UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DANILO GARNICA SIMINI ATUAÇÃO INTERNACIONAL DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE DE 1988: UM ESTUDO DE CASO DA SECRETARIA MUNICIPAL DE RELAÇÕES INTERNACIONAS E FEDERATIVAS DE SÃO PAULO FRANCA 2015 DANILO GARNICA SIMINI ATUAÇÃO INTERNACIONAL DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE DE 1988: UM ESTUDO DE CASO DA SECRETARIA MUNICIPAL DE RELAÇÕES INTERNACIONAS E FEDERATIVAS DE SÃO PAULO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania. Orientadora: Profa. Dra. Regina Claudia Laisner FRANCA 2015 Simini, Danilo Garnica. Atuação internacional dos municípios brasileiros à luz da Constituição Dirigente de 1988: um estudo de caso da Secretaria Municipal de Relações Internacionais e Federativas de São Paulo / Danilo Garnica Simini. – Franca : [s.n.], 2015. 147 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Regina Claudia Laisner 1. Direito constitucional. 2. Diplomacia. 3. Municipios. I. Título. CDD – 341.2553 DANILO GARNICA SIMINI ATUAÇÃO INTERNACIONAL DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE DE 1988: UM ESTUDO DE CASO DA SECRETARIA MUNICIPAL DE RELAÇÕES INTERNACIONAS E FEDERATIVAS DE SÃO PAULO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania. BANCA EXAMINADORA Presidente:_________________________________________________________________ Profa. Dra. Regina Claudia Laisner 1º Examinador:______________________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Walmott Borges – FCHS/UNESP 2º Examinador:______________________________________________________________ Prof. Dr. José Blanes Sala – Universidade Federal do ABC Franca,____ de________ de 2015. AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus familiares, especialmente, meus pais José Roberto (in memoriam) e Neusa. Meu pai fez sua passagem logo após o término de minha graduação, mas não me deixou sozinho em momento algum desde então, inclusive durante a realização do mestrado. O seu exemplo foi tão intenso durante nossos vinte e três anos de convivência “física” que sua morte “biológica” não foi suficiente para retirá-lo de minha vida. Minha mãe que sempre foi uma guerreira, com a morte de meu pai, se mostrou uma verdadeira heroína, sempre buscando de todas as formas dar o melhor para seus filhos. Aos dois, devo não apenas minha existência e meu caráter, mas também minha educação. Afinal, como dizia meu pai, “a melhor herança que um pai pode deixar para o filho são os estudos!”. Ao meu irmão Eduardo, agradeço pelo incentivo e por esse amor “torto” que temos um pelo outro. À Carla, minha namorada, melhor amiga, confidente, serei eternamente grato por todo o companheirismo desde o longínquo ano de 2009 e, principalmente, pela paciência durante o mestrado. Espero poder retribuir todo o amor, carinho e dedicação que sempre teve e continua tendo comigo, até porque, como ela sempre disse durante esses trinta meses, “só eu sei o que é conviver com o mestrando Danilo Garnica Simini!”. Se nesse momento encerra-se um ciclo de minha vida, posso afirmar que você é uma das principais responsáveis! À Professora Regina Laisner, agradeço pela oportunidade que me deu durante o processo seletivo de ingresso no mestrado. Esta oportunidade que me abriu tantas “portas” pessoais e profissionais só foi obtida em razão da generosidade da Professora Regina, que resolveu “apostar” em um aluno formado por outra faculdade e sem experiência em pesquisa. Agradeço pelas orientações sempre seguras e sinceras. Fica minha admiração pela excepcional professora, competente pesquisadora e brilhante intelectual. Posso dizer que me sinto extremamente honrado por ter sido o seu primeiro orientando no Mestrado em Direito da UNESP de Franca. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESP de Franca, agradeço por todo o conhecimento transmitido durante as aulas e, principalmente, fora delas. Agradeço também os Professores Alexandre Walmott e Marcelo Mariano pelas valiosas dicas e sugestões apresentadas durante o meu exame geral de qualificação realizado em setembro de 2014. Agradeço igualmente os funcionários Ícaro e Mauro do Setor de Pós- Graduação, bem como Laura Jardim da Biblioteca por todo apoio, ajuda e orientações. Ao Núcleo de Estudos em Políticas Públicas (NEPPs) e aos companheiros de pesquisa do grupo de “Secretarias”, agradeço pela prazerosa companhia e, acima de tudo, pelos ensinamentos que vocês me passaram ao longo destes meses. Registro um agradecimento especial aos queridos Cairo Junqueira, Victor Laisner , Gabriel Norde, Amanda Bertolani, Lucas Saifi, Mayara Teoro, Norberto Filho, Priscila Rosso, Guilherme Guimarães, Josiane Paula, Eduardo Cervi, Vinícius Pulitano, Giovana Scotini, Alice Inácia, Professora Paula Pavarina e Professora Camila de Mario. Muito obrigado! Aos meus colegas da turma de 2013 do Mestrado em Direito da UNESP de Franca, Érika Fernandes, Pedro Borato, Daniel Barauna, Ana Carolina Wolff , Evelyn Marchetti (in memoriam), Rafael Arouca, Tônia Barouche, Luciana Bergo, Deisi Marques, Larissa Soldate, Mirele Pauly, Guilherme Vieira, João Filipe Franco, Eduardo Braga (“Beraba”), Camila Saran, Danilo Alves, Vinícius Cavarzani, Juliana Frei, Luciana Gebrim, Renato Melo e Salém Cury, deixo aqui meus agradecimentos e homenagens. A convivência durante as aulas, eventos acadêmicos e, o mais importante, durante os almoços e cafés da tarde tornaram esses trinta meses de mestrado muito mais leves e prazerosos. Também agradeço minhas “veteranas” do mestrado Ana Cristina Gomes e Júlia Lenzi Silva por toda ajuda ao longo do curso, desde a confecção do projeto de pesquisa, passando pelo exame geral de qualificação, questões burocráticas de um modo geral e, principalmente, pela parceria que extrapola os muros da UNESP de Franca, tal como ocorreu ano passado quando as minhas duas “veteranas” estiveram em Ituverava ministrando palestras a meu convite. Minha gratidão! Agradeço meus amigos de Ituverava, especialmente, Flávio Beicker pela ajuda durante a preparação para o processo seletivo e também pelas importantes dicas durante a elaboração do projeto de pesquisa, Dito Catarino por ter me levado até a UNESP quando prestei o processo seletivo pela primeira vez, Luiz Felipe e Vitor Hugo pela hospedagem, caronas e jantares sempre “saudáveis” em Franca e Fabiano Josué, Eudes Lebrão e Sílvio Macedo pelo incentivo constante, principalmente na fase final do curso. Deixo também meus agradecimentos aos amigos José Orlando Barreto e Renilton Peres de Melo pelas inúmeras caronas Ituverava-Franca, sempre regadas com boas conversas. Finalmente, agradeço à Secretaria Municipal de Relações Internacionais e Federativas de São Paulo, em particular, os funcionários Wagner Cabral e Cássia Contart por terem me disponibilizado os relatórios das gestões, bem como pela receptividade em minha visita ao órgão no mês de janeiro deste ano. Trago no sangue e no sonho Falar castanho, verde olhar Fui batizado no fogo, Ouvindo e cantando Quem bebeu água da fonte Não vai se perder Trago no sonho E no sangue Motivos pra lutar, Ladeiras do divino E becos da fome. Quem cruzou Aquela ponte Não vai se esquecer. O que eu sou, eu sou em par. Não cheguei sozinho Canções da minha dor, Canções do meu pesar, Canções do meu amor, Canções do meu amar Quem agora é distante Para não dizer O que eu sou, eu sou em par Não cheguei sozinho.” “Castanho” - Lenine SIMINI, Danilo Garnica. Atuação internacional dos municípios brasileiros à luz da Constituição Dirigente de 1988: um estudo de caso da Secretaria Municipal de Relações Internacionais e Federativas de São Paulo. 2015. 147 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2015. RESUMO Paralelamente ao processo de urbanização que se inicia nos anos de 1950 no país e se estende até os dias atuais, ocorre um processo de aumento do reconhecimento dos municípios enquanto entes federados, a partir da atribuição formal de novas competências, o que os torna importantes agentes indutores de políticas públicas, além de conferir-lhes autonomia na área política, administrativa e financeira. E a Constituição Federal de 1988 deve ser considerada documento inovador neste aspecto. Ocorre que a assunção de novas responsabilidades pelos municípios não foi acompanhada de recursos suficientes para que estes atendessem de modo satisfatório às demandas públicas. Assim, este novo panorama fez com que as cidades buscassem novas formas de atender suas demandas, surgindo como alternativa a atuação internacional. No Brasil esta atuação internacional se dá de diversas formas, entre elas, a organização de Secretarias Municipais de Relações Internacionais. Porém, historicamente sempre coube à União o monopólio da atividade internacional, ocasionando, em princípio, obstáculos jurídicos a esta atuação, tradição mantida mesmo na Constituição Federal de 1988. Todavia, a compreensão do texto constitucional não deve ser feita partindo-se do pressuposto de que a Carta de 1988 configura um mero instrumento definidor de competências (Constituição Garantia), mas sim um documento político-jurídico definidor de fins e programas de ação futura no sentido de melhorias das condições sociais e econômicas da população (Constituição Dirigente). Nesse sentido, toda atuação pública deve ter por norte os objetivos da República Federativa do Brasil elencados especialmente no artigo 3º do texto constitucional vigente. A pesquisa proposta visa investigar, a partir de uma leitura da Constituição Dirigente se há, compatibilidade entre a atuação internacional dos municípios brasileiros por meio das Secretarias Municipais de Relações Internacionais e a Constituição interpretada desta forma, especificamente no que se refere aos objetivos do Estado e da sociedade. Tal investigação será feita por meio de estudo de caso, especificamente através da análise dos projetos desenvolvidos entre 2001 e 2008, no âmbito da Secretaria Municipal de Relações Internacionais e Federativas de São Paulo, verificando-se se estes projetos guardam congruência com os objetivos do Estado e da sociedade brasileiros previstos no artigo 3º do texto constitucional, notadamente aqueles referentes à busca pelo desenvolvimento e a erradicação da pobreza. Busca-se a partir deste estudo de caso lançar luz a um debate mais amplo, tanto no que diz respeito a uma forma alternativa de interpretação da Constituição, como do papel da atuação internacional dos municípios neste formato. Palavras-chave: Constituição dirigente. atuação internacional de municípios. Secretarias Municipais de Relações Internacionais. Secretaria Municipal de Relações Internacionais e Federativas de São Paulo. SIMINI, Danilo Garnica. Atuação internacional dos municípios brasileiros à luz da Constituição Dirigente de 1988: um estudo de caso da Secretaria Municipal de Relações Internacionais e Federativas de São Paulo. 2015. 