1 UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP JOANA PRADA SILVÉRIO AAA mmmeeetttaaammmooorrrfffooossseee ssseeennniiiaaannnaaa::: poesia e crítica na obra de Jorge de Sena ARARAQUARA – S.P 2013 2 JOANA PRADA SILVÉRIO AAA mmmeeetttaaammmooorrrfffooossseee ssseeennniiiaaannnaaa::: poesia e crítica na obra de Jorge de Sena Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Poesia Orientador: Profa. Dra. Maria Lúcia Outeiro Fernandes Bolsa: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) ARARAQUARA – S.P. 2013 3 JOANA PRADA SILVÉRIO AAA mmmeeetttaaammmooorrrfffooossseee ssseeennniiiaaannnaaa::: poesia e crítica na obra de Jorge de Sena Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Poesia Orientador: Profa. Dra. Maria Lúcia Outeiro Fernandes Bolsa: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) Data da defesa: 29/04/2013 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Profa. Dra. Maria Lúcia Outeiro Fernandes Presidente e Orientador: Nome e título Universidade. Prof. Dr. Orlando Nunes de Amorim Membro Titular: Nome e título Universidade. Prof. Dr. Antônio Donizete Pires Membro Titular: Nome e título Universidade. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 4 AGRADECIMENTOS À UNESP. A todos os professores que fizeram parte dessa jornada. À FAPESP. 5 Terminei obra que nem a ira de Júpiter nem o fogo ou o ferro ou a voraz velhice abolirão. Que chegue a hora decisiva para o meu corpo apenas e encerre o espaço dos meus dias: e que a melhor parte de mim eleve muito acima dos mais altos astros, perene, e que nosso nome seja indelével, e que onde quer que se abra a potência de Roma sobre as terras dominadas eu seja lido pelo povo, e que de fama através dos séculos, segundo os presságios dos poetas, eu viva. Ovídio Quando a hora chegar em que já tudo na terra foi humano ― carne e sangue ―, não haverá quem sopre nas trombetas clamando o globo a um corpo só, informe, um só desejo, um só amor, um sexo. Fechados sobre a terra, ela nos sendo e sendo ela nós todos, a ressurreição é morte desse Deus que nos espera para o espírito seu e carne do Universo. Para emergir nascemos. O pavor nos traça, este destino claramente visto: podem os mundos acabar, que a Vida, voando nos espaços, outros mundos, há-de encontrar em que se continue. E, quando o infinito não mais fosse, e o encontro houvesse de um limite dele, a Vida com seus punhos levá-lo-a na frente, para que em Espaço caiba a Eternidade. Jorge de Sena 6 RESUMO Poeta português do segundo quartel do século XX, Jorge de Sena produziu uma obra única, conjugando proposições de ordem estética e ética com uma dialética consciência crítica acerca dos fenômenos literários. Ao entender a poesia como testemunho de linguagem, o poeta fundou as bases de sua poética, em que entram também a metamorfose e a peregrinação. Enquanto o testemunho cuida de denunciar as práticas sociais viciadas, ao mesmo tempo em que dialoga com a herança cultural da humanidade, a metamorfose trata de transformar as posições enrijecidas pelo exercício da meditação aplicada a objetos artísticos, dando azo ao lirismo especulativo. Para tanto, a metamorfose apoia-se na dialética entre a permanência e a mudança. A peregrinação garante, assim, a possibilidade de novas metamorfoses e de uma poesia que sempre se refaz. Por esses vetores, Sena fabricou a cosmovisão do tempo que lhe foi contemporâneo. Este trabalho tem por objetivo promover a intersecção entre a poética e a crítica seniana, partindo de dois pressupostos: 1) a poesia é núcleo irradiador das demais esferas de produção, ou ainda, o poema é uma forma de conhecer a realidade material e 2) o diálogo entre poesia e crítica assenta-se sobre o fato de que ambas são formas de criação. Para tanto, optou-se por trabalhar com o vetor da metamorfose e levantou-se a hipótese de associá- lo à experiência da Modernidade, já que ambos configuram-se como percepção temporal específica, que tem na transformação seu ponto principal. Dessa forma, a dissertação foi divida em três capítulos. No primeiro deles, intitulado “Leituras da obra seniana”, realizou-se a discussão acerca de pontos capitais da poética de Jorge de Sena. No segundo capítulo ― “A poesia seniana” ― traça-se o contexto histórico em que o poeta se forma. A isso, agrega-se uma definição de metamorfose e a discussão acerca da questão da Modernidade, enquanto espaço de experiência. O último capítulo promove a análise interpretativa de quatro poemas do livro Metamorfoses (1963), buscando seguir o caminho de leitura proposto por sua estrutura. Também há a análise exegética de dois textos teórico-críticos que tratam diretamente da Modernidade, tanto do ponto de vista histórico, quanto fenomenológico. O final deste capítulo é a intersecção pretendida. Palavras – chave: Jorge de Sena. Metamorfoses. Testemunho de linguagem. Poesia e Crítica. Modernidade. 7 ABSTRACT Portuguese poet of the second quarter of the twentieth century, Jorge de Sena has produced a unique work, combining propositions aesthetic and ethical with a dialectical critical consciousness of literary phenomena. By understanding the poetry as a testimony of language, the poet laid the foundations of his poetry, which also enters metamorphosis and pilgrimage. While the testimony cares to denounce social practices addicted, in dialogue with the cultural heritage of humanity, the metamorphosis is to change positions hardened by exercise of meditation applied to art objects, giving rise to speculative lyricism. Therefore, the metamorphosis is based on dialectic between permanence and change. Pilgrimage thus guarantees the possibility of a new metamorphosis and poetry ever remade. For these vectors, Sena fabricated the worldview of the time it was contemporary. This work aims to promote the intersection of poetics and criticism seniana, starting with two assumptions: 1) the poetry is radiating center of other spheres of production, or the poem is a way of knowing the material reality and 2) dialogue between poetry and criticism rests on the fact that both are forms of creation. Therefore, we chose to work with the vector of metamorphosis and rose hypothesized link it to the experience of modernity, as both appear as specific temporal perception, which has in transforming your main point. Thus, the dissertation is divided into three chapters. In the first, titled “Reading the work seniana”, was held discussion on points of poetic capital of Jorge de Sena. In the second chapter – “Poetry seniana” - draws up the historical context in which the poet is formed. To this, adds a definition of metamorphosis and discussion about the issue of modernity, as an area of expertise. The last chapter promotes interpretive analysis of four poems from the book Metamorphoses (1963), seeking to follow the path proposed by reading its structure. There is also the exegetical analysis of two critical- theoretical texts dealing directly Modernity, both from a historical standpoint, as phenomenological. The end of this chapter is the desired intersection. Keywords: Jorge de Sena. Metamorphoses. Testimony of language. Poetry and Criticism. Modernity. 8 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS A.R. apoio rítmico | cesura [ ] tônica secundária v. verso vv. ver verso 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 1. Leituras da obra seniana 16 2. A poesia seniana 33 2.1. Metamorfose 40 2.2. Modernidade 51 3. Da Intersecção entre poesia e crítica: metamorfose e modernidade 59 3.1. Corpus poético 59 3.2. Corpus crítico 94 3.3 Intersecção: a metamorfose da modernidade e a modernidade da metamorfose 117 CONSIDERAÇÕES FINAIS 126 REFERÊNCIAS 127 Anexos 133 10 INTRODUÇÃO A vida e a obra de Jorge de Sena têm um lado cavaleiresco, quixotesco, sob aparências contestatárias e amargas de imprecador e justiceiro. Ao fim e ao cabo, apesar da constatação da mentira e do non-sense do mundo tal qual é, ou tal qual como se tornou, Jorge de Sena sempre quis encontrar um sentido no interior e para além dessa universal ausência de sentido. Eduardo Lourenço A obra do poeta português Jorge de Sena (1919-1978) é conhecida pela vastidão dos temas que desenvolveu ― Amor, Liberdade, Justiça, Humanidade, Linguagem, Mar, Testemunho, Tempo, Metamorfose, Peregrinação, entre outros ― e também pela variedade de formas em que buscou se expressar ― poesia, romance, contos, teatro, crítica, tradução. A integração com que essa obra se estrutura, já havia sido discutida por Jackson, em 1983, quando o crítico reconhece que alguns poemas transformam-se, posteriormente, em tópicos da poética seniana. É o caso do “Metamorfose”, de Coroa da Terra (1946), em que a possibilidade de mudança de formas dará o escopo necessário para o livro Metamorfoses, de 1963. Da mesma maneira, Lourenço (1998) buscou ler as ressonâncias entre a poesia e a narrativa de Sena. Além disso, o crítico explicitou a necessidade de consideração da crítica de poesia desenvolvida por Sena. Outro trabalho que não deixou de dar a devida importância à metatextualidade da obra seniana foi o de Carlos (1999), buscando ver a relação de tensão que podia ser estabelecida a partir das esferas de atuação do escritor. Dessa maneira, nosso trabalho, ― A metamorfose seniana: poesia e crítica na obra de Jorge de Sena ― com vistas a promover a integração entre a atividade poética e a atividade crítica, não só mostra-se viável em termos teóricos, como também, insere-se entre os esforços de compreensão da obra seniana a partir da perspectiva dialógica, em que os diversos níveis de expressão comunicam-se entre si. Se pudermos pensar a poesia seniana como forma de conhecer, assim como aparece no metapoema “Os trabalhos e os dias”, em que o escrever é apreensão do mundo, perceberemos que a crítica, nascida junto com essa atividade poética, não apenas revela aspectos importantes acerca desse fazer poesia, mas, principalmente, decorre dele. Poesia e crítica podem ser pensadas lado a lado porque o ser poeta é o centro do qual emanam todas as outras possibilidades. Segundo Sena (1977, p. 255): “Sucede que eu sou um escritor português, e como escritor me considero sobretudo um poeta ― apesar de quantas peças de teatro, contos, ensaios, livros e artigos de erudição eu 11 tenho publicado [...]”