UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS JOÃO VITOR CORRÊA PENTEADO A (IN) COMPATIBILIDADE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA COM O DIREITO PENAL BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DE SUA APLICAÇÃO NO CONTEXTO DO CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS FRANCA 2021 JOÃO VITOR CORRÊA PENTEADO A (IN) COMPATIBILIDADE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA COM O DIREITO PENAL BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DE SUA APLICAÇÃO NO CONTEXTO DO CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Fernando Andrade Fernandes. FRANCA 2021 JOÃO VITOR CORRÊA PENTEADO A (IN) COMPATIBILIDADE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA COM O DIREITO PENAL BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DE SUA APLICAÇÃO NO CONTEXTO DO CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Bacharel em Direito. BANCA EXAMINADORA Presidente: __________________________________________________________ Prof. Dr. Fernando Andrade Fernandes Universidade Estatual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, campus de Franca/SP. 1º Examinador: ______________________________________________________ 2º Examinador: ______________________________________________________ Franca, ____ de ___________________ de 2021 Dedico este trabalho aos meus pais, Joceli e Silmar, por serem meus suportes para todas as dificuldades e, sobretudo, por todo amor e ensinamentos que seguramente me passaram. AGRADECIMENTOS Inicialmente, gostaria de agradecer a toda minha família, especialmente a minha mãe e meu pai, Joceli e Silmar, por todo apoio e suporte irrestritos e incondicionais, sem os quais esse trabalho, bem como todo o caminho trilhado até o momento presente, seguramente não teria sido possível. A Deus, que me permitiu que todos meus objetivos fossem alcançados, tanto no que diz respeito a ter me permitido ultrapassar aqueles obstáculos diretamente ligados aos estudos, como ao garantir saúde a mim e aos meus, isso mais e mais em um momento dramático como o da pandemia da Covid-19. A todos meus amigos, especialmente àqueles com quem convivi durante a vida acadêmica que, certamente, representam amizades que se prolongarão por toda a vida. A todos os membros, servidores e estagiários com quem convivi e muito aprendi durantes meus estágios no Ministério Público do Estado de São Paulo e no Ministério Público Federal, instituições com quais não poderia ter me identificado mais. À Universidade Estadual Paulista, bem como a todos seus servidores e funcionários, que há décadas garantem a formação de profissionais qualificados e humanistas. Ao PIBIC, em razão da bolsa fornecida para a realização desta pesquisa e por todo apoio e suporte habituais aos pesquisadores. A todos os meus professores, especialmente ao meu orientador, pelo incentivo e apoio ao longo de um ano de pesquisa. A finalidade da lei não é abolir ou conter, mas preservar e ampliar a liberdade. Em todas as situações de seres criados aptos à lei, onde não há lei, não há liberdade. John Locke CORRÊA PENTEADO, João Vitor. A (in) compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito penal brasileiro: uma análise de sua aplicação no contexto do crime de lavagem de capitais. 2021. TCC - Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2021. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo analisar e compreender os aspectos dogmático-jurídicos da teoria da cegueira deliberada, debruçando-se, inicialmente, sobre os julgados em que se viu aplicada a teoria, principalmente, no cenário da tradição jurídica do common law, sob a forma de willful blindness, sem prejuízo de conhecer de sua aplicação pelos tribunais espanhóis, de tal sorte a compreender sua evolução histórica e delimitar em que termos a teoria foi e é aplicada. Para a análise da teoria em sede de direito brasileiro, que se sabe notadamente aplicada no contexto dos crimes de lavagem de capitais, o trabalho se volta a analisar esse tipo penal, sobretudo no que pertine ao seu elemento subjetivo e à luz da reforma empreendida pela Lei nº12.683/12. Doravante, passa-se a analisar os julgados em que se viu aplicada a cegueira deliberada no Direito Penal brasileiro, dos quais se destacam o célebre caso do “Furto ao Banco Central”, que é marca primeira ou a estreia da teoria no Brasil; a Ação Penal 470, o “Mensalão”; e, mais recentemente, a “Operação Lava Jato”. Da análise da compatibilidade da teoria com os limites do ordenamento jurídico pátrio, para além de quaisquer considerações acerca da desnecessidade de sua importação, concluiu-se que a aplicação da cegueira deliberada no Brasil tem como grandes obstáculos as previsões legais dos conceitos de dolo e o instituto do erro de tipo, ambos expressos no Código Penal, não havendo se falar em uma correta aplicação da teoria sem que, ao menos, haja alterações legislativas. Palavras-chave: Cegueira deliberada; Lavagem de capitais; Dolo eventual; Compatibilidade. CORRÊA PENTEADO, João Vitor. A (in) compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito penal brasileiro: uma análise de sua aplicação no contexto do crime de lavagem de capitais. 2021. TCC - Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2021. ABSTRACT The present work aims to analyze and understand the dogmatic-legal aspects of the theory of willful blindness, focusing initially on the judgments in which the theory was applied, mainly in the scenario of the common law legal tradition, under the form of willful blindness, without prejudice to know the application by the Spanish courts, in such a way as to understand its historical evolution and delimit in what terms the theory was and is applied. For the analysis of the theory in Brazilian law, which is notably applied in the context of money laundering crimes, the work turns to an analysis of this criminal type, especially with regard to its subjective element and in light of the reform undertaken by Law No. 12.683/12. Furthermore, we will analyze the judgments in which willful blindness has been applied in Brazilian criminal law, of which highlight the famous case of "Central Bank heist", which is the first mark of the theory's debut in Brazil; Criminal Suit 470, the "Mensalão"; and, more recently, "Operation Car Wash". From the analysis of the theory's compatibility with the limits of the homeland legal system, beyond any considerations about the unnecessary nature of its importation, it was concluded that the application of willful blindness in Brazil has as major obstacles the legal provisions of the concepts of malice and the institute of type error, both expressed in the Penal Code, not being able to speak of a correct application of the theory without, at least, legislative changes. Keywords: Willful Blindness; Money Laundering; Eventual felony; Compatibility. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AP Ação Penal Art. Artigo CPP Código de Processo Penal CRFB/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 HC Habeas Corpus Min. Ministro RE Recurso Extraordinário REsp Recurso Especial STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TJ Tribunal de Justiça TRF Tribunal Regional Federal SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 13 CAPÍTULO I – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA: A WILLFUL BLINDNESS E A IGNORANCIA DELIBERADA ........................ 16 1.1 Origem histórica da ‘willful blindness’ ........................................................................................... 16 1.1.1 Origem Inglesa da Willful Blindness: Regina V Sleep (1861) ................................................. 16 1.1.2 Origem e Desenvolvimento nos Estados Unidos da América .................................................. 18 1.1.2.1 Panorama Geral: a família common law e as categorias de imputação subjetiva no direito norte-americano ............................................................................................................................. 18 1.1.2.2 Spurr v. United States (1899) ............................................................................................ 20 1.1.2.3 United States v. Jewell (1976) ........................................................................................... 22 1.1.2.4 Caso Global-Tech Appliances, inc. v. SEB S.A. ................................................................ 23 1.1.2.5 Considerações Parciais acerca da Willful Blindness .......................................................... 24 1.1.3 A Ignorancia Deliberada aplicada pelos tribunais espanhóis .................................................. 25 CAPÍTULO II – DO CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS: UMA ESPECIAL ANÁLISE DE SEU ELEMENTO SUBJETIVO ....................................................................................................... 29 2.1 A Lavagem de Dinheiro e a cegueira deliberada ............................................................................ 29 2.2 Noções gerais do delito de lavagem de capitais .............................................................................. 30 2.2.1 O conceito ................................................................................................................................ 30 2.2.2 Fases da lavagem ...................................................................................................................... 30 2.2.3 As gerações de legislação ......................................................................................................... 31 2.2.4 A Lavagem de Dinheiro segundo a Lei nº 9.613/98, alterada pela lei nº 12.683/12 ................ 32 2.2.5 O tipo objetivo .......................................................................................................................... 33 2.3 O tipo subjetivo: a análise da admissão do dolo eventual ............................................................... 34 2.4 A comprovação do dolo e a prova indiciária ................................................................................... 39 CAPÍTULO III – A APLICAÇÃO DA CEGUEIRA DELIBERADA NA PERSECUÇÃO PENAL DA LAVAGEM DE DINHEIRO NO BRASIL .................................................................. 43 3.1 A teoria aplicada à lavagem pela jurisprudência nacional .............................................................. 43 3.2 Furto ao Banco Central do Brasil ................................................................................................ 44 3.3 Ação Penal n.º 470/MG: O “Mensalão” ...................................................................................... 47 3.4 A Operação Lava Jato ................................................................................................................. 52 CAPÍTULO IV – A (IN) COMPATIBILIDADE DA WILLFUL BLINDNESS EM RELAÇÃO AO DIREITO PENAL BRASILEIRO: A TEORIA FRENTE AO DOLO EVENTUAL E AO ERRO DE TIPO .................................................................................................................................. 59 4.1 Breve recapitulação: willful blindness, a cegueira deliberada e a dificuldade de correspondência entre os seus conceitos .......................................................................................................................... 59 4.1.1 A necessidade de uma análise de compatibilidade ................................................................... 60 4.1.2 Uma cegueira deliberada tal como uma categoria autônoma de imputação............................. 61 4.1.3 A cegueira deliberada como equivalente do dolo eventual: a desnecessidade da importação . 62 4.2 Uma proposta de lege ferenda: a criação do tipo penal da lavagem de dinheiro a título de culpa .. 