147 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2015. ABSTRACT In parallel to the urbanization process that begins in the 1950s in the country and extends to the present day, there is a process of increasing recognition of municipalities as federal entities, from the formal assignment of new skills, which makes them important agents public policy inductors, and give them autonomy in the political, administrative and financial. And the Federal Constitution of 1988 should be considered innovative document in this regard. It turns out that the assumption of new responsibilities by the municipalities was not accompanied by sufficient resources so that they satisfactorily heeding the public demands. Thus, this new panorama caused the cities to seek new ways to meet their demands, emerging as alternative to international operations. In Brazil this international action takes place in several ways, including the organization of Municipal Departments of International Relations. But historically it fell to the Union the monopoly of international activity, resulting in principle legal obstacles to this action, tradition maintained even in the Constitution of 1988. However, understanding the Constitution should not be made starting from the assumption that the 1988 Constitution sets up a mere instrument defining skills (Constitution warranty), but rather a political-legal document defining the purpose and future action programs in order to improve social and economic conditions of the population (Constitution Manager). In this sense, all public action should be to the north the objectives of the Federative Republic of Brazil listed specifically in Article 3 of the current Constitution. The proposed research aims to investigate, from a ruling establishment reading if there is compatibility between the international operations of Brazilian municipalities through the Municipal Departments of International Relations and the Constitution interpreted in this way, specifically as it relates to state objectives and of society. Such an investigation will be made by means of case study, specifically by analyzing the projects developed between 2001 and 2008 under the Municipal Secretariat of International Relations and Federative São Paulo, verifying if these projects keep coherence with the state goals Brazil set out in Article 3 of the Constitution, especially those relating to the pursuit of development and poverty eradication. Search up from this case study shed light to a wider debate, both with respect to an alternative form of interpretation of the Constitution as the role of the international role of the municipalities in this format. Keywords: Constitution Manager. international operations of municipalities. Municipal Departments of International Relations. Municipal Secretariat of International Relations and Federative of. LISTA DE SIGLAS ABC Agência Brasileira de Cooperação ABM Associação Brasileira de Municípios AICE Associação Internacional de Cidades Educadoras ANC Assembleia Nacional Constituinte ARENA Aliança Renovadora Nacional BID Banco Interamericano de Desenvolvimento CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CE Comissão Europeia CELAC Comunidades dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos CEPAL Comissão Econômica para América Latina CEU Centro Educacional Unificado CF Constituição Federal CGLU Cidades e Governos Locais Unidos CNM Confederação Nacional de Municípios COHAB Companhia de Habitação de São Paulo CONVIAS Departamento de Controle de Vias Públicas DEM Partido Democratas FAO Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação FECIBESP Federação das Entidades Culturais Ítalo-Brasileiras FNP Frente Nacional de Prefeitos IRI Instituto de Relações Internacionais JICA Agência do Japão para Cooperação Internacional MDB Movimento Democrático Brasileiro MERCOSUL Mercado Comum do Sul METROPOLIS Associação Mundial de Grandes Metrópoles OAB Ordem dos Advogados do Brasil OEI Organização dos Estados Iberoamericanos OIT Organização Internacional do Trabalho OMS Organização Mundial de Saúde ONU Organização das Nações Unidas OPAS Organização Panamericana de Saúde PDS Partido Democrata Social PDT Partido Democrata Trabalhista PFL Partido da Frente Liberal PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro PMSP Prefeitura Municipal de São Paulo PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PNUMA Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente PROCENTRO Programa de Reabilitação da Área Central de São Paulo PP Partido Popular PPB Partido Progressista Brasileiro PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PSF Programa Saúde da Família PT Partido dos Trabalhadores PTB Partido Trabalhista Brasileiro SEHAB Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo SMRI Secretaria Municipal de Relações Internacionais SMRIF Secretaria Municipal de Relações Internacionais e Federativas SSO Secretaria de Serviços e Obras de São Paulo UCCI União de Cidades Capitais Iberoamericanas UN-HABITAT Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos UNASUL União de Nações Sul Americanas UNCTAD Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura USP Universidade de São Paulo SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA CONSTITUIÇÃO ............................ 18 1.1 A tipologia constitucional e o debate acerca da Constituição Dirigente ...................... 18 1.2 A redemocratização brasileira e a realização da Assembleia Constituinte ................. 23 1.3 A Constituição Federal de 1988 e seu caráter dirigente ............................................... 27 1.4 O artigo 3º da Constituição Federal de 1988 e os objetivos para o Estado e sociedade brasileiros ......................................................................................................................... 31 1.4.1 “Garantir o desenvolvimento nacional” .......................................................................... 35 1.4.2 “Erradicar a pobreza” ..................................................................................................... 46 CAPÍTULO 2 O STATUS DO MUNICÍPIO BRASILEIRO NA ORDEM CONSTITUCIONAL VIGENTE ................................................................ 51 2.1 Município como parte integrante do federalismo brasileiro ........................................ 51 2.2 Autonomia dos municípios brasileiros ............................................................................ 56 2.3 Das competências atribuídas aos municípios e o critério do interesse local ............... 62 2.4 Contradições do federalismo e os desafios do poder local ............................................ 67 CAPÍTULO 3 A PARADIPLOMACIA COMO NOVA FORMA DE MANIFESTAÇÃO DOS ENTES POLÍTICOS NA ESFERA INTERNACIONAL ................ 73 3.1 Conceito de paradiplomacia, classificações, interesses e determinantes ..................... 73 3.2 Considerações acerca da paradiplomacia brasileira ..................................................... 78 3.3 As Secretarias Municipais de Relações Internacionais como forma de manifestação internacional dos municípios brasileiros ....................................................................... 86 3.3.1 A Secretaria Municipal de Relações Internacionais e Federativas de São Paulo: cronologia, estrutura e formas de atuação ..................................................................... 98 CAPÍTULO 4 A ATUAÇÃO DA SECRETARIA MUNICIPAL DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E FEDERATIVAS DE SÃO PAULO .................. 108 4.1 Aspectos gerais da atuação e dos projetos desenvolvidos entre 2001 e 2008 ............ 108 4.2 O Programa URB-AL – “Rede 10 – Luta contra a Pobreza Urbana” ...................... 120 4.3 A atuação da Secretaria à luz do artigo 3º da Constituição Federal de 1988 ........... 130 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 137 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 140 12 INTRODUÇÃO O processo de industrialização no país fez com que os brasileiros deixassem o campo com destino às cidades, na busca de novas oportunidades que até então o meio rural não lhes proporcionava, atribuindo novo sentido às cidades. Ocorre que a intensidade do processo de urbanização no Brasil trouxe consequências imediatas na vida daqueles que passaram a residir nas cidades, nem sempre positivas e que trouxeram novos desafios à gestão pública, agora também vinculada à lógica local, uma vez que o ordenamento jurídico nacional acabou por atribuir-lhes novas responsabilidades, tendo esses entes políticos acumulado funções que antes eram inerentes apenas à União e aos estados. A Constituição Federal de 1988 conferiu aos municípios brasileiros “[...] um status que até então não possuíam, sendo o Brasil o primeiro país a considerar os municípios como integrantes de sua Federação.” (BLANES SALA; CARVALHO, 2013, p. 238). Consequentemente, a Constituição Federal de 1988 assegurou-lhes autonomia na área política, administrativa e financeira. Neste contexto, o município emerge como um importante agente indutor de políticas públicas, assumindo tarefas em diversas áreas relevantes, tais como educação e saúde. Entretanto, deve- se considerar que esta atribuição de novas responsabilidades não foi acompanhada da existência de recursos suficientes para que as demandas públicas da população fossem atendidas de modo satisfatório, o que levou a certa sobrecarga em relação aos municípios brasileiros, decorrente desta delegação de responsabilidades. Marcelo Passini Mariano e Maria Inês Barreto (2004, p. 22) explicam: Na medida em que os Estados nacionais vêm perdendo capacidade de atuar como agentes promotores do desenvolvimento nacional e regional, ocorre um processo de transferência dessa responsabilidade para os níveis estaduais (ou provinciais) e locais de governo, que se veem constrangidos a enfrentar o desafio de sua própria sobrevivência nos planos econômico, político e social. Este contexto de assunção de novas responsabilidades e de autonomia político- jurídica acabou estimulando os municípios brasileiros a atuar internacionalmente como forma de buscar soluções para as dificuldades enfrentadas. Os municípios, ainda que atualmente em pequeno número, viram na arena internacional um campo fértil para o enfrentamento desta nova realidade, vislumbrando na cooperação internacional uma alternativa viável para a formulação e implementação de políticas públicas nas mais diversas áreas, tais como meio ambiente, saúde, educação, urbanismo, habitação, etc. Nesta dissertação toma-se de empréstimo um conceito do campo teórico das Relações Internacionais, que se refere à atuação internacional das entidades subnacionais e 13 que é tradicionalmente conceituada como “paradiplomacia”. O termo foi cunhado por Panayotis Soldatos (SOLDATOS, 1990), que apesar de algumas críticas e variações (MATSUMOTO, 2011), vem sendo a nomenclatura utilizada de modo geral. Portanto, pode- se dizer que a atuação internacional de municípios, objeto desta pesquisa, constitui uma espécie de paradiplomacia. No Brasil, a atuação dos municípios na esfera internacional é realizada de várias formas, dentre as quais destacam-se as redes de cidades, já mais comumente abordadas pelos estudos de paradiplomacia. Outro formato menos estudado de atuação internacional das entidades subnacionais são as chamadas Secretarias Municipais de Relações Internacionais (SMRIs), por meio das quais os municípios buscam parcerias no exterior, através de acordos e convênios com outras cidades e/ou organismos governamentais estrangeiros. Apesar de experiências exitosas, são muitos os obstáculos que cercam a atividade internacional de municípios, destacando-se os que se referem à questão jurídica. Neste sentido, pode-se dizer que os problemas jurídicos relativos à atuação internacional de municípios surgem através da leitura dos textos constitucionais brasileiros promulgados, já que estes sempre atribuíram ao governo central o monopólio da ação internacional. Esta atribuição se verifica em razão da existência no Brasil de “[...] uma tradição federalista centralizadora, historicamente explicável, que remonta ao caráter unitário do período imperial, de 1822 a 1889.” (VIGEVANI, 2006, p. 133). Mesmo com o advento da República, não houve alteração neste cenário. Pode-se citar a