. Assim, quando faz crítica, Jorge de Sena não deixa de ser o poeta que sempre foi, acrescendo uma atividade a outra. Além disso, há de se considerar também que a poesia seniana por si só trabalha um componente inquiridor do mundo e, dessa forma, a ideia de crítica nunca está apartada dela. Da mesma forma, na perspectiva de outro poeta- crítico, T.S. Eliot (1989), toda poesia está relacionada com o trabalho crítico de seleção e arranjo do material linguístico. Para Lourenço (1998, p. 17-18), a poética seniana deve ser pensada como “o aferir constante de uma práxis poética, em que o que se racionaliza, a nível teórico, é fruto de um trabalho verbal, que, por sua vez, obriga a uma adequação ou ajustamento progressivo das proposições teóricas”. Tendo estabelecido a possibilidade de intersecção entre poesia e crítica, faz-se necessário dizer que esse cruzamento será pensado nos termos de um dos vetores que movimentam a poesia seniana: a metamorfose. Essa faceta, desenvolvida plenamente pelo poeta no livro de 1963, ― “uma das obras-primas do século” (CARLOS, 1998, p. 126) ― dá conta, não só de procedimentos formais utilizados para que o poema aconteça, mas também, e, principalmente, a metamorfose é uma forma de ver o tempo em que o passado, o presente e o futuro encontram-se conectados. Justifica a escolha desse tópico seniano a possibilidade de pensá-lo como uma espécie de correlato da modernidade, já que ambos têm na transformação seu ponto forte. Nessa medida, os textos escolhidos para formar o corpus crítico, que tratam de questões concernentes à modernidade, conversam com o corpus poético selecionado. Para o primeiro escolhemos dois textos. São eles: “Para um balanço do século XX ― poesia europeia e outra” (1976), pertencente ao livro Dialécticas teóricas da literatura (1977) e “Do conceito de modernidade na poesia portuguesa contemporânea”, pertencente às Dialécticas aplicadas da literatura (1978). Os títulos das obras evidenciam que a crítica seniana é afeita à dialética enquanto método filosófico, que busca identificar e superar as dualidades opositivas existentes na realidade material, já que, para Sena (1977, p. 201), “em nenhuma época foi possível, pela estrutura do conhecimento [...] que algo existisse sem que por sua mesma existência não suscitasse o seu contrário”. Assim, o corpus crítico foi analisado para que dele fosse possível perceber ressonâncias da poesia na crítica e vice- versa. Os textos selecionados passaram por trabalho exegético, que tratou de propor-lhes uma divisão didática de acordo com os assuntos dominantes e, assim, identificar os principais pontos de discussão. A questão da modernidade é tratada historicamente e sob o ponto de vista tipológico nos dois textos. Do primeiro, a modernidade é o espaço de 12 experiência, armado como consequência da passagem da “subjectivação idealista da personalidade” (SENA, 1977, p. 201) para a subjetividade objetivada, em que predomina o máximo de liberdade conquistada. Do segundo, essa experiência é entendida como pertencimento ético-estético ao tempo em que lhe foi dado viver. Em paralelo à exegese dos textos teórico-críticos, procedeu-se a análise interpretativa de quatro poemas retirados das Metamorfoses. Neste livro, Sena promove transformações estéticas entre diferentes formas de expressão artística. Assim, sustentado pela concepção poética do “lirismo especulativo”, em que à criação estética alia-se a capacidade indagativa e crítica, e utilizando-se da “meditação aplicada” com vistas a pensar esteticamente determinado referencial artístico, o sujeito lírico metamorfoseia quadros, construções de valor arquitetônico e artefatos culturais em poema. Iser (2002) explica que trazer para dentro do mundo ficcional objetos que pertencem à realidade material configura uma quebra de barreiras entre esses níveis, já que ao requisitar elementos extratextuais ocorre a fundação de um universo de sentido intratextual. Da mesma forma, o livro estrutura-se a partir de três etapas sequenciais: a Ante-metamorfose (composta pela evocação do poema “Metamorfose”, de Fidelidade (1958), integrante do corpus), as Metamorfoses (compostas por 21 poemas acompanhados por reproduções de obras artísticas, com a escolha do poema “Céfalo e Prócris”) e a Post-metamorfose (composta por dois poemas: “Variação primeira” e “Variação segunda”, integrantes do corpus). O caminho de leitura sugerido ao leitor é bastante evidente e o recorte proposto buscou fazer-lhe a interpretação. Esta esteve calcada na proposta de Candido (1997) que consiste na decomposição do poema em suas partes constituintes com a finalidade de, através da desmontagem, reconstruir o sentido, propondo a interpretação. A ela será agregada uma visão de literatura que “procura apreender o fenômeno literário da maneira mais significativa e completa possível, não só averiguando o sentido de um contexto cultural, mas procurando estudar cada autor na sua integridade estética.” (CANDIDO, 1997, p.29). Para Paz (1996, p. 38), a imagem poética é “cifra da condição humana”, uma vez que “contém muitos significados contrários ou díspares, aos quais abarca ou reconcilia sem suprimi-los”. A metamorfose seniana é, por isso mesmo, sinônimo do fazer poético que “transmuta o homem e converte-o por sua vez em imagem, isto é, em espaço onde os contrários se fundem. E o próprio homem, desgarrado desde o nascer, reconcilia-se consigo mesmo quando se faz imagem, quando se faz outro” (PAZ, 1996, p. 50). A busca por esse outro, que tanto marcou a poesia moderna (SENA, 1977), dá-se nas Metamorfoses como 13 referência à série de artefatos culturais, que são chamados a significar diferentes momentos históricos, a partir dos quais se estabelece a reflexão poética acerca da experiência humana sobre a Terra. Ao encontrar-se com outros artistas, Jorge de Sena reúne-os a mesa para o “convívio das ‘testemunhas’” (SENA, 1988a, p. 28), tal como em “Os trabalhos e os dias”: “Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro” (SENA, 1988a, p. 83). Ademais, a metamorfose engendrada pela poesia seniana adquire o estatuto de imagem poética da transformação que o movimento do tempo opera sobre tudo. De certa forma, Sena está glosando o mesmo mote de Camões: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança; Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem, se algum houve, as saudades. O tempo cobre o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E em mim converte em choro o doce canto. E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já como soía. (CAMÕES, 1973, p.162) Camões, por sua vez, está glosando Francisco de Sá de Miranda: O Sol é grande, caem coa calma as aves, do tempo em tal sazão, que sói ser fria; esta água que d’ alto cai acordar-m’-ia do sono não, mas de cuidados graves. Ó cousas, todas vãs, todas mudaves, qual é tal coração qu’em vós confia? Passam os tempos, vai dia atrás dia, incertos muito mais que ao vento as naves. Eu vira já aqui sombras, vira flores, vi tantas águas, vi tanta verdura, as aves todas cantavam d’ amores. Tudo é seco e mudo; e, de mistura, também mudando-m’eu fiz doutras cores: e tudo o mais renova, isto é sem cura! (MIRANDA, 1942, p. 318) 14 Em vários poemas Sena cita ou parodia, num canto pararelo, este poema de Sá de Miranda, realizando leitura que “centra-se nas «aves» e a elas, à sua passagem, associa, numa melancolia que ecoa a que percorre o soneto quinhentista, a mudança e a consciência de uma contemplação que a fugacidade do tempo logo transforma em «memória» (MARTINHO, 1982, p.15). Os poemas mais explícitos são: ... DE PASSAREM AVES À memória de Sá de Miranda Das aves passam as sombras, um momento, no chão, perto de mim. No tardo Verão que as trouxe e as demora, por que beirais não sei onde se abrigam piando como ao passar chilreiam. Um momento só. Rápidas voam! E a vida em que regressam de outras terras não é tão rápida: fiquei olhando as sombras não, mas a memória delas, das sombras não, mas de passarem aves. 21/6/47 (SENA, 1988a, p. 139) DE PASSAREM AVES (II) De como e de quando as aves passaram tão leves aflando, as sombras pousando no ar cortaram. falei, mas não sei que melancolia sentida no dia por tarde eu lembrei na tarde que havia. As aves passaram e delas falei. Do ar que cortaram as sombras ficaram, mas onde, não sei. 18/2/1956 (SENA, 1988b, p. 21) Enquanto a poética camoniana vê na mudança a razão para aquele desconcerto do 15 mundo, a poética seniana atribui à transformação lugar cimeiro. Na perspectiva de Paz (1984, p. 34): “A época moderna ― esse período que se inicia no século XVIII e que talvez chegue agora a seu ocaso ― é a primeira que exalta a mudança e a transforma em seu fundamento”. Contudo, a transformação, que a obra seniana põe em funcionamento, não está associada ao elogio do eterno novo, mas à postura poético-crítica que lê a realidade material como criação humana e, portanto, percebe a possibilidade de transformá-la. Além disso, a transformação, sob a imagem poética da metamorfose, é operada na tensão entre dois elementos: permanência e mudança. Se a imagem poética da metamorfose pressupõe esses dois elementos, tal como será visto no poema “Céfalo e Prócris”, isso está relacionado com uma percepção temporal específica em que os valores tradicionais do passado são postos de lado em benefício do presente prenhe de liberdade, ou seja, a nossa modernidade conquistou a capacidade de olhar o passado, não mais como lugar de modelos imutáveis, mas como lugar onde outros homens manifestaram esteticamente suas incertezas em relação ao tempo em que viveram. Dessa forma, metamorfose e modernidade encontram-se como pares correlatos da imagem do tempo como devir. Discutindo a definição de modernidade baudelairiana, como transitoriedade, Calinescu afirma (1999, p. 56): “[...] a Modernidade pode ser definida como a possibilidade paradoxal de ir para além do fluxo da história através da consciência da historicidade na sua mais concreta imediatiedade, na sua actualidade.” Sob o prisma da História como transformação, Jorge de Sena viu as vinte obras de arte, que compõem as suas metamorfoses: GAZELA DA IBÉRIA Suspensa nas três patas, porque se perdeu uma das quatro, eis que repousa brônzea no pedestal discreto do museu. Ergue as orelhas, como à escuta, e os pés são movimento que ainda hesita, enquanto o vago olhar vazio se distrai entre ruídos soltos da floresta. Há muito as árvores caíram. Há perdidos tempos sem memória que morreram as aldeias nas montanhas e pedra a pedra se deliram nelas. Há muito tempo esse povo ― qual?― violado por invasões, e em sangue, em fogo e em escravidão, ou só no amor dos homens que chegavam em navios de longos remos e altas velas pandas se dissolveu tranquilo, abandonando os montes pelos vales, a floresta pelas escarpas onde o mar arfava nas enseadas mansas e nas praias, 16 e as fontes límpidas por rios que, entre a verdura, sinuosa iam. Há muito, mas esta gazela resta, com seu focinho fino e o liso torso e o peito quase humano. Acaso foi a qualquer deus a oferta? Ou ela mesma a deusa foi que oferenda recebia? Ou foi apenas a gazela, a ideia, a pura ideia de gazela ibérica? Suspensa nas três patas se repousa. Assis, 8/4/1961 (SENA, 1988b, p. 59) Para a intersecção entre poesia e crítica, com vistas à aproximação de metamorfose e modernidade, dividimos este trabalho em três capítulos. No primeiro deles, intitulado “Leituras da obra seniana”, realizamos um recorte de leitura e discussão de alguns pontos capitais acerca da obra do poeta português. Esse recorte contempla, necessariamente, os temas que mais interessam a esse trabalho. Assim, entram discussões acerca da definição do testemunho e da metamorfose, a correlação possível entre esses dois vetores poéticos, a importância dos diálogos entre os vários níveis expressivos e breve discussão acerca da questão crítca. No segundo capítulo, “A poesia seniana”, buscou-se traçar a contextualização histórica dessa poesia para, posteriormente, trabalharmos a conceituação de metamorfose e modernidade. O que justifica esse arranjo é fato de que a primeira parte desse capítulo introduz o leitor numa cronologia histórica, que evidencia algumas opções estéticas de Sena. Tendo isso em vista, as questões teóricas sobre a definição de metamorfose e modernidade aparecem numa chave em que a leitura busca pontos de contato. O último capítulo, “Da intersecção entre poesia e crítica: metamorfose e modernidade”, dá conta das análises interpretativas dos poemas escolhidos e da exegese dos textos teórico-críticos. O desfecho desse terceiro capítulo é, justamente, a realização da proposta específica desse trabalho. 