71 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................. 79 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 83 13 INTRODUÇÃO Presença cada vez mais certa no cenário jurídico penal hodierno, a “teoria da cegueira deliberada”, “willful blindness” ou “ignorancia deliberada” tem o condão de responsabilizar penalmente o indivíduo que deliberadamente se mantém em estado de ignorância em relação à natureza ilícita de seus atos, quando lhe seria comprovadamente possível constatar a ilicitude do objeto de suas atividades. Noutros termos, a doutrina, uma construção jurisprudencial anglo- saxã, preconiza a equiparação, no que atine à responsabilização subjetiva, entre os casos de conhecimento efetivo dos elementos objetivos que configuram uma conduta delitiva e aqueles de desconhecimento intencionado ou buscado, no qual o indivíduo deliberadamente se mantém em estado de ignorância (RAGUÉS I VALLÈS, 2008, p. 15). Concebida na tradição common law, pela jurisprudência britânica, ao final do século XIX, a teoria ganhou maior notoriedade e desenvolveu-se pela aplicação reiterada dos tribunais norte-americanos, a partir do século seguinte. Mesmo acossada de controvérsias, haja vista a inexistência de qualquer previsão legal, a teoria recebeu respaldo em 2011, quando se reputa que a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, pela primeira vez, decidiu amparando- se nela – instituindo, inclusive, balizas para sua utilização na criminalização da conduta do agente que teria um estado mental para além da “mera culpa”. Isso posto, uma vez adotado o método analítico-dedutivo, em um primeiro momento, revela-se indispensável, para a discussão da questão central da compatibilidade da teoria como Direito Penal brasileiro, que se conheça sua origem e evolução histórica, sendo essa uma das premissas que será necessário investigar, o que se construiu no presente trabalho com a exposição da síntese daqueles julgados apontados como mais paradigmáticos em sede de tradição jurídica common law. Especial relevo para a discussão da teoria em sede de direito pátrio, ademais, dá-se no contexto dos crimes de lavagem de capitais, em que – além da frequente aplicação da cegueira deliberada –, tem-se, a partir reforma empreendida pela Lei n. º 12.683/12, tanto a inclusão da responsabilização a título de dolo eventual em tipos penais que outrora não prescindiam do dolo direto, como a eliminação da relação taxativa de crimes antecedentes que podem ensejar o referido crime. Com efeito, em um cenário de expansão do Direito Penal, esses fatores são indicativos de um intenso movimento no sentido de buscar-se alternativas para o enfretamento da corrupção em todos os níveis da administração pública, sendo essa certamente uma constante em diversos ordenamentos jurídicos na contemporaneidade. Decorrência disso, é que o presente trabalho também se dedicou a um aprofundamento teórico no que atine ao delito em comento, 14 especialmente no que toca ao seu elemento subjetivo e a sua eventual admissão da punição a título de dolo eventual. Na sequência, passou-se a tratar da jurisprudência nacional, visitando-se três grandes momentos ou fases de aplicação da teoria, para tanto, uma vez mais, recorreu-se a julgados mais emblemáticos. A saber, como marco da primeira aparição da cegueira deliberada no cenário jurídico penal pátrio tem-se o célebre caso do “Furto ao Banco Central do Brasil”, quando sócios de uma revendedora de veículos foram condenados, em primeira instância, com base na teoria, por lavagem de dinheiro – dado que, no momento da venda de onze veículos, não teriam arguido a origem dos valores vultosos, em notas de cinquenta reais. A condenação, em termos técnico-jurídicos, todavia, não muito fornece ao presente estudo, dado que vigia à época a antiga redação do artigo 1°, §2°, I da Lei 9.613/98, o qual demandava expressa ciência do agente quantos à origem ilícita dos valores, não se admitindo o dolo eventual na modalidade – daí a incontroversa absolvição, por parte do Tribunal Regional Federal da 5º Região, a posteriori. É, contudo, em segundo momento, no seio da “Ação Penal 470”, conhecida como “Mensalão”, que a teoria recebe projeção nacional, tendo sido empregada pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que incidentalmente e com advertes, quando o ministro Celso de Mello votou pela condenação de ex-deputados, por lavagem de dinheiro, na forma preconizada pela teoria objeto de análise: “admito a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores, mediante o dolo eventual, exatamente com apoio no critério denominado por alguns como ‘teoria da cegueira deliberada’, que deve ser usado com muita cautela”. Nesse passo, igualmente relevante o voto da Ministra Rosa Weber, em que se valeu da cegueira deliberada para sustentar a presença do dolo eventual em crimes de lavagem de dinheiro, além de conter uma espécie de defesa expressa da compatibilidade da teoria com o Ordenamento Jurídico pátrio, amparando-se, para tanto, em julgados espanhóis. Mais do que isso, destaca-se a preocupação da Ministra, com o que parece partilhar a jurisprudência nacional como um todo, com a possível impunidade do profissional da lavagem, o que aconteceria mais e mais uma vez não admitido o dolo eventual na forma projetada pela teoria. Ainda em se tratando de Brasil, apontou-se um terceiro momento da teoria. Trata-se do contexto da “Operação Lava Jato”, a partir de quando se viu a teoria sendo amplamente aplicada, trazendo ao mundo acadêmico-doutrinário a discussão acerca de sua possibilidade de aplicação no direito pátrio enquanto incremento da persecução penal ante a modalidades criminosas complexas e de expressivas danosidade social. É certo que a discussão se torna mais e mais relevante por tratar-se de evidente categoria de ampliação do alcance punitivo estatal, com origem e desenvolvimento na tradição jurídica da common law, muito embora o Supremo 15 Tribunal Espanhol, corte de tradição civil law, já a tenha assimilado, tornando-se fonte certa de inspiração para jurisprudência nacional. Isto posto, encontra-se finalmente o derradeiro ponto central da problemática, quando se delibera, após analisadas todas as premissas formuladas, uma vez já percebidos o conceito analítico de crime, a respeito dos contornos do dolo eventual no cenário dogmático-penal pátrio, bem como conhecidas as disposições do instituto do erro de tipo, se as premissas e conceitos técnico-jurídicos da teoria são compatíveis com o Direito Penal brasileiro e, especialmente, se pertinentes com os postulados garantistas do Estado de Direito. É dizer, nesse giro, analisar-se- á se a teoria alienígena é necessária, se possível criar-se uma terceira categoria de imputação e como ela se comporta quando confrontada com os limites impostos pelos institutos do dolo eventual e do erro de tipo adotados. Pari passu, também será ofertada uma contribuição de lege ferenda, qual seja a criação do delito de lavagem de dinheiro a título de culpa, em vista da constatação do atual estado da arte da aplicação da teoria pela jurisprudência pátria, é dizer, uma teoria há muito consolidada e assimilada pelos tribunais brasileiros, nada indicando uma revisão de posicionamento. 16 CAPÍTULO I – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA: A WILLFUL BLINDNESS E A IGNORANCIA DELIBERADA 1.1 Origem histórica da ‘willful blindness’ Uma vez conhecidos os contornos comuns entre as formas da teoria objeto de análise – é dizer, um meio de se atribuir responsabilidade penal ao agente que intencionalmente se cega diante dos fatos que poderia conhecer (BECK, 2011, p. 47) – e partindo-se da premissa posta de que a cegueira deliberada é resultado da chamada willful blindness, uma doutrina estrangeira, advinda, sobretudo, de uma tradição jurídica tão distinta, priori loco, antes de se ponderar sobre todos os contornos e estado da arte da teoria, impende conhecer-se sua origem e evolução, utilizando-se incidentalmente do direito comparado. Oportuno, portanto, descrever, sinteticamente, o percurso da teoria, visitando e compreendendo os principais casos em sede de ordenamentos jurídicos daqueles países em que se vislumbrou primeiramente a sua aplicação, isto é, aqueles países de tradição common law: Reino Unido, onde se aponta sua origem primeira e se deu seu efetivo surgimento, e Estados Unidos da América, onde se assinala seu real desenvolvimento e forte consolidação. De igual sorte, e mais recentemente, com a teoria no âmbito da civil law, pelo que será também necessário visitar-se as decisões do Tribunal Supremo Espanhol, sem prejuízo de se visitar apontamentos de Ragués i Vallès, certamente o autor com maior destaque no temário no que toca aos países de tradição continental europeia. De mais a mais, é conditio sine qua non para verificar-se a compatibilidade da doutrina no direito brasileiro, à luz da teoria do delito e da teoria do assentimento, ter-se delimitada a fundamentação material que enseja a existência da cegueira deliberada. Nesse diapasão, desde já, será possível igualmente apreender as propostas de definições daquilo que se convencionou chamar de cegueira deliberada no Brasil, o que será melhor delineado nos dois últimos capítulos. 1.1.1 Origem Inglesa da Willful Blindness: Regina V Sleep (1861) Ainda que tenha se feito conhecida pela aplicação reiterada no direito norte-americano e sejam conhecidas suas raízes no direito anglo-americano, a willful blindness tem suas origens na jurisprudência britânica. A bibliografia aponta que teria sido o julgamento do caso Regina v. Sleep, em 1861, a primeira oportunidade em que se viu a aplicação ou discussão das 17 preposições da teoria e, doravante, as cortes inglesas teriam passado reiteradamente a lançar mão de seu aproveitamento (ROBBINS, 1990, p. 191). Na ocasião, William Sleep, uma espécie de comerciante do ramo de metais, foi acusado e condenado por desvio de bens públicos, equiparando-se, pela primeira vez, o conhecimento e a willful blindness, dado que portava parafusos de uso naval marcados como propriedade do Estado Inglês1. Ao apreenderem os compartimentos que Sleep intentava transportar em uma embarcação, oficiais ingleses encontraram alguns dos parafusos com a referida identificação, tendo o acusado alegado que não sabia que as peças estavam marcadas e de quem as comprou. No julgamento de Sleep, o júri entendeu que o acusado – que admitia ter, ao menos, embalado as peças – tivera meios suficientes e razoáveis para reconhecer as marcas oficiais presentes nos ditos parafusos de cobre, ainda que se tenha reconhecido a insuficiência probatória para comprovar que o acusado tivesse conhecimento pleno das marcas na oportunidade (FERRAZ, 2018, p. 33). Avulta dizer, contudo, que relevantes são os termos da condenação, uma vez que viriam a ser a razão da reforma da decisão condenatória pela Corte para Julgamento de Casos Relativos à Coroa do Reino Unido. Em sede de apelação, a Corte reconheceu que a “Lei de Desvio de Provisões Públicas” exigia algum elemento do “mens rea”2, isto é, seria imprescindível que o acusado, com um “estado mental culpável”, soubesse que os objetos estavam marcados com a sete larga ou tivesse se abstido intencionalmente de conhecer, não podendo se falar em conhecimento presumido, como nos termos da acusação e consequente condenação. Com efeito, a reforma da decisão pela Corte deu-se em decorrência do próprio reconhecimento pelo Júri de que Sleep não sabia que os parafusos estavam marcados, o que, per si, necessariamente afastaria o mens rea. A despeito disso, o julgamento, de forma incidental, trouxe as bases para tantos outros julgamentos vindouros com a chamada situação de willful blindness ou ignorância deliberada, enunciando que, uma vez provado que o acusado tenha se privado de obter algum conhecimento acerca da origem de bens, por exemplo, a sanção penal aplicável haveria que se dar de igual forma àquela de casos de conhecimento efetivo. Põe-se de forma incidental, por oportuno, pois os juízes entenderam que a lógica daquela decisão absolutória não seria aplicável aos casos nos quais, comprovadamente, constatasse-se 1 Trata-se do símbolo de uma flecha, próprio das “Forças Armadas de Sua Majestade” e, por óbvio, indicadores da titularidade estatal. 