Constituição Republicana de 1891 (BRASIL, 1891) que conferia ao presidente poderes para manter relações com Estados estrangeiros e firmar negociações internacionais, além de celebrar ajustes, tratados e convenções, desde que referendados pelo Congresso Nacional. A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), por sua vez, manteve esta tradição ao enumerar como uma das competências exclusivas da União “[...] manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais.” (artigo 21, inciso I). Como se vê, a interpretação literal do texto constitucional evidencia que este atribui exclusivamente à União competência para atuar em matéria internacional, afirmando alguns autores não haver reconhecimento legal para a atuação internacional dos municípios brasileiros (RODRIGUES, 2004, p. 451), e tendo outros observado que “[...] trata-se de um campo onde há formas difusas de atuação e os limites legais não são precisos.” (VIGEVANI, 2006, p. 131). Entretanto, a análise constitucional da atuação internacional dos municípios brasileiros não pode ser feita apenas por meio de mera interpretação literal ou gramatical do 14 texto normativo, conforme vem ocorrendo até o presente momento. O estudo deve ser feito mediante a superação do entendimento da Constituição enquanto documento definidor de competências e regulador de procedimentos. Ou seja, da chamada Constituição garantia, pode-se evoluir para a compreensão da Constituição enquanto documento que define fins e objetivos para o Estado e a sociedade. Esta compreensão remete a um debate no campo do Direito que prevê a possibilidade de refletir sobre a Constituição por meio de outra perspectiva, qual seja, a da Constituição Dirigente. A superação deste entendimento se mostra fundamental, pois entender a Constituição como simples definidora de competências e procedimentos (Constituição Garantia) levará à conclusão de que esta não possui qualquer conteúdo social ou econômico, servindo apenas para a manutenção do “status quo”. Logo, a falsa premissa de que a Constituição Federal de 1988 se resume apenas a definir competências e regular procedimentos, levará a constatação equivocada de que a atuação internacional dos municípios brasileiros não encontra respaldo jurídico, posto competir exclusivamente à União manter relação com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais (artigo 21, inciso I, da Constituição Federal). No caso brasileiro, os objetivos do Estado encontram-se elencados especialmente no artigo 3º da Constituição Federal de 1988. Logo, toda atuação pública realizada pelos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e municípios) deve guardar relação com os objetivos da República Federativa do Brasil indicados no citado dispositivo legal. Em outras palavras, deve haver sincronia entre a atuação da administração pública, em suas mais variadas formas, e os objetivos traçados pelo constituinte ao Estado e sociedade brasileiros. Sendo assim, o debate acerca da compatibilidade entre a Constituição Federal de 1988 e a atuação internacional dos municípios brasileiros pode ser feito a partir do artigo 3º do texto constitucional. Mais especificamente, deve-se verificar, na prática cotidiana desta atuação, a partir dos projetos desenvolvidos, se estes guardam relação com os objetivos traçados ao Estado e sociedade brasileiros a partir do que se prevê na Constituição tomada como dirigente. Por uma escolha metodológica não serão discutidos todos os objetivos previstos no artigo 3º, mas apenas aqueles referentes ao desenvolvimento e à erradicação da pobreza. A escolha por esse recorte se dá pelo fato de haver na literatura em Ciências Humanas e Sociais uma quantidade maior de trabalhos que tratam destes dois termos, apesar do debate ainda ser, de certa forma, incipiente no campo do Direito. No que diz respeito ao recorte realizado no artigo 3º, inciso III, excluindo-se a questão das desigualdades regionais 15 da análise, esta opção foi feita pela dificuldade em se mensurar os impactos de políticas públicas municipais em termos de redução das desigualdades regionais, já que estas, como o próprio nome demonstra, atingem duas ou mais cidades, o que dificulta a investigação proposta. Ademais, também se justifica o recorte por entendermos que estes dois objetivos (garantir o desenvolvimento e erradicar a pobreza) se mostram de extrema importância em razão da grave realidade socioeconômica do país, cuja Constituição de 1988, alinhada ao dirigismo constitucional, pretende transformar por meio de uma atuação diligente e constante do Estado e da sociedade. Em linhas gerais, são estes os motivos que justificam o recorte feito, não obstante a dificuldade em conceituar termos tão relevantes e significativos ao debate. De qualquer forma, o importante a se ressaltar neste momento é que analisar a constitucionalidade de políticas públicas, inclusive aquelas desenvolvidas por meio da atuação internacional de municípios, exige uma leitura material ou substancial dessa atuação. Por isso, será realizado um estudo de caso, investigando-se a atuação internacional do município de São Paulo através de sua Secretaria de Relações Internacionais entre os anos de 2001 e 2008. O estudo de caso permitirá um debate mais pautado em evidências empíricas, já que a atuação internacional de municípios no Brasil se manifesta de diversas formas, tornando impossível a análise da compatibilidade destas múltiplas atuações com os objetivos do artigo 3º da Constituição Federal de 1988. A dissertação está dividida em quatro capítulos. O primeiro apresentará o referencial teórico da Constituição Dirigente, sua aplicabilidade ao caso brasileiro, a importância do artigo 3º da Constituição Federal de 1988 enquanto norma que estipula objetivos para o Estado e sociedade e, por fim, serão apresentadas as principais concepções acerca de desenvolvimento e pobreza, indicando ao final quais serão utilizadas ao longo da dissertação. O segundo irá apresentar como está estruturado o município brasileiro na ordem constitucional vigente, indicando sua posição enquanto ente federativo, sua autonomia, competências constitucionais e sua importância em um cenário tão contraditório quanto o brasileiro. O terceiro capítulo tratará da atuação internacional de municípios, especificamente acerca de sua relação com a paradiplomacia enquanto manifestação internacional dos entes subnacionais, também apresentará algumas considerações gerais sobre a paradiplomacia no Brasil e sua institucionalização nos municípios através das Secretarias de Relações Internacionais, para ao final apresentar a Secretaria Municipal de Relações Internacionais e Federativas de São Paulo (SMRIF-SP), órgão escolhido para o estudo de caso. Por fim, o 16 quarto capítulo apresentará os aspectos gerais da atuação da SMRIF-SP entre os anos de 2001 e 2008, bem como o projeto desenvolvido no âmbito do Programa URB-AL, denominado “Rede 10 – Luta Contra a Pobreza Urbana”, além de discutir em que medida essa atuação guarda compatibilidade com os objetivos constitucionais do artigo 3º da Lei Fundamental, especialmente a erradicação da pobreza e a busca pelo desenvolvimento. A dissertação pretende contribuir, para além do campo do Direito, na perspectiva de uma leitura alternativa da Constituição, com a área de Relações Internacionais que ao realizar os estudos das possibilidades da atuação internacional de municípios, no que diz respeito à sua validade constitucional, em geral, somente toma em conta a Constituição de 1988 do ponto de vista procedimental ou formal. Assim, este trabalho traz uma nova leitura das normas constitucionais no intuito de elaboração de um viés de intersecção entre o Direito e as Relações Internacionais, complementando saberes através da adição de uma nova maneira de se interpretar as normas constitucionais relacionadas ao objeto da pesquisa. De outra parte, o estudo também se mostra relevante no campo teórico do Direito, pois a quase totalidade dos estudos acerca da atuação internacional de municípios utilizam como referencial teórico o Direito Internacional Público, especialmente no que diz respeito à capacidade de celebrar tratados internacionais1. Logo, são poucos os estudos jurídico- constitucionais2 desta atuação, sendo que não há análises conhecidas que investiguem se a atuação internacional dos entes locais brasileiros encontra espaço na Constituição Dirigente de 1988. O presente estudo surge, portanto, como uma interpretação jurídica alternativa deste importante fenômeno. Desta forma, a presente dissertação se mostra importante como forma de suprir as lacunas existentes nos trabalhos científicos já realizados, incrementando as análises disponíveis e fornecendo uma nova forma de se estudar a atuação internacional de municípios no Brasil, contribuindo, tanto para o campo teórico das Relações Internacionais, quanto para o campo do Direito. A pesquisa também se mostra de grande importância quanto aos aspectos práticos da atuação em estudo. O debate constitucional acerca da possibilidade da atuação internacional de municípios no Brasil se mostra essencial, sob pena desta atuação, particularmente por meio das Secretarias Municipais de Relações Internacionais, tornar-se inválida juridicamente. Em outras palavras, a insegurança jurídica existente quando se discute 1 Conferir os seguintes trabalhos: CASTELO BRANCO (2007); FONSECA (2013); BLANES SALA e SANTOS (2009). 2 A título de exemplo de estudo com viés constitucional conferir: PRAZERES (2004). 17 a atuação internacional de municípios no Brasil revela a importância da pesquisa a ponto de justificá-la científica e socialmente. Finalmente, além da insegurança jurídica acima citada, também no que se refere à importância da pesquisa, deve-se lembrar que a atuação internacional de municípios, por ser considerada um fenômeno “[...] desejável, uma vez que traz, em tese, benefícios à comunidade locais e regionais” (ABREU, 2013, p. 70), guarda estreita relação com a implementação de políticas públicas por meio de acordos e compromissos firmados em prol da população. Portanto, a investigação constitucional proposta se mostra essencial também em termos de ganhos sociais. 18 CAPÍTULO 1 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA CONSTITUIÇÃO 1.1 A tipologia constitucional e o debate acerca da Constituição Dirigente De acordo com Gilberto Bercovici (2004), o constitucionalismo do século XX, notadamente o período que se inicia após a Segunda Grande Guerra, foi palco de um intenso debate, tendo de um lado aqueles que consideravam o texto constitucional um simples instrumento de governo, definidor de competências e regulador de procedimentos e, de outro, aqueles que consideravam a Constituição um documento que estabelece programas e define objetivos para o Estado e para a sociedade. O primeiro pensamento consubstancia a ideia de Constituição Garantia, já o segundo entendimento guarda relação com a denominada Constituição Dirigente. No primeiro caso, a lei fundamental deve ser entendida apenas como uma norma jurídica superior, abstraindo-se dos problemas de legitimação e domínio da sociedade. A Constituição como instrumento formal de garantia não possui qualquer conteúdo social ou econômico, sob a justificativa de perda de juridicidade do texto. As leis constitucionais só servem, então, para garantir o status quo. A Constituição estabelece competências, preocupando-se com o procedimento, não com o conteúdo das decisões, com o objetivo de criar uma ordem estável. Subjacente a essa tese da Constituição como mero “instrumento de governo” está o liberalismo e sua concepção de separação absoluta entre o Estado e a sociedade, com a defesa do Estado mínimo, competente apenas para organizar o procedimento de tomada de decisões políticas. (BERCOVICI, 1999, p. 37). Assim, paralelamente à ideia de Constituição Garantia, tem-se a denominada Constituição Dirigente, considerada aquela que “[...] veicula programas, isto é, estabelece planos ou tarefas a serem cumpridos. Trata-se de uma Constituição que define prioridades.” (OLIVEIRA, F. C. S., 2010, p. 14). Em outras palavras, Constituição Dirigente é aquela que traça fins e objetivos para o Estado e sociedade, apresentando um programa para o futuro, indicando um programa de ação para alteração da sociedade, explicitando a ideia de mudança da realidade por meio do direito (BERCOVICI, 2004). Conceitua-se Constituição Dirigente como a que enuncia programas (valores, metas), os quais, como normas que são, vinculam a atuação do Estado, dos Governos, através de pautas formais e materiais, sujeitando negativa e positivamente a conduta de cada um dos três Poderes, direcionando, conforme um balanço entre abertura e fechamento, a vontade e o proceder do Poder Público, bem como conformam, ainda quando em outra medida, grau e qualidade, os cidadãos, a sociedade, isto é, a deliberação e o agir comunitários. (OLIVEIRA, F. C. S., 2010, p. 14). 