1. LEITURAS DA OBRA SENIANA A crítica da obra seniana sempre falou do que fossem as múltiplas facetas dessa poesia (HATHERLY, 1995), mas quem realmente deu forma a essas facetas como “sistema de relações” composto pelos vetores do testemunho, da metamorfose e da peregrinação 17 foi Jorge Fazenda Lourenço, em A poesia de Jorge de Sena. Testemunho, metamorfose, peregrinação (1998). O caminho de leitura proposto pelo crítico enfatiza a relação consubstancial daqueles três elementos, localizando na questão testemunhal o eixo mediador dos demais. O testemunho compõe-se pela integração entre ética e estética, com a subordinação da primeira pela segunda, já que “precisamente o que o liberta da moral normativa é o facto de ser um testemunho poético” (LOURENÇO, 1998, p. 169). Por ser de linguagem, o testemunho considera o fazer poético como construção estética, mas, afastando-se do esteticismo, e reconhecendo na linguagem o vínculo ativo entre os homens, não exclui da poesia, nem exclui a poesia, de ligações com o tempo em que a fez nascer. O componente ético se configura porque ao dizer poético está associado à responsabilidade de “remodelação dos esquemas feitos” (SENA, 1988a, p. 26), com isso, assumindo o compromisso de questionar os discursos cristalizados pelo senso comum. Nesse sentido, o testemunho é uma espécie de “escreviver” (LOURENÇO, 1998, p. 25), não por confessionalismo, mas porque há a transmutação do vivido na forma do poema. Assim, a metamorfose aparece como essa capacidade transmutativa, ou consciência dela, e a peregrinação como moto-perpétuo, não só no que toca à pesquisa expressional, mas, principalmente, como inquirição acerca das virtualidades humanas. Resultado de tese de doutorado, apresentada em agosto de 1993 à Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, o livro de Fazenda Lourenço tem como objetivo principal correlacionar aqueles três componentes da poética seniana, tendo na questão testemunhal um “núcleo dinamizador” (LOURENÇO, 1998, p. 17). Tal arranjo teórico evidenciou-se altamente profícuo, de modo que a crítica passou a utilizar-se dele como orientação metodológica. Isso acontece porque Fazenda Lourenço atribui, ao Prefácio (1960) da 1.ª edição de Poesia I (1961), importância fundamental, aceitando-o como uma espécie de poética seniana em que o poeta, na função de crítico da própria obra, dá a ver sua concepção de poesia como testemunho de linguagem. Dessa ideia de poética afasta-se, completamente, a ideia de prescrição normativa e Fazenda Lourenço chama a atenção para um ponto principal na obra seniana, a concepção processual do fazer poético em que a poesia é “um fazer que se faz, fazendo” (LOURENÇO, 1998, p. 18). Dessa forma, evidencia-se o movimento dialético que comanda a relação entre a práxis poética e sua consequente teorização. O que se apreende da atividade poética pode ser racionalizado nos inúmeros prefácios porque resulta do “trabalho verbal”, que se quer como devir. Assim, não só os prefácios, mas também a obra crítica de Sena apresentam-se como peças fundamentais no 18 entendimento de sua obra poética, porque decorrem dela. O que permite o estabelecimento de pontos de contato entre poesia e crítica. Fazenda Lourenço reconhece em “Os trabalhos e os dias”1, poema de 1942, a primeira poetização do testemunho de linguagem. Neste poema, o ato de escrever poemas é apreensão do mundo baseada num tripé do qual fazem parte o sujeito apreendedor, o mundo apreendido e a linguagem, meio pelo qual se apreende. Nesta medida, Fazenda Lourenço evoca o preceito da fenomenologia de Husserl, a qual Sena deixa explícita sua filiação, não como escola filosófica, mas como método de investigação. Esse preceito dá conta da relação de interdependência entre sujeito e objeto, ou em outras palavras, não é possível conceber o objeto sem a interferência do sujeito que o apreende. Com isso, questiona-se o mito da objetividade das ciências pela assunção de quanto o sujeito apreendedor interfere na maneira de apreender o objeto. O que media essa relação é a linguagem e, nessa medida, não cabe uma “consciência inteiramente independente”, já que a consciência tem de se valer do conjunto de signos comuns à determinada comunidade linguística. Assim, a poesia do testemunho edificada como apreensão do mundo implica “não só uma experiência de conhecimento, e conhecimento experimentado”, mas também a “transmissão desse conhecimento e dessa experiência” (LOURENÇO, 1998, p. 42). Dessa forma, Fazenda Lourenço afasta completamente a poesia seniana de certas concepções poéticas que enfatizam apenas o formalismo esteticista e aproxima-a de uma visão de poesia como diálogo. Não há autotelismo em Jorge de Sena; há necessidade comunicativa que a diversidade de paratextos autorais confirma. A questão da metamorfose é correlacionada ao testemunho pela conceituação da vidência e, portanto, o verbo ver tem função primacial na poesia seniana. A isso, o crítico associa a tradição literária que “tem nos olhos os órgãos da percepção intelectual”: Camões e Ovídio (LOURENÇO, 1998, p. 171). De certa forma, a vidência resolve a dicotomia filosófica entre conhecer e agir (SENA, 1966), uma vez que ver manifesta-se como forma de apreensão do mundo, em que a transformação é componente intrínseco. O conhecimento- 1 Sobre este poema, ler também o ensaio de Ida Ferreira Alves (2004), “Trabalho sobre trabalho: dois poemas de Jorge de Sena”. Publicado no volume 5 da revista Metamorfoses, o ensaio analisa a poesia seniana “sob o desenvolvimento do tema «trabalho» como fundamento da relação intensa entre escritor e obra, ou, em outras palavras, da relação intrínseca entre escrita e compromisso” (ALVES, 2004, p. 175). Dessa forma, o trabalho com a palavra, que a escrita poética perfaz, é uma forma de ação sobre o mundo em que estética e ética caminham lado a lado. A função da palavra poética revela-se na “potência do trabalho” ― “ação, transformação, intervenção” ―, uma vez que a ela subjaz uma ética que visa superar o tempo dando testemunho das realizações humanas. Alves também promove a intersecção do poema de Sena com o relato mítico homônimo de Hesíodo, ressaltando o caráter de meditação moral sobre o valor do trabalho, enquanto atividade humana capaz de dignificar a presença do Homem sobre a terra. 19 ação que o ato de ver implica está relacionado à ideia de “visão meditativa”. Para Lourenço (1998, p. 172): Sentido primeiro e condutor, fonte primordial de conhecimento, meio privilegiado de apreensão do mundo, e consubstancial à escrita, a visão meditativa ou contemplação ativa que define a vidência do testemunho seniano é tanto um saber retrospectivo, um olhar-memória, quanto um saber prospectivo, questionador, especulativo, olhar agudo e imaginoso, e, por isso, frequentemente ligado às metamorfoses (cf., por exemplo, «Metamorfose», em Fidelidade). Nessa medida, a poesia de Sena aparece como “ciência dos sinais” ― expressão que o crítico adota de Eugénia Vasques ― e isso significa que o testemunhar é perquirição sobre o mundo, que busca interpretar-lhe as marcas2. Para ilustrar com exemplos concretos essa vertente, Fazenda Lourenço recorre ao romance de 1979, Sinais de fogo, em que o protagonista Jorge descobre-se poeta. Tal descoberta se dá na medida em que o cenário de amor (a jovem e bela Mercedes) e violência (a Guerra Civil Espanhola), no qual está submerso, começa a ser captado pela linguagem poética, nascida da necessidade de “aprender a ler ou interpretar os sinais de vida contidos na realidade das coisas” (LOURENÇO, 1998, p. 170). A crítica levantou a possibilidade de ler Sinais de fogo como “romance de formação” (CARVALHO, 2009), porque nele se cumpre uma jornada educativa que leva, justamente, àquela vidência. Outro exemplo evocado por Fazenda Lourenço diz respeito a um poema de Arte de música (1968), no qual é possível ler a mesma ideia de percurso formativo do poeta. O poema “La Cathedrale Engloutie, de Debussy” associa o olhar do poeta ao desenvolvimento da “visão profunda”. A vidência testemunhal é “metamorfose de linguagem” (LOURENÇO, 1998, p. 182), já que o ato de ver não é encarado como atitude contemplativa, mas como ação transformadora do mundo. Assim, para além da noção de testemunho como documento histórico, propalada pelos neo-realistas, a poética seniana inclui o componente transgressivo, porque ao olhar para o mundo, não o vê, apenas, como ele é, mas como poderia ser. Fazenda Lourenço fala nos termos de uma “imaginação realista”, utilizando-se do conceito da obra narrativa de Sena e aplicando-o para pensar a ligação metamorfose-testemunho. Anterior àquela tese de doutoramento é o livreto O essencial sobre Jorge de Sena, de 1987. Nele, Fazenda Lourenço não só apresenta a obra de Sena para o grande público, como também a analisa sucintamente. Traçando todo o panorama histórico, que encontra o poeta Jorge de Sena na infância e o persegue até a maturidade, O essencial sobre Jorge de Sena 2 Em “Jorge de Sena: o brilho dos sinais”, a poesia seniana também é entendida por Fazenda Lourenço (2002) como leitura e decifração dos signos que formam a realidade. 20 tem o mérito de não querer ser mais do que o título já apontara: uma leitura introdutória que abarca praticamente todos os domínios artísticos e teóricos em que o poeta português se desenvolveu. Num momento em que a crítica acerca da obra seniana começava a consolidar- se, o livreto de Fazenda Lourenço adquire importância, na medida em que assume a responsabilidade gigantesca de pensar a totalidade da obra. Dessa forma, seria possível considerar O essencial sobre Jorge de Sena3 como uma espécie de levantamento prévio do que será a tese A poesia de Jorge de Sena. Testemunho, metamorfose, peregrinação, uma que vez que os principais temas do primeiro são desenvolvidos no segundo. Da mesma época que o doutoramento de Fazenda Lourenço, temos Fenomenologia do discurso poético. Ensaio sobre Jorge de Sena (1999)4, de Luís Adriano Carlos. Apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em janeiro de 1993, a dissertação tem o objetivo de afastar a ideia de heterogeneidade reinante sobre a obra de Sena e, nessa medida, comunga com os objetivos de Fazenda Lourenço, já que este tratou de substituir o caráter multifacetário pelo sistema de relações. Para realizar seu intento, Carlos (1999) o estrutura nos termos de uma “relação tensional” entre as diversas esferas em que Sena atuou ― o poeta, o romancista, o contista, o dramaturgo, o crítico, o tradutor e o historiador. Apoia-se, então, na “prática metatextual” que a obra de Sena oferece ao leitor como possível caminho de leitura e interpretação. Dessa forma, Carlos (1999) estabelece duas premissas norteadoras para seu trabalho. São elas: 1) a relação de transtextualidade reconhecível entre a obra poética e a obra em geral; 2) a “infra-estrutura filosófica” que permeia a obra poética. Sobre a primeira premissa, considera-se a obra poética de Sena como centro irradiador e procura-se clarificar as relações intertextuais, paratextuais e metatextuais entre a poesia e as demais produções, sejam no campo da crítica, ou no campo da criação literária. Carlos pauta-se, com isso, em duas asserções de Sena ― uma que diz respeito à prática poética como atividade primacial e, portanto, o ser-se poeta como algo que está implícito em todas as outras esferas de atuação; e no fato deste posicionamento dar lugar a outra asserção, em que a atividade crítica é entendida como forma de criação artística. 3 Há uma recensão crítica deste livro realizada por Luís Adriano Carlos em que se reconhecem três linhas de reflexão como primaciais. São elas: 1) o trabalho de análise a partir da rede de relações internas que compõe a obra; 2) o testemunho de linguagem como matriz da concepção poética e uma ideia de “trans-fusão de poéticas”, em que a linguagem e com ela a criação artística se dão como atividade mental, ou como quer Sena, “refletida espontaneidade” e 3) a formação filosófica de Sena composta pelas seguintes figuras: Platão, Spinoza, Marx, Unamuno, Wittgenstein, Bergson, Freud, Jung, Husserl e Hegel (CARLOS, 1988). 4 Anterior à tese, não só no nível cronológico, mas como projeto que antecipa e anuncia A fenomenologia do discurso poético, temos “Jorge de Sena: a pirâmide no inverso projecto de construção” (CARLOS, 1992). 