UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA ÁREA DE ENSINO E APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA E SEUS FUNDAMENTOS FILOSÓFICO-CIENTÍFICOS Construção de narrativas matemáticas na exploração de problemas históricos com o GeoGebra LARA MARTINS BARBOSA INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS RIO CLARO – SP 2023 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro Lara Martins Barbosa Construção de narrativas matemáticas na exploração de problemas históricos com o GeoGebra Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Educação Matemática. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Scucuglia Rodrigues da Silva Rio Claro – SP 2023 B238c Barbosa, Lara Martins Construção de narrativas matemáticas na exploração de problemas históricos com o GeoGebra / Lara Martins Barbosa. -- Rio Claro, 2023 178 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro Orientador: Ricardo Scucuglia Rodrigues da Silva 1. Demonstração. 2. Verdades Matemáticas. 3. Arquimedes. 4. Educação Matemática. 5. Tecnologias Digitais. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro Lara Martins Barbosa Construção de narrativas matemáticas na exploração de problemas históricos com o GeoGebra Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Educação Matemática. Comissão Examinadora Prof. Dr. Ricardo Scucuglia Rodrigues da Silva – Orientador IBILCE/UNESP/São José do Rio Preto (SP) Profa. Dra. Aparecida Santana de Souza Chiari INMA/UFMS/Campo Grande (MS) Prof. Dr. Henrique Lazari IGCE/UNESP/Rio Claro (SP) Profa. Dra. Giselle Costa de Sousa CCET/UFRN/Natal (RN) Prof. Dr. Marcelo de Carvalho Borba IGCE/UNESP/Rio Claro (SP) Resultado: Aprovada Rio Claro – SP, 06 de Julho de 2023 Dedico esta tese aos meus pais Ligia e Alexandre e a todos que acreditam e defendem a Educação pública, gratuita e de qualidade. AGRADECIMENTOS Expresso meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, colaboraram para tornar este estudo uma realidade palpável. É uma sensação incrível poder olhar para trás e reconhecer as mãos amigas que me ajudaram a construir cada passo desse percurso. Ligia, Alexandre e Ana Clara, vocês são meus maiores amores, independentemente de qualquer distância. Agradeço por sempre terem sido a fonte de amparo e carinho que me fizeram sentir acolhida, mesmo em meio a quilômetros de distância. Suas orações e apoio foram pilares essenciais que me permitiram trilhar esse caminho e realizar as escolhas que me trouxeram até aqui. Lucas, obrigada por ser meu par! Cada afeto, gesto e sorriso que experimentamos ao longo desses períodos de escrita, e que ainda estamos destinados a vivenciar e compartilhar, têm um significado especial para mim. Sua presença foi fundamental em todo esse processo, e valorizo imensamente tudo o que construímos juntos e a nova família que você me deu: Gilza, Saulo, André, Nina, Dona Marilene e Sandro, obrigada! Professor Ricardo Scucuglia, meu sincero reconhecimento por suas orientações e ensinamentos. A realização desta tese não seria concretizada sem sua imensa colaboração e paciência. Obrigada por todos os instantes dedicados a mim e a esta pesquisa. As docentes Aparecida Chiari e Giselle Sousa e ao docente Henrique Lazari, agradeço por terem aceito integrar esse percurso ao participarem das bancas de qualificação e defesa. Suas contribuições moldaram este trabalho de maneira significativa. Professor Marcelo Borba, líder inspirador do GPIMEM, suas orientações e incentivos foram essenciais para minha evolução acadêmica, política e pessoal. Agradeço o respeito, companheirismo e envolvimento que tanto me inspiram, que bom é poder te chamar de amigo! Bruna, Camila, Hannah e Jeimy ter vocês comigo traz cores em minha vida. Através de nossas vivências compartilhadas, me tornei a mulher que sou. Cada ligação, encontro ou mensagem meu coração se aquece. Que nossos afetos sejam uma constante. Aos colegas do GPIMEM e PPGEM, sou grata por cada encontro que delineou meu crescimento como pesquisadora. A troca constante de ideias e aprendizados permitiu meu amadurecimento. Nossas discussões após Seminários e Jornadas abriram janelas para os vastos horizontes da Educação Matemática. A influência de vocês se encontra entrelaçada nesta tese. Aos participantes da pesquisa, agradeço por serem a base das interações durante a disciplina investigada, contribuindo de forma fundamental para a produção dos dados. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. RESUMO Esta tese apresenta uma pesquisa que teve como objetivo investigar os processos de construção de narrativas matemáticas, por um grupo de pós-graduandos, em um cenário envolvendo História da Matemática e o uso de tecnologias. Especificamente, buscou-se analisar como tais processos ocorreram nesse grupo ao explorarem demonstrações de problemas históricos do cálculo, em especial a Quadratura da Parábola e a Espiral de Arquimedes, com o software GeoGebra. Esta pesquisa seguiu uma abordagem metodológica qualitativa e teve como cenário de investigação a disciplina “Gênese do Pensamento Diferencial” oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus Rio Claro concomitante ao Programa de Pós-Graduação Ensino e Processos Formativos, interunidades, também da UNESP. Os procedimentos metodológicos utilizados e que constituem os dados desta pesquisa são: observação participante e registros em diário de campo; filmagens e gravação dos encontros semanais da disciplina e de encontros complementares onde os discentes se reuniam para discutir e dialogar sobre os problemas; registros de interações no WhatsApp; construções realizadas no GeoGebra; e arquivos em formato de artigo produzidos pelos participantes. Os resultados apontam que as diferentes estratégias adotadas possibilitaram processos de identidade e atribuição de diferentes significados ao uso de tecnologias digitais vinculado às demonstrações durante a comunicação de ideias. Essas combinações potencializaram e expandiram as discussões sobre verdades matemáticas, abrindo possibilidades ao poder argumentativo atrelado ao uso do GeoGebra. É possível reconhecer que os grupos foram capazes de produzir narrativas matemáticas por meio das articulações e estudos propostos. Ao explorarem problemas clássicos da Matemática, em um contexto histórico, e com limitação de resultados matemáticos, os pós-graduandos assumiram identidades de pensadores da época de Arquimedes (287 a.C – 212 a.C), estabelecendo relações entre aspectos e objetos matemáticos em um contexto histórico. Essa abordagem permitiu que modos de pensamento se entrelaçassem e fossem incorporados às narrativas matemáticas criadas, enfatizando a maneira como a atividade matemática, envolvendo problemas da História da Matemática e articulados ao uso e mediação de tecnologias digitais, evidencia a premissa de que o pensamento matemático envolve modos narrativos de pensamento. Palavras-Chave: Demonstração. Verdades Matemáticas. Arquimedes. Educação Matemática. Tecnologias Digitais. ABSTRACT This thesis presents a research that aimed to investigate the construction processes of mathematical narratives, by a group of graduate students, in a scenario involving the History of Mathematics and the use of technologies. Specifically, we sought to analyze how such processes occurred in this group when they explored demonstrations of historical calculus problems, especially the Quadrature of the Parabola and the Spiral of Archimedes, with the GeoGebra software. This research followed a qualitative methodological approach and had as an investigation scenario the discipline “Genesis of Differential Thinking” offered by the Graduate Program in Mathematics Education of the Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), Campus Rio Claro concomitant with the Graduate Program Teaching and Training Processes, inter-units, also from UNESP. The methodological procedures used and which constitute the data of this research are: participant observation and records in a field diary; filming and recording of the weekly meetings of the discipline and of complementary meetings where the students gathered to discuss and dialogue about the problems; records of interactions on WhatsApp; constructions carried out in GeoGebra; and files in article format produced by the participants. The results indicate that the different strategies adopted enabled identity processes and attribution of different meanings to the use of digital technologies linked to demonstrations during the communication of ideas. These combinations potentiated and expanded discussions about mathematical truths, opening up possibilities for the argumentative power linked to the use of GeoGebra. It is possible to recognize that the groups were able to produce mathematical narratives through the articulations and proposed studies. By exploring classical Mathematics problems, in a historical context, and with limited mathematical results, graduate students assumed identities of thinkers from the time of Archimedes (287 b.C – 212 a.D), establishing relationships between mathematical aspects and objects in a historical context. This approach allowed modes of thought to be interwoven and incorporated into the mathematical narratives created, emphasizing the way in which mathematical activity, involving problems from the History of Mathematics and articulated with the use and mediation of digital technologies, highlights the premise that mathematical thinking involves narrative modes of thought. Keywords: Proof. Mathematical Truths. Archimedes. Mathematics Education. Digital Technologies. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Ações dos estudiosos para a criação do Cálculo e sua fundamentação ................. 20 Figura 2 – Momentos de trabalho do Grupo 1 ........................................................................ 81 Figura 3 – Espiral de Arquimedes ........................................................................................... 82 Figura 4 – Momentos de trabalho do Grupo 2 ........................................................................ 83 Figura 5 – Material estudado pelo Grupo 1 ............................................................................. 