UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO – FAAC DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL MARIA VICTORIA PERA MAZZA Violência contra a mulher: uma análise de três veículos jornalísticos brasileiros BAURU 2017 MARIA VICTORIA PERA MAZZA Violência contra a mulher: uma análise de três veículos jornalísticos brasileiros Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado à Faculdade de Arquitetura, Artes de Comunicação, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” pela aluna Maria Victoria Pera Mazza, como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social: Jornalismo, sob orientação da Profª Drª Lucilene dos Santos Gonzales. BAURU 2017 MARIA VICTORIA PERA MAZZA Violência contra a mulher: uma análise de três veículos jornalísticos brasileiros Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado à Faculdade de Arquitetura, Artes de Comunicação, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” pela aluna Maria Victoria Pera Mazza, como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social: Jornalismo, sob orientação da Profª Drª Lucilene dos Santos Gonzales. Bauru, 15 de fevereiro de 2017 _____________________________ Profª Drª Lucilene dos Santos Gonzales Orientador e presidente da Banca Examinadora ____________________________ Profª Drª Suely Maciel Membro da Banca Examinadora ____________________________ Profª Drª Caroline Kraus Luvizotto Membro da Banca Examinadora Agradecimentos À minha família que sempre me apoiou, desde a matrícula na Universidade até hoje. Priscila, Adolpho, Josena, Luiz Octavio, Anna Clara, João Pedro, Maria Olivia, Olegna e Ana Maria são partes fundamentais da pessoa que sou hoje. Aos meus amigos que me apoiaram nesta fase de produção do TCC, principalmente a Bianca Landi e a Ana Beatriz Ferreira, duas pessoas fundamentais para que este trabalho fosse concluído, além de toda a parceria durante os anos de UNESP. Agradeço também o meu namorado, Daniel Sakimoto, pela força e apoio e por sempre acreditar em mim e no meu projeto, assim como as repúblicas Bota Fogo, Fenda do Bikini e Leda que foram parte das minhas melhores experiências em Bauru. Aos professores que deram a mim a compreensão necessária do que é ser jornalista e um agradecimento especial à minha orientadora, Lucilene dos Santos Gonzales, que acolheu com muito carinho o tema e foi de importante ajuda para a finalização do projeto. Por fim, não só agradeço mas também dedico este trabalho para todas as mulheres que enfrentam diariamente a violência e que acredito serem extremamente fortes e capazes de ser tudo o que elas quiserem. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre jornalismo, linguagem e ideologia para analisar reportagens de três produtos jornalísticos que abordem fatos relacionados à violência contra a mulher: jornal impresso Folha de S. Paulo, portal do Estado de S. Paulo e a revista Carta Capital. Levaremos em conta a linha editorial de cada um dos veículos e, ao final, pretendemos verificar se o jornalismo reforça os esterótipos sociais ou apresenta novos valores ideológicos e, partir disso, ao que se deve essa mudança. Palavras-chave: violência; mulher; jornalismo; linguagem; ideologia ABSTRACT The present work aims to reflect about journalism, language and ideology to analyze reports from three journalistics products that talk about facts releated to violence againts woman: the printed newspaper Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo’s website and the magazine CartaCapital. We will considerer the editorial line of each of the vehicles and, in the end, we intend to verify if the journalism revives the social stereotypes or intend to present new ideological values and, from this, what is due to this change. Palavras-chave: violence; woman; journalism; language; ideology SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………08 2 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER………………………………………………….11 2.1 O papel da mulher na sociedade………………………………………………………..11 2.1.1 A visão feminina nas décadas passadas………………………………………………12 2.1.2 A mulher e a sociedade atual………………………………………………………….15 2.2 Uma sociedade violenta…………………………………………………………………16 2.2.1 A morte de homens e mulheres………………………………………………………17 2.2.2 Que violência é essa?………………………………………………………………….19 2.2.3 Um inimigo dentro de casa……………………………………………………………23 2.2.4 Uma questão pública…………………………………………………………………..25 3 IDEOLOGIA DO JORNALISMO E A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA MÍDIA………………………………………………………………………………………..28 3.1 Como a ideologia se aplica ao jornalismo?…………………………………………….30 3.2 Ideologia x informação: há influência?……………………………………………….33 3.3 A notícia e a influência da e na sociedade……………………………………………...34 3.4 Representações sociais na mídia………………………………………………………..36 3.5 A representação da mulher na mídia…………………………………………………...39 3.6 Papel do jornalismo na construção da identidade feminina………………………….40 3.7 Imprensa feminina e representação midiática…………………………………………43 4 MULHER, IDEOLOGIA E VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE DOS VEÍCULOS MIDIÁTICOS………………………………………………………………………………..46 4.1 Análise jornalística das matérias sobre violência contra a mulher…………………..49 4.1.1 CartaCapital…………………………………………………………………………...50 4.1.2 Folha de S.Paulo………………………………………………………………………51 4.1.3 Estado de S. Paulo…………………………………………………………………….52 4.2 Análise das matérias e reportagens…………………………………………………….52 4.2.1 Estupro…………………………………………………………………………………53 4.2.2 Violência doméstica e feminicídio…………………………………………………….55 CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………………….63 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………………………………….66 ANEXO A ……………………………………………………………………………………72 ANEXO B……………………………………………………………………………………78 ANEXO C……………………………………………………………………………………82 ANEXO D……………………………………………………………………………………83 ANEXO E…………………………………………………………………………………….84 ANEXO F…………………………………………………………………………………….86 ANEXO G……………………………………………………………………………………90 ANEXO H……………………………………………………………………………………93 ANEXO I……………………………………………………………………………………..95 ANEXO J…………………………………………………………………………………...100 ANEXO K………………………………………………………………………………….103 ANEXO L………………………………………………………………………………….105 ANEXO M………………………………………………………………………………….106 ANEXO N…………………………………………………………………………………..107 ANEXO O…………………………………………………………………………………..108 ANEXO P…………………………………………………………………………………...110 ANEXO Q…………………………………………………………………………………..112 ANEXO R…………………………………………………………………………………...114 ANEXO S…………………………………………………………………………………...115 ANEXO T…………………………………………………………………………………...118 1 INTRODUÇÃO A violência se tornou algo comum dentro da nossa sociedade. A todo o momento, somos inundados com informações sobre o assunto, independente da origem, da vítima ou as características do ato. E, mesmo que ela se concentre em algumas características específicas, ninguém está imune. Mas, dentre as mais diversas vítimas de violência, um recorte importante e, muitas vezes, doloroso, é o das mulheres. Os homicídios, que só cresceram e é bem mostrado pelo Mapa da Violência de 2015, a violência doméstica, os estupros ou uma simples cantada na rua, todas as ações fazem parte da vida da mulher. Em um período de 10 anos, por exemplo (de 2003 a 2013), houve um aumento de 21% nas vítimas fatais, o que significa que, neste fatídico ano, não menos que uma média de 13 mulheres morreram por dia. Diante esse crescimento, algumas medidas passaram a ser tomadas. Em 2006, foi implantada a Lei Maria da Penha, ou 11.340, que busca aumentar a punição diante de crimes considerados domésticos. Mais recentemente, implantou-se a Lei 13.104/2015 ou a do Feminicídio, explicada nas próximas páginas. Apesar do número expressivo, será que os produtos jornalísticos brasileiros se dedicam a falar sobre a violência contra a mulher com profundidade? Ou seguem o fluxo de acontecimentos de grandes repercussões? Outro questionamento importante é como esses veículos buscam retratar a violência: há um reforçamento do senso comum perante os casos ou já existe um maior aprofundamento e cuidado ao noticiar algo tão doloroso? O papel dos jornalistas em casos tão delicados como esse é de extrema importância. Afinal, muitos ainda inspiram-se e baseiam-se no que a mídia informa e tomam aquilo como verdade. Então, cabe a cada profissional saber como retratar o assunto: buscando novas formas de pensamento e promovendo uma reflexão dentro da sociedade ou apenas contribuindo para que esses números aumentem. A partir desses questionamentos, o seguinte trabalho se propõe a analisar qual é o papel da mídia brasileira na violência contra a mulher, através, principalmente, da sua linguagem verbal e não verbal, assim como se a sua ideologia reflete na forma que os casos de violência são noticiados. Para contextualização e análise dos fatos, alguns autores que se dedicaram a estudar o assunto, seja da violência, do jornalismo ou da ideologia foram selecionados. Entre eles estão Marilena Chauí, Nilson Lage, Carla Bassanezi, José Luiz Fiorin, Lia Zanotta Machado, Nilo Odalia e outros. Além disso, documentos e relatórios desenvolvidos por instituições e órgãos como a ONU Mulheres, a Anistia Internacional, IBGE, Nações Unidas e os Mapas da Violência desenvolvidos por Julio Jacobo Waiselfisz, com dados atuais acerca da violência no Brasil. Para tal, o trabalho será dividido em três capítulos: a violência contra a mulher, ideologia no jornalismo e representação da mulher a mídia e análise das reportagens. O primeiro deles consiste em fazer um apanhado histórico do papel da mulher dentro da sociedade, com uma visão do passado até o momento atual. Depois, ele busca destrinchar a violência como um todo para, enfim, discutir a violência contra a mulher de fato e o que a sociedade está fazendo – ou não – para combater os altos índices. O segundo capítulo abordará a questão da ideologia presente na sociedade e também no jornalismo e buscará entender até que ponto existe uma influência mútua entre elas. A partir de então, fará a ligação com a questão da violência e a representatividade da mulher na mídia, mostrando se os fatos estão realmente relacionados. Por fim, o último capítulo retoma todas essas questões para compreender a análise das reportagens especificamente sobre a violência contra a mulher presentes na revista CartaCapital, no jornal impresso Folha de S.Paulo e no portal do jornal Estado de S. Paulo, veículos selecionados para o estudo. A justificativa para o tema é para refletir até que ponto a mídia consegue ou não influenciar na forma como a sociedade em geral trata a mulher, desde a formação de estereótipos até a prática da violência. É um assunto pertinente, atual e pouco discutido dentro da mídia, principalmente a tradicional, tornando o seu estudo importante para a compreensão dos altos índices de assédios, abusos e feminicídios. 