21 Sobre a segunda premissa trata-se de reconhecer que “a configuração poética seniana integra um conjunto de formas, ou princípios organizadores, procedentes de um intertexto filosófico” (CARLOS, 1999, p. 15, grifos do autor). Dessa forma, a leitura dos poemas e textos críticos permite reconhecer uma “razão dialéctica e uma razão fenomenológica, reintegradas numa razão existencial” (CARLOS, 1999, p. 15, grifos do autor). Esses filosofemas estão conectados com a linguagem poética na medida em que esta é forma de conhecimento do mundo e, então, busca-se identificar que caracteres filosóficos subjazem na expressão poética. Em relação à questão dialética, de imediato, dois nomes são reconhecíveis: Hegel (1770-1831) e Marx (1818-1883). A Hegel está associada, naquela famosa entrevista de 1954, “Porque acima de tudo...”, à superação da lógica aristotélica, ou seja, na perspectiva seniana cabe suplantar os três princípios lógicos da identidade (A é igual a A), da não-contradição (Se A é igual a A, A não pode ser não-A) e do terceiro excluído (Em que A é ou não é, sem terceira possibilidade) por uma dialética capaz de captar “a realidade e a verdade como movimento interno da contradição” (CHAUÍ, 1999, p. 203) em que o mesmo sujeito apresenta dois predicados contraditórios. Para Sena (1977), conforme nos deixa ver em “Para um balanço do século XX ― poesia europeia e outra”, os contrários não podem ser entendidos nos termos do maniqueísmo, quer dizer, não se trata de pensar em bem oposto a mal, mas em bem oposto a não-bem e em mal oposto a não-mal. A essa concepção dialética da realidade material junta-se a capacidade de transformação do mundo, tal qual entendida por Marx nas Teses sobre Feuerbach. Carlos (1999, p. 16) identifica o marxismo na obra seniana considerando-o sob três aspectos correlacionados: i) porque o marxismo, esclarecido pela «ciência moderna», lhe permite apagar «qualquer antinomia entre os antiquados conceitos de matéria e espírito»; ii) porque o entendimento crítico do marxismo lhe proporciona «um método de análise e de acção, mas não o sistema rígido que os seus pretensos teólogos têm feito dele»; iii) porque a poesia pode assim configurar-se como «busca de uma expressão intrinsecamente dialéctica ou em dialéctico fluxo, nos termos marxistas da minha formação filosófica». A fenomenologia de Husserl (1859-1939) será entendida como epistemologia ao marxismo, ou seja, trata-se de considerar o dinamismo da dialética e a essencialidade da fenomenologia (CARLOS, 1999). Para tanto, faz-se ver a relação intrínseca entre ação e conhecimento, em que o testemunho é, ao mesmo tempo, uma forma de fazer poesia e a expressão do que em poesia se lê e se interpreta acerca da realidade. Assim como Fazenda Lourenço, o texto de Carlos também enxerga no romance Sinais de fogo e no poema de Arte Música, “La Cathedrale Engloutie, de Debussy”, 22 elementos do que seja a formação da vocação poética. O trecho do romance ao qual Carlos se remete foi sintomaticamente publicado na revista O Tempo e o Modo, em 1968, com o título de Aparição da poesia e, nessa medida, o crítico o aproxima da descrição fenomenológica, valendo-se, para isso, do seguinte preceito husserliano: “o ser do fenómeno é o seu aparecer imanente à consciência (CARLOS, 1999, p. 23, grifos do autor). Assim, escrever o poema é, primeiro, ter a capacidade de captar a sua aparição e, consequentemente, ter a capacidade de enformá-lo em linguagem. Portanto, a “aparição da poesia” está relacionada com a descoberta daquela consciência pré-racional, que, paradoxalmente, depende da racionalidade para captá-la. Relacionando o trecho de Sinais de fogo com o poema de Arte de Música, Carlos percebe uma diferença. Enquanto no romance focaliza-se o momento em si da “aparição da poesia”, o poema põe ênfase na recordação desse momento. A descrição fenomenológica é substituída pela memória e pela postura crítica “de impor aos outros a visão profunda”5 (SENA, 1988b, p. 165). Em relação à questão testemunhal, e como não poderia deixar de ser, Carlos (1999) reconhecerá, no Prefácio (1960) da 1.ª edição de Poesia I (1961), um texto fundamental. Ao contrário de Fazenda Lourenço, não lhe atribuirá o estatuto de poética, mas reconhecerá nele o caráter de orientação ético-estética. Carlos o classificará como metatexto e discutirá, a partir dele, a relação testemunho-confissão e a relação testemunho-fingimento. Assim como Fazenda Lourenço, as críticas ao confessionalismo em poesia serão associadas ao romantismo vulgarizado em que a sinceridade é vista como principal qualidade do poeta. Na contramão dessa postura, o testemunho seniano rompe com a questão da sinceridade em poesia, porque se quer como “objectivação da subjectividade”, ou seja, como aquele “aprofundamento no individuado” que “eleva ao universal o poema lírico” (ADORNO, 1983, p. 202). Sobre a relação testemunho-fingimento, Carlos (1999) estabelecerá uma ligação de tipo dialética, na medida em que, enquanto o fingimento atua no sentido de ser educação, o testemunho é essa educação, acrescida de postura revolucionária. Assim, o testemunho é o “Outro” do fingimento. Tendo estabelecido a relação testemunho-fingimento como dialética entre educação e transformação, o crítico abre diálogo com outras interpretações. Para Carlos (1999, p. 84), o testemunho não pode ser pensado como “forma alternativa ao fingimento”, como quer Fátima de Freitas Morna, nem como “ultrapassagem”, ou 5 Tanto as investigações de Fazenda Lourenço (1998), quanto as de Luís Adriano Carlos (1999), dão conta do sentido da visão como órgão essencial para a poesia seniana. 23 “substituição” do fingimento, como querem, respectivamente, Jorge Fazenda Lourenço e Fernando Guimarães. Todas essas maneiras de enunciar a relação testemunho-fingimento estão, para Carlos, desconsiderando a “reversibilidade dialética” que o primeiro exerce sobre o segundo. Dessa forma, temos: A responsabilidade ética do testemunho constitui-se no horizonte da responsabilidade estética do fingimento. O sujeito poético, responsavelmente, conhece o seu Outro como o seu Mesmo que se reconhece como outro sem deixar de ser o mesmo, tornando-se não uma figura que passa pelo fluxo de transformações mas um núcleo de passagem de tensões em fluxo dialéctico, que lhe dão novas formas sem o deformarem, que o desviam sem o desviarem do seu imperativo fundamental de transformação consciente e esclarecida. Em breves palavras, testemunho e fingimento são posições que afirmam enquanto cada uma é a negação da negação que a outra representa ― porque só deste modo podem articular-se a diferença e a totalidade, a metamorfose e a responsabilidade do sujeito. Mediada pelo fingimento, a confissão converte-se em testemunho. (CARLOS, 1999, p. 85, grifos do autor). Mapeando o conceito de fidelidade na obra de Jorge de Sena, Carlos o entenderá como “termo mediador” do testemunho, na medida em que “nada é possível sem fidelidade a si mesmo, aos outros e ao que aprendeu/desaprendeu ou fez que assim acontecesse aos mais” (SENA, 1989, p. 16). Dessa forma, a fidelidade torna-se um dos elementos que fazem parte da poética do testemunho, já que para testemunhar acerca do mundo que o rodeia, o poeta exige de si mesmo a responsabilidade da “consciência reflexiva” (CARLOS, 1999, p. 179, grifos do autor). Mas, não é só com o testemunho que a fidelidade estabelece ligação, cabendo à metamorfose compor-se como seu “correlato dialético” (CARLOS, 1999, p. 185). Isso se dá porque, ao manter-se fiel a seu projeto de investigar a transtextualidade entre obra poética-obra em geral, Carlos convoca a definição constante em “Maquiavel e O Príncipe”6 para estabelecer aquela correlação dialética. Dela deriva-se que a “dignidade última” de nosso ser-estar no mundo corresponde a uma “fidelidade à natureza sempre mutável do real, uma fidelidade que não se compadece de obediências a nada que, por via transcendente, se sobreponha à atenção sempre expectante que a realidade exige para ser plenamente humana” (SENA, 1991, p. 42). Dessa forma, a fidelidade se refaz em metamorfose, já que estar atento para perceber a transitoriedade da realidade material é o que cabe ao poeta. Confirma a correlação fidelidade-metamorfose um dos paratextos que abre o volume Metamorfoses e 6 Neste texto, Sena relê a obra de Maquiavel (1469-1527) tentando libertá-la das interpretações que a fizeram sinônimo de um maquiavelismo como “velhacaria e perfídia”. Assim, Sena considera que o florentino foi dos primeiros pensadores políticos da modernidade, porque tratou de afastar da ação política todas as justificativas que apelassem para um conteúdo transcendente. Assim, mais do que enunciar que “os fins justificam os meios”, Maquiavel só explicitou o que já era uma prática muito comum (SENA, 1991). 24 que exige a leitura do poema de Fidelidade, intitulado “Metamorfose”, como antecedente necessário ao conjunto de poemas que segue. Outra questão importante levantada pelo crítico acerca do vetor da metamorfose diz respeito à necessária consideração dessa questão como “toda uma poética em que o universo temático é solidário com os procedimentos de composição” (CARLOS, 1999, p. 190). A identificação proposta entre o que o poema diz e a metamorfose como processo que possibilita esse dizer, ou ainda, a identificação entre o corpo do poema com a metamorfose em si tem importância capital para a discussão do que esse vetor acrescenta à obra seniana. A conceituação dos “princípios metamórficos” em relação as duas possibilidades combinadas é o ponto de partida do ensaio “History and poetry as Metamorfoses” ― “História e poesia como Metamorfoses. Publicado em 1982, o texto do professor Francisco Cota Fagundes já alertava para o necessário entendimento da metamorfose como “conteúdo temático”, que engloba uma visão de mundo, e, também, como “técnica literária”. Estendendo essa argumentação, Fagundes (1982, p. 129, tradução nossa) propõe o entendimento desse vetor a partir da consideração de uma historicidade e de uma poética: Para Sena a metamorfose é, por um lado, um processo ou força vital que opera na história humana, concebida no sentido amplo de uma história da humanidade. Por outro lado, a metamorfose é uma metáfora para o processo poético em geral, e particularmente, para a transposição ou ‘tradução’ das artes visuais em poesia.7 Baseando-se no Post-fácio de 1963, Fagundes ressaltará uma das principais funções da metamorfose enquanto “força vital”, qual seja, a superação da Morte possibilitada pelo poder transformador da palavra poética. Se os vinte poemas, que compõem o miolo do volume Metamorfoses, “cobrem aproximadamente três mil anos da verdadeira história humana”, então, este livro pode ser considerado um “épico da humanidade em sua luta constante [...] para se tornar livre das algemas do tempo e alcançar a imortalidade do corpo e da alma”8 (FAGUNDES, 1982, p. 130, tradução nossa). Revisando a História pelos olhos da poesia, Sena propõe a atividade poética como exercício meditativo em que a metamorfose do visual em linguagem ressuscita o passado no presente. A ultrapassagem da Morte se dá no momento em que a palavra poética transforma o tempo histórico em matéria-prima da 7 “For Sena metamorphosis is, on the one hand, a process or vital force operative in human history conceived in the broad sense of the history of the mankind. On the other hand, metamorphosis is a metaphor for the poetic process in general, and particularly for the transposition or ‘translation’ from the visual arts into poetry.” 