UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus Rio Claro AGORA O RIO VIVE SECO Populações tradicionais, exceção e espoliação em face da instalação de grandes projetos na Volta Grande do Xingu KENA AZEVEDO CHAVES Orientadora: Profa. Dra. Angelita Matos de Souza Rio Claro - SP 2018 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus Rio Claro AGORA O RIO VIVE SECO Populações tradicionais, exceção e espoliação em face da instalação de grandes projetos na Volta Grande do Xingu KENA AZEVEDO CHAVES Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Geografia Orientadora: Profa. Dra. Angelita Matos de Souza Rio Claro - SP 2018 3 Chaves, Kena Azevedo. C512a Agora o Rio vive seco: Populações tradicionais, exceção espoliação em face da instalação de grandes projetos na Volta Grande do Xingu / Kena Azevedo Chaves. -- Rio Claro, 2018. 195 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista (Unesp) Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro Orientadora: Angelita Matos de Souza. 1. UHE Belo Monte; 2. Mineração Belo Sun; 3. Volta Grande do Xingu; 4. Populações Tradicionais; 5. Exceção e Espoliação; I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada 4 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus Rio Claro AGORA O RIO VIVE SECO Populações tradicionais, exceção e espoliação em face da instalação de grandes projetos na Volta Grande do Xingu KENA AZEVEDO CHAVES Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Geografia Comissão examinadora Profa. Dra. Angelita Matos de Souza (UNESP/RC) Prof. Dr. Fabrício Gallo (UNESP/RC) Prof. Dr. Carlos de Almeida Toledo (USP) Conceito: Aprovado Rio Claro, 16 de outubro de 2018. 5 Aos ribeirinhos da Volta Grande do Xingu, em especial às comunidades da Vila da Ressaca e Ilha da Fazenda 6 Agradecimentos Nunca caminhamos sozinhos, tudo o que aprendemos se faz de maneira coletiva, portanto, preciso agradecer a todos os que contribuíram com esse trabalho. Agradeço sobremaneira Angelita Matos, minha orientadora, pela confiança e parceria. Aos professores Fabrício Gallo e Carlos Toledo, pelas contribuições e incentivo. Ao Samir e à Rachel, que fizeram de Rio Claro um lugar mais próximo. Ao Chico Nóbrega e Carolina Reis, por compartilharem reflexões, materiais e informações, fundamentais à pesquisa. Às minhas companheiras do programa de Desenvolvimento Local do FGVces, Carolina, Daniela, Graziela, Letícia, Lívia e Marcão, pelas descobertas que fizemos juntes! Ao Eric, Edgard, Carol, Tony, Claudiane, Marta, Thaís, Tarcísio, Sidney, Elisane, Dheiliane, Felipe, Cleidiane, Iuri, Jackson e Elisa, pelo que vivemos em Altamira. Agradeço à minha família por todo apoio, especialmente à minha mãe e meu pai, pela ternura e inspiração. Ao André, por toda paciência, companhia e carinho, fundamentais. Zenaide e Romeu, pelo impulso. Luna e Benjamin, pela alegria e esperança. Às queridas amigas de tantos anos Vanessa e Clarissa por dividirem esse momento comigo, tornando as ansiedades mais amenas, e à Aninha e Marina, sempre presentes. Agradeço aos meus queridos amigos e amigas que eu não pude visitar e compartilhar da vida nesses últimos tempos: Bemol, Matias, Tatinha, Manu, Vero, Tally, Amanda, Tetê, Monique, Yssy, Maria Angélica e seu bebê fofo, Júlia Joia, Júlia Reis, Babi, Tainá, Danibas, Tadeu, Pedro Nakamura, Érika, valeu a torcida e vamos comemorar. Agradeço, sobretudo, aos moradores de Altamira e aos moradores da Ilha da Fazenda e Vila da Ressaca pelas entrevistas, espero que sua luta lhes garanta uma vida plena. 7 RESUMO: A Amazônia, nos últimos 20 anos, tomou nova centralidade na estratégia brasileira de exportação de commodities. Além da produção e circulação de bens primários, o aumento do interesse pela região justifica-se pela necessidade de redução de custos energéticos e logísticos para inserção internacional competitiva, e pelo crescimento da importância das rendas do extrativismo para os orçamentos do Estado. A expansão atual da indústria extrativa expõe novos mecanismos para realização da acumulação do capital, cuja compreensão também é possível a partir da identificação de dois processos que atuam de maneira complementar: o primeiro deles apresentado por Harvey (2012), com base em Luxemburgo (1985), que ao conceituar a acumulação por espoliação, aponta para a retomada da importância da incorporação de territórios para a reprodução do modo de produção capitalista. O segundo processo é descrito por Agamben (2002; 2004), que ao discutir a exceção, aponta o papel do Estado na suspensão dos direitos e produção da vida nua, vida matável que pode ser eliminada . Nas fronteiras de expansão do capital extrativo na Amazônia, num ambiente de direitos constitucionais estabelecidos, embora frágeis, a apropriação das terras tradicionalmente ocupadas (ALMEIDA, 2004b) só pode acontecer a partir da suspensão de direitos, e consequente supressão da existência política da população. Ao instaurar de maneira tácita a exceção, o Estado, em função de interesse econômicos, destitui de direitos ribeirinhos, indígenas, extrativistas, pequenos agricultores, convertendo-os à vida nua. Em tal contexto, a apropriação do território, antes sob controle destes povos, faz-se possível pelas grandes empresas que, em parceria com o Estado, operam projetos de desenvolvimento para a região. A exceção coloca-se como etapa necessária à espoliação, entendimento que colabora para a compreensão do processo de acumulação capitalista atual. A partir da apresentação do caso das famílias duplamente atingidas pela UHE Belo Monte e Mineração Belo Sun, na Volta Grande do Xingu (PA), explora-se a relação entre exceção e espoliação através das categorias População Tradicional e Atingidos, destacando estratégias das empresas e Estados no processo de apropriação dos territórios das populações atingidas pelos empreendimentos. Palavras-chave: UHE Belo Monte; Mineração Belo Sun; Volta Grande do Xingu; Populações Tradicionais; Exceção; Espoliação; 8 ABSTRACT: In the last 20 years, the Amazon has taken on a new centrality in the Brazilian strategy of exporting commodities . In addition to the production and circulation of primary goods, the increase in interest in the region is justified by the need to reduce energy and logistic costs for competitive international insertion, and by increasing the importance of extractive revenues to the state budgets. The current expansion of the extractive industry exposes new mechanisms to carry out the accumulation process, whose comprehension is also possible from the identification of two complementary processes: the first one presented by Harvey (2012), based in Luxembourg, who when conceptualizing the accumulation by dispossession, points to the resumption of the importance of the incorporation of territories for the maintenance of the capitalist mode of production. The second process is described by Agamben (2002; 2004), who in discussing the exception points out the role of the State in suspending the rights and production of bare life, a life that can be eliminated without being responsible. On the frontiers of expansion of extractive capital in the Amazon, in an environment of established but fragile constitutional rights, the appropriation of the traditionally occupied lands (ALMEIDA, 2004b) can only happen after the suspension of rights, and consequent suppression of the political existence of the population. By stating tacitly the exception, the State, due to economic interests, removes riverine, indigenous, extractive, smallholder rights, converting them to bare life. In this way the appropriation of wealth, previously under the control of these peoples, is made possible by the large companies that, in partnership with the State, operate development projects for the region. In this context, the exception is a necessary step to spoliation, an understanding that contributes to the understanding of the current accumulation process. From the presentation of the case of the families that were doubly affected by the Belo Monte Hydroelectric Plant and Belo Sun Mining, in the Volta Grande do Xingu (PA), the relationship between exception and spoliation was explored, highlighting strategies of companies and States in the process of appropriation of the territories of the populations affected by the enterprises. Keywords: Belo Monte Dam; Belo Sun Mining; Xingu River; Traditional Populations; Exception; Dispossession; 9 LISTA DE MAPAS Mapa 1: Localização da UHE Belo Monte e Mineração Belo Sun .........................................16 Mapa 2: Sobreposição da área de influência da UHE Belo Monte e Projeto Volta Grande de Mineração (Belo Sun)...............................................................................................................63 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Monitoramento da vazão no TVR – 2010 à 2016................................................ 128 Gráfico 2: Monitoramento da vazão no TVR entre outubro de 2015 e outubro de 2016, combinado com alternativas propostas pelo Hidrograma (A e B)..........................................129 LISTA DE FOTOGRAFIAS Fotografia 1: Casa de madeira sobre palafita – Volta Grande do Xingu, janeiro 2015.........................................................................................................................................105 Fotografia 2: Jirau de madeira. Ilha da Fazenda – Volta Grande do Xingu, janeiro 2015.........................................................................................................................................105 Fotografia 3: Comunidade da Ilha da Fazenda – Volta Grande do Xingu, janeiro 2015.........................................................................................................................................108 Fotografia 4: Comunidade da Vila da Ressaca – Volta Grande do Xingu, janeiro 2015.........................................................................................................................................109 Fotografia 5: Comunidade da Vila da Ressaca – Volta Grande do Xingu, janeiro 2015.........................................................................................................................................110 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Hidrograma de ecológico consenso: alternativas de operação...............................127 Quadro 2: Principal uso do rio (Vila da Ressaca, Ilha da Fazenda e Garimpo do Galo) .......140 Quadro 3: Principal fonte de renda da população (Vila da Ressaca, Ilha da Fazenda e Garimpo do Galo) ..................................................................................................................................141 Quadro 4: Impactos sinérgicos entre UHE Belo Monte e Projeto Volta Grande de Mineração .................................................................................................................................................146 10 LISTA DE SIGLAS ACP – Ação Civil Pública ADA – Área Diretamente Afetada AID – Área de Influência Direta ANA – Agência Nacional de Águas ANEEL – Agência Nacional Energia Elétrica BNDES – Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social CCBM – Consórcio Construtor de Belo Monte CDPPH – Conselho de Direitos da Pessoa Humana CFR – Casa Familiar Rural CFEM – Compensação Financeira pela Exploração Mineral CIMI – Conselho Indigenista Missionário CNDH – Conselho Nacional de Direitos Humanos CONAMA – Conselho Nacional de Meio Ambiente COOMGRIF – Cooperativa Mista de Garimpeiros da Ressaca e Ilha da Fazenda CPT – Comissão Pastoral da Terra DFDR – Development Forced Displacement and Ressetlement DIDR – Development Induced Displacement and Ressetlement DNPM – Departamento Nacional de Produção Mineral DPE – Defensoria Pública Estadual DPU – Defensoria Pública da União EIA – Estudo de Impacto