19 Outra peculiaridade importante do dirigismo constitucional diz respeito aos destinatários de seus comandos. O Estado não constitui o único agente responsável pela consecução dos fins e objetivos previstos no texto constitucional. A sociedade também ganha papel de destaque neste contexto, fazendo com que o dirigismo constitucional reconheça a sua importância no que diz respeito à realização das metas e prioridades previstas. Em outras palavras, a “Constituição deixa de ser apenas do Estado, para ser também da sociedade.” (BERCOVICI, 1999, p. 38). Por outro lado, deve-se ressaltar ser amplo o âmbito da Constituição Dirigente, não se restringindo ao campo econômico. De qualquer forma, em relação ao aspecto econômico, dirigismo constitucional pode traduzir duas ideias. Primeiramente, a atuação do Estado em termos de orientação da atividade econômica por meio de intervenção direta ou indireta. Na segunda concepção, “[...] dirigismo traduz o controle estatal próprio das economias planificadas ou socialistas e comunistas, onde há a apropriação coletiva de meios de produção.” (OLIVEIRA, F. C. S., 2010, p. 17). De acordo com Gilberto Bercovici (2005), o primeiro autor a trabalhar com a nomenclatura Constituição Dirigente foi Peter Lerche (1999). Em sua concepção toda Constituição possui quatro partes: as linhas de direção constitucional, regras determinadoras de fins, os direitos, garantias e repartição de competências estatais e as normas de princípios. Contudo, as constituições contemporâneas se diferenciam por possuir diretrizes constitucionais que configuram imposições permanentes para o legislador. De acordo com Lerche, estas diretrizes configuram o que ele chama de Constituição Dirigente (dirigierende Vefassung). Posteriormente, o português José Joaquim Gomes Canotilho (2001) retoma os debates a respeito do tema ao publicar em 1982 sua obra referência nos estudos da Constituição Dirigente, intitulada “Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas”, obra correspondente a sua tese de doutorado junto à Faculdade de Direito de Coimbra. A presente tese foi defendida apenas quatro anos após a promulgação da Constituição portuguesa de 1976, documento confeccionado no conturbado período histórico da Revolução dos Cravos. Trata-se de uma obra que discute a relação entre Constituição e legislação, especialmente a função que o texto constitucional deve ter em relação ao Estado e à sociedade. Em outras palavras, discutir o caráter dirigente de determinada Constituição “[...] implica, de modo necessário, uma indagação alargada, tanto no plano teorético-constitucional, 20 como no plano teorético-político, sobre a função e estrutura de uma constituição.” (GRAU, 2005, p. 14). Deve uma constituição conceber-se como ‘estatuto organizatório’, como simples ‘instrumento de governo’, definidor de competências e regulador de processos, ou, pelo contrário, deve aspirar a transformar-se num plano normativo-material global que determina tarefas, estabelece programas e define fins? Uma constituição é uma lei do Estado e só do Estado ou é um ‘estatuto jurídico do político’, um ‘plano global normativo’ do Estado e da sociedade? (CANOTILHO, 2001, p. 11). O professor português ao formular tal indagação acaba por afirmar que a Constituição Dirigente deve ser entendida “[...] como o bloco de normas constitucionais em que se definem fins e tarefas do Estado, se estabelecem directivas e estatuem imposições. A constituição dirigente aproxima-se, pois, da noção de constituição programática.” (CANOTILHO, 2001, p. 224). Neste contexto, pode-se dizer também que “[...] para a Teoria da Constituição Dirigente, a Constituição não é só garantia do existente, mas também um programa para o futuro.” (BERCOVICI, 2004, p. 12). Para que estes fins e tarefas do Estado sejam alcançados, exige-se que o Estado não seja um Estado mínimo, “[...] garantidor de uma ordem assente nos direitos individuais e no título de propriedade, mas um Estado social, criador de bens coletivos e fornecedor de prestações.” (CANOTILHO, 2001, p. 391). Como se vê, a proposta de Canotilho é mais ampla daquela apresentada por Peter Lerche. A diferença da concepção de Constituição Dirigente de Peter Lerche para a consagrada com a obra de Canotilho torna-se evidente. Lerche está preocupado em definir quais normas vinculam o legislador e chega à conclusão de que as diretrizes permanentes (a Constituição Dirigente propriamente dita) possibilitariam a discricionariedade material do legislador. Já o conceito de Canotilho é muito mais amplo, pois não apenas uma parte da Constituição é chamada de dirigente, mas toda ela. O ponto em comum de ambos, no entanto, é a desconfiança do legislador: ambos desejam encontrar um meio de veicular, positiva ou negativamente, o legislador à Constituição. A proposta de Canotilho é bem mais ampla e profunda que a de Peter Lerche: seu objetivo é a reconstrução da Teoria da Constituição por meio de uma teoria material da Constituição, concebida também como teoria social. (BERCOVICI, 2005, p. 34). Observação importante deve ser feita em relação ao significado do termo “lei” na teoria da Constituição Dirigente de Canotilho. De acordo com o autor, o alcance desta expressão deve ser verificado na Constituição que se está por analisar, sendo que “lei” e, consequentemente “legislador”, não necessariamente traduzem única e exclusivamente a ideia de Poder Legislativo e sua atividade, mas compreende a administração pública de um modo geral. Por isso, ao intérprete incumbe verificar quem possui a responsabilidade pela concretização das imposições constitucionais. 21 a) Quando se fala de imposições legiferantes, no contexto da Lei Constitucional de 1976, isso não significa que a tarefa de execução dessas imposições pertença só à lei (teorético-juridicamente definida) ou ao legislador (no sentido de reserva do parlamento). A polissemia do conceito de lei impõe uma análise concreta dos preceitos constitucionais (ex: os referentes à concretização dos direitos sociais, econômicos e culturais, às tarefas e fins do Estado, à organização econômica) para se apurar quem tem a responsabilidade da actualização da lei fundamental. (Assembleia da República, Governo, Conselho da Revolução, Assembleias ou Governos Regionais); b) Do conjunto normativo-constitucional se deduz que a concretização das imposições constitucionais não é só uma tarefa de legislação, mas também uma tarefa constitucional de direcção política. Em face da constituição se apurará o conceito normativo de direcção política e o alcance da vinculação constitucional da política. Não se restringindo a uma função de governo (no sentido tradicional) nem a função de parlamento (ou, mais restritamente a questão da legislação parlamentar), a tarefa de direcção política recorta-se como tarefa global de planificação, fixação e execução dos fins constitucionalmente normativizados. A execução-actualização dos preceitos constitucionais dirigentes é mais do que acto de legislação; é um processo complexo de regulação que através de leis e regulamentos, de actos de planeamento, de linhas políticas e instruções, e na forma de iniciativa, programação, coordenação e integração, exige a participação activa de vários órgãos constitucionais. Radica já nesta ideia a necessidade de substituir a expressão imposições legiferantes pela fórmula imposições constitucionais e de perspectivar o problema da concretização destas imposições como um problema de direcção política; c) A estar certa a perspectiva que se acaba de assinalar, o problema da constituição dirigente reconduz-se, em parte, à procura da medida de vinculação jurídica para actos de conformação política. O parâmetro vinculativo encontra-se, logo, em sede de competência constitucionalmente fixada, pois não obstante a tarefa constitucional de direcção política ser susceptível de englobar vários órgãos, poderá acontecer que o privilégio de concretização da constituição esteja reservado a um deles (ex: a concretização do regime dos direitos, liberdades e garantias deve ser uma competência do legislador parlamentar; as leis com componentes sociais, concretizadoras de direitos sociais, podem ser de iniciativa do parlamento ou governo). (CANOTILHO, 2001, p. 177-179, grifo do autor). No que diz respeito às normas constitucionais programáticas, deve-se ressaltar que para a teoria do dirigismo constitucional estas não devem ser entendidas como meras promessas existentes no texto constitucional. O dirigismo constitucional “[...] pressupõe a superação definitiva da doutrina das normas constitucionais programáticas, concebidas como proclamações políticas, juridicamente desprovidas de qualquer vinculatividade.” (CANOTILHO, 2001, p. 480). Escusa lembrar que tais objetivos são juridicamente vinculantes para todos os órgãos do Estado e também para todos os detentores de poder econômico ou social, fora do Estado. A juridicidade das normas que simplesmente declaram tais fins (as Zielnormen dos alemães), ou que impõem a realização de determinado programa de atividades – as normas propriamente programáticas -, já não pode ser posta em dúvida, nesta altura da evolução jurídica. (COMPARATO, 1998, p. 45). Deve-se destacar também que a teoria da Constituição Dirigente não pretende reduzir o papel da política. A Constituição Dirigente apresenta linhas de atuação para a política sem a pretensão de substituí-la. De acordo com Canotilho (2001), a Constituição não substitui a atividade política, mas fornece seu fundamento legal. O texto constitucional, na 22 concepção do dirigismo, estabelece premissas que devem ser observadas durante a atuação política. Portanto, “[...] a teoria da Constituição dirigente prega a vinculação material do programa de governo ao programa constitucional, motivo pelo qual o primeiro não pode ser contrário ou indiferente ao segundo.” (OLIVEIRA, F. C. S., 2010, p. 239). A intenção do bloco constitucional dirigente, plasmada nas linhas de direcção política, nos princípios determinadores de fins, nas normas determinadoras de tarefas estaduais e em imposições constitucionais não é, como por vezes se pretende, estabelecer um caminho-de-ferro espiritual para a política e reduzir a direcção política a execução dos preceitos constitucionais. Pelo contrário: o sentido