2 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Este primeiro capítulo visa compreender como se consolidou o papel da mulher dentro da sociedade desde as décadas passadas até a atualidade a partir de estudos de Bassanezi (1997), Muraro (1992), Barsted e Pitanguy (2011) e Follador (2009). A partir disso, fazer um paralelo com a violência, tanto que atinge homens e mulheres em diferentes instâncias através de estudos de Odalia (1985) e Waiselfisz (2016) e, assim, determinar quais são as violências sofridas especificamente por elas. 2.1 O papel da mulher na sociedade A inclusão das mulheres nas atividades políticas e no mercado de trabalho é muito recente no Brasil. Foi apenas em 19321, por exemplo, que elas conquistaram o poder de voto, algo a que os homens já tinham direito. A reclusão das mulheres em casa e destinadas aos afazeres domésticos é uma tradição da cultura machista e gera reflexos até os dias atuais. Nascer mulher significava ser mãe, esposa e dona de casa, nada mais. Nas famílias tradicionais, os homens detinham todo o poder e autoridade, enquanto a elas cabia o papel de respeitar e compreender. “A mulher ideal era definida a partir dos papéis femininos tradicionais – ocupações domésticas e o cuidado dos filhos e do marido – e das características da própria feminilidade, como instinto materno, pureza, resignação e doçura”(BASSANEZI, 1997). A vida social ainda restrita das mulheres está bastante ligada à questão do patriarcado e de uma maior valorização de seus direitos. Muraro (1992), explica que “o patriarcado é de tal modo hoje uma realidade bem-sucedida que muitos não conseguem pensar na organização da vida humana de maneira diferente da patriarcal, em que o macho domina de direito e de fato”. Ou seja, a grande questão está a partir do momento em que se delimitam os papéis de quem manda: pouco poder é dado para elas, o que, consequentemente, leva a uma menor atenção para as suas causas. É um assunto estrutural e que vem sendo consolidado há muitas décadas. 1 O ano de 1932 é de grande representatividade para as mulheres e o movimento feminista no Brasil. Por muito tempo, o movimento das sufragistas lutou pelos direitos de voto da categoria. Aos poucos, os países foram garantindo o sufrágio a elas. Em nosso país, foi em 24 de fevereiro de 1932, com a instituição do Código Eleitoral Brasileiro, que as mulheres passaram a ter o direito de votar. Em seu artigo, Pitanguy (2011) explica como a questão do poder, seja dentro de casa ou no âmbito da política, modificam a identidade da mulher dentro da sociedade. As mulheres, tal como os homens, são diferentes entre si em função da classe social, cor, etnia, nível educacional, perspectivas e posições políticas. Mas, também, tal como eles, são semelhantes. Isso porque as relações de gênero refletem uma construção social do masculino ainda atrelada à ideia de domínio e do feminino à de subalternidade. Homens e mulheres ocupam posições diferentes no acesso e exercício do poder, o que certamente diferencia seus valores e visões de mundo. A identidade feminina tem sido marcada, ao longo dos séculos, pela vivência da exclusão do poder institucional. É importante ter presente a carga simbólica que acompanha o exercício do poder e o fato de que a secular ausência da mulher neste espaço tem efeitos perversos na conformação de uma percepção social da mulher como inadequada e incapaz para tais funções (PITANGUY, 2011, p. 29). 2.1.1 A visão feminina nas décadas passadas Não são poucos os estudos que buscam analisar como a mulher era vista nas sociedades mesmo em séculos passados. Mas, seja na Grécia Antiga, nos Anos Dourados ou até mesmo nos dias atuais, sempre existiu uma inferiorização da mulher quando relacionada ao homem. Por isso, os pensamentos misóginos e de segregação da população feminina fazem parte da vida delas. A ideia da fraqueza e sensibilidade da mulher aprisionou-as dentro de casa para colocar em prática o dom natural com que ela nasceu: o de cuidar de seu lar e dos assuntos que fazem parte dele. Nascer mulher significava de ser mãe, esposa, prezar pelo bem de sua moradia, de seu casamento e marido. Isso não passou de um falso cuidado por parte daqueles que sempre dominaram o poder para manter as mulheres sob sua vigilância e que não escapasse do que era considerado certo e natural. Os romances de amor, que tinham como finalidade aparente e explícita humanizar uma cultura baseada sobre a guerra e a crueldade, a injustiça e a violência, reintegrar o feminino, a gentillesse, as boas maneiras, o respeito e a admiração pelas mulheres, na verdade tinham outro objetivo: mostrar os homens como seres dinâmicos e as mulheres como seres estáticos, quais princesas adormecidas ou cinderelas à espera do príncipe encantado. Era o homem o senhor de todas as iniciativas e de toda a criação, e a mulher, o esplêndido silêncio, o mistério, a imobilidade, a submissão, a aceitação, o acolhimento. E assim estavam prontas as bases para o que iria suceder do século XVI em diante (MURARO, 1992, p.115). Mas, além de ter moldes impostos e que limitavam a sua convivência socialmente, sair deles sempre custou muito caro. A ideia de moça leviana, muito comum nos anos 50, surgiu a partir do comportamento não aceitável que algumas mulheres tinham, rebaixando-as a um nível de quem não merecia ter uma vida boa e plena, como as consideradas moças de família, que agiam de acordo com os princípios morais bem-vistos na sociedade. De acordo com Muraro (1992, p. 83), desde as sociedades agrárias, foi dado à mulher essa dupla função: “a esposa, casta, frígida, considerando o sexo como pecado e sujo, e por outro lado a prostituta, especialista nas artes sexuais, em geral, oriundas dos povos conquistados ou de classes mais pobres”. Com isso, além de leviana ou de família, ela também pode ser considerada pública ou privada. Follador (2009) explica neste trecho o quanto a visão feminina era permeada pelos olhos masculinos: Os homens, aqueles a quem cabiam os relatos à posteridade, expressavam seus sentimentos e opiniões de forma dupla, ora demonstrando amor e admiração às mulheres, ora demonstrando ódio e repulsa. O olhar masculino reservava às mulheres imagens diferentes, sendo em determinados momentos um ser frágil, vitimizado e santo, e, em outros, uma mulher forte, perigosa e pecadora. Essas características levaram a dois papéis impostos às mulheres: o de Eva, que servia para denegrir a imagem da mulher por ele maculada; e o de Maria, santa mãe zelosa e obediente, que deveria ser alcançado por toda mulher honrada (FOLLADOR, 2009, p. 4). Claro que esse recorte ia muito além de categorizar as mulheres. Era uma forma de dar aos homens ainda mais poder sobre as relações afetivas. Além disso, colocava toda a culpa de um relacionamento malsucedido em suas costas: não era ela quem deveria prezar pela felicidade de seu marido e de seu casamento? A questão da culpabilização é outro ponto muito importante a se ressaltar. Atualmente, diante de casos de violência, seja ela física, sexual ou verbal, há uma grande culpabilização da vítima: o que ela vestia? Por que andava à noite na rua? Por que ela aceitou o relacionamento?, entre outros questionamentos que diminuem significativamente a culpa do agressor. Apesar da modernização do discurso, podemos ver no trecho destacado a seguir, que a ideia foi consolidada há tempos. Não ficava bem para uma mulher casada comportar-se como no tempo de solteira: sair com os amigos, vestir determinadas roupas ou receber muita atenção de outros homens. Para garantir o respeito social e a confiança do marido, a esposa teria de limitar os seus passeios quando ele estivesse ausente. Não deveria ser muito vaidosa ou chamar a atenção, ao contrário, esperava-se que uma mulher casada se vestisse com sobriedade e não provocasse ciúmes no marido (BASSANEZI, 1997, p. 628). Essa caraterização pode ser considerada uma das maiores precursoras do pensamento retrógrado que ainda está muito enraizado na sociedade atual. Colocar o comportamento masculino como natural é justificar, até hoje, os atos violentos e que toda mulher deve estar ciente que, em algum momento de sua vida, ela sofrerá algum tipo de violência por parte do homem e, portanto, é ela quem deve evitar a tragédia. A partir da década de 1950, a participação feminina no mercado de trabalho aumentou e exigia-se delas uma espécie de esforço duplo, ainda muito característico hoje: cuidar da casa e saber lidar também com o trabalho. Mas sair de seu lar para exercer uma função não era visto com bons olhos pela sociedade, pelo contrário, isso significava perder a feminilidade e qualquer privilégio que poderia vir de seu marido. Além disso, a felicidade conjugal estava em suas mãos – e trabalhar não era um fator muito favorável para o casamento. “Como as mulheres ainda eram vistas prioritariamente como donas de casa e mães, a ideia da incompatibilidade entre casamento e vida profissional tinha grande força no imaginário social”(BASSANEZI, 1997, p. 624). Algumas mudanças começaram a aparecer nos “Anos Dourados”, mais precisamento nos anos 50, época ainda restritiva aos direitos da mulher; a partir de 1980, foram consolidando-se cada vez mais conquistas. Ter a “permissão” de sair de casa para trabalhar ampliou as perspectivas das mulheres que agora podiam optar por outros caminhos que não a constituição de uma família. Além disso, o trabalho trouxe outro aprimoramento para a classe feminina: o estudo. Afinal, bons empregos eram conquistados por aquelas com uma boa formação. Foi assim que elas passaram a ter mais acesso às informações e, consequentemente, entender o que significava ser mulher naquele período e naquela sociedade. Barsted e Pitanguy (2011) destacam a importância dessa década em que as mulheres conquistaram espaço institucional com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e também o reconhecimento de sua plena cidadania. 2.1.2 A mulher e a sociedade atual Falar em anos 80, claro, é falar de uma década ainda muito recente, principalmente, para a conquista de avanços para os direitos das mulheres presentes na Constituição de 19882 que garantiu um impacto muito maior na vida delas. (A Constituição) ampliou os direitos individuais e sociais e consolidou a cidadania das mulheres no espaço público e na vida familiar, assegurou os direitos das mulheres nos campos da saúde, incluindo a saúde sexual e reprodutiva; da segurança; da educação; da titularidade da terra e do acesso à moradia; do trabalho, renda e da Previdência Social e do acesso aos direitos civis e políticos. Outro marco importante refere-se ao avanço da legislação e da doutrina internacional de proteção aos direitos humanos das mulheres (BARSTED e PITANGUY, 2011, p. 17). Mas ter direitos escritos em papéis não basta: é importante também que eles sejam colocados em prática, algo que ainda não acontece com frequência. E, mesmo com a existência de tantos, foi preciso o crescimento de um movimento, que aconteceu lá em 1932, para tentar adquirir aquilo que já era considerado algo natural da vida das mulheres: o direito de viver. Entra nessa questão também a tentativa de mudar a visão que se tem do feminino. Ela não precisa ser frágil, dócil e esperar por um marido. Ela também pode ser autossuficiente, forte e dona de si própria. As relações de dominação sobre a mulher são questionadas pelos movimentos feministas, que começam a criar poderosas correntes de opinião pública, inclusive nos países menos desenvolvidos. Cai a imagem da mulher inorgástica e reduzida ao setor privado. Ela entra em massa no setor público. E à medida que as mulheres vão entrando no mundo do trabalho, os homens começam a dividir com elas os trabalhos de casa e a criação dos filhos, isto é, começam a entrar para o domínio privado. Assim, esboça-se um esforço de reintegração entre o público e o privado, fruto de uma incipiente integração entre o homem e a mulher (MURARO, 1992, p. 176). O movimento feminista, ao buscar maior visibilidade para a mulher e suas questões, a partir dos anos 90, ajudou a manter a articulação e mobilização, seja ela nacional ou 2 A Constituição de 1988, promulgada em 5 de outubro, em vigor até os dias atuais, pode ser considerada um grande avanço na questão da mulher, já que garantiu às mesmas, a ampliação dos seus direitos sociais e individuais, além da consolidação da sua cidadania, seja ele no espaço público ou familiar. Entra também em destaque outros direitos como de acesso à saúde, segurança, educação, moradia, trabalho, proteção, direitos humanos e outros. internacional “para efetivação de políticas públicas de enfrentamento das profundas desigualdades de gênero, sociais, regionais e étnico-raciais que têm afetado profundamente as possibilidades do exercício da cidadania pelas mulheres”. (BARSTED e PITANGUY, 2011, p. 16). Apesar de todas as campanhas, leis e batalhas diárias do movimento feminista, o caminho ainda é longo, tendo em vista, principalmente, os números discrepantes de violência e desigualdade a serem abordados nos próximos tópicos. Isso mostra o quanto ainda é preciso se mobilizar mesmo que a nossa sociedade atual veja a mulher diferente do que nas décadas passadas. 