Ambiental FASBM – Fórum de Acompanhamento Social de Belo Monte FETAGRI – Federação dos Trabalhadores da Agricultura FGVCES – Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas FIFA – Federação Internacional de Futebol FPM – Fundo de Participação dos Municípios FUNAI – Fundação Nacional do Índio FVPP – Fundação Viver Produzir e Preservar GESTA – Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBRAM – Instituto Brasileiro de Mineração ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INESC - Instituto de Estudo Socioeconômicos IPEA – Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada IRPJ – Imposto de Renda Pessoa Jurídica ISA – Instituto Socioambiental LI – Licença de Instalação LO – Licença de Operação LP – Licença Prévia MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário MMCC – Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade MPF – Ministério Público Federal MXVPS – Movimento Xingu Vivo Para Sempre OIT – Organização Internacional do Trabalho ONG – Organizações Não Governamentais 11 PA – Projeto de Assentamento PAC – Programa de Aceleração do Crescimento PBA – Plano Básico Ambiental PCA- Plano de Controle Ambiental PIB – Produto Interno Bruto PIC – Projeto Integrado de Colonização PIN – Programa de Integração Nacional PLG – Permissão de Lavra Garimpeira PNAB – Política Nacional de Atingidos por Barragens PNPCT – Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais PROTERRA - Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulos a Agroindústria do Norte e Nordeste RENCA – Reserva Nacional de Cobre e Associados RIMA – Relatório de Impacto Ambiental SEDEME – Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia SEMAS – Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade SIN – Sistema Interligado Nacional SISNAMA – Sistema Nacional do Meio Ambiente SPVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia SPU – Secretaria do Patrimônio da União STTR – Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia TAUS – Termo de Autorização de Uso Sustentável TI – Terra Indígena TJPA – Tribunal de Justiça do Pará TRJ – Tribunal Regional de Justiça T VR – Trecho de Vazão Reduzida UHE – Usina Hidrelétrica 12 SUMÁRIO Introdução ..............................................................................................................................14 Capítulo I. Um outro geográfico: apropriação territorial na Amazônia.......................... 22 1.1 O outro é a Fronteira ..........................................................................................................27 1.2 Volta Grande do Xingu: na rota do Capital .......................................................................34 1.2.1 A seringa escorre pelo rio: extração de látex – final do século XIX e início do século XX...................................................................................................................39 1.2.2 O progresso caminha pelo asfalto: rodovia transamazônica .....................................46 1.2.3 O desenvolvimento vem no rastro dos grandes projetos: hidrelétrica de Belo Monte e projeto de mineração Belo Sun....................................................................52 1.2.3.1 Usina Hidrelétrica de Belo Monte....................................................................53 1.2.3.2 Projeto Volta Grande de mineração – Belo Sun...............................................58 Capítulo II. O povo da mercadoria: espoliação e exceção.................................................. 64 2.1 Da acumulação primitiva aos regimes de espoliação ........................................................70 2.1.1 Acumulação primitiva .........................................................................................71 2.1.2 Acumulação por espoliação e desenvolvimento desigual ...................................75 2.1.3 Regimes de espoliação ........................................................................................83 2.2 Exceção e vida nua.............................................................................................................86 Capítulo III. Os que não querem ser invisíveis: populações tradicionais e atingidos ....93 3.1 População tradicional....... ................................................................................................97 3.1.1 Populações tradicionais na Volta Grande do Xingu..........................................103 3.1.2 Negação da condição de população tradicional.................................................110 3.2 Atingidos ..........................................................................................................................113 3.2.1 Negação da condição de atingido ......................................................................120 Capítulo IV. Entre a barragem e o ouro: espoliação e exceção na Volta Grande do Xingu ................................................................................................................................................125 4.1 Os donos da água e do ouro: Belo Monte e Belo Sun, estratégias de implantação..........133 4.2 Belo Sun: pressões para instalação...................................................................................150 “Eu não sei se eles sabem disso”: Algumas reflexões sobre o trabalho..........................161 Referências.............................................................................................................................169 Anexos....................................................................................................................................180 13 14 Introdução Nos últimos vinte anos a Amazônia ganhou nova centralidade na estratégia brasileira de exportação de matérias-primas. O interesse atual pela região está ligado ao peso adquirido pelas exportações agrícolas e de minérios, correspondente à demanda mundial por commodities, e envolve os nexos globais do setor minerador nacional, a centralidade dos custos energéticos para inserção internacional competitiva, além das rendas do extrativismo para os orçamentos dos governos locais (FISHER, 2014). Tratada como fronteira de expansão, a Amazônia brasileira parece maiormente encarada por agentes estatais como uma região de atraso tecnológico e baixo desenvolvimento socioeconômico, condições colocadas como entraves a serem superados. Para tanto a região demandaria intervenções públicas e privadas visando o desenvolvimento e o progresso, justificados pelos interesses nacionais e pelo bem comum ao conjunto da nação. A região é considerada uma importante reserva de riquezas e o Estado tem incentivado investimentos de monta em três grandes frentes de exploração: geração de energia – grande parte da capacidade de expansão do setor hidroelétrico brasileiro está pautada na disponibilidade hídrica amazônica; logística – o Projeto Corredor Tapajós 1 direciona, por exemplo, investimentos para viabilização do transporte de grãos através dos rios da região; e mineração – a Amazônia concentra hoje um terço dos royalties de extração mineral do país 2 . O Programa de Aceleração do Crescimento – PAC 3 (apesar do fôlego reduzido em função da crise atual na economia brasileira) tem papel importante nesse processo por direcionar projetos e recursos, garantindo financiamento estatal para a instalação de grandes empreendimentos, sobretudo ligados ao setor energético e logístico. De acordo com o PAC estão destinados à região investimentos de mais 14 bilhões em logística distribuídos em 160 projetos e mais de 78 bilhões em 56 projetos de geração de energia 4 . E tramitam no Legislativo propostas que flexibilizam a legislação ambiental e autorizam a extração mineral em Unidades de Conservação e Terras Indígenas 5 , como no caso das pressões recentes para liberação da exploração da Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (RENCA) 6 . É no contexto de avanço da fronteira de acumulação sobre a Amazônia que está 1 http://www.pac.gov.br/obra/90046 2 https://sistemas.dnpm.gov.br/arrecadacao/extra/Relatorios/arrecadacao_cfem_ano.aspx?ano=2017 3 http://www.pac.gov.br/ 4 Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão, PAC, 2016. 5 http://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,projetos-poderiam-liberar-5-milhoes-de-ha-de-florestas-a- mineracao,70001973116 6 https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/24/politica/1503605287_481662.html 15 inserida a Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHE Belo Monte) e o projeto de mineração de ouro Volta Grande da canadense Belo Sun. Coincidentes sobre um mesmo território, cada projeto carrega em si estratégias de implantação particulares e responde a interesses distintos, porém compartilham o objetivo de explorar o potencial de riqueza natural da região. Belo Monte é hoje a maior usina em construção do Brasil, em completa operação será considerada a terceira maior do mundo. A UHE atinge diretamente cinco municípios paraenses da região de Altamira e foi responsável pela remoção de mais de 40 mil pessoas. O investimento total previsto para o projeto é de R$32 bilhões, grande parte deste aportado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) (BNDES, 2014). A obstrução do rio Xingu, em função do enchimento dos reservatórios da UHE (novembro de 2015), deu origem ao Trecho de Vazão Reduzida (TVR). Nesse trecho do rio, ao longo de 100 km à jusante da barragem, populações ribeirinhas e indígenas convivem com alterações ambientais e impactos nos modos de vida, dada a redução da vazão. As dimensões e consequências dos impactos ainda são incertas e o trecho deverá ser monitorado ao longo de seis anos após operação total da usina, prevista para 2019. Nessa mesma área, a menos de 10km da barragem, está em disputa a possibilidade de instalação do projeto de mineração de ouro “Volta Grande” da canadense Belo Sun Mining Corporation, parte do grupo Forbes & Manhattan Inc. Com investimento previsto de US$ 1.076 bilhão (Belo Sun, 2012), Belo Sun tem a intenção de construir a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil. A empresa recebeu em fevereiro de 2017 a licença de instalação para o empreendimento, outorgada pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) do Pará. Envolta em irregularidades e contestada pelo Ministério Público Federal e Defensorias Públicas da União e do Estado do Pará, a licença foi suspensa no mês seguinte pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA). Desde o início da operação da Usina, mudanças nos padrões de pesca, na navegabilidade do rio e piora na qualidade de água do Xingu são percebidas pela população que vive no TVR, comprometendo as atividades de subsistência dos moradores. Nesse cenário, já de prejuízos para população, é que Belo Sun poderá se instalar. A empresa, ao iniciar os estudos e atuação na região, comprou terras ilegalmente e proibiu a extração de ouro, atividade realizada desde os anos 1940 e responsável pelo estabelecimento das principais comunidades da Volta da Grande. O presente trabalho pretende enfocar duas destas comunidades: Ilha da Fazenda e Vila da Ressaca, situadas no município de Senador José Porfírio/PA. Vizinhas, ambas surgiram após declínio da atividade seringueira e 16 cresceram com a descoberta do ouro na região. Os ribeirinhos que ali vivem são pescadores, extrativistas, pequenos agricultores e garimpeiros. Articulam ao seu modo de vida essa pluralidade de atividades, que encadeadas garantem o sustento das famílias. O garimpo de ouro movimenta a economia, envolvendo os moradores em atividades direta ou indiretamente relacionadas à extração do minério. As transformações decorrentes da redução da vazão do Xingu, somadas à proibição do garimpo de ouro, colocam em risco as condições de vida e inviabilizam a permanência das populações na região. Entre o rio seco e as pressões para instalação da mineradora, os