulamentações do trabalho infantil. A reformulação do Novo Código de Menores (Brasil, 1979), mesmo reformulado ainda se caracteriza como ferramenta de controle social, mantendo um viés punitivo que só foi revisto na Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988). Nesta, há o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e a criação do princípio da proteção integral, prevendo uma lei especifica que é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – 1990, onde a Consolidação de um marco legal progressista e protetivo para a infância é garantindo, e nele é reforçado o papel do Estado, não mais na versão de punição, mas entendendo a criança como ser em situação peculiar de desenvolvimento, baseando assim suas normativas na garantia de proteção e desenvolvimento das crianças. O ECA representou um rompimento definitivo com a visão punitiva e excludente do passado, focando na inclusão social e na dignidade das crianças e adolescentes. A partir dos recortes da história social da infância e concepção de criança realizados até aqui, tentou-se pincelar questões fundamentais mais recorrentes, olhando para as condições de desigualdade e diversidade, para a hierarquia de gênero e papeis sexuais, para práticas sociais desiguais com relação as classes econômicas, étnico racial, posição social que ocorriam de formas diferentes em cada contexto (indígenas, negros, órfãos portugueses), circundando discurso higienistas4, 4 Na educação, essa influência foi fundamental, presente em inúmeros aspectos. (...) os higienistas discutiam os projetos para construção de escolas, a implantação dos serviços de inspeção medico- escolar, apresentavam sugestões para todos os ramos do ensino, em especial com relação a educação primaria e infantil (Kuhlmann, 1998, p.91). 36 assistencialistas, moralistas e religiosos, que podem elucidar problemáticas ainda presentes na infância dos tempos de Beyblade. De acordo com Kuhlmann e Fernandes (2002, p. 22) a “transformação das mentalidades na longa duração histórica não pode ser entendida da mesma forma como se analisam as mudanças conjunturais, quando se identificam rupturas políticas e mudanças institucionais em períodos mais curtos.”, ou seja, as práticas sociais deixaram de herança as hierarquias e as relações de poder veladas. Por exemplo, nos sentimentos das brincadeiras, comportamentos e práticas orientadas para ser funções de meninos ou de menina, o que na vida adulta, tal como se perpetuam, dificultando ou excluindo a mulher no mercado de trabalho de alto escalão e ou desequiparando seu salário de forma inferior. pensar a criança na história significa considerá-la como sujeito histórico, e isso requer compreender o que se entende por sujeito histórico. Para tanto, é importante perceber que as crianças concretas, na sua materialidade, no seu nascer, no seu viver ou morrer, expressam a inevitabilidade da história e nela se fazem presentes, nos seus mais diferentes momentos. A compreensão da criança como sujeito histórico exige entender o processo histórico como muito mais complexo do que uma equação do primeiro grau, em que duas variáveis de estrutura explicariam tudo o mais (Kuhlmann, 1998, p. 32). Pensar quem é essa criança, qual a sua cultura, crenças e valores muito se aproxima da proposta do DUA que considera, por exemplo, a opinião da criança no momento da aprendizagem. Desse modo, o professor busca qual o estilo de aprendizagem daquele estudante, ou seja, a melhor forma que se apropriará dos conteúdos. Contudo, isso nos permite perceber que ao ensinar é preciso ter clareza das condições peculiares que foram historicamente negadas, para que seja proposto um ensino de qualidade e humanizador sem perpetuar exclusões. Quando se assume a desigualdade social presente no contexto escolar com um olhar historicamente fundamentado, entende-se que as crianças são diferentes, e que múltiplas concepções de infância podem ser observadas ao longo da história. Também se conclui que são as condições sociais, influenciadas pelos avanços das pesquisas científicas acerca do funcionamento complexo do corpo humano e que mudam ao longo do tempo, que contribuem para o esclarecimento de que a criança não pode ser simplesmente ser tratada como um adulto em miniatura, não ser cuidada, sobrevivendo à própria sorte. 