2.2 Uma sociedade violenta A violência não é um ato novo, pelo contrário, existe desde os primórdios da humanidade. É por essa caraterística que é considerada “normal” na vida em sociedade, uma prática já inserida no viver do ser humano: é ela que mostra quem é o mais forte, que leva o outro a “lutar” ou “defender” o que é de seu interesse. “O ato violento se insinua, frequentemente, como um ato natural, cuja essência passa despercebida. Perceber um ato como violência demanda do homem um esforço para superar sua aparência de ato rotineiro, natural e como que inscrito na ordem das coisas” (ODALIA, 1985, p 22). Machado (1998) explica que existem quatro tipos de violência: a institucionalizada (que parte de um grupo de interesse), a organizada, a individual marginal (com atividades ilegais como roubo e assalto) e a interpessoal (que vem a partir de relações cotidianas). E quando comparamos violência entre homens e mulheres, podemos facilmente entender a origem do ato de que cada grupo recebe e como isso reflete o pensamento de nossa sociedade, tópico ainda a ser discutido neste presente trabalho. O Mapa da Violência3 2016 – Homicídios por armas de fogo no Brasil (HAF), mostra que, entre 1980 e 2014, foram 967.851 vítimas por AF4. Os números são divididos em quatro categorias: acidente, suicídio, homicídio e indeterminado e, apesar disso, 867.420 das mortes se concentram em uma única delas: o homicídio. 3 O Mapa da Violência é uma iniciativa da FLACSO Brasil com autoria de Julio Jacobo Waiselfiz, de analisar, a cada ano, um grupo específico vítima de violência dentro do Brasil. Existem publicações desde 1998 e já abordou temas como mulheres, jovens, acidentes de trânsito, crianças, adolescentes e homicídios. 4 Armas de fogo Entre 1980 e 2003, o crescimento dos HAF5 foi sistemático e constante, com um ritmo enormemente acelerado: 8,1% ao ano. A partir do pico de 36,1 mil mortes, em 2003, os números, num primeiro momento, caíram para aproximadamente 34 mil e, depois de 2008, ficam oscilando em torno das 36 mil mortes anuais, para acelerar novamente a partir de 2012. Assim, no último ano com dados disponíveis, temos um volume de 42,3 mil HAF. O Estatuto e a Campanha do Desarmamento, iniciados em 2004, constituem-se em um dos fatores determinantes na explicação dessa quebra de ritmo (WAISELFISZ, 2016, p. 17). Entre as vítimas do homicídio por arma de fogo, de 91% a 96% são homens. Diante destes dados, se torna de extrema importância analisar as diferenças que existem nas mortes entre homens e mulheres. 2.2.1 A morte de homens e mulheres Quando falamos em números, homens morrem muito mais do que as mulheres. Em relação a armas de fogo, Waiselfisz (2016) concluiu que Na faixa de 15 a 29 anos de idade, o crescimento da letalidade violenta foi bem mais intenso do que no resto da população. (…) o número de HAF passou de 6.104, em 1980, para 42.291, em 2014: crescimento de 592,8%. Mas, na faixa jovem, este crescimento foi bem maior: pula de 3.159 HAF, em 1980, para 25.255, em 2014: crescimento de 699,5% (WAISELFISZ, 2016, p. 49). Mas como as mortes não se concentram exclusivamente por armas de fogo, os números são ainda maiores. Segundo uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), feita 2013, os homens morreram quatro vezes mais do que as mulheres. Entre 15 e 19 anos, em um registro de 20 mil mortes em 2012, eles alcançaram a totalidade de 76,6%. Na faixa etária de 20 e 24 anos, das 27 mil mortes registradas, eles foram vítimas em 81,7%. Já entre 25 e 29 anos, ficam na porcentagem de 78,1%. Mas o que choca tanto quando relacionamos essas mortes com a das mulheres? As diferenças entre eles é muito bem resumida por Saffioti (2004), quando ela diz que as questões de gênero e patriarcado levam o homem a dominar e agredir para mostrar o seu papel de macho, e a mulher deve suportar todo o tipo de agressão que advém deles. 5 Homicídios por armas de fogo Gênero se refere ao conjunto de relações, atributos, papéis, crenças e atitudes que definem o que significa ser mulher ou homem na vida social. Na maioria das sociedades as relações de gênero são desiguais e desequilibradas no que se refere ao poder atribuído a mulheres e homens. As relações de gênero, quando desiguais, tendem a aprofundar outras desigualdades sociais e a discriminação de classe, raça, casta, idade, orientação sexual, etnia, deficiência, língua ou religião, dentre outras. Os desequilíbrios de gênero se refletem nas leis, políticas e práticas sociais, assim como nas identidades, atitudes e comportamentos das pessoas. Os atributos e papéis relacionados ao gênero não são determinados pelo sexo biológico. Eles são construídos histórica e socialmente e podem ser transformados (CORREA, 2011, p. 343 apud HERA, 1998). A morte do sexo feminino, ao contrário da do masculino, está muito ligada a uma questão de poder que existe do homem sobre a mulher. Já as principais causas da morte dos homens estão relacionadas a rivalidades, disputas e poder, por exemplo. Para elas é, em sua maioria, o fato de terem simplesmente nascido mulher. Barsted (2011) explica que A violência contra as mulheres tem sido um dos mecanismos sociais principais para impedi-las a ter acesso a posições de igualdade em todas as esferas da vida social, incluindo a vida privada. Essa violência é uma manifestação de poder e expressa uma dominação masculina de amplo espectro, histórica e culturalmente construída, para além de sua manifestação nos corpos das mulheres. É uma violência difusa e, muitas vezes, tolerada e não visibilizada, especialmente quando ocorre na família, no ambiente de trabalho ou mesmo nas instituições públicas, o que dificulta para a vítima o acesso aos mecanismos de proteção do Estado e da sociedade. Em contextos sociais, nos quais a violência é usada como um padrão de resolução de conflitos, sua incidência se exacerba em relação às mulheres como mais um componente de dominação (BARSTED, 2011 p. 348). De acordo com a Declaração para a Eliminação da Violência contra a Mulher, resolução nº 48/104 aprovada na Assembleia Geral das Nações Unidas de 1993, a violência contra a mulher é definida como “qualquer ato de violência baseado no gênero do qual resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada”. Também a violência contra a mulher tem heranças socioculturais, atuando na banalização dessa violência e na impunidade. No Brasil, durante séculos, nem mesmo o assassinato, considerado a expressão máxima da violência, era reconhecido enquanto crime quando perpetrado por marido contra mulher sobre quem pesasse a suspeita de infidelidade. O marido tampouco seria punido se matasse o suposto amante, desde que este fosse de nível social inferior, evidenciando assim, de forma exemplar, como a ideia de justiça se construía a partir dos eixos da classe social, sexo e cor (PITANGUY, 2011, p. 50). Um estudo que elucida muito bem os casos é o Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil. Os números gerais que contemplam o dossiê são assustadores: entre 1980 e 2013, um total de 106.093 mulheres foram vítimas de homicídio no nosso país. Isso significa um aumento, de maneira geral, de 252% através dos anos. A taxa de 4,8 homicídios a cada 100 mil mulheres coloca o Brasil na 5ª posição, em um grupo de 83 países, entre os que mais as matam. 2.2.2 Que violência é essa? A violência é um fator estrutural e já muito característico em nossa sociedade, mas esse não é um ato único. Pelo contrário, existem muitas formas de se violentar alguém. Quando colocamos em questão o homem e o que ele sofre, em sua maioria, vemos a questão de uma violência institucionalizada, já explicada anteriormente. No caso das mulheres, ela já pode ser considerada interpessoal e gerada, muitas vezes, por ódio, ciúme e o senso comum de que ela pertence ao homem. Além do homicídio, que é considerado o ato final de violência, também podemos destacar a sexual, verbal e até mesmo psicológica. Os homicídios, inclusive, são apenas uma combinação do excesso de violência sofrida por elas. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (conhecida como Convenção de Belém do Pará) afirma em seu preâmbulo "que a violência contra a mulher constitui uma violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e limita total ou parcialmente à mulher o reconhecimento, gozo e exercício de tais direitos e liberdades". Em seu Artigo 2º, a Convenção acrescenta que a violência contra a mulher não é somente a que acontece no lar, mas é também: "Que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar; que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra (ANISTIA INTERNACIONAL, 2008, p. 23). Mesmo que muito associada a agressões físicas, outras atitudes também podem entrar para a contabilização. Em 2014, o Instituto Avon6 realizou uma pesquisa de violência entre os jovens. Foram 2.046 entrevistas com homens e mulheres entre 16 e 24 anos residentes das cinco regiões do nosso país. Desses, 96% disseram acreditar na existência do machismo no Brasil. E, mesmo com essa consciência, boa parte concorda com valores considerados machistas como o de que a mulher deve ter a primeira relação sexual com um namorado sério (51%), que ela deve ficar com poucos homens (41%), que mulheres que possuem muitos parceiros não são para namorar (38%) e se ela usar decote ou saia curta é porque está se oferecendo (25%). Esses dados apenas servem para comprovar tudo o que já foi falado sobre a mulher e seu papel na sociedade. Em vista disso, das 1.029 garotas que participaram dessa pesquisa, 78% delas afirmaram ter passado por situações extremas como receber uma cantada violenta, ofensiva ou desrespeitosa (68%), ser assediada em festas (44%) ou em transporte público (31%) e ser beijada a força (30%). Já dos 1.017 garotos participantes, apenas 24% assumem ter praticado alguma das ações citadas. Mas não é apenas isso. A violência também está em pequenos atos como controlar, ameaçar e humilhar, ações completamente abusivas e que acontecem, principalmente, dentro de relacionamentos. Na pesquisa citada, 53% do público feminino se viu diante situações onde o parceiro procurou mensagens e ligações em seu celular, 40% foram questionadas sobre com quem e onde estavam, 35% já foram xingadas, 33% foram impedidas de usar determinadas peças de roupas, 28% foram impedidas de sair sozinhas para entretenimento, 12% foram humilhadas em público, entre outras ações como fazer sexo sem vontade, levar soco, tapa e puxão de cabelo. Além disso, 37% delas transaram sem camisinha por insistência do parceiro. Já quando questionadas sobre fins de relacionamentos, 51% das entrevistadas afirmaram ter recebido mensagens invasivas via redes sociais (38%), tiveram boatos espalhados a seu respeito (22%) ou até mesmo foram seguidas (20%) e ameaçadas pelos ex-parceiros (12%). Outra característica importante da violência, que se perpetua muito mais como um questionamento, é que se todas as mulheres estão expostas a serem vítimas da mesma maneira. Diante disso, Portella (2006), explica que 6 Organização não governamental, criada em 2003, que busca conscientizar a sociedade sobre a violência contra a mulher. Coordena ações que ajudam no fortalecimento da saúde e empoderamento do público feminino, através de pesquisas, campanhas e projetos que promovem o combate desta violência. Alguns dados recentes de pesquisa, porém, questionam esta suposta manifestação ‘democrática’ da violência contra as