2 Vale ressaltar a dificuldade de definir o conceito mesmo para os operadores do direito inseridos na tradição Common Law, e que pode ser traduzido como “mente criminosa”, representa o elemento subjetivo da configuração de um crime no direito inglês. 18 sujeitos fechados à realidade dos fatos, de forma voluntária e intencional, inaugurando-se, portanto, a configuração de mens rea, ainda que o autor não tenha conhecimento pleno dos fatos (LUCCHESI, 2017, p. 121). E, dessa forma e nesses mesmos termos, o Direito Penal inglês percebeu tantos outros casos que passaram a utilizar a willful blindness como forma alternativa ao elemento subjetivo do conhecimento (KLEIN, 2020). 1.1.2 Origem e Desenvolvimento nos Estados Unidos da América 1.1.2.1 Panorama Geral: a família common law e as categorias de imputação subjetiva no direito norte-americano Como será exposto, a willful blindness tem como marco de inauguração, em sede de sistema de justiça norte-americano, o século XIX, tendo adquirido grande relevância no debate jurídico-penal ao longo do século seguinte. Tal qual no Brasil, como se notará mais adiante, a doutrina foi acolhida repentinamente, sem uma profunda análise no que diz respeito à compatibilidade, ainda que se afirme a coincidência dos sistemas jurídicos inglês e norte- americano (RAGUES I VALLÈS, 2007, p. 68). Neste giro, para a compreensão dos julgados norte-americanos, e o mesmo se aplica ao visitado julgado inglês, é necessário discorrer-se acerca da família do common law, notadamente no que toca a suas diferenças em relação à tradição civil law. Com efeito, é característica do common law o maior protagonismo dos juízes na construção do direito, uma vez que as decisões judiciais têm maior importância que a própria lei. É dizer, a aplicação do direito é mais dinâmica, com regras que vão sendo criadas a partir do surgimento de dilemas postos na casuística das relações sociais, valendo-se, inclusive, dos costumes como fonte (NUNES, 2010, p. 121). Doutro lado, o civil law, com origem no Direito Romano, decorre da interpretação da lei, havendo se falar em grande valor da norma jurídica propriamente, a qual tem o condão de fornecer um mandamento geral e abstrato apto a solucionar os mais distintos casos concretos. Trata-se, assim, de um direito codificado ou positivado pelo legislador, que intenta antever questões a serem suscitadas perante mundo jurídico (SABINO, 2010, p. 53). O relevante disso, pois, ocorre ao constatar-se a maior facilidade para desenvolver-se uma teoria como a willful blindness no sistema jurídico de tradição common law, em que os julgadores assumem a função de uma espécie de legislador, sendo possível, a partir de 19 precedentes, adotar um novo entendimento, o qual, a seu turno, poderá se consolidar e formar novos precedentes, não havendo o mesmo compromisso com uma rigorosa observância do princípio da legalidade estrita presente na tradição civil law. Igualmente, é indispensável conhecer-se, suscintamente, as próprias categorias de imputação subjetiva presentes no sistema jurídico-penal dos Estados Unidos da América cujo Direito Penal não se opera por meio das clássicas categorias do dolo e da culpa, vez que essas são próprias da tradição civil law. Independentemente do que se pense acerca da doutrina ou do que se pense fazer com ela, fato é que ela se insere na análise do elemento subjetivo do tipo – do que, naturalmente, decorre a necessidade de compreender-se o regramento norte-americano no que tange à imputação subjetiva de um ato a um sujeito. É imperioso ressaltar a existência do sistema federalista norte-americano que, ao permitir aos estados a elaboração de grande parte da legislação de matéria penal, acaba por possibilitar a existência de uma série de sistemas jurídicos norte-americanos ora conflitantes e disformes, daí a possibilidade de guiar-se pelo Código Penal Modelo (MPC), proposto pelo American Law Institute e elaborado no contexto da reforma da legislação penal no país, o qual teria mencionado e acolhido a willful blindness doctrine, conquanto não faça menção expressa a ela. Em verdade, diga-se que o MPC não se trata de uma lei ou ordenamento normativo propriamente, mas tão-só de uma legislação modelo, fonte de orientação e interpretação3, norteando-se, portanto, pelas categorias enunciadas no Código Penal Modelo, tendo em vista não existir um sistema jurídico norte-americano uno. Tem-se a culpability expressa por meio de quatro elementos subjetivos, ou melhor, por quatro níveis hierarquizados para se aferir a imputação subjetiva: as categorias purpose, knowledge, recklessness e negligence. Com efeito, quanto maior o conhecimento de dado elemento do delito, mais próximo estar-se-á do elemento purpose (SANTOS, 2017, p. 33). Sinteticamente e para fins didáticos, a configuração de um crime que exija o elemento purpose depende da demonstração de conduta praticada, ou de seu respectivo resultado, com objetivo consciente do seu autor. O elemento knowledge, máxime importante para o presente trabalho, diz respeito à ciência do agente de que sua conduta causará um resultado quase certo. Recklessness, a seu turno, dar-se-ia quando o autor se desviasse de um padrão de conduta esperado, estando ciente de risco substancial a um dado bem jurídico protegido pela norma. Por fim, o elemento negligence, cuja ocorrência é excepcional, cuida do agente que não observaria 3 Daí a aludida inexistência de previsão legal da teoria, mesmo em sede de Estados Unidos da América. 20 um dever geral de cuidado e, ainda que o autor devesse ter ciência de risco, ele não o perceberia (LUCCHESI, 2017, p. 94/100). Reconhecida toda dificuldade, ou mesmo impossibilidade técnica, de se encontrar uma correspondência entre essas categorias e as categorias de dolo e culpa, presentes no contexto jurídico-penal brasileiro – o que já é grande indicativo da complexidade de se importar e assimilar uma teoria de tradição tão distinta –, deve o presente estudo voltar-se ao elemento knowledge, tendo em vista que a willful blindness se mostrou aplicada como seu substituto ou equivalente no direito norte-americano. Como dito alhures, o MPC4, conquanto não enuncie expressamente a doutrina, alude expressamente a ela quando diz ser suficiente para se admitir o elemento knowledge uma consciência da alta probabilidade do acontecimento de dado elemento do crime, a não ser que o agente, efetivamente, não acredite que o fato exista (SANTOS, 2017, p. 36). Com efeito, a decorrência prática disso é que os delitos que exijam do autor o conhecimento da presença de alguma elementar do crime ou conhecimento do resultado praticamente certo de sua conduta – isto é, crimes que vão além do elemento subjetivo padrão do recklessness5 e exijam o elemento knowledge – poderão ensejar condenação do autor que não tenha esse conhecimento, mas aja com ou em ‘cegueira deliberada’ (LUCCHESI, 2018, p. 100). 1.1.2.2 Spurr v. United States (1899) Pois bem. A primeira aplicação relevante da teoria teria ocorrido mais tarde, em 1899, em um julgamento promovido pela Suprema Corte, no caso Spurr v. United States. Após a condenação pela Justiça Federal do Distrito Médio do Tennesse, a qual foi confirmada pelo Tribunal Federal de Recursos do Sexto Circuito6, Spurr, então presidente do Commercial National Bank of Nashville, recorreu à Suprema Corte. A condenação cuidava do crime de ter certificado cheques sem provisão suficiente7, sendo que esses teriam sido emitidos pelos clientes e correntistas Dobbins e Dazey. Restou 4 Consoante redação da Section 2.02, 7, do MPC. 5 Elemento padrão, pois no Direito Penal norte-americano, quando o crime não disser expressamente o elemento subjetivo exigido, será necessário, ao menos, o elemento recklessness. 6 Deve compreender os “Circuits” como cortes americanas correspondentes aos Tribunais Regionais Federais no Brasil. Pode-se dizer que se trata da segunda instância da Justiça Federal, a quem se recorre após uma primeira decisão. 7 Em verdade, é necessário se compreender trata-se de uma espécie de cheque garantido, nos quais os bancos certificam a provisão necessária de fundos. 21 apurado que a insuficiência de saldo nas contas dos clientes era conhecida pelos caixas do banco, porém desconhecida por Spurr e pelos diretores da instituição, vez que aqueles não teriam incluído a informação em seus relatórios protocolares. Dessa forma, Spurr teria aposto sua assinatura, garantindo a solvência dos clientes, como determinava a Lei Federal regulamentadora do sistema bancário do país. O entendimento da Suprema Corte – apesar da dificuldade em se determinar a extensão daquela decisão até os dias atuais (LUCCHESI, 2017, p. 130), tendo em vista a forma como conduziu o processo o magistrado federal, o qual enunciou aos jurados que poderiam condenar o réu uma vez que se convencessem de que Spurr teria uma atuação planejada e deliberada, sem questionar os fatos ao seu alcance8 – foi no sentido de que a certificação seria não só ilícita, como também poderia ser imputada ao autor a pretensão de violar os preceitos da lei que regula a emissão de cheques (GEHR, 2012, p. 3). O tribunal entendeu que a ignorância deliberada em relação à existência de provisão na conta de clientes, ou uma demonstrável indiferença quanto ao fato, poderia levar à presunção da intenção de violação dos preceitos da emissão de cheque. De toda forma, ainda que haja controvérsia a respeito do posicionamento da corte nesse julgamento, inegável que os julgadores aprovaram a instrução de que a ignorância intencional seria suficiente para o conhecimento da ilicitude. Além de ser considerado um caso paradigmático no estudo da willful blindness, Spurr é relevante na medida em que inaugura um período de maior aplicação da teoria pelos tribunais. Nesse sentido, descrevendo a assimilação da teoria ao longo do tempo, bem assinala Ferraz (2018, p. 71): Após a consagração da teoria da willful blindness em Spurr, a matéria passou a ser aplicada com alguma frequência pelos tribunais estadunidenses, especialmente em casos de crimes de falência. Apesar de ter sido consolidada sua aplicação no direito dos EUA, a quantidade de casos em que aparecia a matéria não era abundante até os anos 1960 ou, mais precisamente, até 1970, quando passou a incidir com muito maior frequência em função da nova política criminal a partir de então adotada no sentido da criminalização do tráfico e do consumo de drogas (e a “guerra às drogas” que lhe caracteriza). Também, a partir da década de 1970, com a expansão do direito penal econômico, a willful blindness progressivamente passou a ter um papel mais frequente e relevante na imputação penal nesse setor, ampliando significativamente a aplicação da doutrina no direito penal contemporâneo. 8 Impende destacar que a Corte reformou a decisão, tendo compreendido inadequada a resposta do magistrado de primeiro grau ao pedido de esclarecimento do júri em relação à norma incriminadora. 