8 “Sena’s book may be called the epic of mankind in its constant struggle […], to become free from the shackles of time and achieve immortality in body and soul.” 25 poesia. Atentando para os processos, que a metamorfose pode adotar, quando da sua utilização como técnica literária, Fagundes (1982) pontua duas possibilidades: 1) “tradução fiel” (“close translation”) e, 2) “tradução livre” (“free translation”). A primeira é definida como “duplicação no meio poético do conteúdo temático e outros elementos do pictórico, escultórico ou objeto arquitetônico, tais como o movimento, a estase, ou cor”9 (FAGUNDES, 1982, p. 134-35, tradução nossa). Para o conceito de tradução livre, Fagundes explica que ocorre quando “o poeta começa da obra de arte e nunca a perde de vista inteiramente, mas então, toma certas liberdades, vai além aplicando à fonte de inspiração original atributos da poesia que estão faltando, ou não estão presentes no mesmo grau, na obra de arte”10 (FAGUNDES, 1982, p. 135). Fagundes analisa três poemas como exemplares do primeiro caso ― “O balouço, de Fragonard” (1961), “A nave de Alcobaça” (1962) e “Turner” (1959). Na tentativa de capturar o movimento, tal qual aparece no quadro de Fragonard, o poema de 61 vale-se de três recursos: “uma sequência progressiva de imagens visuais”, “verbos de movimento” e o enjambement, que “reforça a sensação de cinestesia”. Já no segundo exemplo de “close translation”, a ênfase é posta em dois aspectos: “o sentido do monumento” e “num dos maiores atributos da arquitetura, a estase”. A catedral gótica como símbolo do período medieval é poetizada pelo “uso de substantivos concretos e abstratos em proporção numérica igual” (FAGUNDES, 1982, p. 135, tradução nossa). O “Turner”, apesar de não se referir especificamente a um único quadro, também constitui exemplo de tradução fechada porque trabalha com o procedimento de “colagem”, na tentativa de “pintar um quadro com palavras”. Em relação à questão da “tradução livre”, Fagundes (1982) a aproxima dos ensinamentos de Lessing (1729-1781), no seu Laocoonte. Nesta medida, “free translation” marca a oposição entre o “momento único” das artes espaciais e a “ação progressiva” da poesia. Enquanto na pintura e na escultura, o momento de percepção do objeto artístico é integral, o que, necessariamente, implica um estar frente a frente com esse objeto; a poesia trabalha o momento de percepção como “descrição de ações”. Mesmo que se quisesse como “descrição de objetos”, a poesia não poderia oferecer aquela visão integral num “momento 9 “In this case the poet duplicates in the poetic medium the thematic content and other elements of the pictorial, sculptural or architectural object, such as movement, stasis, or color.” 10 “In other poems one may say speak of free translation: the poet starts from the work of art and never loses sight of entirely, but then takes some liberties, goes beyond it by applying to the original inspirational source attributes of poetry which are lacking or not present to the same degree in the work of art”. 26 único”; contudo, se a poesia tiver em conta a descrição por “estágios sucessivos” e não o objeto como “produto final”, então, terá superado a sua limitação em relação às artes do espaço. Os poemas “Deméter” e “Mesquita de Córdoba” são, para Fagundes (1982), exemplos de descrição por estágios sucessivos. No primeiro, a rocha informe adquire forma, porque a presença humana está implicada no poema, e no segundo, a sequência de eventos, que fez com que as colunas chegassem à mesquita, é imaginada para compor o poema. Para Fagundes (1982, p. 135, tradução nossa): “Sena também aplica a alguns poemas o conceito clássico, atribuído a Simónides de Ceos, ‘pintura é poesia silenciosa, poesia uma imagem que fala’”11. Em livro posterior a esse ensaio ― A poet’s way with music: humanism in Jorge de Sena’s poetry (1988) ― Fagundes elabora, de modo ainda mais preciso, o conceito de que a metamorfose é, na verdade, correlato para o fazer poético. Para isso, situa a matriz poética seniana nas experiências que decorrem da leitura da realidade material, ou seja, a poesia seniana tem raiz num vivido, ancorado no tempo-espaço. Com isso, o poeta assume a função de ser o “transmutador de experiências”12 (FAGUNDES, 1988, p. 87, tradução nossa). Reconhecendo a capacidade superativa que o testemunho de linguagem exerce ao desfazer as incompatibilidades entre arte engajada e arte pura, Fagundes afirma (1988, p. 87, tradução nossa): “A poesia seniana serve tanto, e igualmente bem, a causa da Vida e a causa da Arte”13. Discutindo a questão da arte pela arte e o comprometimento humano, exigido por Sena (1961), para a poesia pura, o crítico discutirá o conceito de pureza em poesia associando-o ao quanto que a expressão poética transforma a experiência em alegoria, símbolo, ou ainda, imagem poética. Sumarizando a questão, trata-se de considerar o grau de metamorfose a partir da fonte em que a experiência é tomada. Assim, Fagundes divide (1988, p. 90) o corpus poético seniano “em duas grandes categorias de poemas experienciados [...]: poemas derivados das experiências da vida e poemas inspirados pela experiência de obras de arte”14. Sobre os primeiros é possível destacar a alegorização como principal recurso expressivo. Para explicitar como isso acontece, Fagundes promove a leitura interpretativa de alguns poemas, como o “Cubículo”, de Perseguição (1942), em que um incidente de rua é alegoria para “a 11 “Sena also apllies to some poems the classical concept, attributed to Simonides of Ceos, ‘painting is silent poetry, poetry a speaking picture’”. 12 “As the poet bears witness to life in himself and around himself he is, first and foremost, a transformer of experience, nay, of the world”. 13 Sena’s poetry serves both, and equally well, the cause of Life and the cause of Art”. 14 “Sena’s entire corpus, as I suggested earlier, may be divided into two broad categories of experiential poems, […]: poems derived from life experiences, and poems inspired by the experience of works of art”. 27 história de uma nação moribunda desesperadamente procurando por uma luz de liberdade e justiça, mas impotente e abandonada ao medo e à perdição [...] 15” (FAGUNDES, 1988, p. 97). A segunda categoria de poemas, o crítico tratará de subdividir em outras três possibilidades: “poemas inspirados na literatura, poemas de obras de arte visuais e poemas de composições musical”16 (FAGUNDES, 1988, p. 112). Sob qualquer das três perspectivas, a obra de arte, seja literária, plástica, ou musical, pode ser encarada das seguintes maneiras: “1) entidade estética, 2) objeto que reflete a vida do criador, ou seu tempo e 3) produtora e catalisadora da experiência vital para o poeta”17 (FAGUNDES, 1988, p. 113). De todas as formas, a intenção do poeta é sempre fazer com que a obra de arte seja devolvida à vida, ou ainda, trata-se de ver o trabalho artístico como produto da humanidade. Retomando a distinção de Lessing entre artes do espaço e artes do tempo, Fagundes acrescentará o ponto de vista de Matthew Arnold, crítico citado por Sena, no Post-fácio de Metamorfoses (1963). Para o britânico, “a poesia pensa e as artes, não”18 (ARNOLD apud FAGUNDES, 1988, p. 117). Isso leva Fagundes a considerar que a poesia possui voz e, que ao dar essa mesma voz a um quadro, ou escultura, está realizando o processo metamórfico, cujo “impulso subjacente é a revitalização ou humanização da arte”19 (FAGUNDES, 1988, p. 118). Conforme o que vem sendo exposto, ressalta-se sobremaneira a necessidade de ler-se a obra seniana a partir das relações internas estabelecidas entre os textos que a compõem. Assim, pode-se pensar conexões entre a obra poética e narrativa, os prefácios e posfácios podem ser considerados como metatextos, os paratextos servem como indicações de leitura, os textos críticos, entendidos como criação artística, revelam aspectos da obra em geral; enfim, há toda uma rede comunicativa que interliga as diferentes esferas produtivas em que Sena esteve envolvido. Num texto de 1982, intitulado “Leituras na poesia de Jorge de Sena”, Fernando J. B. Martinho apontava para a apreciação da obra poética seniana partindo do conceito de intertextualidade, ou seja, considerando-se que “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto” (KRISTEVA, 15 “the story of a moribund nation desperately searching for the light of freedom and hope, but rendered impotent and helpless by fear and misguided […]”. 16 “[...] poems inspired by literature, poems on works of visual art, and poems on musical compositions”. 17 “1) the work of art as aesthitic entity, 2) the work of art as an object reflective of its creator life and/ or times, and 3) the work of art as producer and catalyst of a vital experience for the poet”. 18 “Matthew Arnold points out, ‘poetry thinks and arts do not’”. 19 “We could summarize these metamorphic processes by saying that their underlying thrust is revitalization or humanizition of art”. 28 1974, p. 64). Dessa forma, Martinho (1982) seleciona um corpus poético em que Sena realiza leituras explícitas de autores contemporâneos, ou recuados no tempo. Para tanto, parte-se do pressuposto que, “de modo geral, é o escritor, um leitor voraz, insaciável, e que nele o «o estado de leitura» ― expressão que pediríamos de empréstimo a uma outra de Sophia «o estado de escrita» ― era uma disposição, uma atitude permanente” (MARTINHO, 1982, p. 14). O crítico inicia um caminho pela obra seniana que coloca em evidência não só as (des)afinidades literárias dela, como também e, principalmente, serve para pensarmos as bases culturais em que Jorge de Sena se formou. Centrando-se nos poemas “à memória de”, Martinho pinça de Fidelidade (1958), o poema “De Docta Ignorantia”. Dedicado ao humanista Nicolau de Cusa (1401-1464), o título deste poema é alusão explícita ao tratado do cardeal e filósofo alemão. Utilizando-se de nota paratextual, constante no final de Poesia II, Martinho pode fixar o humanista como um dos “mestres de pensar” de Sena e, também, como “precursor, de Hegel e Marx” (SENA, 1988b, p. 217). Dessa maneira, o poema, ao estabelecer intertextualidade com o tratado, não só fornece chaves de leitura para sua interpretação, como também aponta para a “dialéctica saber/não saber, ou, por outras palavras, a verificação de que o desamparo da ignorância, do não saber só tem sentido depois do encantamento do saber (MARTINHO, 1982, p. 16, grifos do autor). Assim, no diálogo estabelecido com um autor quinhentos anos distantes de si, Jorge de Sena dá a ver uma concepção de poesia em que o discurso poético é um “recordar sem tempo/ o tempo exacto qual medido em vidas” (SENA, 1988b, p. 45). Pelo que as interpretações expostas apresentam-nos, podemos pensar em dois Senas: um que se realiza como poeta-crítico e outro que se realiza como poeta-leitor. Para o primeiro, há que se considerar as relações internas da obra seniana e, para o segundo, as relações externas que esta obra estabelece com a história cultural da humanidade. Mais do que isso, e pensando o testemunho de linguagem como aquela reversibilidade dialética que a transformação opera sobre a educação, as chaves de leitura servem não só para a instrução do leitor acerca de como caminhar pelo poema, como também exigem dele a transformação dessa instrução em conhecimento próprio. Para Todorov (2003, p. 329, grifos do autor): Assim como o sentido de uma parte da obra não se esgota nela mesma mas se revela nas suas relações com as outras partes, uma obra inteira jamais poderá ser lida de modo satisfatório e esclarecedor se não a relacionarmos com outras obras, anteriores e contemporâneas. Em certo sentido, todos os textos podem ser considerados partes de um único texto que vem sendo escrito desde que o tempo existe. Sem ignorar a diferença entre relações que estabelecem in praesentia 29 (intratextuais) e in absentia (intertextuais), tampouco se deve submestimar a presença de outros textos no texto. Com isso, a proposta de Martinho das “Leituras na poesia de Jorge de Sena” mostra- se altamente esclarecedora, como também aponta a riqueza e a diversidade de formas de apropriação possíveis da obra seniana. Além disso, expõe o texto poético de Jorge de Sena como autoconsciente em relação a