87 Figura 6 – Parábola construída por Hércules a partir das instruções de César........................ 91 Figura 7 – Esboço da hipótese e tese do problema da quadratura, utilizando quadro e giz .... 95 Figura 8 – Estudo da demonstração da quadratura, utilizando quadro e giz ........................... 96 Figura 9 – Expressão que contém a dúvida enunciada por Bruna ao final do encontro 2....... 96 Figura 10 – Verificação das relações já conhecidas por Arquimedes e abordagem inicial do problema da quadratura utilizando o GeoGebra ....................................................................... 98 Figura 11 – Exploração da nova abordagem do problema no GeoGebra .............................. 100 Figura 12 – Demonstração analítica da quadratura da parábola apresentada no artigo final ................................................................................................................................................ 103 Figura 13 – Desenvolvimento das etapas apresentada em Sousa (2014) utilizando o GeoGebra ................................................................................................................................................ 105 Figura 14 – Representação final da demonstração no GeoGebra.......................................... 106 Figura 15 – Material estudado pelo Grupo 2 ......................................................................... 113 Figura 16 – Construção preliminar da espiral realizada por Ana no GeoGebra ................... 115 Figura 17 – Construção preliminar da espiral realizada por Helena no GeoGebra ............... 116 Figura 18 – Construção da demonstração do resultado por Arquimedes .............................. 125 Figura 19 – Definições da espiral .......................................................................................... 126 https://d.docs.live.net/233130efe672fd7a/Doutorado%20Unesp%20Rio%20Claro/MINHA%20PESQUISA/TESE/Tese%20para%20Impressão/Tese_Lara_Final.docx#_Toc144074925 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Características de narrativa e suas interpretações ................................................ 33 Quadro 2 – Aspectos da demonstração em Matemática ......................................................... 55 Quadro 3 – Aspectos da prova em Educação Matemática ...................................................... 61 Quadro 4 – Construções realizadas pelo grupo para exploração da Quadratura da Parábola . 77 Quadro 5 – Construções realizadas pelo grupo para exploração da Espiral ........................... 78 Quadro 6 – Movimento da exibição dos elementos das construções no GeoGebra articulados a explicação de César. ............................................................................................................... 107 Quadro 7 – Cordel Quadratura da Parábola .......................................................................... 111 Quadro 8 - Etapas da construção da Espiral de Arquimedes como lugar geométrico e sua imagem ................................................................................................................................... 121 Quadro 9 - Etapas para a construção do paralelogramo de velocidade – Reta tangente a curva e sua imagem .......................................................................................................................... 122 Quadro 10 - Etapas para a construção da trissecção do ângulo, utilizando a Espiral de Arquimedes, e sua imagem ..................................................................................................... 123 Quadro 11 - Etapas para a construção que permite calcular a área abaixo de uma espiral e imagens respectivas ................................................................................................................ 124 Quadro 12 – Construção da espiral como lugar geométrico no GeoGebra ........................... 126 Quadro 13 – Construção da reta tangente a espiral a partir de um paralelogramo no GeoGebra ................................................................................................................................................ 127 Quadro 14 – Construção da trissecção do ângulo no GeoGebra ........................................... 127 Quadro 15 – Construção da área da espiral no GeoGebra .................................................... 128 LISTA DE SIGLAS GdS – Grupo de Sábado GECEM – Grupo de Estudos Contemporâneos e Educação Matemática GEM – Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Matemática GEPFPM – Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Formação do Professor de Matemática Ghoem – Grupo de Pesquisa História Oral e Educação Matemática GIF – Graphics Interchange Format GPIMEM – Grupo de Pesquisa em Informática, outra Mídia e Educação Matemática Grucomat – Grupo Colaborativo em Matemática Hifopem – Grupo de Pesquisa Histórias de Formação de Professores que Ensinam Matemática IGCE – Instituto de Geociências e Ciências Exatas PIBID – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência PET – Programa de Educação Tutorial PPGEM – Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática PRAPEM – Prática Pedagógica em Matemática UFU – Universidade Federal de Uberlândia UFSCar – Universidade Federal de São Carlos UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” SUMÁRIO CAPÍTULO 1 ........................................................................................................................... 