22 1.1.2.3 United States v. Jewell (1976) Se Spurr v. United States destaca-se, historicamente, como o primeiro caso em que um tribunal norte-americano aplicou o que se entende por willful blindness, o leading case United States v. Jewell, em 1976, é tido certamente como o mais paradigmático, na medida em que o Tribunal Federal de Recursos do Nono Circuito – com sua composição integral e após uma extensa jurisprudência sobre o caso – decidiu que seria suficiente para a configuração do crime de tráfico de drogas uma conduta com a finalidade de praticar a proibição do dispositivo legal. Nesta quadratura, especialmente relevante o contexto histórico da decisão, como já antecipado. A despeito da já corriqueira aplicação e assimilação da willful blindness no Direito norte-americano, exsurge um novo impulso para sua utilização com uma nova política criminal de repressão ao tráfico e uso de drogas. Nesse contexto, do qual decorre naturalmente uma reação do crime organizado no sentido da sofisticação da organização e execução do tráfico de drogas, a jurisprudência norte-americana passa a ver na doutrina objeto de análise um instrumental apto a tornar a ignorância alegada em conhecimento para fins de imputação subjetiva penal (FERRAZ, 2018, p. 108). Trata-se da condenação de Jewell, por tráfico internacional de drogas, o qual foi preso na fronteira entre Estados Unidos e México conduzindo um veículo cujo compartimento secreto no porta malas continha grande quantidade de maconha. Jewell declarou que teria sido abordado por um desconhecido no México, o qual teria lhe oferecido uma quantia em dinheiro para que levasse um carro até os Estados Unidos, tendo ele desconfiado da ilicitude do pedido e observado o compartimento no porta-malas, porém, uma vez que teria revistado o veículo e nada encontrado, decidira prosseguir com a tarefa. No julgamento pelo júri, Jewell foi condenado após a instrução do juiz no sentido de que seria cabível a condenação se sua ignorância sobre o fato tivesse sido somente um resultado de sua intenção de desprezar a natureza daquilo que estava presente no veículo a ser transportado, quando haveria um propósito consciente de evitar a verdade (LUCCHESI, 2017, p. 136). De mais a mais, em sede de recurso, o Tribunal Federal de Recursos do Nono Circuito julgou improcedente a alegação do acusado, entendendo que foram adequadas as instruções e reafirmando ser possível verificar conhecimento nos casos em que o autor deliberadamente se abstém de saber a verdade. 23 Também é relevante pontuar que a decisão faz menção ao Código Penal Modelo, o qual enuncia, como já dito, o conhecimento como a consciência de uma elevada probabilidade de existência de um elemento, em evidente contemplação das situações típicas de willful blindness, nascida com autores ingleses e já efetivamente presente à época no direito norte-americano. Afirmou-se, na oportunidade, que, quando é necessário o elemento subjetivo knowledge, esse é considerado estabelecido se o autor está ciente da alta probabilidade de sua existência (SANTOS, 2017, p. 40). Na oportunidade, também houve expressiva orientação por parte da corte no que toca à instrução prestada ao júri: Foi estabelecido que se deve informar ao júri expressamente que o réu deve ser absolvido no caso em que se chegue à conclusão de que ele honestamente acreditava que o fato não existia, de maneira a deixar claro o referencial subjetivo. Foi também estabelecido um teste em três partes para determinar quando é apropriado fornecer as instruções de willful blindness: 1) apenas quando o réu alegar desconhecimento; 2) os fatos devem sugerir um curso consciente de ignorância deliberada; e 3) a instrução deve ser formulada de maneira que o júri entenda que ele está autorizado, e não obrigado, a realizar a inferência a que se refere o instituto. (FERRAZ, 2018, p. 147) Nesse desiderato, também cumpre mencionar, en passant, o caso United States v. Heredia, igualmente julgado pelo Tribunal Federal de Recursos do Nono Circuito, no qual se tem a Corte revisitando o célebre caso Jewell e, assim, fixando parâmetros e afastando dúvidas e confusões acerca da decisão formadora de precedente. Mais que isso, passado tanto tempo, com o julgamento ocorrido em 2007, houve a consolidação do entendimento acima exposto (SANTOS, 2017, p. 47). Na oportunidade, conhecida a vasta aceitação da decisão na jurisprudência, o tribunal manteve seu entendimento de que o conhecimento exigido na legislação federal americana abarcaria não só o real, como também o estado mental do sujeito que não obteve o conhecimento real porquanto conscientemente o evitou. Além disso, o tribunal reafirmou ser suficiente para a uma instrução adequada de cegueira deliberada a) a ciência do autor pela elevada possibilidade de existência da circunstância elementar do crime e b) uma ação deliberada do mesmo em conhecê-la, afastando-se outra vez o terceiro elemento referente a uma finalidade específica (LUCCHESI, 2017, p. 149). 1.1.2.4 Caso Global-Tech Appliances, inc. v. SEB S.A. 24 Por fim, neste giro, impende registrar a disputa de propriedade intelectual presente no caso Global-Tech Appliances, Inc. v. SEB S.A., tendo em vista que foi objeto de julgamento pela Suprema Corte e, certamente, se trata do mais relevante caso recente que envolveu a willful blindness. Desta feita na esfera cível, diferentemente de todas as outras decisões ora analisadas, o caso envolvia a disputa sobre o design de uma fritadeira desenvolvida e patenteada pela empresa recorrida SEB. A empresa recorrente, que teria copiado as características dos produtos e os revendido sob suas marcas, não logrou êxito em julgamento. Com efeito, a Suprema Corte entendeu ser possível a violação de propriedade intelectual, com fundamento na willful blindness, uma vez que constatada a indiferença deliberada ao risco de existência de uma patente já registrada. A relevância do julgamento está presente tanto no reconhecimento pela Suprema Corte da presença marcante da teoria no Direito Penal norte-americano, tendo citado o analisado caso Jewell, como na definição de parâmetros utilizados para se verificar a teoria – a despeito de distinções a respeito dos requisitos para aplicação entre as cortes de apelação –, quais sejam, uma vez mais, a) a crença subjetiva pelo agente da elevada probabilidade da existência do fato e b) a conduta deliberada com o fim de evitar o conhecimento desse mesmo fato (SANTOS, 2017, p. 48). 1.1.2.5 Considerações Parciais acerca da Willful Blindness Informados, de forma sucinta, como recomenda o objeto central de pesquisa, os casos mais relevantes e representativos da evolução e consolidação da teoria na jurisprudência americana, sem prejuízo da visitação às suas origens no direito britânico, pode-se afirmar que a willful blindness, conquanto encontre resistência e forte oposição, é uma categoria amplamente utilizada pelas cortes federais do país como condição suficiente e equivalente do elemento knowledge. Com efeito, em linhas gerais, consiste em categoria de imputação subjetiva autônoma empregada comumente quando o acusado alega ignorância sobre elemento de fato de um crime que exija o elemento knowledge e as provas indiquem a possibilidade de ter ocorrido a ignorância intencional (FERRAZ, 2018, p. 190). Nesse sentido, analisando-se as instruções dadas pelos tribunais federais de recursos, ainda que distintas e distantes de um padrão, é possível compreender pela possibilidade de condenação, por meio da willful blindness, quando houver, basicamente: a) ciência pelo autor de elevada probabilidade de existência de uma circunstância ou fato elementar do crime, b) o agente tiver tomado medidas deliberadamente voltadas a evitar o conhecimento acerca disso e 25 não houver uma crença, por parte dele, de inexistência do fato ou circunstância (LUCCHESI, 2017, p. 171). Há quem aponte, diga-se por oportuno, a necessidade de um terceiro elemento, qual seja a presença de um motivo especial para ter o agente agido de tal maneira, isto é, deve existir um desejo de se prevenir da responsabilização penal que o fato desencadearia. De todo modo, o conhecido 9th Circuit entendeu, a partir do mencionado caso United States v. Jewell, que seriam necessários apenas os dois primeiros requisitos, sendo dispensável o motivo especifico (SANTOS, 2017, p. 39). Além disso, pode-se assinalar, sob a perspectiva de análise do elemento subjetivo, que o conhecimento da alta probabilidade satisfaz a exigência do knowledge (RAGUÉS I VALLÈS, 2007, p. 72). Portanto, partindo-se da disposição do Model Penal Code, percebe-se que o autor que se encontre em willful blindness é igualmente culpável àquele que age em knowledge, postando-se ambos como estados mentais equivalentes. Por tudo, resta consignar, em um primeiro momento, que a willful blindness encontra- se inserida em uma tradição jurídica completamente distinta daquela que abriga o sistema jurídico-penal pátrio. De pronto, parece problemático pensar-se – ainda que desconsiderada toda celeuma envolvendo a assimilação de uma teoria pela via do intérprete do direito civil law, sem que haja qualquer alteração legislativa – em adequada importação de uma teoria entre tradições jurídicas em relação as quais sequer se pode traçar correspondências entre as categorias de imputação. 1.1.3 A Ignorancia Deliberada aplicada pelos tribunais espanhóis À luz de uma análise, evidentemente, voltada ao Direito Penal Brasileiro, tanto mais relevante que conhecer a origem da willful blindness é conhecer-se, minimamente, sua aplicação em um sistema jurídico da família civil law. Especialmente, em vista do fato de que justamente essa importação por parte dos tribunais espanhóis é utilizada como justificava – legítima, a propósito – para aplicação pela jurisprudência brasileira. Nesse sentido, a jurisprudência pioneira espanhola parece cumprir um papel de atestado de compatibilidade com a tradição do direito continental europeu, como se verá mais adiante. Insta consignar que não há que se falar em comparação possível e adequada entre as figuras de imputação desempenhadas pela willful blindness e pela ignorancia deliberada, quer dizer, entre os papéis ocupados pela teoria em análise no direito continental e no common law. Em relação ao último, como se viu, a teoria encontra-se fortemente atrelada a casos em que se 26 discuta as categorias de knowledge e recklessness, o que evidentemente não se repete em sede de civil law, tradição caracterizada pelas noções de dolo e culpa, sendo conhecida sua lógica binária de imputação (GONÇALVES, 2019, p. 26). Outro ponto passível de sublinho, atendo-se ao sistema jurídico espanhol, é que, conquanto se trate de uma tradição jurídica também romanística, a legislação espanhola não tem um conceito pronto e acabado de dolo, uma vez que não apresenta uma definição do elemento subjetivo tal como se tem no Brasil, na inteligência do artigo 18 do Código Penal. Decorrência disso é que a legislação espanhola acabar por ofertar uma maior abertura para o desenvolvimento da teoria no país. Se a lei não diz o que é dolo, e essa tarefa é relegada máxime à doutrina e ao intérprete do direito, não se encontra grande óbice, a princípio, para que se insira a cegueira deliberada como indicativo ou uma hipótese de dolo. Nesse sentido, é de se destacar as distinções, como aduz Ragués i Vallès (apud Hernandes, 2019, p. 143)9: A equiparação sem ressalvas entre a ignorância deliberada e o dolo eventual deve ser considerada impraticável no direito penal brasileiro, uma vez que o art. 18 do Código Penal define o dolo eventual como assunção de risco a partir da teoria da aceitação, que tradicionalmente sempre exigiu para o dolo um elemento cognitivo (representação das circunstâncias típicas no momento da realização do fato) que não concorre em situações de ignorância deliberada. Ao contrário do que acontece na Espanha, onde não há definição legal de dolo, a existência de tal definição no Brasil dificulta a equiparação entre dolo eventual e ignorância deliberada. A isso pode ser adicionado, também, o disposto no art. 20 CPB, que impede sustentar a existência de dolo em casos de