mulheres, ou seja, a ideia de que mulheres de todas as raças, grupos socioeconômicos e perfis culturais estariam expostas e sofreriam violência masculina na mesma medida. Isso é verdadeiro apenas enquanto demonstração da assertiva de que a violência contra as mulheres é uma expressão da dominação masculina que, ao mesmo tempo, estrutura e perpetua as relações de poder entre homens e mulheres. A rigor, portanto, toda e qualquer mulher estaria virtualmente exposta a esta violência, do mesmo modo que todo e qualquer homem poderia, em algum momento de sua vida, se tornar um agressor, desde que vivessem ambos em sociedades patriarcais (PORTELLA, 2006, p. 2). Mas a questão é muito mais complexa: dizer que todas as mulheres estão suscetíveis a sofrer o mesmo tipo de violência é cair em uma falácia e os números elucidam bem. O Mapa é bem claro de o quanto a população feminina negra é a maior vítima: no período de 2003 a 2013, o número de mulheres negras mortas aumentou 54,2% e o de mulheres brancas caiu 9,8%. Em 2013, isso significa que chegou a morrer 66,7% mais negras do que brancas. Ou seja, existem vários vieses diferentes ao se analisar as violências. Em um cenário amplo, todas as mulheres sofrem, mas, ao mesmo tempo, determinados grupos estão mais suscetíveis do que outros. Mas ao que determinar a culpa? A razão não se encontra na atualidade, pelo contrário, é o reflexo de atitudes que começaram lá no passado, principalmente com a discriminação e exclusão daquelas que residem na periferia e são, em sua maioria, negras, como explica Pelegrino (2011). Destaca-se que os processos de urbanização acelerada, bem como a ineficiência ou mesmo ausência de uma política urbana que estruture habitação, serviços públicos essenciais e uma gestão urbana consequente, têm contribuído para aprofundar a chamada exclusão territorial e, nesse sentido, as mulheres, sobretudo as negras e de baixa renda têm sido mais penalizadas. É fato que a fragilidade e insuficiência das políticas públicas de saúde, educação, transporte e lazer acarretam maiores dificuldades no cotidiano laboral dessas mulheres. Assim sendo, destacamos a necessidade de valorizar a perspectiva de gênero no trato das políticas públicas urbanas, de maneira a viabilizar melhores condições de vida e direito democrático à cidade (PELEGRINO, 2011, p. 239). Em 2009, a Anistia Internacional7 promoveu um dossiê sobre as experiências das mulheres com a violência. Os dados acima são uma consequência ainda muito antiga da forma de agir e de se pensar dentro da nossa cultura. Mulheres negras e também periféricas se 7 Fundada em 1961, a Anistia Internacional atua em mais de 150 países e se caracteriza como um movimento global que promove campanhas com a proposta de que os direitos humanos sejam respeitados, reconhecidos e protegidos. deparam com um perigo muito maior dentro de suas próprias vizinhanças. E ir atrás de ajuda nem sempre é uma opção. A maioria dos casos de homicídio nas comunidades socialmente excluídas, no entanto, não acaba com os perpetradores sendo levados à Justiça. Muitos desses homicídios não são denunciados porque as famílias temem represálias e têm pouca esperança de que algo será feito para levar os responsáveis à Justiça. Dos casos reportados, muito poucos são adequadamente investigados pela polícia, se é que o são. E a pouca cobertura que esses casos recebem da mídia não só ajuda a ocultar a verdadeira extensão desses crimes como também acentua a sensação de desamparo e de isolamento sentida por quem vive nas comunidades excluídas. Em consequência, as vítimas dessa violência aprenderam a sofrer em silêncio (ANISTIA INTERNACIONAL, 2008, p. 23). Em relação à forma como essas mulheres, no geral, foram mortas, a pesquisa aponta que 48,8% foram por arma de fogo, 25,3% por objetos cortantes ou perfurantes, 8% por um objeto contundente, 6,1% por estrangulação ou sufocamento e 11,8% por outros tipos. Esses números mostram o quanto o crime de ódio e por motivos banais estão presentes nestes casos. Em relação ao local da morte, 31,2% foram em vias públicas, 27,1% em domicílios, 25,2% em estabelecimentos de saúde e 15,7% em indeterminados (ou “outros”). Mas isso, claro, contando os números de homicídios, uma vez que os casos de violência registrados, que não necessariamente resultam em óbito, chegaram a 71,3% dos atendimentos feitos pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). A violência acarreta diversas consequências que, ao seu final, resultam na morte de mulheres. Até que a fatalidade se concretize, esses tipos de ações, como explica Barsted (p. 347, 2011), “afeta mais seriamente a qualidade de vida das mulheres, (…) gera insegurança e medo, além de sofrimentos físicos, mentais, sexuais, coerções e outras formas de privação do direito à liberdade”. Em 2014, o Sinan atendeu 223.796 vítimas de violência. Desses, 147.691 foram mulheres de todas as idades. Entre os registos femininos, 48,7% foram de violência física, 23% psicológica e 11,9% sexual. De 0 a 11 anos de idade, a maior incidência é de agressões vinda do pai ou da mãe (82%), de 12 a 17 anos vem dos pais (26,5%) e de parceiros ou ex- parceiros (23,2%). De 18 a 59 anos, o principal agressor é o atual ou ex-parceiro, sendo a metade de todos os casos registrados. Já no caso das idosas, a agressão parte, principalmente, dos filhos, sendo 34,9% dos registros. Em resumo, parentes, parceiros ou ex-parceiros resultam em 67,2% de todos os atendimentos. 2.2.3 Um inimigo dentro de casa Vítima existem porque existem agressores. Dos 4.762 homicídios femininos registrados em 2013 pelo Sinan, 50,3% foram pelas mãos de um familiar, o que totaliza sete feminicídios por dia. Já 1.583 foram por parceiro ou ex-parceiro, ou seja, 33,2%, ou quatro feminicídios diários. Essas mortes refletem a forma como o papel da mulher e do homem são vivenciados. “Matar em defesa da honra, qualquer que seja essa honra, em muitas sociedades e grupos sociais, deixa de ser um ato de violência para se converter em ato normal – quando não moral – de preservação de valores que são julgados acima do respeito à vida humana” (ODALIA, 1985, p. 23). E essa honra diz muito sobre o quanto os papéis tradicionais ainda são de grande referência, principalmente para os homens. A sua masculinidade depende das suas experiências com a violência, repressão e o entendimento de que a mulher está lá para servi-lo da melhor maneira possível – e está passível de sofrer punição caso fuja das expectativas. É o próprio Gênese que liga a castração ao patriarcado, mostrando que as relações de dominação (violência) do homem com a natureza terão como condição necessária para o seu funcionamento a relação de dominação entre homens e mulheres e dos homens entre si: o homem tem que se submeter ao Pai (o mais forte) e a mulher ao homem para que seja viável a dominação da natureza (MURARO, 1992, p. 73). Em muitas culturas, a visão que se tem das mulheres é de meramente um objeto sexual e pertencente ao seu marido. É esse tipo de pensamento que leva os homens a acreditarem que agredir suas respectivas parceiras é um ato um tanto quanto comum no casamento ou em qualquer tipo de relacionamento amoroso e não deve ser passível de punição. Quando pesquisas mostram que mais de 30% dos feminicídios são de parceiros ou ex- parceiros, caracteriza-se um dado extremo: o da morte. Mas antes disso, a mulher passa por diversos estágios da violência doméstica. Quando falamos em denúncia, os números são ainda maiores. (…) as mulheres quase são somente mortas pelos homens, e outra, porque os homicídios são apenas a ponta do iceberg da violência doméstica e da violência amorosa. A violência doméstica é muito mais ampla que o homicídio doméstico. O homicídio é um fato extraordinário e único (pelo menos para quem foi morta ou morto). A violência física doméstica é cotidiana, rotineira e rotinizada, e geralmente produtora de uma escalada, em que a morte pode vir a ser (mas nem sempre é) o ponto final. A morte é sempre o significante evocado através da constância das ameaças (MACHADO, 1998, p. 6). Todos os anos, a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) faz um balanço das ligações de denúncia através do 180, uma Central de Atendimento especializada em violência contra a mulher. Em 2015, o aumento no número de atendimentos foi de 54,40% em relação ao ano anterior. Dos 76.651 relatos sobre violência, 50,15% corresponderam à física, 30,33% à psicológica, 7,25% à moral, 5,17% ao cárcere privado e 4,54% à sexual, além da violência patrimonial e do tráfico. Isso significa 44,74% de aumento entre um ano e outro. Além disso, em 72% dos casos registrados, os agressores foram homens com quem a vítima tem ou teve algum tipo de contato amoroso; 16,82% foram de familiares e 10,89% foram de desconhecidos. Diante desses números que só crescem, em 2006, foi criada a Lei Maria da Penha – LMP (11.340/2006) que tem por definição (…) uma política nacional voltada para a promoção da equidade de gênero e para a redução das diferentes formas de vulnerabilidade social das mulheres. Aponta o dever do Estado de promover políticas públicas articuladas e capazes de incidir sobre o fenômeno da violência contra a mulher. Essa Lei contém dispositivos civis e penais e dá ênfase à proteção das mulheres, para além da punição ao agressor. A Lei também inova ao prever o direito da mulher em situação de violência à assistência da Defensoria Pública nas fases do inquérito policial e da ação judicial (BARSTED, 2011, p. 361). A LMP foi apenas um dos passos dados contra a violência que atinge majoritariamente as mulheres. No decorrer dos anos, leis, manifestos e convenções foram sendo realizados na tentativa de erradicar, ou, pelo menos, amenizar os números, como pode ser visto no tópico a seguir. 2.2.4 Uma questão pública A que se atribui a culpa de tanta violência? Claro que ela é resultado de uma sucessão de fatores – que percorrem por anos – até chegar em uma instância máxima, que é o Estado. Falar em violência é pensar diretamente na violação de direitos que as mulheres sofrem. O relatório da Anistia Internacional (2008) aponta que A Convenção de Belém do Pará reconhece que toda mulher tem direito a ser livre de violência, tanto na esfera pública quanto na esfera privada. Requer que os Estados não apenas condenem, previnam e punam a violência contra a mulher, mas que também adotem medidas específicas para lidar com as causas que estão na sua origem (ANISTIA INTERNACIONAL, 2008, p. 11). Teoricamente, existem, sim, tentativas de mudar este cenário, mas ainda caminha em passos lentos e com constantes falhas quando colocadas em prática. A primeira delas foi a criação de Delegacias da Mulher (DDM), especializadas em violência de gênero. Foi em 1985 que o Brasil se tornou o primeiro país a introduzir esse tipo de suporte que contem falhas até os dias atuais, 31 anos depois. Desenvolvidas para oferecer suporte a vítimas, elas estão muito além do ideal. No relatório da Anistia Internacional (2008), as principais queixas daquelas que tiveram que recorrer a uma DDM são de muita demanda e poucas pessoas preparadas para lidar com os casos e mal funcionamento de horários (como não abrir à noite ou aos finais de semana). Outro ponto importante a se destacar é em relação aos profissionais, que acabam tratando de forma abusiva, discriminatória e até desdenhosa as mulheres que vão até eles. O local em que as delegacias são instaladas também prejudicam as denúncias, já que, muitas vezes, são de difícil acesso. São muitos os aspectos que desencorajam mulheres a denunciarem a violência que sofrem, como destacado no trecho a seguir. A Anistia Internacional conversou com as delegadas de diversas delegacias de mulheres e constatou que suas atitudes variavam consideravelmente de estado para estado e também