sua função de, no presente, abrir diálogo entre passado e futuro. A “douta ignorância” de que fala o poema é, não só aquela consciência sobre o não- saber, como também essa consciência como estímulo para o saber. Outro crítico que ressalta sobremaneira o caráter humano da poesia seniana é Kenneth David Jackson, em “The humanistic imagination: Jorge de Sena’s poetry of exile and enlightenment ― A imaginação humanística: a poesia de Jorge de Sena como exílio e iluminação. Publicado em 1983, ― na edição especial dos Quaderni Portoghesi dedicada a Jorge de Sena e organizada por Luciana Stegagno Picchio ― o texto de Jackson baseia-se no Prefácio de Poesia III em que Sena trama, pela cronologia de seus livros, uma explicação da sua atividade poética como percurso formativo20. Dando a isso o estatuto de “biografia intelectual”, Jackson (1983) afirmará o caráter de “imaginação humanística” desse percurso, na medida em que cada livro abre como que uma iluminação para o próximo. Além disso, o crítico vê na progressão dos livros, tal qual Sena a engendra, uma consciência poética e temática marcada pela ideia de continuidade. Considerando a poesia seniana como “poesia de ideias”, Jackson lerá o poema de 1956, “Fidelidade”, do livro homônimo, como poema que desenvolve o tema da “unidade da consciência poética”, já que nele o tópico da fidelidade está diretamente relacionado com o destino de ser-se poeta. Para confirmar sua tese, Jackson apontará que alguns poemas de Sena tornar-se-ão, posteriormente, títulos de alguns de seus livros, como é o caso de “Metamorfose” e de “Exorcismo”, ambos de Coroa da Terra. O crítico interpreta essa peculiaridade da poesia seniana como “expansão de uma 20 O homem corre em perseguição de si mesmo e do seu outro até à coroa da terra, aonde humildemente encontrará a pedra filosofal que lhe permite reconhecer as evidências. Ao longo disto e depois disto e sempre, nada é possível sem fidelidade a si mesmo, aos outros e ao que aprendeu/desaprendeu ou fez que assim acontecesse aos mais. Se pausa para coligir estas experiências, haverá algum Post-Scriptum ao que disse. Após o que a existência lhe são metamorfoses cuja estrutura íntima só uma arte de música regula. Mas, tendo atingido aquelas alturas rarefeitas, andou sempre na verdade, e continuará a andar, os passos sem fim (enquanto a vida é vida) de uma peregrinatio ad loca infecta, já que os «lugares santos» são poucos, raros, e ainda por cima altamente duvidosos quanto à autenticidade. Que fazer? Exorcismos. E depois vagar como Camões [dirigi-se aos seus contemporâneos] numa ilha perdida, meditar sobre esta praia aonde a humanidade se desnude, e declarar simplesmente que terminamos (e começamos) por ter de declarar: Conheço o sal..., o sal do amor que nos salva ou nos perde, o que é o mesmo. O mais que vier não poderá deixar de continuar esta linha de, sobretudo, fidelidade «à honra de estar vivo», por muito que às vezes doa. (SENA, 1989, p. 15-16, grifos nossos). 30 ideia, ou tema no centro da consciência poética”, já que esta amplia-se por meio da reflexão contínua, marca do espírito inquieto. Retomando a proposta do correlato objetivo de T. S. Eliot (1888-1965) e aproximando Sena da teoria das máscaras pessoana, Jackson (1983) propõe que a poesia seniana também é marcada pela separação entre a consciência poética e o trabalho de linguagem. Para o crítico, “Os trabalhos e os dias” serviriam como exemplo dessa separação, já que o sentar-se à mesa do mundo representa a disponibilidade da consciência poética seguida, posteriormente, pelo ato da escrita. Jackson identificará, ainda, alguns temas: o “espírito épico” no poema “Soneto a muitas vozes”, de Perseguição; a transfiguração da realidade em “Metamorfose”; a angústia existencialista em “Nocturnos”, também de Perseguição, e a questão da liberdade como valor necessário, no “Quem a tem...”, de Fidelidade. A liberdade está associada à questão da independência, ou seja, toda uma postura crítica que Jackson identifica como protesto contra a sociedade portuguesa, sem, entretanto, pensá-lo em termos ideologicamente simplistas. Isso se dá na medida em que a racionalidade, fruto daquela postura crítica, tem como seu ponto de equilíbrio a “certeza do absurdo”, que, na perspectiva de Jackson (1983), resulta da aproximação com a “sem-razão” camoniana. A “imaginação humanística” da poesia seniana é constituída, assim, pela “dialética da dúvida/lógica racional”. Numa aproximação com Cesário Verde (1855-1886), Jackson (1983) propõe que “L’éte au Portugal” também é voz de protesto com tonalidade parecida com a do poema “Sentimento dum ocidental”. Assim, da mesma forma que as ruas de Portugal são cenário de fundo para o desalento encetado por Verde, o questionamento de Sena “Que Portugal se espera em Portugal?” compõe um misto de amargura e desencanto. Destacado por Jackson (1983) será também o poema “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”, em que os valores do ideário iluminista ― razão, justiça, igualdade ― são refeitos no contexto contemporâneo. Falando nos termos de uma “fé humanista”, sustentada pelo esclarecimento intelectual, o crítico lerá o poema “Uma pequena luz” sob essa influência. Assim, o que Jackson nomeia por imaginação humanística está relacionado ao trabalho de educação da consciência. O homem, enquanto indivíduo responsável por si mesmo, deve trabalhar no sentido de formar-se em comunhão com a humanidade que compartilha com os demais. Para focar a questão crítica, interessa dar destaque para uma das primeiras teses de doutorado defendidas no Brasil, que vem a ser Jorge de Sena: a modernidade da tradição 31 (1984), de Ana Maria Gottardi Leal. Delimitando o soneto seniano como objeto de estudo, Leal (1984, p. 2) irá lê-lo para “aí detectar a presença da tradição cultural clássica, tanto na forma do significante como na forma do significado.” Para tanto, dá-se especial atenção à obra crítica por acreditar-se, uma vez mais, que dela “resulta, em parte, o seu modo particular de mobilizar a carga tradicional” (LEAL, 1984, p. 2). Nessa medida, a crítica seniana servirá para aclarar determinadas posições em relação ao texto e ao fazer poético. Considerando, ainda, a postura crítica frente à realidade como dominante no pensamento do autor, Leal afirma (LEAL, 1984, p. 4): Esta natureza crítica de seu espírito desenvolve-se, com extrema agudeza, no sentido de procurar, além das aparências dos fatos da realidade e dos fatos literários, as suas determinantes estruturais, que de vem ser entendidas como o seu cerne ontológico. A primeria busca constitui o processo gerador da ficção poética; a segunda, o da crítica. Centrando àquela ontologia na questão da ironia, a autora identifica-a como fio unitário de toda obra seniana. Na linha de F. Schelegel, a ironia é destacada por Sena como atitude crítica frente à ambivalência do mundo. Nessa medida, passa a funcionar como “figura dialética” (LEAL, 1984, p. 6), em que não só se reconhece a impossibilidade de acesso completo à realidade material, como também a necessidade de sua busca. Para Leal (LEAL, 1984, p. 6), a ironia é “parte da estrutura da realidade”, na medida em que se reconhece o caráter relativo da verdade, promovendo a abertura para a proposição de variadas interpretações. No “Purgatório”, de Coroa da Terra, a visão irônica permite, não só subverter a concepção católica de purgatório, mas também suplantá-la por meio da crítica ao caráter dogmático. PURGATÓRIO As dores do mundo não as sofre o mundo. Embora os matem, torturem, entristeçam, embora lhes violem quem mais querido, embora percam tudo o que nem tinham, os homens sofrem porque sofrer doi menos. Mas do centro do universo, do coração que a humanidade ainda não tem, do âmago das dores que ainda não sente, da terra a passar toda pela carne, da carne apenas vida sobre a terra, uns poucos homens não sofrem nem contemplam: ardem nas chamas que aos outros faltam. Tancos, 24/9/43 (SENA, 1988a, p. 83) 32 Leal (1984) destacará a dialética ― constituinte básica do pensamento seniano ― como mecanismo filosófico que permite mediar o choque entre a agudez do intelecto e a capacidade emocional. Assim, ao fazer poético cabe tanto a transmutação do particular em universal, quanto a expressão dessa passagem: testemunho e metamorfose. Nessa perspectiva, a poesia passa a ser uma forma de conhecimento, já que o lirismo nunca está apartado da especulação. No âmbito do ensaísmo crítico, a dialética da visão irônica manifesta-se pela concepção das transformações literárias “não em termos de ação e reação, mas sim como “transmutação qualitativa” (LEAL, 1984, p.13). Por isso mesmo, a visão da tradição na obra seniana está relacionada ao dinamismo interno e não ao estabelecimento de cânones. Ao listar a obra crítica seniana, explicitando as suas variadas frentes de atuação, Leal (1984) identifica duas áreas de interesse. Uma refere-se aos estudos dedicados à modernidade e a outra, à tradição clássica. Os nomes de Fernando Pessoa e Camões, dois dos poetas a quem Sena dedicou especial atenção, representam cada uma dessas áreas. Segundo Leal (194, p. 20): Cabe ressaltar a originalidade de sua visão, procurando sempre uma revalidação da tradição literária e dos autores analisados, pautando-se pela atitude questionadora proposta pelo modernismo. Seu espírito crítico abrangente, a que já nos referimos, determina seu método de trabalho e uma atitude que busca aliar flexibilidade, isenção de preconceitos e rigor metodológico. Essa “revalidação da tradição literária”, ou ainda, artística, forma o escopo de Metamorfoses e dá a esse livro importância capital no processo poético seniano. Além disso, revalidar a tradição é uma opção que se faz na direção de conscientização histórica dos antecedentes poéticos, ou seja, Sena não ignora quem está atrás de si, porque a constiutição estético-ética de sua poesia o impede. Para situar-se no presente, o poeta recorre ao passado. Desse modo, parece importante que o trabalho realize movimento semelhante, qual seja o de expor as precedências históricas que colaboram para a definição da poesia seniana como testemunho de linguagem. 33 2. A POESIA SENIANA Se um dia estiveres prêso convence-te do seguinte: o mundo inteiro é que está prêso numa prisão cujas paredes são as paredes da tua; e és só tu quem anda à solta. Jorge de Sena Alfredo Bosi (1977) afirma, em “Poesia e resistência”, que os discursos ideológicos, em confluência com a divisão do trabalho manual e intelectual, roubaram os espaços antes dedicados ao sagrado, ao mítico, ao ritualístico e, principalmente, roubaram a função maior do poeta que é nomear, dando vida e reconstruindo o mundo através da linguagem. Mesmo assim, o ser da poesia encontra formas de ir contra os discursos correntes. Preenchendo esses espaços vazios, imiscuindo-se nas brechas abertas com os golpes de uma consciência ímpar, Jorge de Sena (1919 - 1978) forjou sua palavra poética. Para isso, ele não teve medo de deixar emergir todas as contradições de seu tempo e superá-las na mesma medida em que as entendia e as revelava. Em 1939, Jorge de Sena, sob o pseudônimo de Teles de Abreu, publica o poema “Nevoeiro” e o artigo “Em pról da poesia chamada moderna”, no quinzenário estudantil Movimento21. Apesar de ser sua estreia como poeta, houve um acontecimento anterior que exerceu profunda influência sobre Sena e que serviu como motor para sua iniciação poética. No ano de 1936, tendo ouvido La Cathédrale Engloutie, de Debussy, Jorge de Sena desperta para a poesia como poeta (LOURENÇO, 1998)22. A impressão transformadora que a experiência musical causou no jovem Sena, foi testemunhada, em 1964, no poema de mesmo nome: Submersa catedral inacessível! Como perdoarei Aquele momento em que do rádio vieste, solene e vaga e grave, de sob as águas que marinhas me seriam meu destino perdido? É desta imprecisão que eu tenho ódio: nunca mais pude ser eu mesmo – esse homem parvo que, nascido do jovem tiranizado e triste, viveria tranquilamente arreliado até à morte. Passei a ser esta soma teimosa do que não existe: exigência, anseio, dúvida, e gosto de impor aos outros a visão profunda, [...] (SENA, 1988b, p. 165) 21 Jornal dos estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa (MARTINHO, 1977). 