erro de tipo. De todo modo, convém conhecer, a partir da jurisprudência, como as cortes espanholas aplicam a ignorancia deliberada, bem como que função essa ocupa naquele sistema de justiça. Com efeito, aponta-se, invariavelmente, como caso paradigmático da utilização da teoria pelo direito espanhol uma decisão do Tribunal Superior em 2000. Na oportunidade, analisava-se recurso de uma condenação pelo crime de receptação, dado que o sujeito teria transportado grande quantidade de dinheiro em espécie proveniente do tráfico de drogas. O raciocínio do tribunal, não acolhendo a tese defensiva, foi no sentido de que o autor que cobrava uma comissão de 4% (quatro por cento) para realizar o serviço, sabia que o dinheiro tinha origem no comércio de drogas. Compreendeu-se que os fatos eram óbvios, tendo em vista a grande quantidade de dinheiro e natureza clandestina das operações. Dessa forma, consignou- 9 Trata-se, inclusive, de parecer trazido a processo no contexto da operação Lava Jato, no contexto da ação penal n. 5013405- 59.2016.4.04.7000/PR. 27 se que o agente não queria saber o que poderia e devia ser reconhecido, isso com o fim de se beneficiar da situação com a comissão, assumindo e aceitando, dessa forma, todas as possibilidades de origem ilícita do negócio em comento (RAGUÉS Y VALLÈS, 2007, p. 24). Dessa forma, mais do que simplesmente mencionar ou discutir a teoria, observa-se a Corte definindo uma situação de ‘cegueira deliberada’. Ainda segundo Ragués y Vallés (2007, p. 25), seguramente principal autor da temática em países da civil law, pelo julgamento em comento, apreende-se três requisitos autorizadores da configuração da situação: i) possibilidade de o agente abandonar aquela situação de ignorância; ii) dever de se informar ou buscar conhecimento por parte do agente; iii) o agente se beneficiar com a situação de ignorância autoprovocada. Não se trata, ademais, de uma decisão isolada e eventualmente impulsionada com o surgimento de uma teoria moderna. Aponta-se a Espanha como o primeiro país de tradição jurídico romano-germânica em que a teoria realmente consolidou-se. Nesse sentido, pontua Gonçalves, ao tratar de outro julgamento (2019, p. 33): Já no Auto de 4-7-2002, o Tribunal afirmou que a teoria da cegueira deliberada já se encontrava consolidada na Corte em casos de tráfico de drogas em que o réu alega desconhecer o conteúdo do recipiente que carrega, concluindo Ragués i Vallès, com base nessa evolução jurisprudencial, que a cegueira deliberada acabou por adquirir vida própria, substituindo o elemento cognitivo do dolo e constituindo um novo título de imputação subjetiva, vinculado ao dolo apenas para efeitos punitivos. Resta pontuar que a igorancia deliberada também houve aplicada a título de imprudência, inclusive no que toca aos delitos de lavagem de capitais, posto que a legislação espanhola prevê a infração penal também a título de culpa. Quer dizer, aquele que age com uma cegueira intencional pode responder tanto a título de dolo eventual, como a título de culpa (RAGUÉS Y VALLÈS, 2007, p. 45). Nesse passo, se, por um lado, a utilização da teoria pelos tribunais espanhóis parece caminhar a legitimar a atuação dos tribunais brasileiros, uma vez que países inseridos em uma mesma tradição jurídica; de outro, a aplicação tal como desenhada no cenário espanhol indica que a cegueira deliberada pode cuidar de descrever situações em que o agente atua com culpa. Isso é significativo mais e mais, uma vez considerado que no Brasil não existe o crime de lavagem de capitais culposo, o que deveria, a priori, afastar a aplicação da cegueira deliberada e, evidentemente, a responsabilização penal do agente (LUCCHESI, 2017, p. 74). 28 Consequência disso, o que será objeto de análise mais adiante, é já reconhecer um alegado problema da cegueira deliberada no Brasil, qual seja sua aplicação dar azo a punição de condutas culposas como dolosas, o que significa, a rigor, responsabilizar penalmente aquele que comete um fato atípico. Soma-se a isso um cenário favorável para a cegueira delibera enquanto incremento de uma persecução penal mais eficiente, é dizer, a persecução penal do delito de lavagem de dinheiro, comumente atrelada a sujeitos com poder político e econômico, o que implica reconhecer uma alegada necessidade de mais rigorosamente punir esses, sob pena de contribuir com um cenário de impunidade. De todo modo, uma vez mais, pode-se concluir pela ausência de um equivalente normativo à willful blindness e a ignorancia deliberada no Direito Penal brasileiro. Da análise histórica do que se convencionou chamar de cegueira deliberada, tanto do instituto presente na tradição common law, como de sua forma na Espanha, parece difícil sustentar a existência de algum paradigma normativo do Código Penal Brasileiro que seja apto a estabelecer uma correspondência entre as teorias, quer dizer, a acomodação da teoria, sem prejuízo de toda uma discussão envolvendo compatibilidade, dificilmente prescinde de uma ampla reestruturação do sistema de imputação posto (BECK, 2011, p.64). 29 CAPÍTULO II – DO CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS: UMA ESPECIAL ANÁLISE DE SEU ELEMENTO SUBJETIVO 2.1 A Lavagem de Dinheiro e a cegueira deliberada Alguns fatores indicam a necessidade de um aprofundamento teórico no que toca ao delito de lavagem de ativos ilícitos. Primeiro, o tópico justifica-se na medida em que é na persecução penal dos delitos de lavagem de capitais que se observa a ampla maioria das decisões judicias em que se vislumbra aplicada aquilo tudo que se convencionou denominar cegueira deliberada no Brasil. Aquilo tudo, pontua-se, pois não se trata de um conjunto de regras postas e sistematizadas, mas de uma doutrina alienígena que vem sendo aplicada das mais distintas formas, nos mais variados crimes, inclusive. Segundo, o recorte justifica-se à luz das modificações trazidas pela Lei nº 12.683/12, um marco no que diz com o combate à lavagem de capitais, e um forte indicativo da percepção do legislador, e isso como uma decorrência da pressão da sociedade civil em torno de pauta anticorrupção, da necessidade de tornar mais eficiente a persecução do delito. Soma-se a isso um esforço internacional no sentido de se avançar no combate à lavagem de dinheiro, a exemplo do fato de que o Tribunal Penal Internacional, por meio do Estatuto de Roma, tornou a willful blindness uma modalidade de imputação subjetiva. Mais: no macro-contexto do que se está a analisar tem-se uma expressão do Direito Penal do século XXI ou contemporâneo, o qual se mostra mais expansivo, sensível às pequenas lesões causadas a toda coletividade e voltado a bens jurídicos supraindividuais. Eis que a lavagem de dinheiro, em si, é grande representante desse expansionismo penal (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 151). Interessante esse último, porquanto tanto qualifica o trabalho enquanto pano de fundo, como pelo fato de pressioná-lo a ser propositivo. Decorrência desse cenário – e com esse mesmo objetivo caminha o presente trabalho –, é o desafio que se apresenta de se obter um equilíbrio entre a eficiência da persecução penal, com o que se busca maior rigor na repressão e prevenção da lavagem de capitais, e os postulados garantistas do Estado de Direito, asseguradores, nesse tocante, é dizer, da presunção da inocência e da responsabilidade penal subjetiva. Terceiro, pelo fato de que discutir cegueira deliberada aplicada à lavagem de capitais, no contexto brasileiro, passa necessariamente pela discussão da (in) admissão do dolo eventual no delito, bem como pela própria compreensão do que é dolo eventual e quais são seus limites e contornos. Impende, portanto, o aprofundamento no que diz com o elemento subjetivo do 30 crime, sem prejuízo de uma análise dos contornos do dolo eventual adotado pelo Código Penal Brasileiro e de uma prévia exposição do conceito do crime de lavagem de capitais, das fases da reciclagem, das gerações de legislação e dos tipos penais. 2.2 Noções gerais do delito de lavagem de capitais 2.2.1 O conceito Priori loco, deve-se compreender a expressão “Lavagem de Dinheiro”, importação do direito norte-americano, sendo a pronta tradução do termo money laundering10. Interessante notar como toda a discussão acaba por ser um debate calcado em categorias importadas, isto é, está se discutindo uma teoria popularizada nos Estados Unidos da América em um espaço também objeto de preocupação norte-americana, como se nota até mesmo pela expressão money laundering e toda a origem do delito. Pois bem. A expressão surgiu em Chicago, no início do século XX, com a exploração de lavanderias por gangsters para dissimular a origem ilícita de recursos. Por meio de uma rede de lavanderias, figuras como o lendário Al Capone, empreendiam a inserção, na economia formal, de recursos ilícitos provenientes, por exemplo, do mercado ilegal de bebidas alcóolicas, do tráfico de drogas, da prostituição e da exploração dos jogos de azar (CONSERINO, et al., 2013, p.2). O termo, metáfora representativa do processo de limpeza no que diz com uma origem suja, teria sido utilizado judicialmente pela primeira vez no ano de 1982, quando passa a integrar a literatura jurídica ainda nascente sobre o tema (BADARÓ e BOTTINI, 2012, p. 21). A lavagem de capitais, a seu turno, pode ser entendida como um mecanismo ou método de desvinculação ou afastamento pelo qual se processam os bens, direitos ou valores advindos de atividades ilícitas, tendo como objetivo de lhes conferir ares ou aparência de licitude, de tal sorte que se possa desfrutar dos ganhos ilícitos (BALTAZAR JUNIOR, 2012, p. 405). Mais tecnicamente, pode-se dizer que é o conjunto de operações comerciais ou financeiras que buscam incorporar à economia de cada país, transitória ou permanentemente, recursos, bens e valores de origem ilícita (BRASIL, 2012). 2.2.2 Fases da lavagem 10 Outros países de tradição jurídica semelhante, como Portugal, França e Espanha, conhecem a prática por “Branqueamento de Capitais”, no que se aponta uma inferência racista. 31 A consecução do fim de se afastar ou mascarar a origem ilícita de valores evidentemente não se opera em único ato, mas por intermédio de um procedimento máxime dinâmico. Nesse sentido, é comumente estudada a divisão, proposta pelo Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI)11, do iter criminis do delito em três fases ou estágios independentes e ideaias, conquanto possa haver a sobreposição delas ou inexistência de alguma etapa: colocação (placement), dissimulação (layering) e integração (integration). A primeira fase é o estágio primário e consiste na ocasião em que o recurso de origem ilícita é inserido no sistema financeiro, afastando-se da ilegalidade que o originou e dificultando-se a identificação de sua procedência. Entre as técnicas empregadas, destacam-se o fracionamento de grandes quantias em pequenos valores12, a utilização de estabelecimentos comerciais que lidam com dinheiro em espécie, remessas ao exterior, transferência de recursos para paraísos fiscais e compra de moedas estrangeiras (LIMA, 2020, p. 638). A segunda fase é marcada por complexas e sucessivas operações financeiras, promovendo-se a ocultação e dissimulação, a fim de dificultar a reconstrução do caminho seguido pelo recurso outrora diretamente ligado a atividades criminosas e já integrado à econômica formal. Desta feita, são exemplos o envio de dinheiro já convertido em moeda estrangeira para o exterior, o repasse de valores convertidos em cheque de viagem ao portador com troca em outro país e as múltiplas transferências eletrônicas (BADARÓ e BOTTINI, 2012, p. 25). A terceiro fase, por fim, diz respeito ao momento em que os recursos são integrados ao sistema econômico formal, dispondo-se como capital disponível e disposto nos mais vários segmentos da economia (MENDRONI, 2015, p. 182). Deveras, é comum que os bens sejam incorporados por meio de investimento no mercado mobiliário ou imobiliário, por transações de importação ou exportação com preços superfaturados e por aquisições de bens em geral, como obras de arte, veículos e joias (LIMA, 2020, p. 638). 