14 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 14 1.1 História da Matemática, Narrativas e Tecnologias Digitais ............................................... 15 1.2 Trajetória da pesquisadora .................................................................................................. 24 1.3 Estrutura da tese.................................................................................................................. 27 CAPÍTULO 2 ........................................................................................................................... 30 COMPREENSÕES ACERCA DE NARRATIVAS ................................................................ 30 2.1 A constituição de uma narrativa ......................................................................................... 30 2.2 A narrativa como investigação ........................................................................................... 35 2.3 Narrativas em Educação Matemática ................................................................................. 38 CAPÍTULO 3 ........................................................................................................................... 50 COMPREENSÕES ACERCA DE VERDADES MATEMÁTICAS ...................................... 50 3.1 Breve introdução histórica .................................................................................................. 50 3.2 Perspectivas em Matemática .............................................................................................. 53 3.3 Perspectivas em Educação Matemática .............................................................................. 58 3.4 Perspectivas com o uso do computador .............................................................................. 64 CAPÍTULO 4 ........................................................................................................................... 70 METODOLOGIA DE PESQUISA e PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ................. 70 4.1 Abordagem metodológica – Delimitando a pesquisa ......................................................... 70 4.2 O cenário de investigação ................................................................................................... 72 4.3 Fontes de dados e triangulação ........................................................................................... 73 4.3.1 Observação participante, filmagem e gravação dos encontros ................................... 74 4.3.2 Diário de campo .......................................................................................................... 75 4.3.3 Registros de interações no WhatsApp ........................................................................ 76 4.3.4 Construções no GeoGebra e Artigo escrito pelos grupos ........................................... 76 4.3.5 A triangulação ............................................................................................................. 79 4.4 Os participantes e suas escolhas ......................................................................................... 79 4.4.1 Grupo 1 – A Quadratura da parábola por Arquimedes ............................................... 80 4.4.2 Grupo 2 – A Espiral de Arquimedes ........................................................................... 82 4.5 Método de descrição e análise dos dados ........................................................................... 84 CAPÍTULO 5 ........................................................................................................................... 86 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS ............................................................................... 86 5.1 Investigando o problema da Quadratura da Parábola ......................................................... 86 5.1.1 Encontro 1 ................................................................................................................... 87 5.1.2 Encontro 2 ................................................................................................................... 93 5.1.3 Encontro 3 ................................................................................................................... 97 5.1.4 O artigo final ............................................................................................................. 102 5.1.5 As construções no GeoGebra e a exposição do grupo .............................................. 106 5.2 Investigando o problema da Espiral ................................................................................. 