individualmente. Durante uma visita a uma delegacia da mulher de São Paulo, por exemplo, poucos meses após a aprovação da Lei Maria da Penha, a delegada manifestou-se fortemente sobre como esta lei estava atrapalhando seu trabalho. Ela disse que o trabalho da delegacia havia triplicado desde que a lei fora introduzida, pois exigia que a polícia abrisse uma queixa-crime para cada caso, enquanto que, anteriormente, os casos poderiam ser enviados a um juizado de pequenas causas. De modo semelhante, ela reclamou de não haver policiais suficientes para implementar as ordens de proteção e as ordens de remoção de um parceiro infrator de dentro de casa. A delegada também chamou atenção para o problema crônico da falta de abrigos para mulheres – uma questão frequentemente levantada pelas mulheres entrevistadas pela Anistia Internacional. Acima de tudo, ela afirmou que uma vez que o processo se torna criminal, muitas mulheres relutam em levar adiante suas queixas, pois temem pela separação da família e torna-se mais difícil retirar as acusações. Em consequência disso, o número de denúncias havia diminuído significativamente. Esta é uma questão controvertida que foi levantada em diferentes contextos por todo o país. Parecia que, em alguns casos, as consequências de fazer uma denúncia estavam sendo enfatizadas pelas policiais como um modo de desencorajar as mulheres a denunciar (ANISTIA INTERNACIONAL, 2008, p. 50). Também não se pode esquecer das leis e projetos especificamente criados para as questões de violência contra a mulher. A primeira tentativa de mudança veio com a Constituição de 1988, já citada neste trabalho. Depois com as leis Maria da Penha e a do Feminicídio, sendo esta última ainda muito nova, que torna o ato de violência um homicídio hediondo motivado pela condição do sexo feminino. Entre outros avanços também pode-se destacar “mudanças na legislação, produção crescente de estudos e de dados estatísticos sobre a incidência de atos violentos contra as mulheres, criação de serviços públicos especializados de atendimento, além de adoção de planos nacionais para combater esse grave problema” (BARSTED, 2011, p. 347). Também é possível colocar na conta o Pacto de Enfrentamento da Violência Contra a Mulher, de 2007, e a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) de 2002. Porém, a autora ressalta que “a tarefa de enfrentar esse desafio ainda é imensa e requer, necessariamente, esforços para consolidar e implementar uma ampla política de segurança para as mulheres”, o que se traduz em uma luta diária e constante. Diante disso, é possível questionar até que ponto essas leis têm realmente impacto na vida das mulheres que sofreram e ainda sofrem com a violência. Em um estudo realizado por Garcia, Freitas e Hofelmann (2013), quando se compara os dados de violência antes e depois da vigência da Lei Maria da Penha, “não foi observada redução nas taxas de mortalidade de mulheres por agressões”, o que mostra ainda falhas com muitas possibilidades, mas nenhuma conclusão. Por fim, os resultados mostram o quanto ainda é preciso fazer pelas mulheres. Piovesan (2011), indica que existe um desafio para as três instâncias de poderes, visto que a nossa sociedade ainda encara a mulher dentro de uma “ótica sexista e discriminatória”, impedindo-as de “exercer, com plena autonomia e dignidade, seus direitos mais fundamentais”, o que (…) demanda do Poder Legislativo o saneamento da ordem jurídica brasileira, de forma a eliminar os resquícios de legislações ainda discriminatórias quanto às mulheres, adotando todas as medidas necessárias à garantia da equidade de gênero. Quanto ao Poder Executivo, cabe a formulação e a implementação de políticas públicas inspiradas pelo absoluto respeito aos direitos humanos das mulheres e pelo princípio da equidade de gênero, observado o princípio democrático garantidor da efetiva participação de mulheres, beneficiárias diretas das políticas públicas. Ao Poder Judiciário, cabe a criação de uma jurisprudência igualitária, pautada nos valores democratizantes e igualitários da Carta de 1988 e dos instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil (PIOVESAN, 2011, p. 85). 3 IDEOLOGIA DO JORNALISMO E A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA MÍDIA De acordo com o Dicionário Aurélio on-line, a palavra “ideologia” tem três significados: “ciência da formação das ideias”, “tratado sobre as faculdades intelectuais” e “conjunto de ideias, convicções e princípios filosóficos, sociais, políticos que caracterizam o pensamento de um indivíduo, grupo, movimento, época, sociedade”. O termo surgiu a primeira vez no livro publicado por Destutt de Tracy8, Elementos de Ideologia, em 1801, quando o autor buscava tratar essa formação de ideias a partir de fenômenos naturais e a relação do homem com o meio. Mais tarde, muitos estudiosos como Karl Marx, Friedrich Engels9, Augusto Comte10, Durkheim11 buscaram compreender o que era a ideologia. Assim, uma das que se aplicam ao jornalismo, em geral, foi citada por Marilena Chauí (1980) ao estudar os referentes teóricos. A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado (CHAUÍ, 1980, p. 43). Chauí argumenta que, ao compararmos ideologia e realidade, há uma mutualidade entre elas, uma vez que a primeira busca ideias para explicar a segunda, mas é a realidade quem influencia essas ideias. Ou seja, a história e suas condições são criadas por homens inseridos em uma determinada condição social, seja ela econômica, política ou cultural. “Os homens produzem ideias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua 8 Destutt de Tracy foi um filósofo francês e líder da escola filosófica dos Ideológicos. Ele viveu de 1754 a 1836. 9 Marx e Engels escreveram juntos o livro A Ideologia Alemã, em 1932, como uma crítica e uma nova visão e pensamento desenvolvidos pelos estudiosos. 10 Filósofo francês e fundador da Sociologia e do Positivismo. 11 Sociólogo e filósofo francês que também atuou na área de antropologia, cientificismo politico e da psiciologia. própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural” (IDEM, 1980, p. 8). Porém, é necessário salientar que essa não é a representação do real, mas sim a ocultação dele que, então, é denominada de ideologia. Para que ela funcione, é preciso que “a real relação com o real” seja ocultada. É em 1930, com o início do Curso de Filosofia Positiva, de Augusto Comte, que a ideologia vai tomando seus moldes originais e compactuando com a questão do jornalismo. Chauí (1980) argumenta que o termo passa a ter dois significados importantes dentro da história. (…) por um lado, a ideologia continua sendo aquela atividade filosófico- científica que estuda a formação das ideias a partir da observação das relações entre o corpo humano e o meio ambiente, tomando como ponto de partida as sensações; por outro lado, ideologia passa a significar também o conjunto de ideias de uma época, tanto como “opinião geral” quanto no sentido de elaboração teórica dos pensadores dessa época (CHAUÍ, 1980, p. 11). Aqui, entende-se que a ideologia, produzida pelo próprio homem, passa a comandar a prática da sociedade, levando a formação de ideias gerais, comportamentais e até morais. Por isso, o termo leva a crer que o poder pertence a quem tem o saber. Ora, atualmente (e há muito tempo), este saber está concentrado na mão de complexos midiáticos e, consequentemente, jornalistas – seriam eles os detentores da verdade? Sendo ou não, é a partir desse saber que encontramos a alienação tanto discutida em na prática do jornalismo. Chauí (1980, p. 16) explica que “quando o sujeito não se reconhece como produtor das obras e como sujeito da história, mas toma as obras e a história como forças estranhas, exteriores, alheias a ele e que o dominam e perseguem, temos o que Hegel designa como alienação”. A autoria ainda questiona o que leva os homens a se alienarem e não questionarem o que os levam a acreditar completamente naquilo que é ditado. A resposta é simples: a própria ideologia. A forma inicial da consciência é, portanto, a alienação. E porque a alienação é a manifestação inicial da consciência, a ideologia será possível: as ideias serão tomadas como anteriores a práxis, como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens (CHAUÍ, 1980, p. 25). Quando unimos alienação e ideologia, temos a dominação de uma classe sobre a outra. E, na maioria das vezes, essa dominação não é nem sequer percebida pelo dominado. A falta de consciência é o que torna a ideologia possível e seus os pensamentos verdadeiros e reais. A ideologia consiste precisamente na transformação das ideias da classe dominante em ideias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano espiritual (das ideias). Isto significa que: embora a sociedade esteja dividida em classes e cada qual devesse ter suas próprias ideias, a dominação de uma classe sobre as outras faz com que só sejam consideradas válidas, verdadeiras e racionais as ideias da classe dominante (CHAUÍ, 1980, p. 36). 3.1 Como a ideologia se aplica ao jornalismo? Desde a sua criação, em 1808, a imprensa brasileira esteve pronta a servir poucos. Foi com a chegada da corte de D. João VI que as primeiras páginas de jornal – ainda muito diferentes do que vemos hoje, começaram a se delinear. Desde o começo, Correio Braziliense (1808), Gazeta (1808), Jornal do Brasil (1891) e até mesmo aqueles que surgiram no período de ditadura, se tornaram publicações que atendiam ao governo, aos políticos, empresários e seus interesses. Paralelamente ao crescimento da imprensa, ocorreu a afirmação da burguesia. Além dos interesses de seus donos e patrocinadores, a imprensa também tinha essa outra parcela da população para agradar e até mesmo ajudar. Nilson Lage (1979) discute em seu texto que a burguesia se utilizou dos meios para propagar aquilo que estava ligado a sua ideologia. A burguesia ascendente utilizou seu novo produto para a difusão dos ideais de livre comércio e de livre produção que lhe convinham. Logo também viriam as respostas do poder político autocrático a essa pregação subversiva, sob a forma de regulamentos de censura ou da edição de jornais oficiais e oficiosos, vinculados aos interesses da aristocracia. A liberdade de expressão do pensamento somou-se, na luta contra a censura, às outras liberdades pretendidas no ideário burguês, e o jornal tornou-se instrumento de luta ideológica, como jamais deixaria de ser (LAGE, 1979, p. 11). O surgimento e crescimento da imprensa somado à ascensão da burguesia levou a grande imprensa a se dirigir quase que exclusivamente para esta classe. Lage (1979, p. 19) mostra que, a partir dos anos 60, os jornais tidos como populares se extinguiram quase que por completos, o que tornou a sua leitura muito mais restrita. “Ler jornais é, no Brasil, diferencial de classe, ocupação própria dos formadores de opinião. O mercado publicitário ajustou-se a isso; o público de massa concentra-se no rádio e na televisão, que absorve a parte do leão no investimento em propaganda.” Mas, afinal, como tudo isso está relacionado com a ideologia? De acordo com o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, através de um levantamento feito em 2015, apenas onze famílias controlam a mídia no Brasil. O monopólio familiar, a propriedade cruzada dos principais meios de comunicação de massa, o controle parcial de redes locais e regionais de TV e rádio por políticos profissionais, e a inexistência de uma imprensa partidária ligada a interesses sociais minoritários com alguma expressão nacional faz com que nosso sistema de mídia apresente ainda, depois de mais de duas décadas do retorno à democracia, uma reduzida e precária diversidade externa. Este quadro adverso na oferta de fontes diversificadas de informação e opinião converte automaticamente a questão da diversidade interna num