2.2.3 As gerações de legislação Avulta consignar que a doutrina trabalha com três gerações das legislações nacionais antilavagem. A primeira geração refere-se a legislações que tão-somente previam o tráfico de 11 Criado em 1989, no âmbito da OCDE, segundo o Ministério da Justiça Brasileiro, é o espaço internacional de maior relevância nas discussões referentes ao combate à lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo. 12 O procedimento é conhecido como smurfing, em referência aos pequenos personagens azuis da ficção infantil. 32 drogas como crime antecedente da lavagem. Trata-se do momento imediatamente posterior à Convenção de Viena, promulgada pela Organização das Nações Unidas em 198813, em um contexto de preocupação com o tráfico ilícito de drogas já marcado pela transnacionalidade e movimentação de vultosas quantias. Com efeito, uma vez constatado o fato de que o delito vinha sendo praticado para muito além dos recursos obtidos com o tráfico de drogas, diversos países caminharam rumo a uma ampliação do rol dos crimes antecedentes – eis a característica das legislações de segunda geração. Nessa geração se enquadrava a redação original da Lei nº 9.613/98, cuja mudança foi justificada a partir da Exposição de motivos nº 21: Embora o narcotráfico seja a fonte principal das operações de lavagem de dinheiro, não é a sua única vertente. Existem outros ilícitos, também de especial gravidade, que funcionam como círculos viciosos relativamente à lavagem de dinheiro e à ocultação de bens, direitos e valores. Pela exposição, também se observa, o agora revogado, rol de crimes antecedentes: São eles o terrorismo, o contrabando e o tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção, a extorsão mediante sequestro, os crimes praticados por organização criminosa, contra a administração pública e contra o sistema financeiro nacional. Algumas dessas categorias típicas, pela sua própria natureza, pelas circunstâncias de sua execução e por caracterizarem formas evoluídas de uma delinquência internacional ou por manifestarem-se no panorama das graves ofensas ao direito penal doméstico, compõem a vasta gama da criminalidade dos respeitáveis. Em relação a esses tipos de autores, a lavagem de dinheiro constitui não apenas a etapa de reprodução dos circuitos de ilicitudes como também, e principalmente, um meio para conservar o status social de muitos de seus agentes. A terceira geração, por fim, representa as legislações que admitem qualquer delito como crime antecedente, não havendo que se falar em rol taxativo pré-determinado. Com as alterações promovidas pela Lei nº 12.683/12, – que, além de revogar as hipóteses de crimes antecedentes, adicionou a essa lista, não somente todos os crimes, mas todas as infrações penais14 – a legislação brasileira passou a ser classificada como de terceira geração, rumando no sentido da tendência mundial de ampliação do delito. (FREITAS e MARIN, 2019, p. 163). 2.2.4 A Lavagem de Dinheiro segundo a Lei nº 9.613/98, alterada pela lei nº 12.683/12 13 Por meio do Decreto nº 154/1991, o Brasil ratificou o tratado. 14 Naturalmente, a infração penal deve ser apta a gerar bens, direitos e valores sujeitos a lavagem, havendo delitos que dificilmente poderão figurar como infração penal antecedente (LIMA, 2020, p. 637). 33 Cerca de uma década depois da mencionada Convenção de Viena, em 1988, o Brasil promulgou a Lei nº 9.613 como o primeiro instrumento de combate à lavagem de capitais. Inicialmente uma legislação de segunda geração, a Lei representou não apenas um novo tipo penal, mas uma política de combate a graves manifestações que antecedem à lavagem propriamente dita, trazendo uma perspectiva de atingir, de forma simultânea, tanto a atividade ilícita de dar aparência legal a recursos ilícitos, como a atividade criminosa que deu ensejo esse provento financeiro (MORO, 2010, p. 201). 2.2.5 O tipo objetivo Sinteticamente, no que tange ao tipo objetivo, as condutas incriminadas podem ser divididas, para fins de exposição, em quatro grupos: i) ocultação ou dissimulação de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal (caput); ii) uso de meios para ocultação ou dissimulação dos proveitos de origem ilícita (§1º, incisos I, II e III); iii) utilização de recursos advindos de fonte criminosa na atividade econômica ou financeira (§2º, inciso I); e iv) participação em entidade destinada à lavagem de capitais (§2º, inciso II) (HERNANDES e MELO, 2017, p. 447). Ademais disso, há as figuras equiparadas à do caput, presentes nos parágrafos do mesmo artigo. Os crimes elencados no §1º exigem o dolo específico de que o autor conheça a origem criminosa dos recursos reciclados, podendo ocorrer com a conversão dos valores ilícitos (inciso I), com a aquisição ou negociação desses ativos (inciso II) ou com o superfaturamento de importações ou exportações (inciso III). Já os crimes tipificados no §2º do artigo dizem respeito àquela conduta de utilizar, na atividade econômica ou financeira, recursos de origem ilícita (inciso I) e à conduta daquele que participa de entidade sabendo que sua atividade principal ou secundária é dirigida à pratica do delito (inciso II) (HERNANDES e MELO, 2017, p. 447). Ponto a se observar diz com o exaurimento da infração penal antecedente e o crime de lavagem de capitais. Deve-se ressaltar é conditio sine qua non para a configuração do delito de lavagem a prática de um ato de ocultação ou dissimulação em relação ao proveito da infração penal antecedente. Com efeito, a utilização pelo agente do crime daquele produto da infração antecedente, sem qualquer ato de escamoteamento, não configura o crime de lavagem de capitais, tratando-se de desdobramento natural do delito ou de mero aproveitamento do crime (BADARÓ e BOTTINI, 2012, p. 65). Nesta toada já se manifestou o Supremo Tribunal Federal: 34 [...] quando a ocultação configura etapa consumativa do delito antecedente — caso da corrupção passiva recebida por pessoa interposta — de autolavagem se cogita apenas se comprovados atos subsequentes, autônomos, tendentes a converter o produto do crime em ativos lícitos, e capazes de ligar o agente lavador à pretendida higienização do produto do crime antecedente [...] (STF, AP 694, Min Rosa Weber, 1ª T., 02/05/2017). Também é pertinente assinalar, conquanto não diga muito com o objeto principal do estudo, a discussão em relação à natureza do crime, quer dizer, se seria um delito instantâneo de efeitos permanentes ou um delito permanente. A relevância se dá em relação às hipóteses em que a infração penal antecedente tenha se dado em momento anterior ao dia de 10 de julho de 201215, ao passo que a reciclagem dos valores provenientes tenha ocorrido após essa data e, portanto, na vigência da Lei nº 12.683/12 (LIMA, 2020, p. 654). Em suma, entendendo-se pelo crime instantâneo de efeitos permanentes – ou seja, o ato de ocultar ou dissimular consumaria o delito, sendo que a eventual manutenção de estado seria mero desdobramento natural –, só haverá que se falar em configuração da lavagem de capitais, exceto em relação aos crimes antecedentes já presentes na antiga redação, se tanto infração antecedente como a lavagem em si tiverem ocorrido durante a vigência da nova lei (BADARÓ e BOTTINI, 2012, p. 79). Lado outro, a compreensão do crime de lavagem de capitais como permanente autoriza que a infração penal antecedente tenha se perpetrado em momento anterior à vigência da Lei nº 12.683/12, porquanto a ocultação ou dissimulação viriam a se protrair no tempo (LIMA, 2020, p. 655). 2.3 O tipo subjetivo: a análise da admissão do dolo eventual Dentre as disposições que dizem com a lavagem de capitais, o tipo subjetivo se trata, efetivamente, do que mais interessa mais diretamente ao presente estudo. Em verdade, em termos de jurisprudência brasileira, é efetiva questão prejudicial, por assim dizer, no que diz respeito à aplicação da cegueira deliberada no delito. Eis que a eventual compreensão de que no Brasil não se admite a punição do delito a título de dolo eventual direciona sobremaneira a discussão maior para a incompatibilidade da cegueira deliberada em relação ao Ordenamento Pátrio, porquanto se sabe que a doutrina vem 15 Data que entrou em vigor a Lei nº 12.683/12. 35 sendo aplicada ou como substituta, ou como equivalente, ou como indicativo do dolo eventual – hipóteses essas que se confundem e não raramente se encontra uma justaposição entre essas formas. Outra possibilidade, neste giro, é a conclusão de que a teoria seria completamente desnecessária, isto é, seria utilizada apenas como um reforço de imputação, não cumprindo qualquer papel significativo, limitando-se a tão-só endossar o dolo direto. Noutro passo, e como nos parece mais adequado em vista do atual cenário, entendendo- se possível a punição da lavagem a título de dolo eventual, ainda será possível e necessário pensar-se na teoria aplicada ao delito, o que definitivamente não implica sua aceitação e endosso per si. Pois bem. Prima facie, cumpre estabelecer que, diferentemente de outros países, como Alemanha e Espanha, no Brasil admite-se a punição da lavagem de capitais tão-somente a título de dolo, não havendo se falar na modalidade culposa do delito. Portanto, só é objeto de repreensão o comportamento doloso, quer dizer, a conduta do agente que tem ciência da existência dos elementos típicos e vontade de agir naquele sentido. Ademais, como melhor será delineado na sequência, o conhecimento deve ser atual, isto é, deve se dar na ocasião da execução do ato de reciclagem (BADARÓ e BOTTINI, 2012, p. 93). As alterações promovidas pela Lei nº 12.683/12 também geraram repercussão nesse diapasão, não à toa o destaque feito no que atine às gerações da legislação. Se outrora era necessário que o elemento subjetivo fosse demonstrado em relação a um dado crime antecedente, em virtude da existência do rol taxativo, na vigência da Lei nº 12.683/12 basta que o agente tenha consciência de que os valores por ele lavados são provenientes de infração penal, qualquer que seja essa. Levando-se em conta a existência dos profissionais da lavagem que, por óbvio, ignoram os detalhes referentes às origens dos bens, direitos ou valores, conquanto conheçam ou tenham elevada suspeita sobre a origem ilícita, é razoável a compreensão da alteração (MORO, 2007, p. 95). Deveras, a Lei não enuncia a necessidade de um conhecimento específico no que tange a elementos e circunstâncias da infração penal antecedente, havendo que se demonstrar apenas o elemento subjetivo em relação à procedência ilícita. De fato, parece condizente com a realidade da atividade de reciclagem a indiferença quanto a um conhecimento específico. A título de ilustração, é o raciocínio: se um profissional da lavagem – um terceiro alheio ao contexto da infração antecedente – houver, inicialmente, assumido, para si, que os bens ilícitos objetos da reciclagem eram provenientes da contravenção penal do jogo do bicho16, de todo 16 Artigo 58 da Lei de Contravenções Penais. 