ribeirinhos vivem processo de espoliação de seus meios de subsistência e violação de direitos. Mapa 1: Localização da UHE Belo Monte e Mineração Belo Sun. Fonte: ISA, 2013. Os impactos sociais de grandes projetos são comumente negligenciados no processo de licenciamento ambiental. Segundo Cernea (1997) dentre as principais consequências da 17 implantação de grandes projetos está o empobrecimento da população diretamente afetada, em contradição aos grandes volumes de recursos investidos. Perdas materiais e imateriais são fontes de intenso sofrimento social (PUSSETI e BRAZZABENI, 2011), por sua vez não mensurado, e que sequer consta nas preocupações dos empreendedores e do Estado. A interação dos povos tradicionais com grandes projetos de infraestrutura é historicamente marcada pela violação de direitos, invisibilidade dos grupos sociais atingidos, perda dos territórios e desaparecimento dos modos de vida. Na Amazônia, dado ao intenso avanço da fronteira econômica sobre os territórios tradicionalmente ocupados (ALMEIDA, 2004b), os conflitos são frequentes e, com direitos ainda em processo de consolidação, as lutas pelo reconhecimento dos modos de vida tradicionais é uma constante. O emprego legal da categoria “população tradicional” é recente, data das lutas dos seringueiros pelo direito ao uso de seu território no Acre nos anos 1980. Atualmente políticas e programas de apoio a estes povos são insuficientes e não se efetivam em alguns territórios, dada a pouca capacidade/disposição do Estado para implementá-las. Na Volta Grande do Xingu essa história se repete: vivem na região povos indígenas e ribeirinhos em cujo território coincidem a Hidrelétrica de Belo Monte e o projeto de mineração de ouro da canadense Belo Sun Mining. Os empreendedores e o agentes estatais têm estrategicamente ignorado ou demorado para reconhecer os direitos desses povos ou, ainda, selecionam quais deles serão considerados os atingidos pelas estruturas dos projetos. Os ribeirinhos da Volta Grande não necessariamente conheciam seus direitos específicos ou nem mesmo se reconheciam como população tradicional antes da chegada dos empreendimentos. Assim como no caso da condição de atingidos, comumente negligenciada, esse reconhecimento é em si uma disputa por direitos e acaba surgindo na interação dos povos com pressões exógenas, que tencionam ou colocam em risco a manutenção dos modos de vida. É na luta pela defesa de seus territórios que o auto reconhecimento emerge, agregando à resistência dimensões políticas aportadas pela categoria População Tradicional 7 . A expansão da indústria extrativa sobre territórios tradicionalmente ocupados coloca em pauta o papel da acumulação por espoliação conforme definida por Harvey (2012), para quem, na esteira de Rosa Luxemburgo (1985), os expedientes descritos por Marx para analisar a fase da acumulação primitiva continuariam vigentes, acrescidos de mecanismos novos 7 População tradicional é categoria ampla e dinâmica, compreendida neste trabalho de acordo com a conceituação apresentada por Cunha (2017), como sociedades com cosmologia específica, com utilização limitada dos recursos naturais, técnicas de exploração do território com baixo impacto, formas equitativas de organização social, dentre outras caraterísticas específicas. Os ribeirinhos da Volta Grande do Xingu integram a categoria e seu modo de vida será melhor apresentado no terceiro capítulo desta dissertação. 18 relacionados à fase do novo imperialismo e não à pré-história do capitalismo. A espoliação dos povos da Volta Grande acontece por meio da suspensão e violação dos direitos dessas populações. Direitos constituídos, porém de efetividade frágil. É o Estado, em seu papel de soberano, que destitui de direitos as populações e pode instaurar a exceção, que, à luz do conceito em Agamben (2002; 2004), tende a reduzir os povos à “vida nua”: uma situação de anomia que, concretamente, os transformaria em seres matáveis (AGAMBEN, 2002). A intenção deste trabalho é, a partir das concepções de espoliação e exceção, retomando Harvey e Agamben respectivamente, procurar demonstrar como ambos processos operam juntos no contexto da instalação de grandes projetos na Volta Grande do Xingu. Desta perspectiva, a negação da condição de atingido e o não reconhecimento como população tradicional figuram como duas categorias em que materializam os expedientes de exceção- espoliação vivenciados pela população local, e que engendram um conjunto de estratégias empregadas pelos empreendedores para fragilização das resistências à implantação dos projetos. Considerações sobre a pesquisa 8 Entrei em contato com a situação vivida pela população da Volta Grande do Xingu ainda em 2014, quando, na tarefa de pesquisadora da Fundação Getulio Vargas, fui viver em Altamira/PA. Naquele momento os paredões da barragem de Pimental, que interrompe o curso do Xingu e desvia volumes de água originando o Trecho de Vazão Reduzida (TVR), ainda estavam em processo de construção e pairavam incertezas sobre a futura disponibilidade de água, sobre os riscos da construção da barragem e funcionamento da hidrelétrica, e sobre as mudanças nas condições de vida da população implicada. Em Altamira, e demais municípios impactados pela UHE, famílias viviam processo de deslocamento no campo e na cidade para dar espaço às infraestruturas da hidrelétrica e a cidade vivia transformações intensas. Além das remoções de quase 40 mil pessoas, chegaram à Altamira, em curto espaço de tempo, dezenas de milhares de trabalhadores empregados na obra, o que provocou mudanças nas dinâmicas cotidianas dos moradores. Foram ao todo 16 meses intensos, investigando processos e identificando problemas no cumprimento de algumas das condicionantes impostas ao empreendedor para que obtivesse a licença de operação. As atribuições que tínhamos como pesquisadores proporcionava a oportunidade de dialogar com diferentes atores envolvidos na instalação da hidrelétrica – desde o governo federal, governo 8 O uso da primeira pessoa do singular neste tópico “justifica-se” em razão de partir da experiência pessoal/profissional da autora deste estudo. 19 estadual e municipal, empreendedores, atingidos, outros pesquisadores, trabalhadores da obra, consultores contratos pelo Estado ou pelo empreendedor, órgão licenciador, movimentos sociais – o que possibilitou construir um panorama diverso sobre as expectativas geradas e os impactos de um grande projeto num território amazônico. Viver em Altamira reposicionou-me como pesquisadora, como geógrafa e também pessoalmente. Sempre estive conectada com as lutas pelo uso do território, seja no campo, seja na cidade, mas a complexidade do contexto amazônico, para mim até então desconhecida, provocou novas reflexões e curiosidades. A relação com o rio e com a floresta, os tempos longos de deslocamento entre as localidades, a distância dos grandes centros de comando o país, as interpretações da população sobre seu cotidiano e sobre a chegada dos grandes projetos, trouxeram inquietações que me levaram a essa pesquisa. Procuro, nessa dissertação, compartilhar e responder aos questionamentos que me impulsionaram: o primeiro deles, surgido antes mesmo de viver em Altamira, diz respeito ao desejo de investigar os motores do avanço do Estado e do Capital sobre a região amazônica, traduzidos na pesquisa como a tentativa de compreender a espoliação e o papel da incorporação de territórios para a manutenção do modo de produção capitalista; o segundo envolve as especificidades da relação dos povos tradicionais com seu território, que levou a identificar uma das categorias centrais de análise da pesquisa; um terceiro questionamento surgiu na trajetória da investigação, com a identificação de processos que trouxeram para o trabalho a discussão sobre o papel da exceção para apropriação dos territórios sob controle de populações tradicionais. Discutir a exceção foi um dos principais desafios deste trabalho, pois faltam-me ferramentas da filosofia política e mesmo do direito para aprofundar alguns debates e análises, mas, ainda que com lacunas, pareceu-me fundamental para compreender o processo em curso. Na Volta Grande do Xingu, território alvo da terceira maior hidrelétrica do mundo e de possível maior mina de ouro a céu aberto do país, a exceção mostra-se como meio necessário para espoliação dos populações tradicionais que têm na região o substrato da produção de suas vidas e relações. Acompanhar o conflito entre as grandes empresas, o Estado e as populações atingidas, ainda que durante período de tempo restrito, construiu em mim posicionamentos acerca da imposição destes projetos sobre os territórios em disputa. Percebo a possibilidade da pesquisa científica, assim como do pesquisador, serem atravessados por seus objetos investigação, fagocitados por eles, e isso aconteceu comigo. Viver o processo de instalação da maior usina hidrelétrica da Amazônia, assistindo às violações de direitos frequentes, fez de mim uma 20 testemunha. Mais do que isso, nos momentos finais de nossa estada em Altamira, já me sentia, em boa medida, atingida pela Hidrelétrica. Além disso, o Xingu e seus povos, sua forma de vida, exercem fascínio tamanho, que é difícil sair ileso. Numa tarde chuvosa do inverno amazônico um amigo altamirense, querendo mostrar que o nível do rio começava a subir, disse: o Xingu está criando água. Aprendi que rio criava água, se multiplicava. Por todos os lados suas águas verdes e seus mistérios se expandiam. O Xingu crescia em seu leito, avançava lentamente sobre a floresta e terraços, inundava as beiras, os igapós, inundava o corpo de quem estivesse vivendo perto dele. Além de visível posicionamento político, resultado da proximidade com as lutas de resistência aos projetos em foco e com as populações atingidas na Volta Grande do Xingu, busquei conferir ao trabalho rigor metodológico e teórico (que procurarei expor ao longo dos capítulos), cuidado com o tratamento das informações coletadas, e argumentos sustentados em observações, depoimentos e dados. A pesquisa utilizou estratégias empregadas nos estudos de caso, buscando aprofundar na temática observada em campo, relacionando-a com teorias que ajudaram a interpretar e explicar a situação apreendida (YIN, 2001). Entre 2014 e 2015, período em que vivi em Altamira, algumas entrevistas foram realizadas com os atingidos pela UHE e com os ribeirinhos moradores das comunidades da Ilha da Fazenda e Vila da Ressaca (ambas localizadas no Trecho de Vazão Reduzida, objeto da pesquisa), além de observação participante em reuniões, audiências públicas e oitivas. Houve ainda mais três momentos de coleta em campo para prosseguimento do estudo e atualização de informações: março de 2017, com realização de entrevistas, observação de reuniões e audiência pública em Altamira/PA; novembro de 2017, novas entrevistas e observação de audiência pública na Vila da Ressaca – Senador José Porfírio/PA (comunidade atingida por Belo Monte e Belo Sun); e uma última visita à Altamira, em abril de 2018. O material coletado foi tratado de forma próxima à análise de conteúdo (BARDIN, 2009): organizado primeiramente por momentos e grupos sociais; em seguida agrupado por temas e categorias, identificados a partir da leitura do material bruto. Os resultados encontrados contribuem para caracterização da forma de uso do território pelas comunidades ribeirinhas atingidas pelos projetos, para a identificação das principais mudanças e impactos sofridos em seu modo de vida com a instalação da hidrelétrica e estratégias de expropriação do território pelos empreendedores, em especial Belo Sun Mining. O trabalho privilegia a perspectiva dos atingidos sobre as violações sofridas, e a análise das disputa dos territórios entre as empresas, Estado e populações 21 atingidas está apoiada na leitura dos processos