dinâmico- programático destas posições postula mesmo a existência de actos de direcção política e de governo como actos directivos, planificadores, conformadores, programáticos e criadores. A dinâmica constitucional exige dinâmica política; o programa constitucional aponta para programa de governo e para actos de direção político-programática. Sendo assim, a vinculação jurídico-material do programa constitucional não visa eliminar o Ermessen, a liberdade de conformação dos órgãos constitucionais titulares de competência de direcção política; procura, antes de tudo, estabelecer um fundamento constitucional para a política. Esta deve mover-se no âmbito do programa normativo-constitucional. Em síntese: o bloco constitucional dirigente não substitui a política; o que se torna é premissa material da política (CANOTILHO, 2001, p. 463, grifo do autor). Posteriormente, no ano de 2001, José Joaquim Gomes Canotilho, ao prefaciar a segunda edição de sua obra “Constituição Dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas” acaba por tecer novas reflexões acerca do dirigismo constitucional, notadamente sua função no atual contexto dos Estados constitucionais. De acordo com o autor, “[...] a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações emancipatórias.” (CANOTILHO, 2001, p. 29). A afirmação acima causou grande agitação, chegando-se a afirmar que Canotilho havia abandonado a sua tese acerca da Constituição Dirigente. Todavia, uma importante observação deve ser feita. O trecho transcrito acima e que causou tanta polêmica apenas traduz a ideia de que não se deve considerar a Lei Fundamental autossuficiente, a ponto dela própria, operar as mudanças previstas em seu texto. O que Canotilho rebate é o dirigismo constitucional fechado sobre o seu próprio projeto erigido como única via, totalizador por reger áreas que deveriam encontrar disciplina fora da Constituição, autoritário por não permitir outras opções ou alternativas, perene por se arvorar em plano contínuo ou imutável tanto para a geração presente quanto para as futuras, unidimensional por se filiar a uma específica ideologia e obrigar a sua aceitação e implementação, revolucionário como a apostar que a simples positivação legal é bastante para resolver os problemas e concretizar as graves transformações sociais que proclama. Sem embargo, permanece a Constituição Dirigente enquanto pauta material para as políticas públicas, enquanto legitimidade substancial da ordem constitucional, enquanto direção axiológica, enquanto vínculo programático para o Estado e para a sociedade. (OLIVEIRA, F. S. C., 2010, p. 252). 23 Canotilho não abandonou sua tese acerca da Constituição Dirigente, mas apenas revisou algumas de suas ideias. Não se trata de um rompimento com suas ideias originais, tanto é verdade que neste mesmo prefácio continua a afirmar que os textos constitucionais “[...] devem estabelecer as premissas materiais fundantes das políticas públicas num Estado e numa sociedade que se pretendem continuar a chamar de direito, democráticos e sociais.” (CANOTILHO, 2001, p. 30). O autor português apenas refuta a tese que uma Constituição seria a salvação de todos os males, ou seja, apenas afirma que o simples fato do texto constitucional prever uma série de fins e objetivos para o Estado e para a sociedade não ocasiona, automaticamente, mudanças na realidade social. Portanto, o texto constitucional continua a veicular pautas materiais, não se restringindo a regulamentar formas e procedimentos, tal como o autor entende desde a primeira edição de sua fundamental obra. De qualquer forma, Canotilho nos chama a atenção para a importância de uma “teoria da Constituição constitucionalmente adequada”, isto é, a conceituação de Constituição só poderá ser obtida por meio da análise de sua inserção e função na realidade histórica. Sendo assim, deve-se levar em consideração as qualidades e características de uma determinada Lei Fundamental em uma realidade concreta. Portanto, para compreendermos o caso brasileiro e as possibilidades de uma leitura dirigente mostra-se necessária a apresentação do contexto histórico e político que propiciou a redemocratização do país e a promulgação da Constituição Federal de 1988. Somente desta forma é que se poderá reconhecer ou negar a existência do caráter dirigente da Carta Magna brasileira. 1.2 A redemocratização brasileira e a realização da Assembleia Constituinte A Constituição Federal de 1988 é fruto de um período histórico conturbado. O Brasil teve a sua democracia ceifada com o Golpe Militar de 1964, sendo que os direitos e garantias fundamentais foram reduzidos ou aniquilados após a edição de sucessivos atos institucionais. O Congresso Nacional foi fechado, a tortura institucionalizada e a censura se tornou uma política de Estado. O processo de abertura brasileiro não ocorreu de forma abrupta. Não houve um episódio decisivo através do qual o regime militar tivesse sido, de repente, totalmente extirpado da vida pública nacional. Muito pelo contrário, o final da década de 1970 e o início da década de 1980 foram sinônimos de uma lenta, gradual e negociada transição, transição esta permeada por episódios históricos importantes. Tal transição ocorreu desta maneira e 24 com estas características como forma de se evitar mudanças radicais nas relações de poder que conferiam sustentação ao regime então vigente (VIANNA, 1989). Dentre estes episódios históricos importantes, pode-se destacar na década de 1970 as manifestações sindicais, especialmente as greves do ABC paulista que forneceram ao país importantes líderes políticos, entre eles o metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva. No ano de 1979, ocorreram outros dois fatos importantes. O então presidente Ernesto Geisel revoga o Ato Institucional nº 5, considerado o “golpe dentro do golpe”, bem como há a dissolução, por meio de lei, dos dois partidos até então existentes, quais sejam, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). A dissolução dos dois partidos permitiu a criação de novas agremiações, surgindo neste período o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), o Partido Democrata Social (PDS), o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Democrático Trabalhista (PDT), além do Partido Popular (PP), pouco tempo depois incorporado ao PMDB. Posteriormente, no ano de 1982, foram realizadas eleições diretas e simultâneas para Governadores, Prefeitos, Senadores (1/3), Deputados Federais, Deputados Estaduais e Vereadores, devendo-se ressaltar que a oposição conseguiu eleger governadores em três importantes estados: Franco Montoro em São Paulo, Tancredo Neves em Minas Gerais e Leonel Brizola no Rio de Janeiro. Todavia, apesar da importância destas eleições diretas, o processo eleitoral ainda não poderia ser considerado totalmente democrático, já que um cargo ainda não estava sujeito à eleição direta, qual seja, o de Presidente da República. O pleito pela eleição direta para Presidente da República motivou a edição da denominada Emenda Constitucional Dante de Oliveira, que objetivava alterar o texto constitucional para permitir que o Chefe do Executivo nacional pudesse ser eleito sem a necessidade de votação por parte do Colégio Eleitoral. A importância da citada Emenda para o contexto político da época ocasionou a eclosão do Movimento das Diretas Já, considerado uma das maiores manifestações públicas de nossa história recente. Artistas, políticos, intelectuais e a população se mobilizaram, reunindo-se em enormes comícios e passeatas como forma de pressionar o Congresso Nacional a aprovar a Emenda Dante de Oliveira. Contudo, a Emenda Constitucional foi rejeitada na Câmara dos Deputados, pois não obteve o quorum mínimo para sua aprovação que era de 2/3 dos membros, tendo recebido 298 votos a favor, quando precisava de ao menos 320 votos para aprovação. Em razão da rejeição na Câmara dos Deputados a Emenda Constitucional Dante de Oliveira sequer foi enviada ao Senado. 25 Sendo assim, a eleição presidencial seguinte acabou sendo realizada por meio do Colégio Eleitoral, uma votação indireta. Paulo Maluf foi indicado como candidato do PDS. O PMDB e a Frente Liberal (posteriormente PFL) lançaram chapa com Tancredo Neves e José Sarney, presidente e vice, respectivamente. Tancredo Neves e José Sarney foram eleitos pelo Colégio Eleitoral, obtendo 480 votos a favor em um total de 560. Ocorre que, em 14 de março de 1985, na véspera da posse, Tancredo Neves é hospitalizado, vindo a falecer em 21 de abril do mesmo ano. Em razão do falecimento de Tancredo Neves, José Sarney assume a Presidência da República, sendo o primeiro Presidente civil após 21 anos de Ditadura Militar no país. Durante o governo José Sarney, mais precisamente em 28 de novembro de 1985, é promulgada a Emenda Constitucional nº 26 convocando a Assembleia Nacional Constituinte que deveria se reunir em 1º de fevereiro de 1987 (apud OLIVEIRA, F. C. S., 2010). A Assembléia Nacional Constituinte, juntamente com as Diretas Já, era uma das mais fervorosas reivindicações populares, inclusive no âmbito da comunidade jurídica. Representava a democratização do país, a revogação de uma Carta outorgada por uma Constituição promulgada, a fundação de uma nova ordem legal, a aposta em um novo Brasil. A Constituição de 1969, símbolo do período militar, tinha a sua legitimidade contestada e revelava-se inconciliável com o tempo do país. (OLIVEIRA, F. S. C., 2010, p. 200). Em relação à Assembleia Nacional Constituinte, deve-se destacar que esta não foi eleita especialmente para o trabalho de criar a nova Lei Fundamental. Em outras palavras, a Assembleia que atuou como poder constituinte, durante os anos de 1987 e 1988, não pode ser considerada exclusiva, já que a Emenda Constitucional nº 26/1985 conferia poderes constituintes aos membros da Câmara dos Deputados e do Senado eleitos nos anos 1982 e 1986. Na prática a elaboração do novo texto constitucional ficou sob a responsabilidade de um Congresso Constituinte. Deve-se também asseverar que o texto final da Constituição não foi remetido à referendo popular como forma de lhe conferir maior legitimidade democrática, ocasionando críticas dos mais variados setores da sociedade e de intelectuais. Sem o referendum constituinte não há verdadeiramente Constituinte livre e soberana, pois um povo não pode alienar sua vontade suprema numa representação exposta e vulnerável às mais poderosas e subjugantes pressões daquelas forças capazes de concretizar o suborno eleitoral, se não reprimirmos o abuso do poder econômico sobre as urnas da Constituinte. (BONAVIDES, 2010, p. 58). De qualquer forma, não obstante críticas e elogios, os trabalhos da Assembleia tiveram início em 1º de fevereiro de 1987, tendo sido instalada oficialmente pelo então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Carlos Moreira Alves. O Deputado Ulysses Guimarães do PMDB foi eleito Presidente da Assembleia, sendo o seu partido 26 detentor da maior bancada, com 53% dos assentos, seguido do PFL com 24% de congressistas eleitos (OLIVEIRA, F. S. C., 2010). Contudo, antes mesmo da instalação da Constituinte, o Presidente José Sarney, por meio do Decreto n. 91.450/85 (BRASIL, 1985), criou a chamada Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, constituída por cinquenta membros de diversas formações, sendo presidida pelo Professor Afonso Arinos de Melo Franco. Este grupo, também conhecido como Comissão dos Notáveis, possuía como objetivo a criação de um Anteprojeto de Constituição que deveria ser enviado ao Presidente da República para que fosse posteriormente encaminhado