37 Observou-se ainda nesse resgate histórico que o homem modifica o meio tal como é modificado por ele, o que nos permite definir a partir da realidade econômica/social e cultural do público alvo desta pesquisa, neste ano de 2024, que a infância é entendida como um fenômeno historicamente demarcado, volátil às questões econômicas, sociais, culturais dentre outras questões que influenciam o comportamento social do grupo. Período da vida humana protegido por legislação específica que garante seu desenvolvimento pleno no convívio familiar e comunitário com todas as condições necessárias para sua sobrevivência com dignidade. Destacado pelas palavras chaves: propriedade e protagonismo a quem nele esteja, o período tem o resguardo do direito a brincar, aprender, explorar, direito ao erro e de ter máxima proteção. Criança é o sujeito humano com idade de 0 a 12 anos incompletos, resguardado pelo estatuto da criança e do adolescente. Considerando toda essa trajetória das múltiplas infâncias, a definição de infância e criança pontuada nesta pesquisa e voltando-se para a situação do ensino aprendizagem, questiona-se: qual espaço a criança da turma que se leciona, tem na sociedade em que se vive? De que forma o ensino que se propõe, parte da escuta e consideração dos seus princípios? O que a criança pensa e prefere é considerado nos meios, modos, e configuração da apresentação dos conteúdos historicamente sistematizados? Questionamentos como esses a serem feitos antes e durante o processo de ensino aprendizagem que se envolve, darão sentido qualitativo a vida de quem nele participa. Também aproximará ao alcance do objetivo para o qual a escola foi criada, que supera o adestramento de seres humanos e alcança o conceito de humanizar a espécie humana sem desumanizar-se no processo. Questionar e agir sobre o espaço de ser protagonista e sobre a zona de escuta que se tem dado às crianças, relaciona- se diretamente com a abordagem do DUA que visa eliminar barreiras no processo de ensino na medida que dá possibilidades íntimas a cada criança nesse processo. 38 2 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL: DO DIREITO A PROTEÇÃO AO CONCEITO SOBRE O QUÊ APRENDER NA EDUCAÇÃO INFANTIL. Duas mamães eu tenho, Sei que ambas têm amor sem fim. uma lá em casa hoje deixei, Outra me espera no jardim.5 Quais conhecimentos são exigidos para que se sintam realmente parte do grupo social do qual se faz parte? Existe um tempo certo para começar a aprender a ser “um ser humano"? A escola é um espaço de humanização? Qual objetivo se deve ter no currículo específico na educação infantil? Essas interrogações nos convidam a refletir sobre esses e outros questionamentos, delimitando-nos a pensar sobre o tema da pesquisa sobre os meios e modos na concepção dos processos educativos utilizados pelos professores de Educação Infantil, fundamentados nos princípios do DUA. Tem-se como verdade que a perspectiva do valor do conhecimento é substancial para definição da espécie humana, e que deve ser ofertado de forma humanizada. A prática desse entendimento é identificada na ação do professor quando faz utilização de recursos, que incluem todas e a cada uma das crianças em seu processo de ensino e aprendizagem. Mas porque é necessário produzir, em cada indivíduo, a humanidade? Isso é necessário porque a criança não nasce já com as características que definem o ser humano. Para que ela se constitua como homem, exige-se intervenção dos seres humanos já constituídos como homens, exige-se a intervenção dos seres humanos já constituídos como homens, especificamente dos adultos. Essa peculiaridade da espécie humana é evidenciada de forma clara pelo fenômeno que ficou conhecido como “crianças Selvagens” (Saviani, 2013, p. 247). Agir de forma a contribuir no movimento de apropriação de conhecimentos pelo sujeito, dando significado histórico-cultural de cada conteúdo é tão necessário para perpetuação da espécie humana, quanto o ato de reconhecer a diversidade e ter atitudes inclusivas. 5 Poema não assinado, disponível no livro: Infância e educação infantil: uma abordagem histórica de (Kuhlmann, 1998, p.113). 