22 Também o livro Terra Prohibida, de Teixeira de Pascoaes, foi fundamental na formação do poeta Jorge de Sena (MARTINHO, 1977). 34 Sena apresenta uma visão poética que entende a poesia como perquirição sobre o mundo, na medida em que questiona o senso comum, as convenções sociais e morais, subvertendo os discursos aceites. Mais do que isso, essa visão poética realiza “o trabalho poético como um trabalho de decifração do mundo, [...] entendido o mundo como um complexo sistema de códigos em constante interacção” (LOURENÇO, 2002, p.225, grifo do autor). Em 1940, Jorge de Sena participa, ainda sob aquele pseudônimo, da 1.ª série dos Cadernos de Poesia, 2.º e 4.º fascículos23. Dentro do cenário intelectual português, que se configurou durante as décadas de 30 e 40, os Cadernos de Poesia representaram uma via de renovação que centrava seus objetivos na publicação de poetas inéditos, sem descuidar da herança intelectual que lhes precedia. Conforme texto de abertura da 1.ª série: “Destinam-se estes cadernos a arquivar a actividade da poesia actual sem dependência de escolas ou grupos literários, estéticas ou doutrinas, fórmulas ou programas. A Poesia é só uma! Daremos, quanto possível, preferência aos poetas inéditos, sem contudo nos mostrarmos indiferentes à produção poética dos que nos têm precedido” (SENA, 2001, p. 262). O lema dos Cadernos, “a Poesia é só uma”, antecipa o projeto estético e ético pensando por seus editores. Entendê-lo em profundidade, significa lançar mão do contexto histórico e político em que Jorge de Sena está inserido. No mesmo ano de 1940, a revista Presença24 encerrava suas atividades, depois de ter garantido a publicação de inéditos de Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Lourenço (1998, p.33-34, grifos do autor) afirma que a “«poesia da presença» (se a expressão é legítima), sob certos aspectos, da continuidade à «poesia da Orpheu», se nessa continuidade lermos o veio simbolista ou post-simbolista que na revista de 1915 era representado pelo Pessoa ortónimo, por Mário de Sá-Carneiro (não por acaso o poeta com que Régio e Gaspar Simões mais empatizavam), ou por Luiz de Montalvor”. Com isso, a revista promoveu algumas conquistas do primeiro modernismo e centrou sua ação na defesa da literatura, em que o componente psicológico e, portanto, individual, sobrepõe-se ao social-coletivo. Contudo, para Gomes (1982), o psicologismo da Presença deve ser entendido como forma de resistência ao racionalismo, dando ênfase ao inconsciente e à intuição na tentativa de desmascarar os artificialismos e automatismos da sociedade burguesa. Isso explica a 23 Para o 4.º fascículo (1941), Jorge de Sena utilizou seu nome, embora tivesse mantido o pseudônimo entre parênteses (MARTINHO, 1977). 24 Jorge de Sena colaborou no seu último número com uma carta sobre o poema “Apostilha”, de Fernando Pessoa (MARTINHO, 1977). 35 proposição de Saraiva e Lopes (1975, p. 1090-91, grifos dos autores): [...] a Presença corresponde a um certo ambiente de cepticismo quanto aos ideais oitocentistas e republicanos de progresso que se relaciona com o colapso do liberalismo em 1926, e por isso os presencitas aspiram, em geral, a uma literatura e uma arte desarticuladas, se não mesmo alheadas, de qualquer doutrina directamente interventora. Essa atitude, aliás cambiante e matizada de várias gradações pessoais, conjuga-se com aquilo que podemos designar como psicologismo de Presença. Os mal-ajambrados “ideais oitocentistas e republicanos de progresso” serão liquidados com o Golpe de Estado, de 192625. O estreitamento do cenário político é possibilitado pela crise econômica e social herdada do fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), pelos reflexos da Guerra Civil espanhola (1936-1939) e pela incapacidade do Partido Democrático, que perdia o apoio popular, de manter um governo saudável. António de Oliveira Salazar (1889-1970), professor de Finanças da Universidade de Coimbra, atua como Ministro da Fazenda no governo de António de Carmona, e inicia a série de reformas com caráter autoritário, que possibilitarão a formação do Estado Novo, em 1933. O regime ditatorial durará até o ano de 1974, quando a Revolução dos Cravos fecha mais um ciclo de autoritarismo em Portugal. Inseridos nesse contexto de exceção, que colabora para alguns extremismos, surge no ano de 1940, mesmo ano de fechamento da Presença, o grupo dos Neo-realistas. Da definição proposta por Torres (1977, p. 31, grifos do autor) pode-se deduzir o caráter altamente ideológico do movimento: “O Neo-Realismo pressupõe um conhecimento dialéctico da realidade exterior, ou seja dos factores de uma mudança real de caráter qualitativo, a qual só se consegue pela união de esforços, ou melhor pelo somatório dos impulsos individuais canalizados em uníssono para que essa mudança em bloco seja conseguida”. Assim, ao mesmo tempo em que o movimento brigou para que a literatura tivesse função social, também acabou por acreditar que a atividade literária é meio do qual é possível servir-se para fins políticos. Promovendo uma crítica a toda literatura que se quisesse afastada dos problemas sociais e propondo outra literatura vincada pelo engajamento do escritor na questão social, os Neo-realistas acreditam “uma vez mais numa ideia inteiramente desacreditada: a de que basta ter novas idéias, ou, talvez, melhor, novas intenções, para tornar possível uma nova poesia. Crê-se que o conteúdo faz a forma, ou que é capaz de, por si só, insuflar uma vida nova a velhas formas [...]” (LOURENÇO, 1998, p. 25 A Presença circulou em Portugal de 1927 a 1940 e foi fundada por Branquinho da Fonseca, José Régio, Gaspar Simões, Edmundo de Bettencourt, António de Navarro e Fausto José. Casais Monteiro e Miguel Torga também participaram da direção da revista (SARAIVA; LOPES, 1975). 36 34). Assim, se de um lado, alguns evocam a velha fórmula da arte pela arte; de outro lado, as tentativas de construção de uma literatura social, parecem não conseguir desenvolver um sistema literário que expresse suas pretensões sociais. Dessa forma, o ambiente intelectual português, da década de 40, aparece dividido numa discussão inócua entre a prevalência da forma sobre o conteúdo, ou vice-versa. Segundo Lourenço (1998, p. 35): “[...] nunca é a poesia que está no centro da discussão, e sim o tipo de ideologia que ela deve ou não veicular, tendo em vista a satisfação de determinados propósitos político- partidários [...]”. Equilibrando-se entre os extremistas daquelas posturas estéticas e, muito mais do que isso, propondo uma alternativa para o impasse, encontramos os Cadernos de Poesia26. Seu texto de abertura da 2.ª série (1951), no qual Jorge de Sena27 aparece como organizador, ao lado de Ruy Cinatti, José Blanc de Portugal e José Augusto França, fornece-nos subsídios para entender o projeto estético e ético da poesia seniana28: - A expressão poética, com todos os seus ingredientes, recursos, apelos aos sentidos, resulta de um compromisso: um compromisso firmado entre um homem e o seu tempo; entre uma personalidade e uma sua consciência sensível do mundo, que mutuamente se definem. - O poeta não contempla – o poeta cria. Defende o que é atacado, e ataca o que é defendido. Não age como ser especial, diferente dos outros, que os não há, esses outros seres; mas como um homem destinado a nele se definir a humanidade: um ser capaz de ter todo o passado íntegro no presente e capaz de transformar o presente integralmente em futuro. (SENA apud HATHERLY, 1995, p. 28) Esse comprometimento do homem com seu tempo não deve ser entendido como literatura social. Isso é resultado da consciência histórica que percebe o homem como ser temporal, construtor do seu itinerário na terra, responsável pelo passado erguido antes dele e projetor do futuro. A reciprocidade personalidade/consciência produziu uma poesia sem bandeiras políticas, sem partidarismos e, que antes de qualquer coisa, tratou de respeitar a vida e a dignidade humana. Dessa forma, a palavra poética se apresenta como forma de ação, clamor contra a irracionalidade e testemunho que traz das trevas os mortos e lhes confere o direito de fazer valer sua voz. Assim, a poesia para Sena representa: 26 Os Cadernos de Poesia tiveram 3 séries. A 1.ª série (1940-1942) contou com cinco fascículos e teve como organizadores Tomaz Kim, José Blanc de Portugal e Ruy Cinatti. A 2.ª série (1951) teve sete fascículos e a 3.ª série (1952-1953) contou com três fascículos e os mesmos organizadores da 2.ª série. (SENA, 2001) 27 Jorge de Sena já havia participado da organização do fascículo 5 da 1.ª série, em fevereiro de 1942. 28 Tomaz Kim também subscreve o texto de abertura da 2.ª série, redigido por Sena, ainda que não tenha participado da organização (SENA, 2001). 37 [...] um desejo de independência partidária da poesia social; um desejo de comprometimento humano da poesia pura; um desejo de expressão lapidar, clássica, da libertação surrealista; um desejo de destruir pelo tumulto insólito das imagens qualquer disciplina ultrapassada (e assim: a lógica hegeliana deve sobrepor-se à aristotélica; uma moral sociologicamente esclarecida à moral das proibições legalistas); e sobretudo um desejo de exprimir o que se entende por dignidade humana — uma fidelidade integral à responsabilidade de estarmos no mundo. (SENA, 1961, p. 171, grifos nossos) Em 1961, decorridos 19 anos da publicação de Perseguição, a obra seniana passa a ser organizada pelo autor e publicada pela Moraes Editores, em volumes numerados, que recebem os títulos de Poesia I (1961), Poesia II (1978) e Poesia III (1978). O primeiro deles reúne os quatro primeiro livros e traz o Prefácio da 1.