judiciais movidos pelo MPF e DPU, relatórios de andamento do licenciamento ambiental do Ibama e ainda relatórios e inspeções da Comissão Nacional de Direitos Humanos, sempre em diálogo com as entrevistas realizadas e depoimentos dos atingidos em audiências públicas. A dissertação organiza-se em quatro capítulos seguidos de conclusão. O primeiro capítulo trata da relação construída com a região Amazônica pelo Estado brasileiro e pelo capital, aprofundando nos ciclos econômicos e de apropriação do território da Volta Grande do Xingu; em seguida, no segundo capítulo, apresenta-se os conceitos norteadores da pesquisa, espoliação e exceção, tratando de relacioná-los com o caso em análise; o terceiro capítulo aprofunda nas duas categorias trabalhadas, população tradicional e atingidos, indicando como operam através delas a relação exceção-espoliação. O quarto e último capítulo, por sua vez, traz caracterização da situação vivida pelas famílias no Trecho de Vazão Reduzida e das estratégias empregadas pelos empreendedores para expropriação dos territórios e implantação dos projetos Belo Monte e Belo Sun. 22 CAPITULO I Um “outro” geográfico apropriação territorial na Amazônia 23 “Gostaria de fazer um convite: saia do seu século XXI e venha para o meu século XX”, disse em tom categórico Dona Gracinda Magalhães, liderança ligada ao movimento pela saúde em Altamira. Sua voz ecoou pelo auditório da UFPA em resposta ao representante da Norte Energia, quando este indicou que a informação que lhe estavam demandando pessoalmente poderia ser acessada no site do Ibama: “Está na rede”, disse. A senhora de mais de 60 anos, crescida entre o Xingu e a Transamazônica, militante e conselheira de saúde do município, ex-secretária de saúde de algumas das cidades da região, respondeu com o citado convite. Seu convite estendia-se não apenas ao então diretor da superintendência de assuntos socioeconômicos da Norte Energia, mas a todos os que se acreditavam portadores de outro século. A todos aqueles que simbolizavam com sua presença a velocidade de outros lugares. Todos deveríamos deixar o século XXI e abrir os olhos para as outras temporalidades amazônicas (Caderno de campo, Altamira, dezembro de 2014). O anúncio de que a UHE Belo Monte seria finalmente construída na região de Altamira foi recebido com muita resistência, a população já conhecia o projeto desde os anos 1980 e convivia com o fantasma de sua instalação há quase 40 anos. Incorporada ao PAC, Belo Monte significava a chegada de um conjunto de contradições: por um lado a promessa da estruturação de políticas públicas, de melhoria da qualidade de vida; por outro, transformações violentas nas formas de viver da população a partir da imposição de uma lógica de desenvolvimento alheia àquele lugar. Como todo objeto técnico (SANTOS, 2004), a hidrelétrica carrega consigo um conjunto de informações, impõe novas racionalidades, está repleta de intencionalidade e ideologia. Para Santos (2004), os objetos técnicos são um fenômeno histórico, produto da ação da social e “têm papel ativo no movimento do todo social” (p. 126). Ao se espacializarem, os objetos reorganizam as lógicas socioespaciais e temporais dos lugares, coordenando as ações em seu entorno. O espaço, compreendido de acordo com o autor, pode ser tomado com um “conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações” (p. 63), no qual os objetos compreendem a materialidade e as ações são o motor do tempo no espaço. O tempo para Milton Santos é o tempo da ação, expressa-se em eventos que se materializam e ressignificam a materialidade presente. Objetos e ações são, para ele, indissociáveis e se autocondicionam: “(...) a ação não se dá sem que haja um objeto; e quando exercida, acaba por se redefinir como ação e por redefinir o objeto” (p. 95). A hidrelétrica, nesta acepção, pode ser compreendida como um objeto e também como ação. Impõe-se como resultado da ação de forças hegemônicas e vetoriza novas ações em função da realização das informações que lhe são contidas. É parte de um macrossistema técnico – sistemas de técnicas integradas sem os quais os demais sistemas não funcionariam, e que, representativos dos sistemas econômicos hegemônicos, “buscam instalar-se em toda 24 parte, desalojando sistemas autônomos, ou buscando incluí-los em sua lógica, segundo diferentes graus de dependência” (SANTOS, 2004, p. 179). A hidrelétrica de Belo Monte é organizada em função da eletrificação do país, da necessidade de expansão da capacidade produtiva da indústria, majoritariamente localizada no Sudeste. Atua como verticalidade, “vetor de racionalidade superior e do discurso programático dos setores hegemônicos” (p. 286), sendo signo de “solidariedades organizacionais” (p. 285), baseadas em racionalidades distantes que se impõe aos lugares. Como um vetor de modernização entrópico, as verticalidades trazem “desordem aos subespaços em que instalam e a ordem que criam é em seu próprio benefício” (p. 287). Colocam-se como fator de desagregação, ao conectarem os lugares em que se instalam à novos centros de decisão, geram desequilíbrios e provocam desestruturação por retirar da “região os elementos do seu próprio comando, a ser buscado fora e longe dali” (p. 287). A Usina de Belo Monte em seu processo de espacialização criou novos contextos e todo um processo de mudança social, gerando desequilíbrios nas formas de vida e relações da população local com seu território. Trouxe para a região mais de 26 mil trabalhadores, removeu bairros inteiros, dinamizou a economia, polarizou atores, aumentou pressões sobre os territórios tradicionalmente ocupados, iniciou conflitos e lutas de resistência contra o projeto e pelo reconhecimento de direitos, transformou o cotidiano impondo acelerações aos ritmos locais. Entendida aqui como uma verticalidade, portadora de intencionalidade e ações, a hidrelétrica é também portadora de tempo, de um tempo hegemônico. De acordo com Milton Santos (2004), o tempo das ações e dos diversos atores, bem como a forma como utilizam o tempo social, difere em cada lugar. A diferenciação geográfica faz com que as temporalidades no espaço não sejam as mesmas e, ainda que aconteçam de forma simultânea, “as ações não são indiferentes à realidade do espaço, pois a própria localização dos eventos é condicionada pela estrutura do lugar” (p. 160). Ainda segundo Santos (2001) existem velocidades diferentes nas ações no espaço, “temporalidades concomitantes e convergentes” (p. 22). O autor identifica duas formas de relacionamento com o tempo: o tempo rápido – tempo das firmas, indivíduos e instituições hegemônicas; e o tempo lento – aquele tempo das firmas, indivíduos e instituições hegemonizadas (p. 22). A velocidade está vinculada à ação hegemônica, e expressa-se também nos objetos, que por sua vez impõem esse tempo aos homens (p. 22). A partir do momento em que se espacializam no lugar, os objetos “passam a se conformar a esse lugar, a dar, digamos assim, a cara do lugar, esses objetos impõem à sociedade ritmos, formas 25 temporais do seu uso, das quais os homens não podem se furtar e que terminam, de alguma maneira, por dominá-los” (p. 22). Harvey (2017), ao discutir a relação entre tempo e espaço, aponta para a naturalização destas categorias, básicas para a existência humana e das quais raramente discutimos o sentido: “tendemos a tê-los por certos e lhes damos atribuições do senso comum ou auto evidentes” (p. 187). Essa naturalização culmina na ignorância das variações na relação e percepções entre tempo e espaço construídas por distintas sociedades. Tomado a partir de suas dimensões concretas, tempo e espaço são tratados “tipicamente como um atributo objetivo das coisas que pode ser medido e, portanto, apreendido” (HARVEY, 2017, p. 189). Porém, as significações destas categorias estão conectadas com os modos de vida, com os diferentes usos do espaço, de forma que contestar a ideia de um sentido único e objetivo de tempo e de espaço faz-se fundamental na busca pelo reconhecimento da “multiplicidade das qualidades objetivas que o espaço e o tempo podem exprimir e o papel das práticas humanas em sua construção” (HARVEY, 2017, p. 189). Harvey (2017), assim como Santos (2004), compreende as categorias como estreitamente vinculadas aos processos materiais. Santos entende o tempo e o espaço como inseparáveis, tomando dimensão apreensível no cotidiano por meio da ação, e para Harvey ambas as concepções também são criadas através das práticas e processos materiais necessários à reprodução da vida social, variando segundo o modo de produção ou formação social em foco. A objetividade do tempo e do espaço advém, em ambos os casos, de práticas materiais de reprodução social; e, na medida em que estas podem variar geográfica e historicamente, verifica-se que o tempo social e o espaço social são construídos diferencialmente. Em suma, cada modo distinto de produção ou formação social incorpora um agregado particular de práticas e conceitos de tempo e de espaço (HARVEY, 2017, p. 189). A sociedade moderna permite o entrecruzamento de muitos sentidos diferentes de espaço e tempo. Da multiplicidade de percepções e formas de organização do tempo social podem surgir inúmeros e sérios conflitos. Ambiguidades, contradições e enfrentamentos dão- se, ocultados pelas naturalizações e tendências à homogeneização da relação espaço-tempo. Usos ideológicos são empregados a essas concepções de forma que mudanças sociais passam por transformações nas concepções e práticas espaciais e temporais (HARVEY, 2017). 26 A imposição de tempos hegemônicos 9 , acompanhados de processos de mudança social e da velocidade do “impulso geral do progresso” (HARVEY, 2017, p. 187), implica na conquista do espaço, na retirada das barreiras até que, por fim, se alcance a “aniquilação do espaço através do tempo” (p. 190). Para Harvey (2017) a modernidade reduz o espaço a uma categoria contingente, em eterno “vir-a-ser”, sempre processual, fazendo valer a experiência temporal mais que a materialidade do espaço (p. 190). Porém, para Milton Santos, o tempo e espaço transformam-se mutuamente. A ação hegemônica encontra nos lugares “rugosidades 10 ” (SANTOS, 2004, p. 139) que exigem adaptações, ajustes nos projetos e novas estratégias. Implica em dizer que o lugar, ao receber um vetor de tempo alheio, impõe a esse também sua velocidade. Ambos, espaço e tempo, materialidade e ação, movimentam-se dialeticamente, fazendo destas categorias inseparáveis (SANTOS, 2004). Ainda assim o fôlego hegemônico se impõe, tendendo à aceleração dos lugares em direção à otimização do tempo de circulação da informação e das mercadorias. Ao argumentar sobre a inseparabilidade entre tempo, espaço e ação social, Harvey (2017) afirma que as relações de poder, assim como o espaço e o tempo, são produtos sociais, sendo possível correlacionar o poder e as práticas espaço-temporais. Para o autor o “dinheiro pode ser usado para dominar o tempo (o nosso ou o de outras pessoas) e o espaço. Inversamente, o domínio do tempo e do espaço pode ser reconvertido em domínio sobre o dinheiro” (p. 207). O controle do espaço e do tempo é objetivo e fonte do poder. Nas palavras de Harvey, “(...) quem define as práticas materiais, as formas e os sentidos do dinheiro, do tempo ou do espaço fixa certas regras básicas do jogo social” (2017, p. 207), detém o poder, controla as lógicas de funcionamento do tempo e do espaço. Para o autor os significados e materializações “atribuídos ao dinheiro, ao tempo e ao espaço” (p. 207) são fundamentais quando se objetiva a manutenção do poder, uma vez que a “hegemonia ideológica e política em toda sociedade depende da capacidade de controlar o contexto material da experiência pessoal e social” (p. 207). O controle sobre o espaço é fundamental à aceleração do tempo, que, por sua vez, está diretamente associada à realização da acumulação de capital e ampliação do lucro, “quanto mais rápida a recuperação do capital posto em circulação, tanto maior o lucro obtido” 9 Neste trabalho entende-se por hegemonia a conceituação proposta por Gramsci (1973; 1998) como a capacidade de unificar através da ideologia um bloco social não homogêneo e marcado por contradições de classe. Diferente da dominação, para que haja hegemonia é fundamental um processo social de persuasão e geração de consenso através de estratégias políticas, econômicas e culturais. 