à Assembleia Nacional Constituinte a fim de ser utilizado como documento base. José Sarney acabou por não enviar o documento ao Congresso Nacional. O Anteprojeto elaborado pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais foi alvo de diversas críticas, sendo que a adoção do parlamentarismo é apontada como a principal causa que levou o então Chefe do Executivo a não encaminhar o documento à Assembleia Nacional Constituinte (BARROSO, 2006, p. 40). De qualquer forma, o documento elaborado pela Comissão, “[...] embora não tendo sido empregado formalmente pela Assembleia, teve acentuada influência na empreitada constituinte.” (OLIVEIRA, F. S. C., 2010, p. 206). Durante 583 dias de trabalho os constituintes travaram os mais variados debates e discussões, destacando-se como as principais forças políticas o grupo denominado de “Sistematização” e o grupo chamado “Centrão”. Os conflitos e barganhas entre estas duas forças políticas se fizeram presentes ao longo da mais extensa atividade constituinte já registrada em nosso país. Desde suas prístinas atividades, essas duas forças travariam embates, confrontos, blefes, ameaças, impasses. Os “buracos-negros” – matérias do Projeto de Constituição nas quais nenhum dos dois blocos tinha força e voto para aprovar ou rejeitar cabalmente, implicando a paralisação do processo constituinte – seriam sua mais perturbadora expressão. Mas igualmente ocorreriam composições, convergências e conciliações, quando os dois ex-sócios políticos se viram obrigados a transigir, negociar e firmar acordos sobre as questões em disputa – sob a pena capital de não conseguirem produzir constituição alguma. A fusão de emendas coletivas seria seu mecanismo preferencial de avença. O padrão decisório da ANC se constituiu, assim, num modelo conflitivo-consensual, pelo qual os confrontos passaram para o texto final da Constituição de 1988 sob a forma de compromissos agenciados pelas lideranças partidárias a representar os dois blocos dominantes – numa espécie de “casamento na polícia” dos antigos parceiros aliancistas. (ROCHA, A. S., 2013, p. 70). As deliberações da Assembleia Nacional Constituinte se encerraram em 2 de setembro de 1988 com a aprovação do novo texto constitucional, sendo que a cerimônia de promulgação ocorreu em 05 de outubro do mesmo ano no plenário do Congresso Nacional. 27 Coube ao Presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães, jurar a Constituição brasileira, tendo este em seu pronunciamento ressaltado o caráter inovador do texto promulgado, nascendo neste momento a chamada “Constituição cidadã”, por ele assim intitulada, “[...] porque teve ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania.” (SILVA, J. A., 2012, p. 90). 1.3 A Constituição Federal de 1988 e seu caráter dirigente Consideradas estas referências históricas e conhecedores do debate referente ao dirigismo constitucional, deve-se neste momento indagar: a Constituição Federal de 1988 possui caráter dirigente? A resposta é afirmativa. Este é o entendimento de diversos autores, entre eles Paulo Bonavides (2010), José Afonso da Silva (2004), Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), Luís Roberto Barroso (2010), Gilberto Bercovici (1999), Lênio Luiz Streck (2002) e Eros Roberto Grau (2003, p. 153), tendo este último afirmado que o caráter dirigente da Constituição de 1988 se mostra inquestionável. A Constituição de 1988 é uma constituição dirigente, pois define, por meio das chamadas normas constitucionais programáticas, fins e programas de ação futura no sentido de melhorias das condições sociais e econômicas da população. Na mesma linha das Constituições anteriores de 1934 e 1946, a Constituição de 1988 construiu um Estado Social, ao englobar entre as disposições as que garantem a função social da propriedade (artigos 5º, XXIII, e 170, III), os direitos trabalhistas (artigos 6º e 11) e previdenciários (artigos 194, 195 e 201 a 204), além de uma ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por objetivo “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170). (BERCOVICI, 1999, p. 36). Portanto, pode-se dizer que a Carta Magna de 1988 deve ser compreendida na acepção mais atual de Constituição, ou seja, “[...] desvinculada daquela ideia de Constituição desenvolvida no século XVIII, voltada exclusivamente a limitar o Poder estatal e a assegurar um mínimo de direitos individuais.” (BERNARDI; PIEROBON, 2014, p. 60). Trata-se de uma Constituição que apresenta fins e objetivos para a mudança da realidade social, afastando a ideia de texto constitucional enquanto sinônimo de manutenção do status quo (Constituição Garantia). Por isso a estreita identificação com a teoria da Constituição Dirigente. O modelo de Constituição Dirigente inspirou diversos membros da Assembleia Constituinte brasileira. Por isso, a presente Constituição não almeja simplesmente retratar a realidade política vigente, como em modelos ultrapassados do século XX, mas também cuida da inserção de objetivos programáticos que não poderiam ser aplicados no momento da elaboração do texto constitucional. Em simples termos, os agentes do Poder Constituinte originário submetem os futuros governos e a sociedade à realização de princípios constitucionalmente aventados para a transformação da realidade social. (MOREIRA, 2008, p. 8). 28 De acordo com a teoria da Constituição Dirigente, conforme visto anteriormente, o Estado deve ser um fornecedor de prestações e não apenas um ente que teria como única função não violar a autonomia individual. No que diz respeito ao texto constitucional de 1988, constata-se uma série de dispositivos neste sentido, destacando-se: artigo 1733, caput, artigo 1824, caput, artigo 1965 e o artigo 2156, caput. Todos estes artigos demonstram que a Constituição de 1988 atribuiu, por meio de seu texto, importantes tarefas ao Estado brasileiro nas mais diversas áreas (saúde, educação, exploração da atividade econômica e política de desenvolvimento urbano, etc), evidenciando o papel ativo do Estado enquanto indutor e executor de políticas públicas em diversos setores, não restringindo-se esta atuação ao campo econômico. No que diz respeito ao campo econômico, o caráter dirigente da Constituição de 1988 está explicitado no artigo 174: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.” Como se vê, o texto constitucional atribuiu ao Estado brasileiro o papel de orientar a atividade econômica, seja pela intervenção direta ou indireta. Ademais, o dispositivo constitucional demonstra a importância do planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para a iniciativa privada. Foi visto também que a Constituição Dirigente atribui papel de relevo não apenas ao Estado, mas também à sociedade, evidenciando a importância das responsabilidades compartilhadas (Estado + sociedade). De acordo com o dirigismo constitucional, a sociedade, conjuntamente com o Estado, deve desempenhar importantes tarefas atribuídas pelo próprio texto da Lei Fundamental para que os fins e objetivos sejam alcançados. 3 “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. 4 “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes”. 5 “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” 6 “Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. 29 No caso da Constituição brasileira de 1988 há também dispositivos que confirmam tal característica, podendo-se citar: artigo 2057, artigo 216, parágrafo 1º8, artigo 2259 e artigo 22710. Estes artigos evidenciam o caráter dirigente do texto constitucional de 1988, tendo em vista que deixam claro ser a sociedade um importante agente na realização de seu projeto político-social. As linhas escritas acima indicam o caráter dirigente da Constituição Federal de 1988, pois trata-se de uma Lei Fundamental que traça fins e objetivos para o Estado e sociedade no sentido de propiciar melhorias nas condições de vida da população. Contudo, a realidade demonstra que há ainda muito a se fazer para que as normas programáticas sejam efetivamente cumpridas. Por isso, deve-se questionar se a teoria da Constituição Dirigente continua adequada para o contexto brasileiro. No que se refere a este questionamento, concordamos com Lênio Luiz Streck (2002, p. 114) quando este diz “[...] ser possível afirmar que continuam perfeitamente sustentáveis as teses relacionadas ao caráter dirigente e compromissário do texto constitucional brasileiro.” O referido autor ressalta que se deve entender a “[...] teoria da Constituição enquanto uma teoria que resguarde as especificidades histórico-factuais de cada Estado nacional.” (STRECK, 2002, p. 112). Somente desta forma será possível afirmar se o dirigismo constitucional ainda se mostra adequado a determinado país. Neste contexto, Streck (2002, p. 113) também ressalta a importância de “[...] uma teoria da Constituição dirigente adequada aos países de modernidade tardia.” Dito de outro modo, afora o núcleo mínimo universal que conforma uma teoria geral da Constituição, há um núcleo específico de cada Constituição, que, inexoravelmente, será diferenciado de Estado para Estado. Refiro-me ao que se pode denominar de núcleo de direitos sociais fundamentais plasmados em cada texto que atenda ao cumprimento das promessas de modernidade. O preenchimento do déficit resultante do histórico descumprimento das promessas da modernidade pode ser considerado, no plano de uma teoria da Constituição adequada a países periféricos ou, mais especificamente, de uma teoria da Constituição dirigente adequada aos países de modernidade tardia, como conteúdo compromissário mínimo a constar no 7 “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” 8 “§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.” 9 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” 10 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” 30 texto constitucional, bem como correspondentes mecanismos de acesso à jurisdição constitucional e de participação democrática. Uma teoria da Constituição adequada a países de modernidade tardia deve tratar, assim, da construção das condições de possibilidade para o resgate das promessas da modernidade incumpridas, as quais, como se sabe, colocam em xeque os dois pilares que sustentam o próprio Estado Democrático de Direito. (STRECK, 2002, p. 113, grifo do autor). Não há dúvidas de que o Brasil constitui um país periférico ou de modernidade tardia, onde verifica-se simultaneamente a existência de um projeto constitucional de implementação de um Estado Social intervencionista, indutor e executor de políticas públicas, ao mesmo tempo que o neoliberalismo exerce grande influência, pregando a existência de um Estado mínimo. É justamente este cenário contraditório que justifica a continuidade do dirigismo constitucional, principalmente se levarmos em consideração que a “Constituição de 1988, com seu texto dirigente-compromissário, intenta implementar um modelo de Estado que venha, finalmente, atender aos seus fins sociais, historicamente (so)negados.” (MOREIRA, 2008, p. 105). Por estas razões é que a Constituição de 1988, enquanto projeto de transformação da realidade brasileira, não pode ser esquecida, deixando a sociedade a mercê de ações políticas que não guardem relação com os fins e objetivos do Estado e da sociedade previstos constitucionalmente. Por isso, a importância de se ressaltar o caráter dirigente do texto constitucional, pois o programa constitucional é que deve pautar o programa de governo, e não o contrário. Na verdade, o que se pretende é que os mecanismos constitucionais postos à disposição do cidadão e das instituições sejam utilizados, eficazmente, como instrumentos aptos a evitar que os poderes públicos disponham livremente da Constituição. A força normativa da Constituição não pode significar a opção pelo cumprimento ad hoc de dispositivos “menos significativos” da Lei Maior e o descumprimento sistemático daquilo que é mais importante – o seu núcleo essencial fundamental. É o mínimo a exigir-se, pois! Dito de outro modo, descumprir os dispositivos que consubstanciam o núcleo básico da Constituição, isto é, aqueles que estabelecem os fins do Estado (o que implica trabalhar com a noção de “meios” aptos para a consecução dos fins) representa solapar o próprio contrato social (do qual a Constituição é o elo que liga o político e o jurídico da sociedade). O texto constitucional, fruto desse processo de repactuação social, não pode ser transformado em um latifúndio improdutivo. Não pode, pois, ser deslegitimado. (STRECK, 2002, p. 117). Pode-se afirmar, desta forma, que “[...] no texto da Constituição de 1988 há um núcleo essencial, não cumprido, contendo um conjunto de promessas da modernidade, que deve ser resgatado.” (STRECK, 2002, p. 116). Portanto, a existência deste núcleo de modernidade tardia não cumprido justifica o dirigismo constitucional em relação à realidade brasileira. Ademais, de acordo com Lênio Luiz Streck este núcleo de modernidade tardia não cumprido encontra-se consubstanciado nos objetivos do Estado e da sociedade estabelecidos 31 no artigo 3º da Constituição. Sendo assim, dada a importância do artigo 3º, deve-se então analisá-lo como forma de compreender o seu real significado em uma leitura alinhada ao dirigismo constitucional. 