39 Enxergar a diversidade presente na criança, considerar o tempo de viver a infância e, a partir desse reconhecimento desenhar meios, modos e possibilidades de auxiliá-la no desenvolvimento máximo de suas habilidades humanas é um dos pilares propostos na abordagem do DUA, utilizado para conduzir esta pesquisa. Para fundamentar e facilitar a compreensão dos movimentos de práticas de ensino e artefatos propostos, propõe-se refletir a partir do resgate histórico a dimensão da obrigatoriedade legal dessa modalidade, delimitando sua estrutura, compreendendo quais conteúdos curriculares à ela foram atrelados, para então entender qual o desenvolvimento esperado dos seres humanos matriculados na Educação Infantil. Em uma sociedade onde a comunicação é majoritariamente centrada no domínio das habilidades de escrita e leitura, o ensino destas devem ter plasticidade e humanização. Segundo Vygotsky (1991), estas são instrumentos de comunicação, sendo que a escrita, primeiro vem como alternativa de expressão do pensamento; segundo, apresenta-se como possibilidade de recordar a história cultural produzida e, com isso, favorece a evolução social, facilitando a interação entre as pessoas. Nesse sentido, aprender a ler e escrever é expansão da linguagem da comunicação e aprender a comunicar-se é destaque na essência de seres humanos humanizados. Entende-se nesse processo então, que não se pode deixar ser excluir as pessoas que por razões fisiológicas não dominarão tais ferramentas. Dessa forma, o professor enquanto interlocutor dos conhecimentos historicamente sistematizados, precisa a partir da consideração das peculiaridades de cada criança, ser criativo e propor meios e modos para que se apropriem da leitura e escrita e, quando necessário, criem alternativas de linguagem comunicativa para que todas as crianças se sintam incluídas. Considerar a diversidade humana é definir homem como humano, e para que “se seja” humano é preciso ensinar tendo para si esse entendimento bem enraizado, distanciando-se de práticas homogeneizadoras. Observa-se que conforme a sociedade evolui a escola se reorganiza para atender as demandas sociais de comunicação, instrumentalização, apropriação das invenções na história do Mundo, dentre outros. A influência da escola deve ser compreendida à luz de sua evolução histórica, da qual emergiu como instituição destinada a instruir os educandos da classe privilegiada sendo, portanto, por longo período, restrita a poucos. É com o processo de modernização da sociedade que a escola se faz necessária para a formação da população em geral, no entanto, a educação escolar, mesmo 40 com a democratização do acesso ao ensino, sempre foi diferenciada entre os segmentos sociais, pois, para a classe dominante, a escola é considerada meio de formação intelectual e acadêmica. Já para as camadas pobres, a escola é vista como meio de qualificação para o trabalho e de mobilidade social. A instituição escolar mostra-se, assim, como instrumento de educação diferenciada das formas básicas existentes, como a família e a comunidade que se configuram pela fragmentação e a sistematização de suas práticas. Ao contrário, a instituição escolar apresenta-se com o intuito de produzir e reproduzir uma homogeneidade cultural relacionada com a divisão do trabalho, sendo parcialmente determinada por conflitos sociais e por relações de dominação (Perez, 2012, p. 14). A escola de Educação Infantil surge como reflexo da modernização da cultura social, em uma revisão do sentimento e valor dado à criança na instituição familiar. A nova concepção sociocultural do período da infância que defende as crianças, respeitando suas peculiaridades e necessidades especiais de cuidados, colide com os anseios exacerbados de desenvolvimento econômico, que encontra-se estruturado na exploração desumana do trabalho da massa populacional. Na história do movimento de organização de espaços educacionais, segundo Perez (2012), observa-se no Brasil o surgimento e proliferação desses espaços, fortemente afetados por status sociais e gênero, no qual, a tendência das crianças ricas, era usufruir de mais acesso à informação científica se fossem meninos, enquanto as meninas tinham acesso mais limitado, mais direcionado para a área doméstica. Quanto aos pobres, os cuidados eram mais de sobrevivência e preparação para trabalhos árduos. Em geral, o trabalho junto às crianças nas creches era de cunho assistencial- custodial. A preocupação era com alimentar, cuidar da higiene e da segurança física. Não era valorizado um trabalho voltado para educação, para o desenvolvimento intelectual e afetivo das crianças. Enquanto isso, os primeiros jardins de infância [...] para os filhos das camadas privilegiadas, desenvolviam toda uma programação pedagógica (Oliveira, 1988, p.47). Atualmente, em âmbito global esta separação velada ainda ocorre, quando crianças de famílias ricas em sua maioria tem acesso à Educação Infantil nas escolas com horário integral, que oferecem possibilidades de conhecimento do mundo para além daquelas delimitadas no currículo nacional, como exemplo: natação, ballet, judô, karatê, línguas