10 Rugosidades podem ser compreendidas como formas de organização social anteriores cristalizadas como trabalho morto, formas herdadas, “o passado como forma, espaço construído, paisagem” (SANTOS, 2004, p. 140), e condições histórico-geográficas preexistentes que dificultam a instalação de novas lógicas. 27 (HARVEY, 2017, p. 209), de forma que há um impulso onipresente para a aceleração, buscando promover tempos de giro mais rápidos. A redução do tempo de giro do capital acelera os processos sociais, guiados pelo imperativo da velocidade que atravessa os lugares. O controle destas categorias, espaço e tempo, faz-se então necessário ao controle social. A dominação capitalista faz-se por meio do domínio superior do espaço e do tempo, vinculados estreitamente ao dinheiro, “tanto o tempo como o espaço são definidos por intermédio da organização de práticas sociais fundamentais para a produção de mercadorias” (p. 218) e para o desenvolvimento do modo de produção capitalista. As noções de desenvolvimento comumente empregadas relacionam-se com a lógica do tempo rápido, hegemônico, compreendendo os lugares que estejam fora de sua lógica como passíveis de apropriação. O anúncio da hidrelétrica de Belo Monte como portadora de desenvolvimento, bem como a crença no desenvolvimento capitalista como o destino futuro dos lugares, expressa-se na relação que a Dona Gracinda faz entre o século XX e o século XXI. Um como sucessão do outro. Na experiência desta senhora o futuro mostra-se como o lugar do avanço tecnológico, do progresso técnico e, por consequência, da dominação capitalista característica do século XXI. O projeto de desenvolvimento imposto para a região amazônica veicula essa lógica, a do desenvolvimento como progresso linear, como avanço técnico, aceleração do tempo, que permite a eficiência do sistema de produção e que para tanto precisa extinguir outras formas de organização social. Dona Gracinda e o representante da Norte Energia, ainda que coexistam num mesmo espaço, vivem um embate de tempos. Ele, representa a grande empresa, a ação hegemônica, sua presença é um signo da dominação do capital no lugar. Dona Gracinda é a rugosidade, o tempo lento, é a resistência à nova lógica que se espacializa. O tempo que os funcionários da Norte Energia – todos forasteiros e grande parte vindos da região Sudeste do Brasil – e que a hidrelétrica carregam impõe a lógica do progresso, do avanço, do futuro. Anuncia que a região de Altamira e seu povo vivem no atraso, no passado, no obsoleto. O que Dona Gracinda denuncia em seu ousado convite, não é apenas o difícil acesso às redes de telecomunicação, de fato característico da região, mas também a imposição de uma lógica temporal hegemônica que ignora as temporalidades dos lugares em que se instala 1.1 O “outro” é a fronteira progresso e a dimensão espacial 28 A experiência de uso do território no Brasil é marcada pela “descartabilidade”, de pessoas, espaços e instituições (BRANDÃO, 2010, p. 09). Padrões fundiários foram determinados ainda no período colonial e a história da formação territorial do país carregou formas excludentes de acesso aos direitos, com forte presença do coronelismo impregnando de relações autoritárias a convivência social. Para Brandão (2010) a geografia desigual do desenvolvimento capitalista no Brasil “determinou a apropriação contínua de porções territoriais em (re)estruturação nas frentes de expansão que permitiam ganhos extraordinários” (p.10) e garantiram a possibilidade do contínuo deslocamento da fronteira, com itinerância da agricultura pelo território. Moraes (1999), ao discutir as ideologias geográficas que povoam o imaginário social dos países de formação colonial, aponta que a dimensão espacial se impõe de forma determinante, revelando, nas reentrâncias dos processos históricos de sua formação, as motivações que levaram a conquistas dos espaços. A apropriação territorial nesses países, visivelmente no Brasil, coloca-se como interesse recorrente das alianças políticas que se mostram “nos padrões de organização do espaço, na conformação da estrutura territorial, nos modos de apropriação da natureza e de usos dos recursos naturais, na fixação de valor ao solo e nas formas de relacionamento entre os lugares” (p. 43). A lógica colonial naturaliza a forma como os interesses migram pelo território, baseando-se na contínua necessidade de acumulação primitiva e de expansão cada vez mais veloz sobre os sertões do país. Para Moraes (2003) o sertão é uma condição atribuída aos lugares, uma qualidade imposta de fora para dentro como um discurso que valora e qualifica. Variando espacialmente o “sertão não é uma materialidade da superfície terrestre, mas uma realidade simbólica: uma ideologia geográfica” (p. 02). Consiste na construção imagética de um lugar, associando-o a valores culturais, em sua maioria negativos, que justificam objetivos de ocupação ou reocupação para reestruturação destes espaços. Para que o sertão exista como tal é fundamental que haja um contraponto, uma outra referência de lugar que não se encaixe nesta denominação, e que possibilite a diferenciação do primeiro. O sertão é “definido pela oposição a uma situação geográfica que apareça como sua antípoda” (MORAES, 2003, p. 03). Se o sertão, valorado a partir de olhar e interesses exógenos, é carregado de sentido negativo – lugar do atraso, do tempo lento, da rugosidade, onde não há desenvolvimento, onde falta o progresso – o “não sertão” deve ser seu oposto, o lugar das características positivas, símbolo do tempo rápido e das conexões hegemônicas, aquilo que o sertão deve ser e precisa alcançar, de forma a legitimar ações para transformá-lo. 29 O sertão é o outro geográfico, o que não se é e precisa ser negado. Aquele que, enquanto característica, deve ser superado, a “denominação já expressa interesses projetados pelo qualificador para os lugares abordados” (p. 03) apontando para imposição de um domínio, ou nova dominação nos espaços alvo. (...) o sertão é uma figura do imaginário da conquista territorial, um conceito que ao classificar uma localização opera uma apropriação simbólica do lugar, densa de juízos valorativos que apontam para sua transformação. Nesse sentido, a designação acompanha-se sempre de um projeto (povoador, civilizador, modernizador), o qual almeja – no limite – a superação da condição sertaneja. Trata-se de um espaço a ser conquistado, submetido, incorporado à economia nacional: uma área de expansão (MORAES, 2003, p. 06). A condição sertaneja coincide com as áreas de fronteira da ocupação nacional, compreendendo lugares de povoamento frágil e transitório, zonas em que o Estado não está presente ou com atuação consolidada, ou ainda áreas estagnadas ou decadentes. Transformar esses espaços em regiões com uso econômico é uma diretriz que acompanhou o processo histórico brasileiro e que se mantém nos dias atuais, tratando como sertão os lugares que estão “fora” das redes de conectividade global (MORAES, 2003, p. 05). Aqui nos deparamos com o par interior-exterior que será melhor explorado ao longo do trabalho: as regiões que estão “fora” das áreas capitalistas, funcionam como possibilidade de expansão e manutenção do sistema. Interpretando a expansão do modo de produção a luz da leitura de Luxemburgo (1985), retomada por Harvey (2012), como espaços que possibilitam a manutenção da acumulação do capital, da manobra de forças sociais e que permitem o ajuste-espacial em situações de superacumulação. As fronteiras de expansão encontram na ideologia do outro geográfico seu motor de reprodução. Para Becker (1988) a fronteira não significa terras devolutas, ou espaço físico em que se dá a colonização agrícola, ela é uma construção social e política, constituindo espaço em incorporação às lógicas capitalistas globais. A fronteira avança sobre áreas com terras “disponíveis”, angariando em seu caminho a força de trabalho necessária e liberada das áreas já capitalizadas, constituindo assim “uma „válvula de escape‟ para as tensões sociais e demográficas produzidas pela expansão capitalista nas áreas povoadas” (BECKER, 1988, p. 63). O papel do Estado é fundamental para viabilização da ocupação dessas áreas, favorecendo nelas a instalação do campesinato e o latifúndio nas regiões povoadas. Essa foi historicamente a forma como a Amazônia foi apropriada. A transumância de camponeses pobres de regiões com economias estagnadas, que pressionavam para o reordenamento 30 fundiário conflitando com interesses dos latifundiários locais, aconteceu algumas vezes, sendo notáveis no ciclo da borracha e no período militar com a construção da Transamazônica. A amplitude e riquezas do território amazônico combinadas com a ausência de organização sócio-territorial regional que conseguisse resistir às formas violentas de apropriação, fez da Amazônia espaço propício para instalação da fronteira. Nela foi possível acumular capital, liberando a força de trabalho das populações, e exercer o monopólio dos meios de produção. Geopoliticamente estratégico, o controle da Amazônia tornou-se necessário ao Estado, empenhado em integrá-la ao espaço nacional e através dele global (BECKER, 1988, p. 67-68). Interesses hegemônicos desde fora da Amazônia trataram a região historicamente como uma fronteira de expansão do modo de produção capitalista, tomando a natureza “como recurso escasso e como reserva de valor para a realização do capital futuro” (BECKER, 2005, p. 74). Compreendendo as florestas, os rios e os povos amazônicos como passíveis de serem convertidos em recursos e mercadorias, a ocupação da região organizou-se a partir de demandas externas, em que os projetos produtivos instalados tinham como destino a exportação e mercados localizados fora da região. O início da ocupação do que é hoje a Amazônia deu-se no bojo do processo amplo de expansão além-mar das empresas comerciais europeias, e segue até os dias atuais o padrão de ocupação das economias de fronteira, orientadas por demandas e iniciativas externas (BECKER, 2001). No Brasil, a lógica do planejamento estatal coloca os grandes projetos de investimento como motor do desenvolvimento regional, devendo estes funcionarem como força desencadeadora de novas ações que promovam o desenvolvimento dos lugares (VAINER e ARAÚJO, 1992). Tais empreendimentos, contraditoriamente, aprofundam processos de apropriação dos recursos territoriais e humanos sob uma lógica predominantemente econômica, tendo como resultados nos territórios em que se instalam a desestruturação ou perda de atividades econômicas preexistentes, crescimento urbano desordenado, degradação ambiental, e a marginalização da população atingida. O olhar para Amazônia carrega ainda hoje o imaginário do sertão, reflete a ideologia do outro geográfico, tomando-a como espaço de atraso tecnológico, baixo desenvolvimento humano, pobreza e falta de acesso a produtos e mercados, carente de investimentos. Tal concepção justificaria a instalação de projetos de infraestrutura, muitas vezes, sem planejamento adequado, em que a preocupação com o desenvolvimento humano e respeito às formas tradicionais de vida passam desapercebidas. O tipo de desenvolvimento pensado por 31 amplos setores do Estado brasileiro para a região comporta um projeto de controle do território e integração pela exploração dos recursos naturais, seja