dos pontos cruciais no exame da articulação entre o nosso sistema de mídia e o sistema político (AZEVEDO, 2006, p. 101). Sobre o monopólio das mídias, Chauí (2006) também aponta que não só o poder de informação está concentrado, assim como o destino da própria imprensa. Os meios de comunicação tradicionais (jornal, rádio, cinema, televisão) sempre foram propriedade privada de indivíduos e grupos, não podendo deixar de exprimir seus interesses particulares ou privados, ainda que isso sempre tenha imposto problemas e limitações à liberdade de expressão, que fundamenta a ideia de opinião pública. Hoje, porém, os dez ou doze conglomerados de alcance global controlam não só os meios tradicionais, mas também os novos meios eletrônicos e digitais, e avaliam em termos de custo-benefício as vantagens e desvantagens do jornalismo escrito ou da imprensa, podendo liquidá-la, se não acompanhar os ares do tempo (CHAUÍ, 2006, p. 13). Ao concentrar os complexos midiáticos em poucas mãos, os profissionais de jornalismo, ao respondem a superiores, passam a reportar em seu conteúdo aquilo o que é, principalmente, de interesse de seus patrões. E não só isso, eles são “porta-vozes” dessas ideologias e são aprovados por aqueles que se identificam com a linha de pensamento ou desaprovados com quem discorda e “tendem a colocar sob suspeita informações e interpretações contidas em tais publicações, considerando-as parciais e unilaterais, julgando- as não confiáveis e falseadoras do real” (Alves Filho, 2000, p. 101). É nesse contexto também que se encaixa a questão da objetividade e subjetividade do jornalista. Muito se questiona até que ponto o profissional da área consegue ou não ser imparcial a suas crenças e ideologias, sendo, de fato, objetivo ao noticiar um acontecimento. Lage (1979) explica que, por mais que se busque a objetividade, uma mínima escolha feita pelo jornalista já tem influência de sua subjetividade. O conceito de objetividade posto em voga consiste basicamente em descrever os fatos tal como aparecem; é, na realidade, abandono consciente das interpretações, ou do diálogo com a realidade, para extrair desta apenas o que se evidencia. A competência profissional passa a medir-se pelo primor da observação exata e minuciosa dos acontecimentos do dia a dia. No entanto, ao privilegiar aparência e reordená-las num texto, incluindo algumas e suprimindo outras, colocando estas primeiro, aquelas depois, o jornalista deixa inevitavelmente interferir fatores subjetivos. A interferência da subjetividade nas escolhas e nas ordenações será tanto maior quanto mais objetivo, ou preso às aparências, o texto pretenda ser. Assim, pode-se narrar uma procissão do ângulo da contrição dos fiéis, ou com destaque aos problemas de trânsito que causa, ou ainda à contradição entre suas propostas e a realidade contemporânea. No primeiro caso, estaremos, possivelmente, redigindo um texto de fundo religioso; no segundo, de intenções agnóstico mecanicistas; no terceiro, de intenções críticas e materialistas (LAGE, 1979, p. 16). Isso significa, então, que o profissional se rende não só a sua ideologia, mas também de seus patrões e superiores? De acordo com o autor, a resposta é sim, uma vez que ele precisa atender às expectativas de seus empregadores e à linha editorial da empresa. (…) empresas têm interesses objetivos, inserem-se em articulações, dependem de financiamento, publicidade, tecnologia e aceitação social. Não é fácil sustentar organizações desse tipo sobre a individualidade de jornalistas apaixonados pela própria missão e pelas próprias carreiras, fuçando escândalos financeiros e incongruências políticas numa sociedade real (considere-se, por exemplo, que as ações judiciais por crime de calúnia, injúria ou difamação são essencialmente cíveis, buscando indenização — a ser paga pelas empresas). Por outro lado, a independência do jornalista é impossível, no sentido lato, se a relação de emprego não pressupõe algum tipo de estabilidade. O repórter paladino da sociedade, defensor daqueles que não têm quem os defenda, pode ser a essência do bom jornalismo, mas é, do ponto de vista empresarial, um tremendo criador de casos (LAGE, 1979, p. 18). Vemos, então, que dentro da imprensa, como afirma Rocha (2008, p. 49), os profissionais precisam atender demandas internas e externas. Os primeiros se caracterizam pelos “proprietários e às políticas editorias das empresas jornalísticas, às motivações biográficas (simpatias pessoais, códigos de valores notícia ou constrangimentos organizacionais) dos profissionais”. Do outro lado temos “as ‘pressões de fora para dentro exercidas pelos leitores, anunciantes ou fontes’ que caracterizam os fatores externos capazes de influenciar o discurso jornalístico”. É um jogo de interesses em que a ideologia predominante é a do veículo e que se une também a uma hierarquização da informação e influenciam na forma como aquele complexo midiático deve informar, o que é mais importante e a melhor forma de fazê-lo. (…) pode-se considerar também a dicotomia entre uma dominação imposta pela facticidade, por coações de pressões externas às pessoas dominadas, e outra negociada através da construção de consensos em torno do discurso ideológico dominante, portanto, uma dominação baseada no consentimento ativo (racionalmente motivado) dos dominados sobre o que consideram como válido. Uma dominação exercida discursivamente e outra baseada em recursos deslinguistizados (dinheiro ou poder). Evidentemente que o papel (a qualidade) do jornalismo nas duas alternativas é substancialmente distinto, revestindo-se, na alternativa positiva, de uma importância crucial na aceleração da mudança social, na elevação dos padrões de convivência e da qualidade de vida, enquanto, no segundo caso, torna-se fator de opressão, de incremento do potencial de conflitos e de violência (ROCHA, 2008, p. 52). 3.2 Ideologia x informação: há influência? Para encerrar a questão da ideologia no jornalismo, é preciso analisar como isso tem influência na hora de informar e como isso se aplica. Quando estudamos linguagem, vemos que existem muitas maneiras de levar alguém a acreditar em determinado discurso – ao que se aplica completamente ao jornalismo. Persuasão, uso de retórica, figuras de linguagem como metáfora, metonímia e eufemismo, tudo isso é complemento para dar uma carga ideológica a forma que os discursos (não só jornalísticos) são construídos. Em seu estudo sobre linguagem, Citteli (2000) coloca a persuasão como o principal meio do discurso, que pode estar presente nos mais diversos tipos, mas se aplica ao jornalismo por seu caráter, muitas vezes, unidirecional. Primeiro, vemos que o termo persuadir diz: Antes de mais nada, é sinônimo de submeter, daí sua vertente autoritária. Quem persuade leva o outro à aceitação de uma dada ideia. É aquele irônico conselho que está embutido na própria etimologia da palavra: per + suadere = aconselhar. Essa exortação possui um conteúdo que deseja ser verdadeiro: alguém “aconselha” outra pessoa acerca da procedência daquilo que está sendo enunciado (CITTELI, 2000, p.13). Para fazer um paralelo com a mídia, Citteli (2000, p. 5) cita o caso das revistas. “Supondo-se que a revista espalhasse a mais completa lisura, o mais profundo aferramento aos princípios de uma informação incontaminada pela presença de interesses vários, ainda assim estaria ela isenta do ato persuasivo? A resposta é não.” Isso porque, a forma como aquele veículo se apresenta, ao dizer que ele é honesto e transparente, por exemplo, já é uma forma de persuadir o leitor. Ou seja, fazê-lo crer que aquela é a verdade, uma vez que um veículo de boa intenção está passando determinada informação. A persuasão está bastante ligada ao discurso jornalístico, que pode ser dividido em quatro partes, segundo o autor: exórdio (início do discurso ou de uma matéria, por exemplo. É aqui que o leitor deve ser conquistado); narração (apresentação e argumentação dos fatos); prova (comprovação daqueles fatos através de fontes, dados e afins) e peroração (é a conclusão). Se o leitor chegou até a parte final, é porque ele conseguiu ser conquistado – ou melhor – persuadido. Já a retórica, junto à persuasão, leva o leitor a acreditar na veracidade daquela mensagem e a se prender na ideia, podendo levar aquilo também para o seu discurso. Mas não são apenas essas características que colaboram para o discurso jornalístico transparecer a sua ideologia através da informação. Citteli (2000) aponta mais quatro elementos importantes na análise do discurso para isso acontecer. Temos, primeiro, a distância que existe entre o enunciador da mensagem e o receptor. Sabe-se que a voz do enunciador (ou, no caso, do jornalista), é sempre mais forte. Existe também a modalização que dá ao enunciador um caráter autoritário ao fazer o uso de certas palavras, figuras de linguagem e outros. Em terceiro lugar a tensão, quando o enunciador “domina” a fala do receptor e, por último, a transparência, em que há uma maior compreensão do que está sendo anunciado por meio de um vocabulário mais simples, com apelo emocional e de fácil compreensão. 3.3 A notícia e a influência da e na sociedade Depois de estudar o discurso, torna-se importante compreender de que forma ele reflete nas notícias e, consequentemente, na sociedade. Antes de tudo, Lage (1979) aponta que, para que algo seja caracterizado como notícia, é preciso que haja interesse sobre ele. Ou melhor, a indústria precisa se interessar. É partir daí que algo se torna importante para ser noticiado. A construção declaradamente interpretativa que nominaliza um fato qualquer para qualificá-lo, ou propor-lhe uma essência significativa (no mecanismo da interpretação jornalística e, supomos, em outros tipos de interpretação, cuida-se de tratar o acontecimento como aparência, isto é, como significante de um significado essencial, político, econômico, cultural, apontado para um futuro imediato ou remoto) (LAGE, 1979, p. 71). Quando há o interesse, portanto, (…) os profissionais da mídia, de forma tão mais independente quanto mais democrática for a sociedade, exercem livremente o reconhecimento da relevância dos acontecimentos, seguindo os critérios profissionais deontológicos que indexam estes fatos dentro do modelo cognitivo de interpretação da realidade vigente na cultura em cada momento específico da formação social. Os desvios desses mapas ideológicos de leitura do real são tratados como parcialidade ou outra distorção patológica (ROCHA, 2008 p. 43). A partir daqui, começamos a delinear a relação da sociedade com o jornalismo e a ideologia. Fiorin (1998, p. 75) diz que o enunciador (que também pode ser o jornalista) carrega a ideologia em seu discurso e, quando isso acontece, ele “de certa forma, contribui para reforçar as estruturas de dominação (…). Pode-se dizer que a linguagem pode ser instrumento de libertação ou de opressão, de mudança ou de conservação”. E quando colocamos esse discurso dentro de uma sociedade, devemos compreender que ele não é adquirido simplesmente de uma forma neutra. Pelo contrário,“diferentes segmentos da sociedade têm diferentes demandas de informação e se postula que, como regra, tenham o mesmo direito de serem informados” (Lage, 2001, p. 49). Portanto, dentro desse contexto, caracteriza-se outra problemática: a de que grandes veículos, ao atender os interesses de um público específico de leitores, exclui outro. Ao estudar Norman Fairclough, Rocha (2008), mostra em sua pesquisa que (…) a definição das notícias também é primariamente decidida pelas pessoas da elite que têm acesso privilegiado à mídia e são tratadas pelos jornalistas como fontes confiáveis. E, quando as vozes dessas pessoas privilegiadas são representadas no discurso da mídia, de forma perlocucionária, na versão jornalística da linguagem popular cotidiana, há uma confusão nas identidades, pois as relações e as distâncias sociais entram em colapso, já que os grupos da estrutura de poder são representados como se falassem na linguagem dos próprios leitores, o que torna muito mais fácil a assimilação de seus sentidos. “Pode-se considerar que a mídia de notícias efetiva o trabalho ideológico de transmitir as vozes do poder em uma forma disfarçada e oculta” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 144) (ROCHA, 2008, p. 54). Assim, conclui-se que o jornalismo e a sociedade agem de forma mútua: ele, através do discurso, mostra o que deve ser consumido enquanto informação. As classes, por sua vez, determinam de que forma é mais interessante para eles que aquilo seja informado. Mas, de acordo com Alves Filho (2000, p. 111), é preciso verificar até que ponto isso é feito de forma inconsciente ou consciente. Ou seja, se a influência mútua é limpa ou tem “o propósito de compatibilizar versões e acontecimentos, tornando coerentes pontos de vistas estruturalmente apresentados, em defesa de interesses e objetivos de classe”. Independente dessa verificação, que deve ser feita de caso para caso dentro dos complexos midiáticos, Lage (2001), resume muito bem a relação da sociedade com o jornalismo. Sem informação jornalística – e pouco importa se ela o agrada ou desagrada, se lhe motiva paixão ou repulsa –, o homem contemporâneo não consegue orientar-se na vida civil, profissional e mesmo afetiva; os mercados regridem em dinamismo e agilidade; numa era de especialidades, especialistas e tribos, é pelo jornalismo que se consegue ter contato com o que pensam os outros, isto é, aqueles que têm outras especialidades, circulam em outros meios, preferem outras coisas (LAGE, 2001, p. 49). 