36 indiferente à reprovação ou desvalor de sua conduta se souber, a posteriori, que os recursos tinham origem no tráfico ilícito de drogas. Com o que não se pode confundir, é indispensável a demonstração do especial fim de agir do agente, qual seja a vontade de reciclar o recurso ilícito de tal sorte a conferir-lhe aparência lícita. O ponto é relevante em virtude de que, com exceção do art. 1°, §1º, os tipos previstos no caput e no § 2° do art. 1 º da Lei nº 9.613/98 nada dizem a respeito desse elemento subjetivo especial. Decorrência disso é que parte da doutrina entende que as configurações desses tipos penais se satisfazem apenas com o dolo de ocultar ou dissimular os bens, direitos ou valores. Como já salientado, não parece adequado esse entendimento, porquanto acabaria por não se distinguir os crimes de lavagem e de favorecimento real17, por exemplo. Em verdade, estar-se- ia, frequentemente, punindo como lavagem ato de mero exaurimento da infração antecedente (LIMA, 2020, p. 658). Posto isso, adentra-se diretamente na discussão sobre o dolo eventual. A redação do artigo 18, inciso I, do Código Penal Brasileiro é inescapável à análise. Definiu o legislador que o crime será “doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. Evidentemente, interessa a este estudo a previsão do artigo, in fine, que admitiu a figura do dolo eventual, em decorrência do acolhimento pelo Código Penal da teoria do assentimento (MASSON, 2020, p. 244). Ora, não tendo a Lei feito, para fins de configuração do crime, a distinção entre dolo direto e dolo eventual, podendo o juiz aplicar a mesma pena para o agente que agiu com este ou aquele, parece-nos plausível o posicionamento de que se pode, a princípio, aplicar tanto o direto, quanto o eventual, quando os tipos penais nada dizem a respeito (BECK, 2011, p. 58). Nesse passo, é necessária uma análise técnica, não se levando em conta as consequências do apontado em termos de desenvolvimento da cegueira deliberada, haja vista que o ponto de partida é o cenário de uma teoria já há muito aplicada e como equivalente do dolo eventual, quer dizer, nada adianta analisar um cenário eventualmente ideal e inexistente. Deste ponto, decorre a admissão do dolo eventual como regra, não sendo necessário uma previsão específica autorizadora no tipo penal (NUCCI, 2020, p. 310). Pelo contrário, quando a intenção do legislador é enunciar a necessidade da demonstração do dolo direto, há 17 Previsto no artigo 349 do Código Penal. 37 um indicativo disso no próprio tipo penal, comumente expressa sob a expressão “que sabe” ou “que deveria saber”18. E, igualmente, no que diz com os crimes de lavagem de capitais e em relação, especificamente, aos tipos penais previstos no caput do art. 1°, no §1° e no §2°, inciso I, da Lei nº 9.613/98, os quais não aduzem a expressões exigentes do dolo direto. Diferente é o caso do art. 1º, § 2°, inciso I, o qual só poderá vir a ser punido, em tese, a título de dolo direto, vez que a redação conta com a expressão “tendo conhecimento”19. Com efeito, ainda que haja compreensão em sentido contrário, a jurisprudência e grande parte da doutrina vêm sedimentando o entendimento sobre ser possível a responsabilização a título de dolo eventual. Isso, não só pela redação do artigo 18 do Código Penal, mas também após as mencionadas alterações promovidas pela Lei n. 12.683/2012, do que se destaca a supressão da expressão “que sabe” (art. 1º, § 2º, inciso I). Seria impensável, conhecido o contexto da reforma legislativa apontada, o afastamento da incidência do dolo eventual, o que não caminharia no sentido almejado de punição do terceiro lavador do dinheiro, sendo essa uma das formas mais utilizadas para a lavagem (MENDRONI, 2018, p. 106). De igual sorte, o fato da eliminação do rol de crimes antecedentes, possibilitador de se afirmar o elemento subjetivo ainda que o agente desconheça especificamente a infração penal anterior. Expressando esse mesmo entendimento, sintetiza Lima (2020, p. 659): Portanto, o delito de lavagem restará configurado quer quando o agente tiver conhecimento de que os valores objeto da lavagem são provenientes de infração penal (dolo direto), quer quando, ainda que desprovido de conhecimento pleno da origem ilícita dos valores envolvidos, ao menos tenha ciência da probabilidade desse fato – suspeita da origem infracional –, agindo de forma indiferente à ocorrência do resultado delitivo (dolo eventual). Por tudo, se o agente sabe ou deveria saber que o capital é proveniente de infração penal, também deverá ser responsabilizado penalmente. Pontuando sobre o dolo eventual na lavagem de capitais, afirma Mendroni (2018, p. 106): [Recordemos que o dolo indireto pode ser eventual], quando o agente não quer o resultado, mas assume conscientemente o risco de causá-lo. Também age 18 Exemplo disso acontece com o crime de denunciação caluniosa, na redação do artigo 339 do Código Penal: Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente. 19 Diz o tipo penal: "participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei". 38 com dolo eventual o agente que, na dúvida a respeito de um ou mais elementos do tipo, se arrisca em concretizá-lo. Quem age na dúvida assume o risco da prática da conduta típica. Como toda discussão envolvendo o dolo eventual, entretanto, há toda uma celeuma no que toca sua distinção ante a culpa consciente. Nesse caso, mais relevante: se decidido, in casu, pela culpa, estar-se-á falando de um fato atípico, vez que o ordenamento pátrio não consagra a lavagem de capitais na modalidade culposa, diferentemente de alguns países, o que parece ser, curiosamente, um incentivo a punição indevida do delito, como melhor será explorado no capítulo derradeiro. A propósito, mesmo sob o risco de parecer-se simplista, grande parte do problema da cegueira deliberada no Brasil é um problema, ab initio, referente a saber-se o que é o dolo eventual, quais seus limites e contornos. Assim como parecer ser um problema de erro tipo, pelo evidente choque entre a teoria e o instituto consagrado. Deveras, um problema permanente e, até mesmo, externo aos delitos de lavagem de capitais e à teoria, sendo seguramente indicadores de uma incompatibilidade da teoria de pronto. Eis que pela conta do elemento cognitivo, tanto o agente que age com culpa consciente, como aquele que age com dolo eventual, têm a previsão do resultado; havendo se falar em linha tênue de diferenciação entre um e outro quando da análise do elemento volitivo: na culpa consciente o agente não quer, tampouco aceita o resultado, acreditando que pode evitá-lo; no dolo eventual, a vontade se resume em assumir o risco, pelo que o agente aceita como possível o resultado (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2001, p. 449). Noutros termos, na culpa consciente o agente prevê o resultado e o afasta; no dolo eventual o agente prevê e assume o risco de sua ocorrência, atuando com descaso ou indiferença ante o bem jurídico tutelado (CUNHA, 2020, p. 269). Por oportuno, é preciso assinalar a teoria do consentimento (ou do assentimento), adotada pelo Código Penal, que consagra o dolo eventual. Nesse sentido, aduz Bitencourt (2020, p. 796): A vontade, para essa teoria, como critério aferidor do dolo eventual, pode ser traduzida na posição do autor de assumir o risco de produzir o resultado representado como possível, na medida em que “assumir” equivale a consentir, que nada mais é que uma forma de querer. O consentimento do autor na produção do resultado seria, ademais, o fator decisivo para diferenciar o dolo eventual da culpa consciente, pois, nesta, apesar do conhecimento da perigosidade da conduta e da probabilidade de produção do resultado típico, o autor da conduta atua porque considera seriamente que o resultado não chegará a produzir-se. 39 A problemática da comprovação do elemento subjetivo ainda se acentua no âmbito da lavagem de capitais, uma vez outra pela figura do profissional da lavagem. Como dito, o agente – um terceiro alheio ao contexto da origem dos recursos – naturalmente se mostra indiferente à origem e à natureza dos valores a serem por ele lavados, o que reforça todo tipo de discussão em relação a dolo eventual ou culpa consciente. Eis que, diga-se novamente, tem-se aqui uma síntese do já denso debate quanto à cegueira deliberada no Brasil. A teoria tem sua importação e desenvolvimento definitivamente atrelados a essa dificuldade de se processar e julgar os agentes que praticam esses delitos, o que implica dizer que estaria melhor inserida em um campo de discussão legislativo, e não naquele espaço do intérprete do direito. De todo modo, há igualmente um problema processual, havendo que se valer do Direito material mais a fim de ter-se o suporte teórico conceitual acerca do elemento subjetivo do tipo – o que, é evidente, não afasta a responsabilidade de se discorrer sobre o dolo eventual na lavagem de capitais e, por conseguinte, de se pensar a cegueira deliberada no delito. Isto é, o direito penal oferta a distinção entre dolo eventual, pelo que a lavagem de capitais é punível, e culpa consciente, pelo que a conduta é atípica, contudo, é o processo penal que terá o problema de prova para determinar se o agente aceitou ou não a possibilidade de produção do resultado (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2001, p. 498). 2.4 A comprovação do dolo e a prova indiciária Se a preocupação com a persecução do crime de lavagem de capitais sempre esteve muito ligada e atrelada a um esforço internacional, seguramente não é diferente no que toca à comprovação do elemento subjetivo do delito. Nesse sentido, a recomendação do Financial Action Task Force on Money20: "a intenção e o conhecimento exigidos para provar o crime de lavagem de dinheiro é consistente com os parâmetros traçados nas Convenções de Viena e Palermo, incluindo o conceito de que o estado mental pode ser inferido de circunstâncias fáticas objetivas". Evidentemente, não se está falando em uma responsabilidade penal objetiva. Trata-se de elementos de ordem objetiva como indicativos do elemento subjetivo, isto é, a partir da comprovação de elementos e circunstâncias objetivos do delito de reciclagem, será possível se verificar a presença do elemento subjetivo. Com efeito, são situações em que o conjunto probatório, no que toca aos elementos objetivos, demonstrem, para além de uma dúvida 20 Trata-se da recomendação de número 2 do GAFI. 40 razoável, que o agente agiu com o elemento subjetivo do dolo, havendo que se reputar inverossímeis suas escusas (LIMA, 2020, p. 661). E não se trata de exceção ou incremento à persecução no que diz com a lavagem de capitais. Uma vez que o elemento subjetivo inexiste em uma dimensão material e auferível; por meios objetivos é que se demonstra o dolo, tais como provas testemunhais, documentos, quebra de sigilo telefônico e telemático. Dessa forma, são elementos objetivos, diga-se uma vez mais, reveladores da temeridade de uma conduta, a qual poderá vir a constituir um fato típico caso haja indispensáveis indícios do conhecimento e da vontade por parte do agente (BOTTINI e BADARÓ, 2012, p. 93). Exemplos palpáveis do que se está tratando seriam casos de movimentações financeiras nada usuais em relação àquelas pessoas físicas elencas no art. 9º da Lei 9.613/9821, que têm, entre outros os deveres, a obrigação de identificação dos clientes, manutenção de registros e comunicação às autoridades de operações financeiras suspeitas. Uma vez que, de forma efetivamente intencional, algumas dessas pessoas deixassem de cumprir algum desses deveres legais – e amplamente conhecidos ante a notória impossibilidade de um Estado fiscalizador, e indesejável, de todas as movimentações –, ter-se-ia um indicativo da prática da lavagem de capitais. Nesse contexto, ganham relevância as ditas provas indiciárias ou indireta. Diante da evidente dificuldade de se apreender uma prova direta, tendo em vista a sofisticação das técnicas empregadas por profissionais especializados na lavagem, urgem as provas indiciárias como forma de demonstrar conhecimento da origem ilícita dos bens, direitos e valores reciclados. Com efeito, as provas indiciárias nada mais são do que os elementos e as circunstâncias objetivos reunidos, das quais se poderá, no caso concreto, extrair o elemento subjetivo. Nesta monta, afirma LIMA (2020, p. 662): Com efeito, como é extremamente comum que não existam provas diretas da lavagem de capitais, o elemento subjetivo do delito deve ser extraído de dados externos e objetivos, tais como o incremento patrimonial injustificado, operações financeiras anômalas, inexistência de atividades econômicas ou comerciais legais como lastro para o incremento patrimonial, vinculação com atividades de tráfico ilícito de entorpecentes ou com outras infrações penais. 