estrangeiras, conteúdo bilíngue entre outros. Quando frequentam escolas de período parcial, realizam essas atividades no contraturno. Em contraposição, crianças pobres que acessam escola de período integral, que raramente são ofertadas as atividades acima mencionadas, ou período parcial sendo 41 que no contraturno, quando ambos os pais trabalham, ficam os cuidados proferidos pela família extensa. Nesta cadência, quando adolescentes, em sua maioria, os ricos ingressam em escolas preparatórias para vestibular e os pobres em cursos técnicos profissionalizantes. Em termos técnicos, a escola de Educação Infantil surge posteriormente à instituição creche, e sua expansão de atendimento ao público infantil está diretamente relacionada às políticas e legislações brasileiras, que têm em sua base o objetivo de proteger as crianças, perpetuando-se com o novo conceito de definição de infância e criança iniciado no século XVII, e semi-importados na cultura dos colonizadores. A palavra “creche” criada pelo padre Oberlin na França do século XVIII, significa na língua francesa “manjedoura”, representando a preocupação religiosa e do novo movimento originado na política da roda dos expostos em acolher os bebês, com a ideia fortemente religiosa de compensar as mazelas da sociedade, acolhendo as crianças em situação de vulnerabilidade e abandono. No Brasil, até o início do século XX, o atendimento de crianças em creches inexistia basicamente no Brasil. O que havia no sentido de cuidado da criança pequena longe da mãe no meio rural era absorção natural das inúmeras crianças órfãs ou abandonadas, filhos de bastardos originados em geral da exploração sexual da mulher negra e índia pelo senhor branco, adotados por famílias de fazendeiros, ou o recolhimento das mesmas nas “rodas de expostos” existentes em algumas cidades (Oliveira, 1988, p.45). A política da roda dos expostos, assumida quase que exclusivamente por filantropia de cunho religioso dura oficialmente quase trinta anos, se arrastando um pouco mais em algumas localidades como no Estado de São Paulo, cuja extinção gradativa deu origem as instituições denominadas como orfanatos, primeiros passos rumo à criação de espaços de proteção infantil em caráter institucional, dentre elas a creche. Em 1879,aparece uma das primeiras referências à creche em nosso país, contidas num artigo publicado no jornal “A Mãi de Família”, editado no Rio de Janeiro, O artigo, apresentado por um médico da Casa dos Expostos, propunha que a Irmandade da Misericórdia instalasse uma creche destinada aos filhos da ex-escravas e, de acordo com o moralismo disciplinar higienista a definia como “[...] um estabelecimento de beneficência que tem por fim receber todos os dias úteis e durante as horas de trabalho, as crianças de 2 anos de idade para baixo, cujas mães são pobres de boa conduta e trabalham fora de seu domicílio.”(Civiletti,1991:3). Em 1889, no Rio de Janeiro, a primeira creche junto a uma empresa, pela fábrica de fiação e tecidos do corcovado. Em São Paulo, isso só viria a acontecer em 1918, no contexto de 42 pressões do movimento operário, que já aparecia com força em nossa história e pleiteava a ampliação de “benefícios sociais” junto aos patrões (Lajolo, 1997, p.36). Neste ponto é importante contextualizar quatro olhares na história da educação das crianças no Brasil, seguindo o mesmo ponto de múltiplas infâncias que fazem parte da história do conceito de criança e infância. Mapeia-se a partir dos estudos de Rizzini e Pilotti (2011) que simultaneamente ocorriam várias histórias dentro do mesmo tempo histórico, dentre estas encontram-se: a) criação de escolas em geral seguindo o percurso dos Jesuítas praticado com crianças maiores que já não dependiam de tantos cuidados existenciais, mais próximo dos sete anos; b) os asilos de órfãos e desvalidos, que constroem a história da crianças já próximo dos sete anos, abandonadas ou denominadas com desvio de conduta ou infratoras; c) as crianças público alvo do serviço da educação especial construíram sua história, quando em oportunidade eram atendidas em serviços médicos e assistenciais; e, d) os bebês construíram sua história escolar a partir da extinção da roda dos expostos. As crianças enjeitadas nas Rodas eram alimentadas por amas-de-leite alugadas e também entregues a famílias, mediante pequenas pensões. Em geral, a assistência prestada pela Casa dos Expostos perdurava em torno de sete anos. A partir daí, a criança ficava, como qualquer outro órfão, à mercê da