para geração de energia, instalação de hidrovias e corredores logísticos, projetos de mineração e agricultura, a fim de aprofundar relações capitalistas na região. As noções de desenvolvimento que o traduzem como plena “realização das potencialidades humanas” (FURTADO, 2000, p. 07), relacionando-o com a melhoria da qualidade de vida, à expansão das liberdades (SEN, 2010, p. 29), sustentam a perspectiva dominante de que o desenvolvimento seja considerado “ao mesmo tempo como natural, desejável e inevitável” (PERROT, 2008, p. 220). Entendido de forma linear, cumulativa e contínua, sustenta-se na fé no progresso. Ainda que possa ser considerado fracassado em termos globais – uma vez que não atinge os preceitos acima mencionados – seu fracasso é interpretado “como erros de percurso, devidos tanto aos especialistas e à estrutura do sistema econômico internacional, como aos obstáculos culturais ou à má gestão desse ou daquele projeto” (p. 220). Para Perrot, mesmo sob críticas e tentativas de reclassificá-lo a partir de novos atores, o desenvolvimento capitalista se mantém, e: (...) mesmo que a noção de progresso seja hoje em dia submetida a sérias críticas, o caráter normativo do desenvolvimento como resposta positiva e quase mágica aos problemas que ele mesmo contribuiu para criar continua gravado nas consciências e no imaginário coletivo (PERROT, 2008, p. 221). Sustentados em definições macroeconômicas e perspectivas ideológicas ocidentais, o progresso técnico e a expansão das infraestruturas são considerados como sinônimo de desenvolvimento, colocados sempre como objetivo primordial dos países que buscam impulsionar o crescimento econômico (OLIVER–SMITH, 2010). Furtado (2000) observa que os principais indicadores utilizados para atestar o desenvolvimento das nações – grau de industrialização, PIB, renda per capita, etc. – não demonstram condições suficientes “para que sejam mais bem satisfeitas as necessidades elementares da população” (p. 23). O avanço técnico não garante o desenvolvimento em seu sentido pleno, e, de acordo com o autor, (...) tem-se mesmo observado a degradação das condições de vida de uma massa populacional como consequência da introdução de técnicas mais sofisticadas (...). É bem sabido que, mesmo nos países em que mais avançou o processo de acumulação, parte da população não alcança o nível de renda real necessária para satisfazer o que se considera como sendo necessidades elementares (FURTADO, 2000, p. 23). Segundo Perrot (2008) a natureza da relação que permite o desenvolvimento do capitalismo “é caracterizada por uma valorização geral das pessoas e recursos naturais através dos mecanismos do mercado” (p. 221), acarretando em uma “transformação sistemática da 32 natureza e das relações sociais em bens e serviços para o mercado” (p. 221). Para a autora, o sistema econômico mundial, os grandes projetos de desenvolvimento e mesmo imenso número de pequenos projetos, são vetores de expropriação dos povos, por sua vez espoliados de suas riquezas, saberes e relações com a natureza. Visto por este viés, o projeto de desenvolvimento capitalista foi bem-sucedido “(...) na medida em que foi eficaz em seu papel transformador dos recursos naturais e das relações sociais em bens de mercado e em capital financeiro, e que resultou efetivamente na expropriação dos mais pobres em benefício dos mais ricos” (PERROT, 2008, p. 222). O avanço da fronteira econômica sobre os territórios produz a intensificação do uso e a incorporação de áreas antes marginais, tradicionalmente ocupadas por agricultores familiares e minorias étnicas. A interação entre esses atores não se dá de forma pacífica, “(...) a implantação de grandes paisagens industriais (hidrelétricas, monoculturas de soja, cana-de- açúcar e eucalipto) redunda, assim, em confrontos violentos e experiências diversas de violação de direitos humanos” (ZHOURI e OLIVEIRA, 2007, p. 121), produzindo zonas de conflito e disputa diante dos processos de expropriação das populações atingidas. Na região de instalação da UHE Belo Monte e do projeto de mineração da Belo Sun é possível observar disputas em torno do projeto de desenvolvimento em curso. A população, os movimentos sociais e mesmo alguns atores do setor público, mostram insatisfação com os resultados do processo de instalação da hidrelétrica e desconfiam das promessas de melhoria oferecidas por Belo Sun. Com relação à conceituação de grande projeto de desenvolvimento, outra liderança importante na luta contra a hidrelétrica, Dona Antônia Mello, fundadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS) de Altamira, problematiza: Vocês falaram aqui que vocês tinham tudo, viviam bem, em harmonia, não eram pobres, não eram ameaçados, tinham paz. Vocês viviam num modo grande de viver, de qualidade de vida. Isso é grande. O que é grande pra nós? Grande pra nós é aquilo que dá vida, satisfação, alegria, prosperidade. Que dá qualidade de vida, que dá felicidade de viver. Isso é grande para nós. Vocês não concordam? O que é que Belo Monte é grande? Grande desastre. Belo Sun, é grande? É um desastre. Nós consideramos isso no Xingu Vivo, como uns monstros de destruição e morte. Não posso dizer que um projeto desse é grande. De modo nenhum (Antônia Mello, Vila da Ressaca, outubro 2016) 11 . A negação dos projetos explicita a recusa de formas de controle sobre o destino da população. Revela o desejo de autodeterminação dos povos, a necessidade de “(...) assumir o próprio destino e não estagná-lo ou retardá-lo” (PERROT, 2008, p. 227). Para o Oliver-Smith 11 Intervenção de Antônia Melo, Liderança do Movimento Xingu Vivo para Sempre, em audiência pública realizada na Vila da Ressaca – Senador José Porfírio/PA, em outubro de 2016. Banco de dados da pesquisadora, arquivo em .mp3. 33 (2006), a resistência brota da percepção de que aos mais vulneráveis recaem fardos injustos dos custos do desenvolvimento “(...) that this constitues a violation of basic human and environmental rights 12 ” (p. 143). Tanto Dona Gracinda como Dona Antônia Mello, figuras históricas da resistência à Belo Monte, denunciam em suas falas que não é este tipo de desenvolvimento que desejam. As duas mulheres questionam em seu discurso o desenvolvimento prometido pelos portadores do tempo hegemônico, o tempo do capitalismo, que gira em função de sua acumulação e ampliação de lucros e impede outras possibilidades para o futuro da região. 12 “que constituem violações de direitos humanos e ambientais básicos” (OLIVER-SMITH, 2006, p. 143, tradução própria) 34 1.2 Volta Grande do Xingu na rota do capital As empreitadas para anexação e apropriação da Amazônia ao território nacional, bem como a conformação desta em uma região com uma unidade em si, refletem-se nas transformações vividas na Volta Grande do Xingu. A Amazônia, de acordo com Becker (2009), constitui uma fronteira-mundi, espaço de grande valor estratégico para a economia mundial, sendo sua constituição marcada pela constante interferência de forças externas, cujo objetivo central era a integração ao Estado nacional e a exploração das riquezas ali presentes (p. 202). A autora aponta para três particularidades do processo de construção regional da Amazônia: a primeira diz respeito à apropriação tardia pelos colonizadores, com disputa por múltiplos atores; a segunda refere-se aos surtos de valorização dos produtos extraídos da floresta no mercado internacional (cacau e borracha, por exemplo), seguidos por períodos de estagnação; e a terceira trata-se das dificuldades de controle do território, extenso, com povoamento esparso e processo de implementação da base econômica malsucedido (BECKER, 2009). A criação da Amazônia Legal, nos anos 1960 13 , corresponde a um primeiro esforço regionalizador administrativo, buscando constituir a Amazônia como um conjunto homogêneo dentro da escala nacional-regional, ainda que fragmentado em duas grandes sub- regiões: a Amazônia Oriental, com intensa ação estatal, e Amazônia Meridional, norte do Mato Grosso, com forte presença do agronegócio. Outros subespaços surgem, sobretudo por meio da territorialização dos grandes projetos e das rodovias, criando regiões específicas que combinam ação estatal e privadas com as dinâmicas anteriores, conformando identidades socioeconômica distintas (BECKER, 2009). A região, como sociedade territorialmente organizada, amalgamada por uma realidade histórica específica, constitui uma força política em si, capaz de conduzir seu próprio processo histórico (BECKER, 1988). Para Becker (2005) atualmente a “Amazônia não é mais mera fronteira de expansão de forças exógenas nacionais ou internacionais, mas sim uma região no sistema espacial nacional, com estrutura produtiva própria e múltiplos projetos de diferentes atores” (p. 82). Segundo a autora, a região possui atualmente dinâmica própria sustentada na 13 A lei de criação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) em 1953 por Getulio Vargas (http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1806-6-janeiro-1953-367342- publicacaooriginal-1-pl.html), elenca os Estados que comporiam a região. Posteriormente o termo Amazônia Legal seria retomado como unidade de planejamento com a criação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) por Castello Branco em 1966 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5173.htm). http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1806-6-janeiro-1953-367342-publicacaooriginal-1-pl.html http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1806-6-janeiro-1953-367342-publicacaooriginal-1-pl.html http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5173.htm 35 diversidade de povos e interesses atuantes, cuja territorialização possibilita uma sub- regionalização em três partes: uma delas corresponde ao chamado “arco do fogo” denominado pela autora como “arco de povoamento consolidado” (p. 82), região cortada por estradas e que é alvo da expansão do agronegócio, onde o número de cidades e a densidade demográfica são maiores; a segunda seria a “Amazônia central”, que corresponde à toda porção ao norte e central do Pará, região instável e frágil, disputada por interesses privados, sobretudo mineradoras, alvo de projetos logísticos e energéticos; e a última, a “Amazônia ocidental”, onde encontram-se as maiores áreas preservadas, com povoamento pontual em Manaus, intensificada por conta da Zona Franca. Toledo e Boechat (2012) discutem a formação regional com base em Oliveira (1977), entendendo que o elemento nodal da região, aquilo que diferencia geograficamente os espaços, são as relações políticas e econômicas constituídas no processo de territorialização do capital. Particularidades regionais dão-se através da formação histórica, conectadas com as relações de produção de mercadorias e da força de trabalho. Os autores destacam a regionalização que emergiu durante o período colonial no Brasil, argumentando que o processo de formação e reprodução das relações sociais de produção guardam em si o processo de formação de uma região. Oliveira (2008 [1977]) buscou construir um conceito econômico e político de região fundamentado nas especificidades da reprodução do capital, “nas formas que o processo de acumulação assume, na estrutura de classes peculiar a essas formas e, portanto, também nas formas de luta de classes e do conflito social” (p. 145). Para o autor as regiões se determinam na medida em que se diferenciam os espaços sob os aspectos assinalados, havendo uma tendência para “completa homogeneização da reprodução do capital e suas formas” (p. 146). Assim, coloca-se no longo prazo a latência do desaparecimento da região. O autor retoma a problemática do imperialismo e do desenvolvimento desigual e aponta para duas faces importantes a respeito: uma face interna – forças que tendem à homogeneização das regiões – e outra face externa – forças que criam diferenças regionais para seu próprio proveito. As tensões decorrentes estão na base do processo de desenvolvimento desigual (sobre o qual trataremos no segundo capítulo), de forma que uma região insere-se num “quadro de referências que inclua outras regiões, com níveis distintos de reprodução do capital e relações de produção” (p. 148), podendo ser observadas tanto no interior de uma economia nacional, como globalmente, resultante de diferenças na divisão regional do trabalho. 