21 O artigo elenca diversas pessoas físicas ou jurídicas que deverão se sujeitar às obrigações enunciadas nos artigos subsequentes. São algumas dessas pessoas, a saber, as que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória: a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira (inciso I); a compra e venda de moeda estrangeira ou ouro como ativo financeiro ou instrumento cambial (inciso II); a custódia, emissão, distribuição, liquidação, negociação, intermediação ou administração de títulos ou valores mobiliários (inciso III). 41 Destarte, o Código de Processo Penal, na redação do artigo 239, elenca como meio de prova os indícios: “considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. Além disso, não havendo que se falar em prova tarifada no processo penal brasileiro, igual valor têm as provas direta e indireta a título de formação da convicção dos magistrados. Mais importante do que isso, é assinalar que, para sustentar uma decisão condenatória, impende constatar-se uma série de indispensáveis requisitos a serem preenchidos pelo conjunto de provas indiciárias quais sejam para LIMA (2020, p. 662): a) os indícios devem ser plurais (somente excepcionalmente um único indicio será suficiente, desde que esteja revestido de um potencial incriminador singular); b) devem estar estreitamente relacionados entre si; c) devem ser concomitantes, ou seja, univocamente incriminadores - não valem as meras conjecturas ou suspeitas, pois não é possível construir certezas sobre simples probabilidades; d) existência de razões dedutivas - entre os indícios provados e os fatos que se inferem destes deve existir um enlace preciso, direto, coerente, lógico e racional segundo as regras do critério humano. Portanto, questão imperativa que se impõe, sobretudo em um trabalho que se propõe a refletir a cegueira deliberada, é que a necessidade de uma persecução penal mais eficiente no que tange ao delito em questão não pode ter como consequência o solapamento de direitos e garantias fundamentais (SILVEIRA, 2016, p. 255). Dito isso, deve-se pugnar, no âmbito da demonstração do dolo eventual nos crimes de lavagem, pela farta demonstração de que o agente tinha meios ou informações que o permitiam perceber a possível origem ilícita dos bens, direitos ou valores provenientes de infração penal. Nesse sentido, bem pontua Mendroni (2018, p. 107): É preciso demonstrar, por indícios graves e concordantes, ou elementos de provas, ou, melhor ainda, por provas, de que o agente efetivamente tinha dados concretos que o autorizassem a concluir da origem ilícita. Em outras palavras, deve haver demonstrativos seguros do fato de que o agente tinha condições, isto é, informações suficientes a respeito da situação financeira-econômica e social do agente, a ponto de ser-lhe permitido concluir estranha a posse daquele bem, direito ou valor. Não há espaço para que se estabeleça um “jogo de suposições” do tipo “é possível acreditar que o agente deveria supor que o dinheiro era proveniente de crime”. Não. Deve ser assim: “É evidente, por tais e tais indícios/elementos/provas, que o agente deveria saber que o dinheiro era proveniente de crime” 42 Quer dizer, a partir de múltiplos indícios e elementos de prova, deve ser possível concluir-se, para além de uma dúvida razoável, que o agente deveria saber serem provenientes de infração os bens, direitos e valores sob análise. Por tudo, uma vez mais, resta consignar que, mesmo que se admita o dolo eventual nos delitos de lavagem de capitais, como se sustentou pelas expostas razões e pelo que parece mesmo predominar, não se pode prescindir de elementos de provas aptos a sustentar que o agente tinha dados concretos autorizadores da conclusão da origem ilícita de bens, direitos ou valores. Independentemente do que se compreenda por cegueira deliberada, e também do que se defenda no que pertine a sua eventual acomodação no Ordenamento Jurídico pátrio e a sua compatibilidade com postulados do Estado de Direito, é certo que a responsabilização penal não pode se valer de presunção do elemento subjetivo, é dizer, de mera suspeita de conhecimento pelo agente (HERNANDES, 2019, p. 163). Isto posto, é fundamental que a análise da compatibilidade da teoria se atente para o fato de que a cegueira deliberada, in casu, não pode ser aplicada para o fim de presumir conhecimento, o que é deveras diferente do atribuir conhecimento a partir de provas. 43 CAPÍTULO III – A APLICAÇÃO DA CEGUEIRA DELIBERADA NA PERSECUÇÃO PENAL DA LAVAGEM DE DINHEIRO NO BRASIL 3.1 A teoria aplicada à lavagem pela jurisprudência nacional Conhecida a origem histórica e o desenvolvimento da willful blindness e da ignorancia deliberada, além de se ter compreendido os aspectos mais relevantes do crime de lavagem de capitais, pode-se, agora, adentrar mais diretamente no objeto do presente trabalho. É dizer, quer- se investigar uma teoria estrangeira que vem sendo aplicada no Brasil, e isso se dá notadamente no que concerne aos crimes lavagem de capitais, assim, naturalmente a origem da teoria e os aspectos jurídicos penais do crime são pressupostos para a análise que se pretende fazer – eis que são premissas gerais que, uma vez deduzidas, possibilitarão concluir pela (in) compatibilidade da teoria frente ao direito pátrio. Pois bem. Da análise da cegueira deliberada no Direito Penal Brasileiro, percebe-se três grandes momentos ou fases. O primeiro deles é relevante na exata medida em que representa um marco histórico, quer dizer, é apontado como o primeiro caso em que se viu aplicada a cegueira deliberada decisivamente, além de estar inserido no contexto de um dos maiores furtos a bancos do mundo, a despeito do fato de que a condenação em questão restou reformada e não se apreende do julgado significativo debate jurídico. Nada obstante, é inegável que se trata de momento em que se pavimentou o caminho da teoria no cenário pátrio, especialmente por se tratar de um caso de grande repercussão. Na sequência, tratando-se da Ação Penal 470, o denominado “Mensalão”, tem-se seguramente o momento máxime importante para o desenvolvimento da teoria no Brasil. Ainda que não haja em seu contexto toda a exposição midiática que se observou mais adiante na “Operação Lava Jato”, o “Mensalão”, no que toca à teoria sob análise, mostra-se de grande importância pela envergadura de seu julgamento, é dizer, viu-se a mais alta Corte do país discutindo, em alguma medida, a teoria, isso em um julgamento televisionado. Em alguma medida, pois a teoria não foi o centro de qualquer debate, sendo certo que sua presença foi mais incidental. De todo modo, o momento é apontado como aquele que fez repercutir a teoria, fazendo com que a jurisprudência viesse a, ainda mais, aderir a sua utilização, em uma espécie de retroalimentação contínua. Ainda, um terceiro momento pode ser apontado em face da “Operação Lava Jato” e tudo que lhe é contemporâneo, o qual se refere à fase posterior ao mensalão. Nesta monta, nota-se todo um contexto de exposição midiática e de uma sociedade civil organizada em favor de uma 44 pauta de combate à corrupção. Não bastasse, relevância maior se confere ao período em razão da figura do Ex-juiz Sérgio Moro, responsável pelo julgamento de diversos processos decorrente da operação, sendo ele entusiasta da teoria importada e certamente maior nome no processo de sua importação. 3.2 Furto ao Banco Central do Brasil Como antecipado, no que se refere à jurisprudência pátria, fez-se conhecido como primeiro caso de aplicação da denominada cegueira deliberada o “assalto” ao Banco Central do Brasil22, ocorrido no ano de 2005, em sua sede, localizada em Fortaleza, no Ceará. Seguramente, trata-se de se relevar uma decisão judicial emblemática mais por representar um marco no tempo no que diz com a cegueira deliberada aplicada à lavagem de capitais; menos por ser uma decisão com relevante fundamentação jurídica a ensejar detida análise e aprofundamento teórico. Amparando-se exclusivamente em trechos da obra de Sérgio Fernando Moro23, em que o autor analisa e discute o elemento subjetivo no delito de lavagem de capitais – e, valendo-se da willful blindness, entende pelo cabimento da figura do dolo eventual nos crimes de lavagem de dinheiro previsto no caput do art. 1.o da Lei n.º 9.613, de 1998 –, o Juiz Federal Danilo Fontenelle Sampaio condenou os dois proprietários da revendedora de automóveis “Brilhe Car” pela prática de lavagem de dinheiro, em decorrência do recebimento de mais um milhão de reais pela venda de veículos24. Deve-se considerar que a condenação se baseou no fato de que os empresários não teriam questionado a origem da vultosa quantia, além do que o pagamento teria sido realizado em notas de cinquenta reais, armazenadas todas em sacos de nylon. Não bastasse, os compradores, os quais adquiriram onze veículos de luxo, deixaram considerável quantia como crédito na empresa para uma compra futura25. Nesse sentido, o magistrado entendeu que existira uma opção pela ignorância por parte dos empresários, os 22 Assim ficou conhecido o episódio perante a opinião pública, conquanto tenha se tratado de um furto, vez que não se viu violência ou grave ameaça à pessoa. Trata-se, ainda, do maior furto realizado em território brasileiro, contabilizando-se uma subtração total de R$ 164.755.150,00. 23 Trata-se da já mencionada obra, a saber, MORO, Sergio Fernando. Sobre o elemento subjetivo no crime de lavagem. In: BALTAZAR JUNIOR, José Paulo; MORO, Sergio Fernando (Org.). Lavagem de dinheiro: comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 24 Trata-se da Ação Penal nº 2005.81.00.014586-0, ajuizada perante a 11ª Vara da Seção Judiciária do Ceará, processo disponível em: < https://bit.ly/3tWEWgX >. Acesso em 10 out. 2020. 25 A saber, a compra de onze veículos totalizou R$980.000,00 e a quantia deixada como crédito consistiu em R$250.000,00. O pagamento se deu à vista e em notas de cinquenta reais, como mencionado. 45 irmãos José Elizomarte e Francisco Dermival, entendendo que os acusados, com isso, teriam assumido o risco do resultado ilícito, nada obstante não soubessem da origem plenamente. Destaca-se, uma vez mais, que a decisão se limitou à transcrição da mencionada obra, porquanto não houve sequer uma referência específica à cegueira deliberada in casu ou, então, a demonstração da presença dos elementos para configuração da hipótese, como aduzido por Moro. Com efeito, a sentença não tratou de correlacionar a extensa citação doutrinária, no que toca especialmente à cegueira deliberada aplicada à lavagem de capitais, ao caso sub judice, limitando-se a imputar às condutas dos empresários o fato de não terem se abstido da negociação, tampouco comunicado às autoridades a situação de anormalidade (HERNANDES, 2018, p. 133). Nesse sentido, pode-se observar o seguinte trecho da sentença26: Resta incontroverso, pois, que ocorreu a venda de onze veículos por parte da Brilhe Car e com a intervenção de José Charles. Recorde-se, aqui, os conceitos de dolo eventual e a doutrina da cegueira deliberada (willful blindness ou conscious avoidance doctrine) expostos anteriormente, sendo que, pelo exposto, convenço-me que José Charles Machado de Morais sabia que a origem do numerário utilizado