3.4 Representações sociais na mídia Atualmente, a comunicação e as mídias deixaram de ser, exclusivamente, uma forma de se informar. Pelo contrário, elas também passaram a ser uma forma de identificação de seu receptor, além da constante troca de experiências que acontece de um para outro e vice-versa. Mas antes de entrar no ato de se comunicar em si, é preciso voltar a 1978, quando Serge Moscovici elaborou o seu conceito de representação social – que pode facilmente se encaixar na questão da mídia. Para o estudioso, a Psicanálise, quando introduzida a uma cultura, “se transforma ao mesmo tempo em que modifica o social, a visão que as pessoas têm de si e do mundo em que vivem” (ALEXANDRE, 2001, p. 112). É neste contexto que podemos compreender o quanto o jornalismo e a sua informação influenciam na vida de uma sociedade, afinal, muito além de informar, ela também está presente para criar uma identificação com o seu espectador (sempre com o grupo de destaque), já que ele tem que se sentir representado dentro daquele veículo midiático. Constantino (2014), explica que, Na realização desse fenômeno é necessária a troca de informações, a circulação de opiniões, em suma, a comunicação. Essa troca não se dá apenas de forma vertical, de uma elite para uma massa, mas é uma circulação capaz de, em grande medida, tornar sociais as ciências e científicas as sociedades” (MOSCOVICI, 1978, p.26), incorporando não apenas os meios de comunicação, mas também a organização social de quem comunica. A comunicação não se traduz em mera transmissão de informação, pois as palavras permitem muitas combinações, sentidos e usos. A representação social, nesta perspectiva, adquire um significado mais amplo, apresentando-se como “uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos” (CONSTANTINO, 2014, p. 56). Mas como se dá essa representação social? A sua construção não acontece de repente, são diversas identificações e reconhecimentos entre o “Eu” e o “Outro”, além de uma troca mútua de experiências, como se houvesse uma dependência de ambas as partes. Em seu estudo, Alexandre (2001, p. 118), argumenta que “é um fenômeno básico e universal de influência recíproca. Ela faz parte de um processo mais amplo, o da informação, através da difusão de conhecimentos numa escala nunca antes imaginada”. Não podemos esquecer também que outros aspectos influenciam nesta identificação: o sujeito não é neutro, ele já possui toda uma bagagem de vivências e uma visão de mundo adquirida a partir da sociedade em que está inserido. Entende-se, portanto, que a influência parte tanto do emissor e do receptor. Por isso, a representação social Vincula o objeto a um sistema de valores, noções e práticas, conforme a visão de mundo do sujeito. Isto não significa que seja mero simulacro ou possa se confundir com a ideologia; ela possui função constitutiva da realidade social em que o sujeito concretamente se move, dando-lhe parâmetros para seu comportamento e sua posição diante do objeto apresentado. Com o ingresso desse novo objeto no universo simbólico do sujeito e a consequente construção de uma representação para ele, este universo também se reestrutura. Assim, o sujeito é igualmente constituído no momento em que constitui a representação social (CONSTANTINO, 2014, p. 62). Quando pensamos na comunicação e na sociedade atual, vemos o quanto o ser humano passou a ser bombardeado por informações, principalmente pela sempre crescente uso da internet e das redes sociais. Isso gera uma maior preocupação não com o que se comunica, mas da maneira que isso é comunicado. E isso acontece justamente para ocorrer essa identificação ou gerar curiosidade do receptor. Para Alexandre (2001, p. 116) esse fenômeno permite a construção de uma autoimagem, já que os meios de comunicação, em sua maioria os de massa, reproduzem essas chamadas representações sociais, que fazem com que aquele grupo que recebe a mensagem “fundamentam a própria compreensão” que têm de si próprios. E o que as representações sociais, a mídia e a violência têm em comum? Independente da mensagem que aquele veículo em específico almeja passar, ele sempre buscará atender as necessidades do grupo social que mais se identifica com ele. Um veículo que tem seus leitores, pelo menos em grande parte, em uma classe social mais conservadora e que ainda caminha dentro dos moldes tradicionalista, dificilmente se identificará com uma notícia que não segue no sentido esperado por eles. No outro sentido isso também acontece: um veículo que já se desprende dessas “amarras” tradicionalistas e possui um caráter inovador no momento de comunicar, também se esperará um certo comportamento dele ao noticiar aquele fato, já que o público que ele atinge é diferente. Dentro disso, podemos observar que sempre haverá a questão do interesse e subjetividade inseridos nas linhas daquela notícia, independente do seu tema. Cada palavra, por mais descritiva que pretenda ser, contém uma carga de emoção. A objetividade da linguagem jornalística ou científica apresenta-se com uma roupagem de distância, ou em termos emocionais, de imparcialidade. Os comunicadores quase sempre querem produzir aprendizagem nos receptores. Se não houver esta intenção, serão utilizados os hábitos existentes no receptor, criando mensagens para fortalecê-los (ALEXANDRE, 2001, p. 120). 3.5 A representação da mulher na mídia A questão da representatividade feminina na mídia é uma discussão longa e pouco mutável. Elas não estão excluídas do complexo, pelo contrário, a mulher tem espaço em propagandas, em editorias e inúmera publicações feitas diretamente para elas. O grande problema em torno dessa inclusão é a forma com que ela é feita. Em seu estudo, Corazza (2006, p. 2) explica que o constante aparecimento da mulher na mídia não modifica toda a discriminação que ela sofre, uma vez que nos encontramos em uma sociedade ainda “pautada pelos parâmetros masculinos”. Ao abordar a representação da mulher dentro da mídia, temos de contextualizar a mulher na sociedade. Ainda hoje, o número de mulheres em cargos de poder dentro de empresas não se equipara ao dos homens. E mesmo nesses cargos, sabe-se que o salário não é o mesmo, o que gera uma desvalorização do gênero feminino. Em 2016, a consultoria Grant Thornton fez um levantamento em 36 países relacionado a quem está no cargo das empresas. O International Business Report mostrou que de 2014 para 2015, o número de mulheres em cargo de poder subiu de 5% para 11%. Um avanço significativo, mas ainda pequeno. Já em relação à diferença salarial, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) mostrou que ainda em 2016, elas receberam cerca de 25,6% a menos que o homem em um cargo semelhante. Agora, quando abordamos especificamente o jornalismo, Segundo o vice-presidente da Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ), Chico Sant’Anna, estima-se que dos 600 mil Jornalistas, no mundo, 300 mil são mulheres. “A divisão, contudo, não é tão equânime em todos os países. Na América Latina podem ser em torno de 50 mil as mulheres entre jornalistas, repórteres, editoras, pauteiras, colunistas, entre outros trabalhos na mídia (SANT’ANNA, 2001) (CORAZZA, 2006 p. 7). E é aqui que encontramos a primeira e, talvez, principal problemática na representatividade da mulher na mídia. Elas são recrutadas para abordar, em sua maioria, assuntos específicos e voltados para mulheres, enquanto outros assuntos considerados importantes e significantes se concentram nas mãos dos homens. Os temas tradicionais da imprensa feminina resumem-se a meia dúzia de itens: moda, beleza, culinária, decoração, comportamento, celebridades, um conto ou fotonovela, etc. Naturalmente, esses assuntos privilegiados pela imprensa feminina apresentam pouca ou nenhuma ligação com o momento atual. Moda seria o mais dependente de época, na medida em que as estações ocasionam mudanças nesse campo. As revistas costumam publicar matérias como maquiagem de inverno, culinária de verão e assim por diante. No entanto, são ligações temporais fracas: um refresco que serve num verão pode ser republicado dois anos depois (BUITONI, 1981, p. 5). Com isso, vemos que outros assuntos de interesse geral, que também fazem parte da vida da mulher, são pautados por homens, assim como o que vai ser informado e também a forma que elas são representadas. Então, de que maneira se constrói a identidade social da mulher na mídia e sua representação? As sociedades constroem bens simbólicos, que compõem o imaginário e formam um conjunto de representações sociais. Podemos considerar que as práticas discursivas são ideias mediadas por situações concretas vividas pelos agentes sociais. Mulheres e homens desde a infância são bombardeados com uma série de ideais de feminilidade e masculinidade, através da transmissão de determinados “valores femininos e masculinos” preconizados pelo senso comum, pela educação, pela família, pela mídia. O senso comum é construído na cultura e parte do pressuposto de que a sociedade compartilha de um consenso cultural. Ele é uma forma simbólica, munido de valores e significados sobre homens e mulheres existentes na sociedade. Existe o emprego de um discurso normatizante, através de representações coletivas e classificatórias para que seja entendido por um maior número de pessoas (CRUZ, 2008, p. 7). Porém, não é apenas a mídia que influencia na sociedade. O inverso também acontece, em uma troca mútua de interesses e posicionamentos que predominam na sociedade. Castro e Prado (2012), afirmam que a cada momento prevalece a força de um dos lados, seja a mídia ou a audiência. O que demonstra a combinações de interesses ideológicos de ambas as partes. 