determinação do Juiz, que decidia sobre seu destino de acordo com os interesses de quem o quisesse manter. Era comum que fossem utilizadas para o trabalho desde pequenas. Na Casa dos Expostos, a mortalidade era bastante elevada, tendo atingido a faixa dos 70% nos anos de 1852 e 1853 no Rio de Janeiro (Teixeira,1888), devido à falta de condições adequadas de higiene, alimentação e cuidados em geral. Consta que a Roda do Rio de Janeiro funcionou até 1935 e a de São Paulo até 1948, apesar de terem sido abolidas formalmente em 1927 (Rizzini; Pilotti, 2011, p. 20). Os quatros pontos acima são marcos da história, denominado por Perez (2012), como múltiplas infâncias, pois, pontuam a origem do formato que se tem hoje de importantes espaços infantis, como por exemplo: casa de acolhimento, projetos sociais, fundação casa, escola de educação especial, escolas de ensino fundamental e escola infantil. O ponto político em comum nessas instituições ao longo da história, é o papel de observador e mero colaborador que o governo se posicionou, evidenciado na forte presença da igreja como mantenedora de todos esses projetos, tendo do governo pontuais contrapartidas. A exemplo disso, o relato a seguir nomeia a renda vinda de voluntários, “Os fundos do Hospital dos Expostos, que foi instituído em 1738 43 provém, atualmente, de rendas, caridade e dívidas a serem cobradas6, nas proporções de 29, 48 e 27” (Leite, 1991, p. 68). Tal situação de descaso do governo, não assumindo a responsabilidade do caos social apadrinhado na oportunidade estruturada de praticar a imoralidade do abandono, é reincidente em outros relatos na história, indicando constância do governo em fazer participações pontuais de financiamento. Embora a necessidade de ajuda ao cuidado dos filhos pequenos estivesse ligada a uma situação criada pelo próprio sistema econômico, tal ajuda não foi reconhecida como um dever social, sendo apresentada como um favor prestado, um ato de caridade de certas pessoas ou grupos (Oliveira,1988, p.45) Observa-se que a postura indiferente e omissa do governo foi desacelerada ao longo da história pela criação de legislação específica impulsionadas por movimentos sociais, que nomeiam o governo como responsável em custear determinados programas de atendimento às crianças. A exemplo7, na Constituição Federal prevê-se que “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” o inciso XXV, propõe a ” garantia de “assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas” (Brasil, 1988 cap. II, art. 7). Outra salvaguarda pode ser observada “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade” (Brasil, 1988, cap. III, art. 208). Além do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990), ao abordar no Art. 54 sobre a responsabilidade do Estado em garantir à criança de zero a cinco anos o acesso a creches e pré-escolas. Desacelerada, mas não extinta. A referida prática continua a ser encontrada nos dias atuais em situações relacionadas à infância e à criança. Na própria escola pública, mesmo que não seja para arcar com gastos básicos de estrutura, não é 6Atualmente, algumas ações indenizatórias de processos julgados são direcionados pelo fórum ao CMDCA - Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, que redistribui os valores a instituições filantrópicas credenciadas. O imposto de renda também possibilita que se destine valores ao CMDCA. 7 Exclui-se aqui a primeira menção da responsabilização do governo sobre a educação apresentada na Constituição do Brasil Imperial de 1824, sendo a primeira Constituição do País, que apesar de definir em seu Art. 179, inciso 32, “A instrução primária e gratuita a todos os cidadãos”, a suposta garantia de direito não pode ser considerada, pois, à época, negros e não proprietários de terra não eram considerados cidadãos, então esse direito não se estendia a maioria maciça da população Brasileira. https://www.jusbrasil.com.br/legislacao/1503907193/constituicao-federal-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil-1988 44 incomum a prática de rifas, eventos beneficentes e arrecadações espontâneas feitas pelos responsáveis dos alunos através da Associação de Pais e Mestres, para arrecadar fundos nas escolas que oficialmente são totalmente mantidas pelo governo. As poucas creches fora das indústrias, nas décadas de 20,30,40 e 50 eram de responsabilidade de entidades filantrópicas laicas e, principalmente religiosas. Em sua maioria, estas entidades foram, com o tempo passando a receber ajuda governamental para desenvolver