36 Presididas pelo modo de produção capitalista, as regiões seriam assim “espaços socioeconômicos em que uma das formas do capital se sobrepõe às demais, homogeneizando a „região” (OLIVEIRA, 2008, p. 149). A hegemonia regional, essa forma predominante do capital que atua como força homogeneizadora, pode encontrar-se fora da região, como no caso da região Nordeste tratada na obra do autor, ou como no caso da Amazônia, como veremos a seguir. Neste caso, o Estado, através do planejamento regional, cumpre papel importante, devendo ser interpretado não meramente como mediador de desequilíbrios regionais, mas sim como capturado pelas formas diferenciadas de reprodução do capital e das relações de produção – elemento central para a compreensão da região – “para forçar a passagem no rumo de uma homogeneização ou, conforme é comumente descrito pela literatura sobre planejamento regional, no rumo da integração nacional” (p. 149). Heidemann, Toledo e Boechat (2014) entendem que a região é também uma escala da territorialização do Estado, devendo ser interpretada como “um momento da territorialização do Estado nacional” (p. 59). Tomada como reserva de capital, a região se conforma no momento em que o capital ou o Estado nacional, ou ambos em associação, se impõem homogeneizando as relações em função da produção de mercadorias. Segundo os autores, “as regiões são marcadas por relações de trabalho não assalariadas, sendo momento do processo de expropriação que cria as condições para o assalariamento” (p. 60). Dessa forma as regiões estariam diretamente conectadas com o processo de acumulação do capital, sendo seu lócus de reprodução. A acumulação do capital seria o processo geral a ser estudado, que ao territorializar-se conforma a região através de “processos particulares de expropriação” (p. 60). Com base nos autores citados acima, procuramos apreender a região como resultante do amálgama político econômico e histórico, que emerge da territorialização do capital e diferenciação espacial decorrentes da atuação de formas hegemônicas do processo de acumulação. Sendo assim, compreender o processo histórico de territorialização desses interesses (do capital e do Estado) é o caminho a ser perseguido para compreensão da Amazônia enquanto região em si, como propõe Becker (2005), e mesmo a Volta Grande do Xingu como uma região de territorialização do capital. Na área aqui estudada, duas regiões se interseccionam: a Transamazônica-Xingu e a Volta Grande do Xingu. A Volta Grande, região conformada a partir da circulação pelo rio, compreende 4 municípios: Altamira, Anapu, Senador José Porfírio e Vitória do Xingu. Altamira é um dos maiores municípios do Brasil, tendo grande parte de seu território 37 demarcado por terras indígenas ou no interior de unidades de conservação. A sede municipal fica ao norte do município, à beira do Xingu e é cortada pela Transamazônica. Concentra a população municipal na área urbana e em seu entorno rural. Funciona como centro regional, aglutinando serviços que atendem a população dos municípios vizinhos. A cidade de Altamira está implantada em um dos cotovelos da Volta Grande, que corresponde ao curso do rio orientado por falhas geológicas, que faz uma curva acentuada em formato de U. Os declives neste ponto do médio Xingu favorecem a implantação da hidrelétrica. E é neste trecho que o ouro está disponível para extração – fora de unidades de conservação ou terras indígenas – . A circulação pelo rio conecta as comunidades ribeirinhas a Altamira e ao baixo Xingu, e a pesca, o garimpo e a pequena agricultura são atividades predominantes. Transamazônica-Xingu é a região administrativa paraense que corresponde à região conformada pelo eixo de circulação da Transamazônica em contato com as cidades Xinguaras. São, ao todo, 10 municípios no território reconhecido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA em 2010. Altamira, Senador José Porfírio, Anapú Vitória do Xingu e Porto de Moz (baixo Xingu), ficam às margens do Xingu, enquanto os demais municípios estão apenas à beira da rodovia, Pacajá, Brasil Novo, Medicilândia, Placas e Uruará. Os municípios em 2009 somavam população de 336 mil habitantes, 52% vivendo nas áreas urbanas. É no eixo da rodovia que operam as principais cadeias produtivas, todas com base agrícola, sendo o cacau, o gado e a cadeia madeireira (que opera em grande parte ilegalmente) as mais expressivas (MDA, 2010). (Ver ANEXO 3 – Mapa de localização.) A UHE Belo Monte e Belo Sun Mining incidem diretamente sobre a Volta Grande e influenciam as dinâmicas da Transamazônica-Xingu. Tendo como alvo as comunidades ribeirinhas da Ilha da Fazenda e Vila da Ressaca atingidas pelo Trecho de Vazão Reduzida, o recorte da pesquisa privilegia o eixo da navegação ao eixo da rodovia, e por isso tratamos a região como Volta Grande do Xingu. Os ciclos econômicos deixaram suas marcas e até os dias atuais a Volta Grande convive com estruturas e dinâmicas iniciadas em momentos anteriores. Os estudos que abordam a temática majoritariamente passam pela caracterização das atividades econômicas realizadas e sua relação com a forma de circulação no território (MACEDO 2016; PORTO-GONÇALVES, 2005). Sem pretensão de qualquer originalidade e compreendendo a importância das periodizações para interpretação da formação regional, abordamos o histórico de ocupação da Volta Grande do Xingu por meio da periodização que combina a investigação do avanço das relações capitalistas com 38 processos de migração que levaram para a região parte da população que hoje habita a Volta Grande, atingida pelos empreendimentos em curso. Sendo assim, três momentos são identificados como importantes: a exploração do látex das seringueiras, primeiro movimento de intensa transumância para a Volta Grande e início da constituição da Amazônia enquanto região, bem como sua entrada marginal na economia internacional; a instalação da rodovia transamazônica que, combinada aos projetos de colonização e reforma agrária, levou grandes contingentes de migrantes para a região e intensificou o processo de uso agrícola, consolidando economias de fronteira; e por fim, os grandes projetos, que fazem da Volta Grande um imenso canteiro de obras, aprofundando a apropriação deste território por parte dos grandes interesses do capital imperialista, e arrasta consigo milhares de trabalhadores. 39 1.2.1 A seringa escorre pelo rio extração de látex – final do séc. XIX e início do séc. XX A Volta Grande do Xingu teve os primeiros contatos com a lógica colonial com a chegada das missões. As primeiras ocupações que originaram Altamira – fundada em 1911 – deram-se através das empreitadas dos missionários para catequização dos índios que viviam na região, e os primeiros registros datam de 1750 (MIRANDA NETO e HERRERA, 2016; MDA, 2010). A presença de rochedos no leito do Rio neste trecho obrigava a interrupção do curso das navegações, fazendo do povoamento que surgia parada obrigatória e em seguida entreposto comercial entre o baixo e médio Xingu. A consolidação da apropriação deste território deu-se mais tarde, no final do século XIX já durante a instalação do ciclo da borracha. Os seringalistas avançaram sobre a bacia do Xingu seguindo o curso dos rios e chegaram à Volta Grande neste período. Confrontos com os povos da região, dentre os quais as etnias Juruna, Xipaya e Kuruaya, foram constantes até que pudessem estabelecer as colocações dos seringalistas. A Amazônia teve participação tardia na formação econômica do Brasil, com um processo histórico diferente do restante do país, relacionando-se durante quase todo o período colonial diretamente com o “contexto internacional” (BECKER, 2009, p. 201). Moraes (2001) aponta que durante as primeiras décadas da ocupação europeia o Grão-Pará foi uma província separada do Brasil, conectada diretamente com o Conselho das Índias, sem passar por Portugal (p. 109). Grão Pará e Maranhão constituíam outra colônia: a colônia do Maranhão. Correntes e marés dificultavam a navegação de São Luís e Belém para o litoral oriental do Brasil, de forma que resultava mais fácil ir destas localidades à Europa ou Antilhas que seguir para o Nordeste ou Rio de Janeiro. O Grão-Pará foi de fato anexado ao Brasil com o avanço das tropas e boiadas já em meados do século XVII (MORAES, 2001, p. 110-111). Segundo Becker (2009), enquanto na costa leste brasileira Portugal conseguiu implantar uma base econômica estável, na Amazônia coexistiram “a expansão mercantil com o sistema colonial, a crise do absolutismo monárquico europeu, e a disputa de escravos e mercados potenciais, de rotas marítimas, terra e matéria-prima” (BECKER, 2009, p. 204). Os esforços para apropriação da Amazônia se intensificaram no final do século XVI, mediante disputa entre as coroas europeias, por meio sobretudo de grandes expedições, viajantes e das missões jesuítas. As pressões de invasores e o acirramento dos conflitos armados impuseram a necessidade de efetivar a conquista sobre este território e os portugueses avançaram sobre a 40 região, fundando em 1616 a cidade de Belém, que deu início a um conjunto de outros estabelecimentos militares e feitorias, a fim de garantir o controle da foz do Amazonas (BECKER, 2009; PORTO-GONÇALVES, 1989). A conquista foi possível graças aos aldeamentos indígenas, que se multiplicaram na primeira metade do século XVIII, garantindo a incorporação da mão-de-obra indígena à economia da colônia e penetração na bacia amazônica. Neste período a região transformava- se progressivamente em exportadora de produtos florestais, as “drogas do sertão”, cujo extrativismo apoiava-se nas missões jesuítas, que tinham como objetivo a catequização dos índios e a conquista dos territórios para os portugueses. As missões estabeleciam domínio sobre as comunidades indígenas, impunham o cristianismo e a língua geral sobre estes povos e os obrigavam a trabalhar forçosamente. Os aldeamentos localizavam-se junto aos grandes rios, facilitando o contato e relações com Belém. O contato e exploração da mão-de-obra indígena causou grande dizimação da população, que padecia com as condições de trabalho e com as doenças trazidas pelos brancos (PORTO GONÇALVES, 1989, p. 56-58). Em toda a Amazônia os esforços coloniais orientavam-se pela necessidade de evitar a presença de “estrangeiros”. Disputas entre portugueses, ingleses, espanhóis e franceses travaram-se nos territórios, pressionando para maior presença do Estado. As políticas pombalinas, no século XVIII, intensificaram a dominação mercantil na região, acentuando a caça ao índio. A ampliação do controle deu-se sobretudo pelo monopólio das relações comerciais concedido à Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, que culminou na expulsão dos jesuítas com confisco dos bens da igreja. Doação de terras, introdução do trabalho escravo, estímulo à agricultura e pecuária, foram medidas adotadas para modernização, combinando “investimento de dinheiro e a escravidão” em contraponto às políticas jesuítas (PORTO-GONÇALVES, 2015, p. 82). A decadência da economia amazônica desde fins do século XVIII levou à crise do sistema de exploração de mão-de-obra indígena e a região mergulhou num estado de “letargia econômica” (FURTADO, 2016, p. 189). Ainda se mantinha dinâmica uma pequena zona do Pará, com agricultura voltada à exportação integrada comercialmente à produção maranhense como resultado dos esforços criados na época de Pombal. Já se havia produzido na região arroz e algodão durante o período napoleônico, mas sem grande expressão para o país. A produção de cacau teve grande destaque em outros pontos da bacia, porém, assim como a extração dos demais produtos da floresta, enfrentava o problema da escassez de mão-de-obra (FURTADO, 2016). 