3.6 Papel do jornalismo na construção da identidade feminina Quando pensamos em jornalismo, algumas considerações acerca do tempo são necessárias. Ele tem a capacidade de levar informação a todo o momento e de qualquer assunto, cabendo ao leitor filtrar aquilo que vem a ser de seu interesse. Além disso, ele está permeado por outras questões já discutidas neste trabalho, como a ideologia e a publicidade. E, por conta disso, se torna passível de erros e aprendizagens. Ao estudar as teorias e as técnicas que fazem parte do jornalismo e seu texto, Nilson Lage (2005, p. 05) aponta aspectos que fazem parte do “fazer notícia” e que não justificam erros, mas explicam o jornalismo enquanto “um relato de aparências”. (a) É produzido às pressas, em sociedades estruturadas, com suas tensões, regras e leis, jogos de riqueza e poder; obrigado a tornar os fatos inteligíveis para um público aferido em quantidades médias e qualidade perceptiva mínima – as interpretações que faz são datadas e efêmeras. (b) Não lhe é permitido avaliar intenções e inferir a subjetividade dos personagens ou o percurso secreto das decisões em estruturas de poder; torna-se difícil sugerir o que ninguém confessa. Como será mostrado adiante, tal avaliação e tais interferências, transferidas no jornalismo para a especulação do público, são essenciais na formulação das suposições sobre a realidade com as quais os homens fundam seus procedimentos (LAGE, 2005, p. 5). Antes da análise, é importante destacar o quanto o conteúdo jornalístico também apresenta as percepções daquele que escreve a notícia, ou seja, o profissional de jornalismo. A escolha dos termos, das fontes, do que será usado como discurso direto ou não, atribuindo carga às palavras que ali estão escritas, tudo parte de uma escolha dele ou em conjunto com o veículo. No discurso jornalístico, pelo menos em suas formas canônicas (a notícia e a reportagem), as formas de citação usuais são o discurso indireto livre (em que o narrador assume a subjetividade do indivíduo citado e simula sua reflexão silenciosa), não são considerados legítimos fora do campo da ficção. A única responsabilidade que o jornalista se impõe diante de uma citação é que ela esteja conforme a essência (ou a forma, se entre aspas) do discurso citado. Ainda assim, quem cita escolhe o que cita e, às vezes, de maneira mais ou menos sutil, assume posições em face da citação (LAGE, 2005, p. 15). Ainda acerca da questão do jornalista, que envolve a subjetividade já discutida neste trabalho, Luiz Costa Pereira Junior (2006, p. 70), mostra que a construção do sentido no jornalismo serve para “reduzir incertezas”, uma vez que se torna praticamente impossível noticiar certa realidade por inteiro, cabe a ele selecionar os fatos para dar sentido à notícia. “O real, no entanto, será o sentido que damos à massa caótica de estímulos que recebemos”. Já para Lage (2005), No discurso noticioso, os elementos de subjetividade não desaparecem, nem poderiam, mas são reduzidos ao mínimo: para isso, combina-se método de apuração e técnica de redação e concentra-se o foco do discurso no referente factual. Resta à crítica ponderar que toda fala humana, destinando-se a uma comunidade e em um tempo, deve conformar-se a valores dessa comunidade e desse tempo (LAGE, 2005, p. 82). Entende-se por identidade social, termo estudado pela Sociologia e formulado por Henri Tajfel e John Turner, em 1979, como a identificação que o indivíduo estabelece a partir de seu contexto social com determinadas características, grupos, gostos, a partir de suas relações em sociedade. Entre as múltiplas facetas do que pode ou não influenciar essa identidade está a mídia, uma vez que ela reproduz crenças e valores, faz a retratação de alterações históricas e transforma as relações sociais (Cruz, 2008). Considero os discursos divulgados pela imprensa, devido ao seu caráter multiplicador, de fundamental importância para construção da identidade social, na medida em que por um lado, instauram a possibilidade de novos discursos e, por outro, interferem na construção do nosso cotidiano e na forma como configuramos as relações sociais e a memória. Nesta perspectiva, os discursos divulgados em jornais e revistas de circulação nacional, estabelecem novos sentidos e representações, instituindo assim as condições para a formação de novas identidades (SGARBIERI p. 387). Sem dúvidas, a mídia tem a capacidade de influenciar a identidade social de homens e mulheres, atingindo cada indivíduo de forma diferente, tendo em vista que “os contextos sociais são constitutivos da produção das formas simbólicas, e dos modos pelos quais essas formas são recebidas e entendidas, contribuindo também para as maneiras pelas quais elas serão interpretadas, recebidas e valorizadas”, além de transmitir e legitimar a ideologia dominante (Cruz, 2008, p. 5). A identidade social, diante de uma perspectiva de construção social e cultural nos complexos midiáticos, tem grande papel na construção dessa identidade feminina, como estudado por Ana Lúcia Castro e Juliana Prado (2012, p. 248) já que “provoca no receptor um processo de ‘identificação/projeção’ - nos termos de Morin (1987) com isso, as mulheres em contato com os produtos culturais da mídia se identificam com o que representam e projetam sua identidade em torno disso”. E qual podemos considerar essa identificação/projeção? Considerando-se o exposto, podemos retornar à problemática central desta reflexão: em que medida a mídia pode orientar as mulheres na construção de sua identidade? Na sociedade moderna, a mídia transmite modelos de feminilidade a serem seguidos; as revistas femininas, por exemplo, buscam imprimir um ponto de vista que corresponda aos anseios de suas leitoras ao abordarem diversos assuntos, como: consumo, corpo, sexualidade, saúde, trabalho, família e filhos. Não restam dúvidas de que a mídia, contemporaneamente, constitui-se em poderosíssima instância societária, jogando diariamente padrões de comportamento e imagens de beleza que conformam um padrão tido como ideal. Este padrão, geralmente, coloca como ideal estético um corpo esguio, retilíneo, branco (mas bronzeado), cabelos lisos, impondo, em certa medida, o que deve ser considerado como como belo (CASTRO e PRADO, 2012, p. 249). Porém, é preciso destacar também outros aspectos influenciadores nessa identidade – que não só foram levados a conhecimentos femininos, mas que também permearam o pensamento de toda uma humanidade e já discutido neste trabalho: a da mulher feminina, doméstica, mãe, romântica e propriedade de seus maridos. Características consolidadas pela imprensa feminina, próximo tópico abordado. 3.7 Imprensa feminina e representação midiática O posicionamento da mulher na sociedade e a forma como é vista desde décadas passadas tem influência fundamental da mídia diante dos esterótipos produzidos pela imprensa denominada feminina. Desde os primórdios da imprensa, ela trouxe definições que moldaram o comportamento e a identidade da mulher como indivíduo e como cidadã. Buitoni (1981) resume em seu estudo sete fases pelas quais as mulheres passaram diante de estereótipos produzidos pela mídia. Oásis, mãe, preocupada com a beleza, personalidade adquirida a partir de artistas de cinema, boa namorada ou esposa, dona de casa satisfeita e livre. São essas as imagens que, até a década de 70, ajudaram a construção o ideal feminino. Houve um momento em que apareceu, na civilização ocidental, um tipo de veículo impresso dirigido às mulheres. Provavelmente o surgimento de jornais ou revistas femininos estava relacionado com a ampliação dos papéis femininos tradicionais, circunscritos até então ao lar ou ao convento. E também com a evolução do capitalismo, que implicava em novas necessidades a serem satisfeitas. De qualquer modo, entre a literatura e as chamadas artes domésticas, o jornalismo feminino já nasceu complementar, revestido de um caráter secundário, tendo como função o entretenimento e, no máximo, um utilitarismo prático ou didático (BUITONI, 1981, p.9). Na década de 50, esse modelo de fazer jornalismo se ascendeu e se consolidou, produzindo páginas e páginas de sucesso. Revistas como Jornal das Moças (1913), Querida (1990), Vida Doméstica (1920) e O Cruzeiro (1928) tinham grande influência na vida das mulheres, principalmente as de classe média. Elas também colaboravam para a promoção do ideal de família - “branca, classe média, nuclear, hierárquica, com papéis definidos” –, além de como se comportar ou opinar sobre “sexualidade, casamento, juventude, trabalho feminino e felicidade conjugal”, sempre baseados na moral e nos bons costumes reproduzidos na época (BASSANEZI, 1997, p. 609). A imprensa feminina ia além dessas representações estereotipadas. Não bastava apenas falar como a mulher deveria ser, mas a forma como esses veículos se dirigiam única e exclusivamente para elas, tinha forte ligação nos moldes descritos em suas páginas. A mídia voltada para mulheres informa pouco, ao mesmo tempo que forma muito e tem forte colaboração na “mitificação e mistificação do ser feminino, ajudando a manter padrões” (IDEM, 1981, p.144). A autora ainda problematiza outra questão da imprensa voltada para o público feminino: a forma como essas publicações são pensadas, estruturadas e vendidas. O jornalismo feminino ainda não encontrará formas mais “jornalísticas” de tratar a realidade. Ao falarmos em formas mais “jornalísticas” queremos nos referir a maneiras de investigação que se não são exclusivas, pelo menos ajudam a caracterizar melhor o fenômeno: reportagem, entrevista etc. A imprensa feminina se limitara aos assuntos tradicionais: moda, beleza, crianças etc. No mais, os textos eram literários ou pseudoliterários, no sentido de belas-letras (contos, crônicas, poesias, provérbios, frases sobre amor, pensamentos) ou no máximo “artigos”, isto é, editoriais a respeito de algum problema atual ou não. Mesmo tais artigos eram escritos numa linguagem formal, pretensamente literária. Reportagens e entrevistas quase não aparecem. Por isso, a relação da imprensa feminina com o fato da atualidade era – e ainda é – pouco frequente (BUITONI, 1981, p. 71). A representação da mulher enquanto esposa, dona de casa e mãe perfeita também refletiam nas propagandas e comerciais voltados para ela, reforçado ainda mais esse estereótipo. Porém, quando as mesmas propagandas e comerciais são voltados para o público masculino, mudam totalmente o foco – mas ainda colocam a mulher de protagonista. Cruz (2008, p. 4) analisa que existe uma “construção e a disseminação de uma imagem de mulher sexualmente desejável” e que ambas identificam aquilo o que os “homens devem aspirar e possuir” e até mesmo o que as mulheres “devem ser ou se tornar para poder obter uma valorização”. E o grande questionamento da autora em relação a isso é o quanto se tornou algo comum para todos aqueles que consomem esse tipo de produto, principalmente os homens. As representações nos comerciais refletem padrões estabelecidos socialmente, sendo convencional a construção de estereótipos dos modelos masculinos e femininos. Estes estereótipos (representações de cunho preconceituoso) passam dissimuladamente pelos receptores, os quais não veem necessidade de questioná-las, uma vez que elas se apoiam no senso comum. Além disso, são assimilados e aceitos pela pessoa como sua própria representação, e assim se torna real para ela, embora seja de fato imaginária. Existe uma naturalização de fenômenos, ou seja, tomá-los como algo que “já existe e sempre existiu”, alegando que não podem ser refletidas nem modificadas. Este processo que Thompson (1995) denomina de reificação: uma estratégia para a permanência de determinadas normas, valores e posturas como elementos contemporâneos, justamente por serem consideradas pertencentes a uma tradição “eterna” e, por esta razão, aceita e justificável, onde uma situação transitória é representada como permanente ocultando seu caráter sócio-histórico. As propagandas se apropriam de imagens e mitos contemporâneos ou ainda mitos eternizados para construir um tipo de mulher, um estereótipo. O que o estereótipo faz é criar a imagem de mulher, aceita e partilhada socialmente por um gr