seu trabalho, além de donativos das famílias ricas (Oliveira, 1988, p.47). Observa-se ainda que, especialmente os serviços destinados ao público da educação especial em grande demanda, dependem de iniciativas de criação de organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP)8, que após regulamentadas, buscam subsídios governamentais para auxiliar no atendimento. Ou seja, não é uma postura do governo criar espaços públicos de origem e iniciativa governamental para atendimento a essa população. Como exemplo, a escola de educação especial em caráter substitutivo que atende 280 alunos como público da educação especial, na APAE9, em uma cidade do interior de São Paulo. Segundo seu relatório do plano anual de 2023 cerca de 70% de suas despesas são cobertas pelos recursos Federais, Municipais e Estaduais, enquanto os 30% fica sob a responsabilidade da própria entidade, que recorre a doações de pessoas físicas, jurídicas, promoções de eventos e ainda vendas de serviços e/ou produtos que revertem para causa da instituição. Com relação aos financiamentos educacionais, na atualidade devido ao estreitamento da legislação a partir da mobilização social em responsabilizar o governo pelos custos, observa-se a emancipação gradativa da Educação Infantil com relação ao terceiro setor. Às creches, vinculadas geralmente à OSCIP, e originalmente mantidas totalmente pelas igrejas ou grupos similares. Hoje, por exemplo, na cidade em que foi realizada esta pesquisa, recebem auxílio da prefeitura municipal, com as despesas das creches sendo sanadas em torno de 70%. Além disso, observa-se um grande aumento na construção de escolas de Educação Infantil municipal. As creches brasileiras inicialmente surgem no Brasil partindo do princípio de educação compensatória e ações sustentadas no voluntariado. Em relação às origens do surgimento da creche no Brasil, é recorrente relatos entre os historiadores (Rizzini; 8 Antigamente denominadas entidades filantrópicas. 9 Informações extraídas do Plano de trabalho APAE (2023). 45 Pilotti, 2011; Perez, 2012; Vieira, 1988, Pacheco; Dupert, 2004; Kuhlmann; Fernandes 2002) que o impulso na criação de creches tem forte influência do fim legislacional da escravidão no Brasil, atrelado ao avanço da industrialização e aumento do êxodo rural, como acontecimentos marcantes que evidenciam a premência de espaços de proteção às crianças que possuem vínculo familiar, sendo seus pais trabalhadores pobres ou famílias desempregadas, marginalizadas e assoladas pela pobreza. De fato, no Brasil, as creches surgem para contribuir na produção de seres capazes, higiênicos, nutridos e sem doenças. Em decorrência disso, as poucas creches criadas nesse momento situavam-se, sobretudo, nas vilas operárias e eram mantidas, principalmente, por entidades filantrópicas e, em menor número, pelo Estado. O trabalho desenvolvido nas creches era, fundamentalmente, assistencial (Pacheco; Dupert, 2004, p. 104). Em 1922, no primeiro congresso brasileiro de educação e infância no Brasil amplia-se as discussões sobre moral e educação higiênica. E, em tempos onde a cultura social já incutiu valores de apreço às crianças e que o amor materno exige proteção aos seus, a inserção da mulher no mercado de trabalho dispara a necessidade de suprir essa nova demanda. O desespero de proteger a própria prole e garantir a sobrevivência, levou as famílias a aceitarem o que estava disponível. Nesse contexto, o trabalho exploratório e desumano, que se pensava ter sido encerrado com o fim da escravidão, continua a se expandir. (...) a desorganização e desajustamento moral e econômico obrigava as mulheres das classes populares a renunciarem ao lar para garantirem sua sobrevivência e a de seus dependentes no trabalho extradoméstico, (...) as creches eram vistas como indispensáveis. Indispensáveis porque seriam alternativa higiênica à criadeira ou tomadeira de conta, mulher do povo que tomava a seu cuidado crianças para criar. Pelas suas condições de vida, pelos hábitos incorretos adotados no cuidado das crianças, pela sua índole e caráter, a criadeira era vista como uma das principais responsáveis pela elevada mortalidade infantil. A creche nesse período foi útil instrumento de socorro às mulheres pobres e desamparadas. Ela era um recurso ligado à pobreza. A ela recorriam as mulheres forçadas a trabalhar: mães solteiras, mulheres abandonadas por seus companheiros, viúvas, e mulheres casadas que contribuíam com seu trabalho para aumentar o orçamento familiar. As crianças, em geral