112 5.2.1 Encontro 1 ................................................................................................................. 112 5.2.2 Encontro 2 ................................................................................................................. 114 5.2.3 Encontro 3 ................................................................................................................. 115 5.2.4 Interações no grupo do WhatsApp ............................................................................ 118 5.2.5 O artigo final ............................................................................................................. 120 5.2.6 As construções no GeoGebra e a exposição do grupo .............................................. 125 5.3 Perspectivas reveladas a partir da análise dos dados ........................................................ 129 CAPÍTULO 6 ......................................................................................................................... 134 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 134 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 138 APÊNDICES .......................................................................................................................... 150 APÊNDICE A ........................................................................................................................ 150 APÊNDICE B ......................................................................................................................... 152 ANEXOS ................................................................................................................................ 154 ANEXO A – The Quadrature of the Parabola ........................................................................ 154 ANEXO B – A quadratura da parábola .................................................................................. 158 ANEXO C – Demonstração algébrica realizada pelo Grupo 1 .............................................. 162 ANEXO D – Desenvolvimento das etapas apresentada em Santos (2014) ............................ 166 ANEXO E – The Archimedean Spiral ................................................................................... 170 ANEXO F – A Espiral de Arquimedes .................................................................................. 174 14 CAPÍTULO 1 Será que existe algum ‘eu’ essencial que, de algum modo, já está dentro de nós? (BRUNER, 2014, p. 73) INTRODUÇÃO Diversas pesquisas em Educação Matemática e outras áreas do conhecimento têm explorado a temática que envolve narrativas e investigações narrativas (BRUNER, 1997; GINZBURG, 2000; SILVA, 2020; SINCLAIR; HEALY; SALE, 2009; ZAQUEU-XAVIER, 2019). Tais estudos mostram a potência das narrativas na área acadêmica, em que diferentes pesquisadores consideram a narrativa uma forma de pensamento e de organização da experiência humana. Além disso, há um crescente interesse na investigação narrativa, entre os pesquisadores qualitativos, devido sua forma linguística de exibir a existência humana. (POLKINGHORNE, 1995). Neste estudo, as narrativas serão utilizadas com o objetivo de problematizar os diferentes discursos e modos de operar de estudantes de Pós-Graduação. A abordagem narrativa também tem sido explorada como uma maneira de engajar os alunos de forma emocional e promover a construção de significados pessoais em relação aos conteúdos matemáticos. Por meio das narrativas, os estudantes são convidados a refletir sobre problemas matemáticos e a compartilhar suas próprias experiências, conectando-se com a disciplina de uma maneira mais profunda e autêntica. Além disso, as narrativas podem ajudar a desmistificar a ideia de que a matemática é uma disciplina isolada e abstrata, mostrando como ela está presente em diferentes contextos e situações do cotidiano. (DOXIADIS, 2003). Nesse sentido, a abordagem com narrativas também tem despertado interesse entre os pesquisadores qualitativos devido à sua capacidade de capturar a complexidade e a subjetividade da experiência humana. As narrativas permitem explorar as percepções, emoções e reflexões dos indivíduos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem da matemática, proporcionando insights valiosos para o desenvolvimento de práticas (NEMIROVSKY, 1996). Considerando o campo que investiga a ideia de verdades matemáticas (demonstrações e provas), inúmeros estudos já foram publicados, evidenciando a complexidade e a diversidade de abordagens nesse tema (DOMINGUES, 2002; MERZBACH; BOYER, 2011; ROQUE, 2012). As discussões sobre demonstração e prova têm sido objeto de reflexão há décadas, envolvendo tanto pesquisadores da área da Matemática como Educadores Matemáticos (BICUDO, 2002; STEWART; TALL, 2015). 