1.4 O artigo 3º da Constituição Federal de 1988 e os objetivos para o Estado e sociedade brasileiros Conforme visto, a Constituição Federal de 1988 possui caráter dirigente na perspectiva em pauta, pois apresenta fins e objetivos para o Estado e para a sociedade. Trata- se de Lei Fundamental que apresenta um projeto de transformação da realidade social, não se limitando a regular procedimentos e estabelecer competências. Também foi visto que o texto constitucional brasileiro apresenta um núcleo essencial, não cumprido, que contém um conjunto de promessas da modernidade que deve ser resgatado. Este núcleo essencial encontra-se positivado no artigo 3º da Constituição Federal de 1988, cuja importância e função serão analisadas neste momento. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. De acordo com Gilberto Bercovici (2003, p. 291), o artigo 3º da Constituição Federal de 1988 integra os denominados princípios constitucionais fundamentais, sendo que tal característica lhes confere “[...] relevância e função de princípios gerais de toda ordem jurídica, definindo e caracterizando a coletividade política e o Estado ao enunciar as principais opções político-constitucionais.” Estes princípios constitucionais fundamentais “[...] também têm a função de identificação do regime constitucional vigente, ou seja, fazem parte da fórmula política do Estado.” (BERCOVICI, 2003, p. 293). Contudo, o dispositivo constitucional em análise também apresenta outra característica, qual seja, a de constituir uma verdadeira “cláusula transformadora” da realidade social. O artigo 3º da Constituição Federal de 1988, além de integrar a fórmula política, também é, na expressão de Pablo Lucas Verdú, a “cláusula transformadora” da Constituição. A ideia de “cláusula transformadora” está ligada ao artigo 3º da Constituição italiana de 1947 e ao artigo 9º da Constituição espanhola de 1978. Em ambos os casos, a “cláusula transformadora” explicita o contrataste entre a realidade social injusta e necessidade de eliminá-la. Deste modo, impedem que a Constituição considerasse realizado o que ainda está por se realizar, implicando na obrigação do 32 Estado em promover a transformação da estrutura econômico-social. Os dois dispositivos constitucionais buscam a igualdade material através da lei, vinculando o Estado a promover meios para garantir uma existência digna para todos. A eficácia jurídica destes artigos, assim como a do nosso artigo 3º, não é incompatível com o fato de que, por seu conteúdo, a realização destes preceitos tenha caráter progressivo e dinâmico e, de certo modo, sempre inacabado. Sua concretização não significa a imediata exigência de prestação estatal concreta, mas uma atitude positiva, constante e diligente do Estado. Do mesmo modo que os dispositivos italiano e espanhol mencionados, o artigo 3º da Constituição de 1988 está voltado para a transformação da realidade brasileira: é a “cláusula transformadora” que objetiva a superação do subdesenvolvimento. (BERCOVICI, 2003, p. 294). Desta forma, o artigo 3º da Constituição Federal de 1988, compreendido à luz do dirigismo constitucional, constitui um programa de ação a ser observado por todos os órgãos e esferas do Estado, para que se obtenham melhorias minimamente substanciais em prol da população e da sociedade como um todo, melhorias que devem ser atingidas por meio da criação e execução de políticas públicas. A Constituição determina que o Estado atue no sentido do pleno atendimento dos objetivos fundamentais da República, de construção de uma sociedade livre, justa e solidária e do exercício de sua atuação em prol de uma melhor qualidade de vida do povo, de maneira a afastar qualquer discriminação ou preconceitos. Elementos esses que constroem a ideia de que o busca, como objetivo fundamental da República, a partir da conjugação dos ditames normativos estabelecidos no art. 3º da CF/88, o efetivo desenvolvimento intersubjetivo de seus partícipes, sendo seu sucesso alcançado quando o mínimo possível de viabilidade deste desiderato é sentido na vida daqueles que estão sob a égide de sua regulação. Em outras palavras, realizam- se os objetivos fundamentais da República quando o Estado promove a concretização de reais benefícios para o povo que lhe confere energia e legitimidade, pelo menos, em um patamar mínimo para que não ocorra a estabilidade, tampouco o retrocesso dos direitos conquistados. (FRANÇA, 2013, p. 9408-9409). Este também é o entendimento de Cármen Lúcia Antunes Rocha (1996, p. 289) ao observar que “[...] todos os verbos utilizados – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo.” Portanto, afirma a autora, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “[...] são definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte na elaboração do texto constitucional.” (ROCHA, C. L. A., 1996, p. 289). Em outro dizer, a expressão normativa constitucional significa que a Constituição determina uma mudança do que se tem em termos de condições sociais, políticas, econômicas e regionais exatamente para se alcançar a realização do valor supremo a fundamentar o Estado Democrático de Direito constituído. [...] O art. 3º traz uma declaração, uma afirmação e uma determinação em seus dizeres. Declara-se, ali, implícita, mas claramente, que a República Federativa do Brasil não é livre, porque não se organiza segundo a universalidade desse pressuposto fundamental para o exercício dos direitos, pelo que, não dispondo todos de condições para o exercício de sua liberdade, não pode ser justa. Não é justa porque plena de desigualdades antijurídicas e deploráveis para abrigar o mínimo de condições dignas para todos. E não é solidária porque fundada em preconceitos de toda sorte. O art. 3º traz também uma afirmação: a de que, conquanto retratada a inexistência de uma autêntica República Democrática, o Direito organizou um modelo de Estado que se põe 33 exatamente para realizá-la. Daí porque, entre os objetivos fundamentais da República, estabeleceu-se, primariamente, a determinação de se construir uma nova sociedade brasileira, segundo paradigmas constitucionalmente traçados. (ROCHA, C. L. A., 1996, p. 289). Obviamente que os objetivos elencados no artigo 3º da Constituição de 1988 não serão concretizados por meio de um simples passe de mágica. Por isso, conforme já afirmado acima, mostra-se de fundamental importância a existência de um Estado ativo e diligente. A concretização dos objetivos constitucionais só se dará por meio da criação e execução de políticas públicas, fazendo com que a administração pública tenha um papel ativo nestas circunstâncias. Neste contexto, urge a operacionalização da máquina pública, sinergicamente, em todas as suas funções e dimensões, para que os objetivos fundamentais da República não sejam lidos como meros horizontes da realidade, mas sim como metas realizáveis para a positiva e construtiva transformação do presente vivenciado pelos destinatários do poder público constitucional definidos na Carta de 1988. Conforme explanado, o Estado se realiza a partir da concretização dos objetivos da República estabelecidos no art. 3º da CF/88. Para a efetivação de tais objetivos, evidencia-se a necessidade de uma permanente concatenação de ações administrativas, bem como a possibilidade e a viabilidade de revisões, por aqueles legitimados para tanto, de tudo o que é feito pelo poder público. (FRANÇA, 2013, p. 9412). De outra parte, deve-se ressaltar que o artigo 3º da Constituição de 1988, justamente por integrar o rol dos princípios constitucionais fundamentais, apresenta caráter obrigatório, vinculando todas as esferas da administração pública, bem como conforma toda a legislação e a atividade jurisdicional. Trata-se de importante regra que determina um nítido “[...] programa de atuação para o Estado e a sociedade brasileiros, determinando o sentido e o conteúdo de políticas públicas para a transformação das atuais estruturas sociais e econômicas.” (BERCOVICI, 2003, p. 301). Constitui o artigo 3º da Constituição de 1988 um verdadeiro programa de ação e de legislação, devendo todas as atividades do Estado brasileiro, inclusive as políticas públicas, medidas administrativas e decisões judiciais, conformarem-se, formal e materialmente, ao programa inscrito no texto constitucional. Qualquer norma infraconstitucional deve ser interpretada com referência aos princípios constitucionais fundamentais. Toda interpretação está vinculada ao fim expresso na Constituição, pois os princípios constitucionais fundamentais são instrumento essencial para dar coerência material a todo ordenamento jurídico. Além disso, há a vinculação negativa dos poderes públicos: todos os atos que contrariem os princípios constitucionais fundamentais, formal e materialmente, são inconstitucionais. (BERCOVICI, 2003, p. 299). José Afonso da Silva (2006, p. 46) também se manifesta nesta direção ao ressaltar que os objetivos do artigo 3º são objetivos do Estado brasileiro, e não meros objetivos de governo, já que cada governo pode apresentar suas próprias metas, “[...] mas elas têm que se 34 harmonizar com os objetivos fundamentais aí indicados. Se apontarem em outro sentido, serão inconstitucionais.” “Objetivo” é um signo que aponta para frente, indicando um ponto adiante a ser alcançado pela prática de alguma ação – aqui: ação governamental. “Fundamental”, aqui, é adjetivo que se refere ao que se tem como mais relevante no momento, ao que é prioritário e básico. Não significa que outros objetivos não devam constituir preocupação do Estado. Significa apenas que os objetivos fundamentais são impostergáveis e hão de ser preocupação constante da ação governamental, porque a Constituição entende que sua realização constitui meio de conseguir a realização plena dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, enunciados no art. 1º. (SILVA, J. A., 2006, p. 46). Assim, há de se ressaltar que as políticas públicas devem obedecer aos preceitos existentes no