ª edição (1960) de Poesia I (1961). Este texto adquire importância para a compreensão da poesia seniana, na medida em que, antecipando-se às interpretações que essa publicação sequencial suscitaria, Sena define o “itinerário espiritual alegórico” desenvolvido na esteira da poética do testemunho de linguagem. Com isso, o poeta não só reconhece certo caráter unitário, que vai sendo edificado ao longo do tempo, numa peregrinação incessante em busca da expressão poética, nunca acabada; como também, propõe uma visão de poesia como testemunho de linguagem. Note-se assim que, na produção poética seniana, não são os manifestos, as cartas de intenções ou a adesão a preceitos literários que interessam; ao contrário, a poesia nasce do esforço de compreensão do mundo e, dessa forma, refaz-se continuamente numa prática. O testemunho ― de linguagem, no caso, o que faz com que Sena se afaste da visão documental dos neo-realistas (LOURENÇO, 1998) ― é uma concepção poética em que o dizer não está apartado do fazer. Testemunhar, na perspectiva seniana, ultrapassa o relato puro e simples daquilo que se viu, para alcançar a esfera em que à responsabilidade de dizer poeticamente está associado o comprometimento com o Homem. Dessa forma, a práxis poética do testemunho é definida por Sena a partir da oposição entre a poesia como arte de ser e a poesia como arte do parecer. Esta última está relacionada à resposta que Jorge de Sena engendra contra os críticos, que o denominavam um poeta intelectualista. Sena (1988a, p. 24) afirma, não sem certa ironia, que: “A um poeta não se pede nunca que o seja de facto, mas que pareça que o é”. Como se poesia e inteligência, poesia e raciocínio crítico fossem atividades tão díspares, que a prática de uma, implicasse a exclusão da outra; os críticos contemporâneos ao poeta consideraram sua poesia demasiado 38 hermética e poucas vezes compreensível29. Ao escrever o Prefácio e já logrando de certa compreensão e reconhecimento, o poeta deixa claro que não foram “os meus versos que se tornaram mais inteligíveis” (1988a, p. 24), mas a crítica e os novos leitores que acabaram desenvolvendo outro olhar para a produção poética. Ao aliar-se à poesia como arte de ser, o poeta a define como “a ciência [...] de exprimirmo-nos responsavelmente” (1988a, p. 24). Donde deduzimos que, para Sena, fazer poesia é estar em consonância com uma postura ética de atuação no mundo, em que o dizer poético pauta-se pelo reconhecimento do poeta como voz da humanidade. Se a poesia como arte do parecer pressupõe a mimese do real, uma vez que se contenta em se aproximar da verdade, a poesia como arte de ser busca incessantemente a verdade, sabendo que nunca conseguirá achá-la em definitivo. Portanto, a consciência de que a poesia também é um discurso que se constrói no tecido social, afasta-a da esfera das verdades impostas e aproxima-a das verdades imaginadas. Para evitar equívocos, Sena teve o cuidado de explicitar as diferenças que separam a poesia como arte de ser da poesia como confissão, configurada no paradigma de algumas leituras do Romantismo. Portanto, a poesia seniana não deve ser entendida como revelação de segredos íntimos, em que o poeta expõe sua constituição interna como forma de aproximação e empatia com o leitor. Mesmo quando fala de si, o poeta não busca a comunicação da subjetividade direta, mas a expressão da subjetividade que se revela por meio da objetivação, configurando índice de modernidade. Apesar de considerar o elemento confessional como parte do processo poético, Sena entende que “confissão que a poesia não transforme, confissão que a arte aperfeiçoe, é ainda uma forma de parecer [...].” (SENA, 1988a, p. 25) Assim, a relação vida/poesia aparece, não como algo que deva ser adornado com linguagem artificial, mas vivida em toda a sua extensão e, posteriormente, metamorfoseada em linguagem. Outro diálogo estabelecido por Sena, para fundar as bases de sua poética, é aquele que o poeta trava com a poética do fingimento, de Fernando Pessoa. Apesar de defender essa poética como crítico, por reconhecer o avanço que nela existe acerca da compreensão do homem como ser de vivências múltiplas e relacionadas, o poeta desgosta do que nela existe de artificial. Segundo Sena (1988a, p. 25, grifos do autor): 29 Veja, por exemplo, a recensão crítica à Cora da Terra, escrita por João Gaspar Simões (1961) à época do lançamento do livro. 39 O seu “fingimento” valeu como uma lição e um exemplo, que estão longe de ter sido compreendidos num país em que ser-se poeta é ser-se um profissional do sentimento oportuno. Mas repugnou-me sempre a parte de artifício, no mais elevado sentido de técnica de apreensão das mais virtualidades, que um tal “fingimento” implica. Porque só artificialmente, embora no plano da poesia e não das artes distractivas, nos é possível assumir extrinsecamente, exteriormente, a multiplicidade vária que, dentro de nós, é uma família incómoda, uma sociedade inquieta, um mundo angustiado.” Assim, ainda que a poética do fingimento seja entendida como forma de educação do espírito humano em relação a suas potencialidades, a crítica recai no privilégio do artifício. Para Lourenço (1998), essa discussão está alicerçada sobre a “concepção do Eu”, que havia se modificado inteiramente a partir do momento em que se admitiu, com Freud, a diversidade complexa que compõe cada mente humana. Pessoa resolveu captar esteticamente essa tomada de consciência por meio das heteronímias, mas para Sena a mesma solução literária já não era mais possível: [...] o que em Fernando Pessoa era um ponto de chegada (a fragmentação da personalidade), surge, necessariamente, a Jorge de Sena como um ponto de partida” (LOURENÇO, 1998, p. 59). Assim, a poética do testemunho de linguagem alia à educação a proposta de revolução da consciência humana, uma vez que sua atividade visa o questionamento do senso comum, a subversão das regras impostas, a discussão de todos os termos; enfim, o testemunho de linguagem é o exercício da coragem de dizer do mundo, mais do que aquilo que ele aparenta ser, assumindo a total responsabilidade pelo dito. Em Sena (1988a, p. 26): [...] o “testemunho” é, na sua expectação, na sua discrição, na sua vigilância, a mais alta forma de transformação do mundo, porque nele, com ele e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das ideias aceites, dos hábitos sociais inconscientemente vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos. Como um processo testemunhal sempre entendi a poesia, cuja melhor arte consistirá em dar expressão ao que mundo (o dentro e o fora) nos vai revelando, não apenas de outros mundos simultânea e idealmente possíveis, mas, principalmente, de outros que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar a que sejam de facto. Uma das formas de realizar essa transformação é, como veremos, a metamorfose. 40 2.1. Metamorfose E, se não fora a poesia olhando a História, nenhuma vida em verdade conheceríamos, nem a nossa própria. Não adianta muito, concordarei, este saber, e é mais do que prudente recusá-lo. Mas são precisamente as «metamorfoses» o que nos permite olhar a cabeça de Medusa. Jorge de Sena Post-fácio de Metamorfoses Para a abertura da seção de Metamorfoses, em que figuram os poemas transmutados de objetos artísticos, Sena lança mão do seguinte verbete, extraído do Vocabulário Portuguez&Latino, áulico, anatomico, ... (1712-28), de Raphael Bluteau (apud SENA, 1988b, p. 55): “METAMORPHOSE – Transformação, ou mudança de hua pessoa em outra forma. (...) se Ovídio não latinizou a palavra Metamorphosis deo a intelligencia della aos Latinos com o título de hua de suas obras”. Antes de ascendermos ao que a definição implica, cabe comentar a escolha da fonte da qual provém. O Vocabulário de Bluteau é o primeiro dicionário da língua portuguesa, numa época em que fazer dicionários ainda não era atividade usual, mas relacionava-se à proposta Iluminista de esclarecimento do espírito. Com isso, o poeta ancora a definição de metamorfose aos primeiros intentos de constituição formal de um patrimônio cultural comum, numa tendência ao universalismo. Ao apropriar- se do verbete do dicionário e inseri-lo como paratexto, toda uma teia de referências é armada com a função de dirigir o olhar do leitor para a estrutura de Metamorfoses. Com isso, Sena vai tecendo a imagem poética da metamorfose e a aproximação com Ovídio, não só a liga com a tradição clássica greco-latina, como também, define-a como transformação de uma forma em outra. Nas metamorfoses senianas não ocorre o recurso ao maravilhoso, em que deuses tomam a forma de animais, ou homens transmutam-se em outros homens; contudo, a transformação operada também se realiza no nível das formas. Assim, quadros, esculturas, construções arquitetônicas, reproduções fotográficas e outros artefatos são vertidos na forma do poema, ou ainda, servem de fundo para que a poesia opere a metamorfose das linguagens. Trata-se de ver aí a metamorfose sob as perspectivas indicadas por Fagundes (1982): um tema, mobilizado desde a Antiguidade Clássica, e uma técnica literária, que consiste em estabelecer um diálogo poético entre meios artísticos com diferentes expressões. Além disso, há que se considerar as referências arquitetadas por Sena ― paratexto, epígrafes, objetos artísticos ― sob a perspectiva da teoria da recepção, ou seja, como atos de 41 fingir. Para Iser (2002, p. 957), a seleção de elementos da realidade no texto literário dá conta da “preparação de um imaginário”. O ato de fingir é, justamente, a criação desse imaginário, que une realidade e ficção, como “repetição no texto da realidade vivencial” (ISER, 2002, p. 958). Dessa forma, a realidade é transmutada em signo, o que promove uma transgressão de limites. Se atentarmos para o paratexto, que funda o imaginário da metamorfose no livro, a transgressão acontece na desmontagem da imparcialidade do discurso científico, porque a poesia faz, do verbete, material poético. Assim, a metamorfose é anunciada como procedimento capaz de conferir aos objetos artísticos estatuto diferenciado, ou seja, o quadro, não só passa de imagem visual para imagem verbal, como também se transmuta em força motriz da reflexão poética. Na transgressão de limites entre real e fictício, o ato de fingir promove a “condição para a reformulação do mundo formulado” (ISER, 2002, p. 960). A metamorfose, forma poética do testemunho de linguagem, parece não buscar outra via possível do que aquela reformulação. E já que se recorreu ao paratexto, cabe também dar destaque às quatro epígrafes que figuram no frontispício do livro de 1963. Ao dispor, sequencialmente, trechos das Metamorfoses, de Ovídio, uma estrofe do poema “A uma promessa de uma glória cuja vinda tardava”, de Manuel Soares de Albergaria, um verso do Fausto, de Goethe e um verso do Romancero del Destierro, de Unamuno, o poeta arquiteta, nos termos da peregrinação, o caminho para que o leitor reconheça na estrutura das Metamorfoses e, principalmente, na imagem da metamorfose, como tema e técnica, a historicidade que compõe o livro. Ao selecionar e combinar paratexto e epígrafes dando azo ao imaginário da metamorfose, o poeta promove o texto literário por meio do “desnudamento de sua ficcionalidade” (ISER, 2002, p. 969, grifo do autor), entregando ao leitor uma visão da literatura como verdade fabricada, criada pela consciência imaginativa e, justamente por isso, capaz de tornar-se real. Dessa forma, as quatro epígrafes, que abrem a jornada pela história humana proposta nas Metamorfoses, prenunciam seu projeto ético-estético. Centremos a atenção na referência a Ovídio e seu Metamorphoseon, que aparece na forma dos quatro primeiros versos do canto: I Faz-me o estro dizer formas em novos corpos mudadas. Deuses, já que as mudastes também, inspirai-me a empresa e, da origem do mundo ao meu tempo, guiai este canto perpétuo. (I, 1-4) (CARVALHO, 2010, p. 39) 42 O “estro” que move Jorge de Sena é, justamente, aquela fidelidade correlata à metamorfose (CARLOS, 1999), que faz o poeta assumir a própria expressão como dizer responsável perante o mundo ― testemunho de linguagem ― e, sobretudo, na sua relação com a metamorfose, a fidelidade está em captar o que no tempo se transforma, ou ainda, em promover a cosmovisão poética em que a consciência da transformação contínua da realidade material está sempre presente. Se no paratexto, Ovídio aparecia como o responsável pela intelligensia da metamorfose, nessa primeira epígrafe, vemos delinear-se um caminho pelo tempo com o intuito de abarcar a transformação dos seres, desde a origem dos tempos até os dias que lhe foram contemporâneos. Nessa medida, Sena não fica muito distante dessa ideia épica, já que afirma: “Quanto aos poemas, tenho para mim que são líricos, integrados numa estrutura épica” (SENA, 1988b, p. 159). A estrutura épica está relacionada ao fato de que se articula uma reflexão sobre a historicidade do Homem, por meio dos poemas vertidos de obras artísticas significativas. Contudo, no livro do português, ao invés da passagem do estado de caos para a ordem universal da natureza, o surgimento do primeiro Homem, como aparece na Ante-metamorfose, interessa mais. Assim, a proximidade com Ovídio pode ser vista em duas perspectivas: a) uma ideia de que o transcorrer do tempo dá-se pela forma processual e, b) que nesse processo há a transformação dos seres, a metamorfose em si. A metamorfose seniana é o tempo em movimento, ou seja, a história sob a perspectiva da dialét