15 Uma das questões centrais nesse debate diz respeito às diferentes interpretações dos conceitos que permeiam as verdades matemáticas. Matemáticos e Educadores Matemáticos apresentam perspectivas distintas e, muitas vezes, divergentes, ao abordar esses conceitos e ao buscar formas de denotá-los (BALACHEFF, 2000; GARNICA, 1995; DE VILLIERS, 1990). Essas perspectivas variadas podem surgir a partir de diferentes tradições matemáticas, enfoques pedagógicos e experiências individuais, contribuindo para um ambiente de debate e reflexão. No entanto, o debate em torno das verdades matemáticas ganha um novo impulso quando as tecnologias digitais são propostas como mediadoras no processo de compreensão dessas verdades. A introdução das ferramentas digitais na Educação Matemática, como softwares e aplicativos, tem levantado questões sobre como essas tecnologias podem influenciar a forma como concebemos, comunicamos e exploramos as verdades matemáticas (DAVIS, 1993; HANNA, 2000; NÓBRIGA, 2019). A discussão abrange desde a utilização de tecnologias como auxílio para demonstrações e provas até o impacto mais amplo na maneira como os alunos constroem e compreendem o conhecimento matemático. Dessa forma, as reflexões sobre as verdades matemáticas e a influência das tecnologias digitais em um contexto histórico são relevantes para compreendermos a complexidade do ensino e aprendizagem da Matemática e para explorarmos as possibilidades de contribuir com essa área do conhecimento por meio da construção de narrativas matemáticas mediadas por tecnologias digitais. Assim, a questão que norteia tal estudo é: “Como ocorre o processo de construção de narrativas matemáticas por um grupo de pós-graduandos em Educação Matemática ao explorarem problemas da História da Matemática com o GeoGebra?” Nesse contexto, o objetivo desta pesquisa é investigar os processos de construção de narrativas matemáticas, por um grupo de pós-graduandos, em um cenário envolvendo História da Matemática e o uso de tecnologias digitais. Para buscar respostas à questão tive como cenário de investigação a disciplina “Gênese do Pensamento Diferencial” oferecida de forma concomitante no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus Rio Claro e no Programa de Pós-Graduação Ensino e Processos Formativos, interunidades, também da UNESP. 1.1 História da Matemática, Narrativas e Tecnologias Digitais É certo, no meio científico, que a Matemática é uma ciência. No entanto, poderia ser considerada uma forma de literatura? A primeira impressão pode nos levar a rejeitar essa 16 indagação aparentemente estranha, mas a partir de uma reflexão mais profunda podemos encontrar semelhanças. Há uma crescente tendência de explorar a interação mútua entre Matemática e narrativas, e a História da Matemática tem se tornado cada vez mais objeto de estudo nas pesquisas envolvendo narrativas (CORRY, 2009; DOXIADIS, 2003). Segundo Liu (2022), a partir da noção de que a Matemática avançada se tornou praticamente irrelevante para o discurso cultural dominante, a British Society for the History of Science1 organizou, em 2009, um curso de verão intitulado Mathematics and Narrative2 com o objetivo de questionar a dicotomia entre Matemática e cultura, revelando as profundas e complexas interconexões entre os modos de pensamento narrativo e paradigmático (BRUNER, 1998) e ampliando as perspectivas sobre a História e a Filosofia da Matemática. De acordo com Su et al. (2016), a narrativa matemática tem despertado crescente interesse entre professores e educadores matemáticos. Essa abordagem, conforme definida pelos autores, utiliza a narrativa como uma ferramenta para comunicar, construir significado e promover a compreensão matemática. Por meio de histórias, argumentos, problemas e suas soluções, bem como metáforas literárias, um narrador pode estimular e facilitar a compreensão dos alunos, ouvintes ou leitores em relação aos conceitos matemáticos. Chen e Liu (2018) propõem três formas principais da relação entre Matemática e narrativa: (a) Matemática como narrativa; (b) Matemática na narrativa e; (c) narrativa no ensino de Matemática. É importante destacar que não há uma linha clara que demarque essas três formas relacionais, podendo haver sobreposições e interconexões entre elas. Um exemplo antigo e bem conhecido que pode ser considerado uma narrativa matemática é o enredo do diálogo Mênon de Platão3 (PLATÃO, 1996), no qual Sócrates (470 a.C – 399 a.C) guia intelectualmente um menino escravo analfabeto para determinar a área de um quadrado. Sócrates usa um problema de geometria como um meio de demonstrar sua ideia de virtude a Mênon, o que é um exemplo de Matemática na narrativa. Por meio de uma série de questionamentos cuidadosos, contraexemplos são apresentados para fazer o garoto perceber seu equívoco sobre as dimensões de comprimento e área, apresentando assim a Matemática como uma narrativa. No final, Mênon compreende que a área duplicada desejada é o quadrado da diagonal do quadrado original. Assim, todo o diálogo pode ser interpretado como um exemplo de narrativa no ensino de Matemática, embora o ensino de geometria não tenha sido a intenção original de Sócrates. 1 Sociedade Britânica para a História da Ciência. 2 Matemática e Narrativa. 