fruto de uniões ilegítimas, eram vistas como portadoras em potencial de maus hábitos e infecções (Vieira, 1988, p. 4). Nesse aspecto, a Educação Infantil brasileira pede uma divisão de olhares sobre a trajetória das crianças nesses espaços. Observando continuidade da trajetória histórica da educação infantil, percebe-se diferentes histórias de infâncias se cruzando. Por exemplo, na história dos internatos: no início das escolas infantis 46 particulares, que tem origem na história das criadeiras e mães mercenárias, que vão oferecer o serviço cobrado de forma reestruturada, as creches empresariais, creches filantrópicas e creches públicas, são a ramificação do atendimento realizado nas Santas Casas. Esta pesquisa resgata o olhar na trajetória de criação da Educação Infantil para as crianças pobres, pontuando o surgimento das creches públicas. Na medida em que o objetivo da creche se coloca como assistência e guarda de crianças pobres, há uma tendência a se atender ao maior número de famílias, de uma maneira emergencial, sem garantia de alguns critérios mínimos da qualidade desse atendimento (Rossetti-Ferreira; Amorim; Vitória, 1997, p. 117). Em contraponto, o jardim de infância surge trazendo em seu bojo conceitos de caráter pedagógicos atrelados ao cuidar. O primeiro jardim de infância público no Brasil teria sido instalado em 1886, quatro anos depois de Ruy Barbosa ter proposto no município da corte o “Jardim de crianças”, como uma educação preliminar a escola, que deveria ter a duração de três anos e integrar-se ao ensino primário (Lajolo,1997, p.36). Oliveira (1988) relata que as décadas de 1940 a 1960 seguiram com pleiteamento dos direitos das mulheres por melhores condições de trabalho e, por conseguinte, os movimentos feministas engrenavam as discussões acerca da equiparidade de oportunidades. Levantando-se, assim, a temática de qualidade, em meio ao crescimento de políticas populistas e a proliferação do projeto nacional desenvolvimentista. Neste período, a Legislação Brasileira de Assistência (LBA) e o Departamento Nacional da Criança, atuaram produzindo normativas de referência para a padronização do atendimento, fiscalização e superação das más condições de atendimento das creches, jardins de infância e espaços recreativos. Os apontamentos desses órgãos direcionaram a forma com que as crianças deveriam ser atendidas e a quem esses espaços eram destinados, tomando como referência conceitos morais, procedimentos instruídos pelos higienistas e tendência tecnicista que lentamente levanta a preocupação de educação formal. Nesse contexto, os jardins de infância trazem em seu bojo os conceitos sobre a relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento psicológico: “A psicanálise e as pesquisas behavioristas que mostravam a importância dos dois 47 primeiros anos de vida e apontavam que os desajustamentos dos adultos tinham, muitas vezes origem nas experiências infantis” (Vieira, 1988, p.14). A ditadura militar iniciada em 1964, abraça a ideia tecnicista e com o projeto de educação compensatória marca a década de 1970 com ideais de estimulação precoce e o preparo para alfabetização, com intuito de combater a marginalização das pessoas pobres, justificadas por eles pela privação cultural e pelos fundamentos behavioristas. O atendimento exclusivo à crianças ricas em jardins de infância, focado no aprimoramento do desenvolvimento infantil, incentiva a criatividade, as habilidades cognitivas, emocionais e sociais. Essa abordagem gerava uma tendência positiva de melhoria nos serviços oferecidos em creches para determinados grupos sociais. A educadora, sobretudo da escola maternal, necessitava ser mãe, enfermeira, professora, assistente social e ainda ser artista capaz, observadora atenta, ouvinte compassiva, informante segura, inspiradora, cooperadora, participante, instrutora, dirigente, conselheira, juiz imparcial- qualquer coisa, enfim que a situação exija para benefício da criança. [...] Para formação dessas educadoras apontava-se como solução a organização de cursos regulares nas escolas Normais ou nos institutos de educação, sendo que a lei orgânica do Ensino Normal incluía, nos cursos de especialização, o de educação pré-primária. Além disso, deveriam organizar palestras, visitar instituições de educação pré-escolar, fazer estágios e cursos intensivos (Vieira,1988, p.14). O olhar inicialmente preocupado em combater os espaços das criadeiras e a herança na postura de cuidar, somados ao avanço científico dos estudos da área da