41 Este também foi o caso da borracha, matéria-prima cuja procura expandiu exponencialmente no mercado mundial, sobretudo no início do século XX. O látex já era exportado desde 1820, com volumes crescentes do produto chegando a alcançar 3700 toneladas nos anos 1860 14 . Já desde essa época as casas aviadoras estimulavam que novos seringais fossem plantados em terras distantes subindo o curso dos rios – terras que chegavam a cruzar fronteiras do território brasileiro avançando sobre países vizinhos, como no caso do Purus e Alto Juruá, até então considerados território boliviano (PORTO-GONÇALVES, 2015a). A alta dos preços e aumento da demanda pela borracha acompanhou a expansão da produção de automóveis nos países industrializados, que marcou o final do século XIX e início do século XX. No final do século XIX a Amazônia concentrava os estoques de seringueiras, árvores que secretam látex utilizado para produção da borracha, porém a extração padecia com a falta de mão-de-obra. Esforços foram orientados para estabelecimento da atividade e a região foi palco da extração intensiva deste material até que se organizasse nova saída, mais competitiva, para a demanda crescente sobre a borracha. De acordo com Becker (2009) foi a economia da borracha que impulsionou a configuração da Amazônia como uma unidade regional, tanto pelo crescimento populacional promovido como pelo crescimento econômico. No final do século XIX, o Brasil tornava-se o maior fornecedor de borracha do mundo, e em 1912 a borracha era o “segundo maior produto de exportação do país”, ficando atrás do café (p. 213). Para viabilização da expansão da extração de látex foi necessária a promoção da migração de trabalhadores para a região. Entre 1870 e 1910, cerca de 500 mil trabalhadores chegaram à Amazônia destacados para o trabalho nos seringais. Oriundos do Nordeste, sobretudo dos sertões do Ceará e do Rio Grande do Norte, os novos seringueiros correspondiam aos trabalhadores liberados pela crise da produção açucareira iniciada em meados do século XVII, dedicados à pecuária de subsistência ou à atividade algodoeira instável, que respondia aos surtos de expansão e retração dos mercados externos. A grande seca de 1877-1880 devastou a região nordeste, causando a morte dos rebanhos e o sofrimento de cerca de 200 mil pessoas, orientadas pelo movimento de ajuda a migrar para as cidades litorâneas e para outras regiões do país, sobretudo para a Amazônia 15 . Os governos dos estados amazônicos subsidiaram a propaganda e gastos com 14 Celso Furtado, 2016, p. 190. 15 “Um aspecto importante é que nessa mesma época o café estava no auge de sua expansão no vale do Paraíba, no Rio de Janeiro, e já entrando no Planalto Paulista, mas nem por isso o nordestino optou em ir para o sul do país, preferindo se deslocar em massa para a Amazônia (Porto-Gonçalves, 2004). Para entendermos essa opção, há que se considerar que nas relações de trabalho predominantes nos sertões de gado nordestino não havia trabalho escravo, como nas fazendas de café do Sul e Sudeste. Assim, se a seca explica a razão imediata da 42 transporte, iniciando a corrente migratória para o norte do país (FURTADO, 2016, p. 190- 194). As políticas do governo ainda no Império para estimular o fluxo de mão-de-obra para Amazônia solucionavam assim dois problemas: o da produção da borracha e as “tensões da crise e pressões para reestruturação fundiária no Nordeste” (PORTO-GONÇALVES, 1989, p. 60). Contratados por agentes vinculados a casas aviadoras em Belém ou Manaus, os migrantes nordestinos encontravam nos seringais condições de trabalho bastante dramáticas. Começavam já endividados com os custos da viagem, despesas com alimentação e instalação, ferramentas e instrumentos de trabalho, desaguando rapidamente num sistema de servidão em que o isolamento, a precariedade das condições de trabalho, a insalubridade e os perigos da floresta (animais, doenças endêmicas, conflitos com povos indígenas), encurtavam a vida dos trabalhadores (FURTADO, 2016, p. 195-196). Base de uma longa cadeia, os trabalhadores contratados pelos seringalistas que comandavam a extração da borracha viviam nas colocações impedidos de produzir qualquer tipo de suporte à subsistência (pesca e agricultura, por exemplo). Dependiam totalmente dos produtos vendidos nos seringais, num sistema conhecido como aviamento – sistema de crédito sem dinheiro, “base de toda a relação comercial por todo vale amazônico”, em que eram antecipados ao trabalhador utensílios e produtos de primeira necessidade mediante o compromisso de entrega de toda a produção (PORTO-GONÇALVES, 2015a, p. 86). A ligação entre os seringais e os mercados internacionais constituía-se de alguns elos, entre eles o Marreteiro ou Regatão, que percorria os rios vendendo mercadorias de primeira necessidade e ferramentas com preços altos, e comprando de volta a borracha a preços baixos. Este agente era o entreposto principal entre os trabalhadores e as casas comerciais localizadas nas cidades da região (Santarém, Belém e Manaus), subordinadas por sua vez aos centros internacionais que financiavam a produção da borracha, sediados em Nova York e Londres (PORTO-GONÇALVES, 1989, p. 60-61). Localizado nas beiradas dos rios, o barracão do seringalista – posto de comércio – ditava a regra de organização do seringal, orientando a estruturação das colocações dos seringueiros, que compreendiam ao menos duas estradas de seringa e a clareira residencial. A borracha extraída era aglutinada em “pélas de 60kg” transportadas uma vez por ano, no migração, não explica a opção do migrante preferencialmente pela Amazônia e não pelos cafezais do sudeste brasileiro. A Amazônia aparece no imaginário do nordestino como terra da liberdade e isso conforma parte da subjetividade do homem amazônico, tal como a do escravo que fugia da fazenda escravocrata para criar os quilombos amazônicos” (PORTO-GONÇALVES, 2015b, p. 79). 43 período das cheias, flutuando pelos igapós e igarapés até os barracões. Em seguida baixavam pelo rio amarradas umas às outras até um entreposto maior e de lá seguiam em barcos até Belém, onde eram embarcadas mais uma vez nos navios britânicos e norte-americanos (DE ALMEIDA, 2004, p. 37). Seringueiros recém-chegados eram batizados de brabos, não manejavam as técnicas extrativas e as formas de sobrevivência na floresta, padeciam com o volume de trabalho, adoeciam e raramente conseguiam pagar suas dívidas adquiridas com os gastos das viagens. Na medida em que iam aprendendo o ofício passavam a ser chamados mansos. Desconheciam os mecanismos dos preços, muitos eram analfabetos e não conseguiam acompanhar os registros de produtividade, ficando a mercê dos gerentes das colocações. A dívida era permanente e estrutural e, combinada com o isolamento geográfico, se apresentava como a base de sustentação dos seringais (PORTO-GONÇALVES, 2015a, p. 86-88). O sistema de aviamento constituía redes que ligavam “por meio da dívida os seringueiros aos regatões e aos gerentes”, estes por sua vez aos patrões, até chegar às casas que exportavam a borracha e que, por sua vez, eram devedoras das empresas britânicas e americanas que compravam e financiavam a produção seringueira (DE ALMEIDA, 2004, p. 37). Porto-Gonçalves (1989) destaca elemento importante da relação fundiária do seringalista, a quem “interessava menos a propriedade da terra e mais a concessão para a extração dos produtos da floresta” (p. 62), de forma que ao exaurir uma área migrava-se os seringueiros para uma nova colocação próxima. As concessões, ao final, nunca foram devolvidas ao Estado, sendo esta uma das bases do caos fundiário amazônico, em que grande parte das terras são devolutas, porém mantidas sob controle destes mesmos seringalistas e comerciantes historicamente. “A apropriação privada de bens públicos já tão característica no Brasil como um todo, ganha na Amazônia a dimensão de escândalo” (PORTO- GONÇALVES, 1989, p. 62). A decadência da economia da borracha amazônica – que em seu período áureo chegou a rivalizar com o café com relação à entrada de divisas no país – data ainda dos anos 1920. A expansão da produção do látex na Ásia somada à ausência de políticas de preços no Brasil culminou no abandono das terras pelos gerentes e patrões, com generalização da miséria nos seringais. Algumas tentativas de cultivo racional de seringueiras haviam sido empreendidas, com o exemplo do famoso caso de Fordlândia 16 , porém, além da complexidade para enfrentar 16 Company Town em estilo norte americano fundada em 1928 à beira do rio Tapajós por Henry Ford, que investiu no plantio de seringa e na busca de espécies resistentes e com alta produtividade. O projeto não obteve sucesso e Ford entregou a cidade ao governo brasileiro em 1945. 44 pragas e aumentar a produtividade das árvores, pressões do mercado externo e o difícil controle dos seringueiros, que encontravam na disponibilidade de terras e fartura de peixes e animais possibilidades de escapar das condições de servidão do sistema de aviamento, levaram à crise da produção do látex (PORTO-GONÇALVES, 2015a, p. 90). Para De Almeida (2004), a situação representava uma luta para domesticação da floresta e controle do trabalho, que não funcionou na Amazônia, mas sim nas colônias da Ásia (p. 37). Se em 1912, auge da produção brasileira de borracha, as exportações atingiram cerca de 42 mil toneladas, as plantações da Malásia, por volta de 1920, já atingiam mais de 400 mil toneladas, vendidas a preços menores (DE ALMEIDA, 2004, p. 38). Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), um novo surto da borracha avançou sobre a Amazônia, impulsionado pelo impedimento do acesso dos norte-americanos e aliados aos mares asiáticos, controlados pelos japoneses (PORTO-GONÇALVES, 1989, p. 62-63). A partir de acordo firmado entre o governo brasileiro e os Estados Unidos, travou-se nova “batalha da borracha”, contratando novos migrantes para incrementar os braços nos seringais, os chamados de “soldados da borracha”. Porém, o esforço não alcançou os objetivos esperados, que eram a produção em curto prazo e em larga escala, e os seringais brasileiros não conseguiram competir por muito tempo dados aos baixos níveis de produtividade, reputada, entre outros fatores, às dificuldades de controlar os trabalhadores e obrigá-los a manter sua dedicação exclusiva à extração da seringa (DE ALMEIDA, 2004). Um seringal com setenta chefes de famílias, dispersos por 25 ou 30 colocações, ocupava uma extensão de cerca de 30 mil hectares de floresta, entrecortada por inúmeros caminhos e atalhos. Estava, pois, fora de questão fiscalizar diretamente a rotina diária de trabalho. Não era possível impedir as famílias de implementar roçados e fazer farinha, e menos ainda de caçar para seu sustento: isso era uma espécie de direito adquirido. O que se podia fazer era o controle do volume de borracha, mas mesmo neste aspecto a rede de comércio clandestino nas fronteiras de seringal tornava inevitável o “contrabando de borracha”. Disso resultavam conflitos crônicos entre patrões e regatões, patrões e seringueiros. Mas a escassez de braços, numa economia que precisava absolutamente de mão-de-obra para funcionar, sem ter nenhuma inovação técnica que a substituísse, favorecia, em certo sentido, os próprios seringueiros (DE ALMEIDA, 2004, p. 39). A falência do sistema acarretou grande decréscimo populacional, sobretudo entre os anos 1920 e 1940. Porém, trabalhadores sem recursos para voltar para se