3 Diálogo disponível em https://www.dm.ufscar.br/hp/hp157/hp157001/hp157001.html. https://www.dm.ufscar.br/hp/hp157/hp157001/hp157001.html 17 Para Thomas (2002), a comparação entre Matemática e narrativa é mais profunda e abrangente do que as analogias com música e poesia, uma vez que os gêneros do teorema matemático e da prova possuem semelhanças com o gênero de uma história. Ao estabelecer uma prova matemática, são selecionados alguns postulados para identificar as relações entre objetos, assim como se indicam as relações entre personagens em uma história. O matemático descobre padrões gerais ocultos ao revelar as relações congruentes entre casos especiais, assim como um narrador habilidoso utiliza episódios ficcionais específicos para refletir incidentes no mundo real. Dentro desse contexto, Fossa (2009) propõe uma abordagem introdutória e informal de técnicas básicas de demonstração matemática. Na primeira parte de sua obra, o autor apresenta uma série de diálogos que, embora abordem assuntos relacionados à Matemática, se desenrolam em situações do cotidiano e que se passam durante os dias de uma semana. As diversas observações feitas pelos personagens criados pelo autor exigem interpretação, análise e avaliação por parte do leitor. Ao realizar as atividades propostas de maneira crítica e reflexiva, surge uma oportunidade inicial para se familiarizar com demonstrações dentro de um contexto natural, como o de um diálogo entre amigos. Ao examinar e avaliar essas conversas, bem como responder às perguntas ao final de cada diálogo, o leitor tem a chance de articular suas próprias opiniões dentro do mesmo ambiente natural, criando assim narrativas matemáticas. Podemos identificar duas formas relacionais, que serão melhor apresentadas e trabalhadas no Capítuo2, pelas quais a História pode enriquecer a narrativa matemática: (i) Matemática como narrativa e; (ii) Matemática na narrativa. A História da Matemática exemplifica de forma notável o envolvimento da História no processo da Matemática como narrativa, uma vez que seu propósito é apresentar conceitos matemáticos por meio da investigação e revelação do desenvolvimento de conceitos e proposições matemáticas. (LIU, 2022). Na História da Matemática, cada proposição matemática é acompanhada por uma história subjacente, e cada história envolve os processos de desenvolvimento de fatos matemáticos. No entanto, é importante ressaltar que a história, por si só, não constitui uma narrativa completa, é necessário um envolvimento significativo. Ao ler ou aprender sobre a História da Matemática, os leitores ou aprendizes são incentivados a utilizar ambos os lados de seus cérebros, engajando tanto o pensamento lógico matemático quanto o pensamento emocional e imaginativo. Esse envolvimento significativo é a fonte do prazer na narrativa matemática. (THOMAS, 2002). 18 Por outro lado, para Liu (2022) a História desempenha um papel importante na Matemática na narrativa, especialmente na ficção, seja ajudando o narrador a estabelecer a estrutura de toda a história ou fornecendo ideias para a criação de protagonistas e enredos. A presença da Matemática na ficção abrange pelo menos dois tipos de gêneros: a ficção matemática e os textos populares de matemática, ambos se tornando cada vez mais presentes nos últimos anos. Em seu estudo, Corry (2009) explora a relação triangular entre os discursos da Matemática, a História da Matemática e a presença da Matemática na ficção. Os textos matemáticos são direcionados principalmente a uma comunidade especializada e profissional, enquanto a Matemática na ficção tem como alvo o público em geral. A História da Matemática, por sua vez, abrange ambos os grupos de leitores e essa distinção entre os públicos leitores tem um impacto significativo na linguagem utilizada nos textos e nas expectativas em relação aos leitores. Segundo Liu (2022, p. 190, tradução nossa) Os textos de Matemática e a Matemática na ficção representam os dois extremos do espectro narrativo, com a linguagem dos textos matemáticos sendo formal ou formalizada, enquanto a Matemática na ficção adota uma linguagem mais natural e discursiva. Por outro lado, os textos que abordam a História da Matemática ocupam uma posição intermediária. Eles utilizam tanto uma linguagem discursiva e natural para apresentar a linha do tempo, o contexto histórico e as pessoas envolvidas no desenvolvimento do conhecimento matemático, quanto uma linguagem formal e formalizada para demonstrar proposições matemáticas originais ou suas adaptações. 4 No entanto, os pressupostos da verdade na História requerem uma postura crítica por parte dos leitores ao se envolverem com os textos de História da Matemática. É importante destacar que a interpretação da história está intrinsecamente ligada a uma abordagem narrativa, uma vez que a narrativa desempenha um papel essencial na compreensão e contextualização dos eventos históricos relacionados à Matemática. Considerando alguns desses eventos históricos, Eves (2011) destaca que nos séculos XVII e XVIII houve um reconhecimento da necessidade de estabelecer uma base mais rigorosa para o Cálculo Diferencial e Integral que impulsionou então o desenvolvimento da Análise Real5. Nesse período, o Cálculo, fomentado pela Geometria Analítica, emergiu como uma 4 The texts of mathematics and mathematics in fiction occupy the two ends of the narrative spectrum, the language of mathematical texts being formal or formalized and that of mathematics in fiction being natural or discursive. Texts on the history of mathematics may lie in between because they not only use discursive and natural language to introduce the timeline, historical context, and people involved in the development of mathematical knowledge, but also employ formal and formalized language alternatively to demonstrate the original or adaptive forms of mathematical propositions. 