próprio artigo 3º da Lei Fundamental, sob pena de inconstitucionalidade. Em outras palavras, toda atuação pública deve guardar compatibilidade com os objetivos traçados pelo texto constitucional brasileiro e enumerados no dispositivo em estudo. Logo, inexistente compatibilidade entre políticas públicas e os objetivos do Estado brasileiro, a atuação pública poderá ser submetida à controle de constitucionalidade perante o Poder Judiciário, podendo ser considerada inconstitucional em razão de vício material. A compatibilidade das normas infraconstitucionais com a Constituição pode se dar sob dois aspectos, a forma e o conteúdo. As constituições não apenas regulam a produção formal das restantes normas do ordenamento, como também se ocupam do seu conteúdo. Todos os atos do Estado e dos agentes públicos devem estar em conformidade formal e material com a Constituição. Caso não estejam adequados substancialmente ao texto constitucional, ocorre a inconstitucionalidade material, que reflete o desajuste ente o conteúdo dos preceitos constitucionais e o conteúdo das normas hierarquicamente inferiores, que estão vinculadas materialmente ao texto constitucional. O controle material de constitucionalidade incide sobre o teor e a matéria da norma, para que seja adequada à Constituição e a seus princípios fundamentais, ocorrendo inconstitucionalidade material também com a violação dos fins prescritos no texto constitucional, como os do artigo 3º da Constituição de 1988. (BERCOVICI, 2003, p. 303-304). Portanto, pode-se dizer que o artigo 3º da Constituição Federal de 1988 constitui um programa de ação para o Estado brasileiro, visando a transformação da realidade social, transformação esta que se dará por meio da criação e execução de políticas públicas. Desta forma, o dispositivo constitucional em questão exige a presença de um Estado ativo e diligente, devendo a administração pública, por meio de seus mais variados órgãos e esferas, atuar em sintonia com os objetivos constitucionais elencados no artigo 3º. Por conta disso, pode-se inferir, sem que sejam necessários grandes esforços interpretativos, que a Constituição brasileira de 1988, documento jurídico e político que traduz os anseios de transformação da sociedade, reconhece que a realidade que pretende transformar é desigual e marcada pela pobreza e pela marginalidade. Dito de outra forma, pode-se dizer que, no caso brasileiro, está em vigor uma constituição de pretensão transformativa que parte da suposição de que o status quo deve ser 35 alterado em função da existência – explicitamente reconhecida – de desigualdades e outras mazelas sociais a ela preexistentes. (COUTINHO, 2013, p. 73). De outro lado, o artigo 3º não constitui apenas uma “cláusula transformadora”, mas também uma importante regra a ser levada em consideração quando da análise da constitucionalidade de leis e atos administrativos. A legislação e as políticas públicas devem ser compatíveis com os objetivos do Estado brasileiro previstos no artigo 3º da Lei Fundamental de 1988. Em muitos preceitos constitucionais que contêm normas programáticas (determinações dos fins do Estado ou definição de tarefas estaduais) é possível detectar uma imposição, expressa ou implicitamente concludente, no sentido de o legislador concretizar os grandes fins constitucionais (ex: construção de uma sociedade sem classes, transição para o socialismo, apropriação coletiva dos meios de produção, respeito pela dignidade da pessoa humana, repartição igualitária de riqueza, garantir a independência nacional, etc). Essas normas são todas directivas materiais constitucionais e assumem relevo de uma tripla forma: (1) como imposições, vinculando o legislador, de forma permanente à sua realização; (2) como directivas materiais, vinculando positivamente os órgãos concretizadores; (3) como limites negativos, justificando a possibilidade de censura em relação aos actos que as contrariam. (CANOTILHO, 2001, p. 315). Por isso, toda discussão acerca da constitucionalidade da atuação pública deve ser feita à luz do referido dispositivo constitucional, incluindo-se as políticas públicas criadas e executadas através da inserção internacional dos municípios brasileiros por meio das Secretarias Municipais de Relações Internacionais. Enfim, verificar a compatibilidade entre a atuação internacional de municípios e o texto constitucional de 1988 pressupõe que sejam analisados os projetos desenvolvidos à luz do artigo 3º da Carta Magna vigente, especialmente os que se referem à busca pelo desenvolvimento e erradicação da pobreza. 1.4.1 “Garantir o desenvolvimento nacional” Diogo Rosenthal Coutinho (2013, p. 17) ao tratar da relação entre direito e desenvolvimento afirma que este último termo pode ser, inicialmente, entendido tanto como um “[...] caminho a ser percorrido (isto é, como um processo) ou alcançado (como um objetivo), quanto como um fundamento de legitimidade para as propostas e prioridades políticas, econômicas e sociais que defendemos.” Contudo, ressalta “[...] que há, na realidade, mais controvérsias que certezas ou consensos reais a respeito do desenvolvimento” (COUTINHO, 2013, p. 19). Sendo assim, em sua obra “Direito, Desigualdade e Desenvolvimento”, Diogo Rosenthal Coutinho (2013) demonstra como se deu historicamente 36 o debate acerca da noção de desenvolvimento como forma de se melhor compreender este termo. Inicialmente, em uma primeira fase histórica, “[...] desenvolver significava basicamente crescer e, de modo geral, desenvolvidos eram os países que tinham economias industriais robustas, medidas por PIB elevados.” (COUTINHO, 2013, p. 28). Desenvolvimento era entendido como sinônimo de crescimento econômico. Adotada essa concepção, “[...] fazia sentido crer que a busca do crescimento econômico devesse ser a prioridade de toda política de desenvolvimento bem-intencionada.” (COUTINHO, 2013, p. 29). Logo, estas teorias do desenvolvimento, “[...] até poucos anos, persistentemente negligenciaram a pobreza e a desigualdade como fatores-chave que diretamente ou indiretamente afetam a performance econômica das nações.” (COUTINHO, 2013, p. 29). Essa visão de desenvolvimento fundamentalmente identificada com o crescimento, ainda que tenha sido paulatinamente relativizada pela preocupação com os pobres, supunha que ele, uma vez alcançado, beneficiaria toda a sociedade, pois, com a elevação do PIB, os benefícios desse incremento do produto seriam distribuídos por todos os membros e segmentos da sociedade, incluindo os mais pobres. Embora os mecanismos por meio dos quais essa distribuição da riqueza decorrente do crescimento não tenham sido suficientemente explicados, supunha-se, em suma, que o crescimento seria, além de necessário, suficiente para a redução da pobreza. (COUTINHO, 2013, p. 29). Esta percepção fez com que a pobreza e a desigualdade fossem ignoradas pelos teóricos como obstáculos ao próprio crescimento e, consequentemente, como empecilhos ao desenvolvimento. Posteriormente, novos estudos foram realizados onde se demonstrou que o crescimento, por si só, é nulo em termos distributivos. Sendo assim, “[...] os estudos do desenvolvimento passaram a incorporar um conjunto de métodos e preocupações novos, tal como a definição e mensuração da pobreza, da miséria ou extrema pobreza.” (COUTINHO, 2013, p. 31). Inicia-se uma nova fase dos estudos sobre desenvolvimento, desta vez incorporando ao debate questões relacionadas à pobreza. Se o crescimento é, na melhor das hipóteses, neutro em relação à distribuição de riqueza, dado que ele não promove transferências entre ricos e pobres, e se a pobreza pode ser considerada um resultado indesejável do capitalismo, então pode-se dizer que há boas razões para incorporar sua mitigação (ou, idealmente, eliminação) como um objetivo do desenvolvimento. Foi com base nesse raciocínio que se estruturou, especialmente por iniciativa do Banco Mundial, nos anos 1990 (prolongando-se até os primeiros anos da década de 2000), as assim chamadas políticas de social safety nets (redes de segurança social). Programas e ações voltadas para o combate à pobreza (e não para reduzir a desigualdade, vale dizer) passaram a ser concebidos e implementados de forma tímida ao mesmo tempo que o crescimento, o ajuste fiscal e a liberalização foram perseguidos como metas prioritárias. (COUTINHO, 2013, p. 32). 37 Diogo Coutinho ao tratar do papel desempenhado pelo Banco Mundial neste período ressalta a publicação, no ano de 2001, do denominado World Development Report, cujo título é “Lutar Contra a Pobreza”. Neste relatório, o Banco Mundial apresentou metas, e ao debater a relação entre desenvolvimento e pobreza “[...] reconhece que a pobreza é mais que renda ou desenvolvimento humano inadequado; é também vulnerabilidade e falta de voz, poder e representação.” (COUTINHO, 2013, p. 33). Em razão deste contexto, o Banco Mundial apontou uma estratégia para combater a pobreza estruturada em três frentes: promover oportunidades, estimular a autonomia e aumentar a segurança. A atuação do Banco Mundial, conforme ressalta Diogo Coutinho, deve ser situada em seu momento histórico, ou seja, as recomendações feitas guardam estreita ligação com a ofensiva neoliberal dos anos 1990. Esta observação é de fundamental importância para a compreensão do papel do Banco Mundial no debate sobre o desenvolvimento e, particularmente, sua relação com o combate à pobreza. Essa concepção de que a pobreza, como obstáculo ao desenvolvimento, deve ser mitigada e os pobres “empoderados” em termos de autonomia, oportunidades e segurança deve ser situada em seu momento histórico. Trata-se do período em que denominadas reformas de ajuste estrutural, guiadas pela visão de mundo segundo a qual o setor privado deveria ser “libertado” de uma espécie de garrote de intervenção estatal, foram implementadas em vários países em desenvolvimento sob os auspícios e condicionalidades de instituições multilaterais como o FMI e o próprio Banco Mundial. Em termos de políticas sociais, supunha-se que a ação do Estado criava, em regra, em favor das elites, rendas artificiais ou taxas de retorno superiores àquelas que o mercado ofertaria sendo, por isso, deletéria e criadora de desigualdade (Nayyar e Chang, 2005). Em face disso, ofensivas contra a pobreza deveriam basear-se em estímulos de mercado à atividade econômica e ao consumo com programas sociais focados e de natureza compensatória. (COUTINHO, 2013, p. 34). Portanto, pode-se concluir que neste segundo período de debates sobre o desenvolvimento a questão da pobreza passou a chamar atenção dos teóricos e políticos, porém essa preocupação “[...] limitou-se ao objetivo de mitigação de seus efeitos mais agudos desde a ótica da economia de mercado, lastreada na ideia de eficiência.” (COUTINHO, 2013, p. 35). Logo, “[...] a dicotomia entre políticas econômicas e políticas sociais (sendo as segundas consideradas residuais) torna-se clara, mas sem que haja maiores preocupações com a integração entre ambas.” (COUTINHO, 2013, p. 35). Desse modo, em suma, a pobreza foi entendida como um mal a ser combatido para “moderar” os efeitos de políticas econômicas que assegurem crescimento e eficiência – daí a ideia de que redes de segurança social são medidas paliativas. As causas mais profundas da pobreza, a relação entre pobreza, produtividade e outras variáveis econômicas importantes, assim, como a existência de severas e agudas desigualdades tanto no mundo rico desenvolvido como no mundo pobre subdesenvolvido – o problema do fosso social que separa pequenas elites de grandes 38 contingentes de pobres -, não foram, sen