5 No que diz respeito ao escopo deste estudo, concentrarei as reflexões desta seção em uma construção histórica dos conceitos referentes à Análise Real. 19 poderosa ferramenta matemática, permitindo abordar problemas antes considerados inacessíveis. Sua notável eficácia e ampla aplicabilidade atraíram a atenção dos pesquisadores da época, resultando em uma proliferação de artigos sobre o assunto. No entanto, é importante destacar que muitas dessas publicações negligenciaram a base teórica insatisfatória do Cálculo da época. Os processos utilizados frequentemente eram justificados com o argumento de que funcionavam, sem uma fundamentação matemática sólida, o que refletia a ênfase na praticidade e nos resultados obtidos, em detrimento da rigorosidade teórica. Segundo Eves (2011, p. 462) E só perto do fim do século XVIII, quando muitos absurdos e contradições tinham-se insinuado na matemática, sentiu-se que era essencial examinar as bases da análise para dar-lhes uma fundamentação lógica rigorosa. O cuidadoso esforço que se seguiu, visando a essa fundamentação, foi uma reação ao emprego descontrolado da intuição e do formalismo no século anterior. A tarefa se mostrou difícil, ocupando, em suas várias ramificações, a maior parte dos 100 anos seguintes. Como consequência desse empreendimento, verificou-se um trabalho semelhante e igualmente cuidadoso com os fundamentos de todos os outros ramos da matemática, bem como o refinamento de muitos conceitos importantes. Assim, a própria ideia de função teve que ser esclarecida e noções como as de limite, continuidade, diferenciabilidade e integrabilidade tiveram de ser cuidadosa e claramente definidas. Essa tarefa de refinar conceitos básicos da matemática levou, por sua vez, a generalizações complexas. Assim, com base em evidências históricas, é possível afirmar que uma considerável parte do século XVIII foi voltada para a exploração dos novos e poderosos métodos do cálculo. O século XIX, por sua vez, foi amplamente dedicado à construção de uma base lógica sólida para a vasta, embora frágil, estrutura estabelecida no século anterior. No século XX, uma das principais ênfases foi a busca por generalizar, na medida do possível, os resultados já alcançados nesse campo. Com base nos estudos de Eves (2004) e Boyer e Merzbach (2012), Thomé, Duro e Andrade (2020) sintetizaram a produção histórica que culminou na criação da Análise como é conhecida atualmente. A Figura 1 apresenta essa produção. 20 arquimedes Fonte: Adaptado de Thomé, Duro e Andrade (2020) Egípcios (antes de 1800 a.C) e Gregos (entre 400 a. C. e 200 a. C.) Tentativas de obter a quadratura do círculo com régua e compasso. Eudoxo (408-355 a.C) Criação do método da exaustão para resolver quadraturas. Arquimedes (287 a.C – 212 a.C) Aprimoramento do método da exaustão e definição da espiral. Simon Stevin (1548-1620) e Luca Valério (1552-1618) Ideia de aplicar o limite em ambos os lados de uma igualdade Johannes Kepler (1571-1630) Cálculo da área de elipses por meio de aproximações com triângulos. John Wallis (1616-1703) Definição de integral como a área sob uma curva plana (métodos geométricos). René Descartes (1596-1650) e Pierre de Fermat (1607-1665) Criação de métodos práticos para obter retas tangentes a curvas planas e criação da Geometria Analítica Isaac Barrow (1630-1677) Relação entre o problema das áreas (quadratura) e o das tangentes. Isaac Newton (1643-1727) Criação do método dos fluxos e sistematização das noções de limite, derivada e integral, relacionando-as entre si. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) Criação de fórmulas de derivação e integração, de notações e dos infinitesimais. Leonhard Euler (1707-1783) Ampliação dos métodos criados por Newton e por Leibniz e criação de notações atuais de cálculo, a partir da ideia de função. Jean-le-Rond d’Alembert (1717-1783) Constatação da importância de fundamentar adequadamente as operações de integração e de derivação. Joseph Louis Lagrange (1736-1813) Busca por uma base matemática rigorosa ao Cálculo. Bernhard Bolzano (1781-1848) Construção de resultados importantes para a teoria das funções contínuas e para a noção de conjunto infinito. Carl Friedrich Gauss (1777-1855) Realização de contribuições para que o rigor matemático fosse mais valorizado dentre os matemáticos posteriores. Augustin-Louis Cauchy (1789-1857) Definição de limite e de continuidade muito parecida com as atuais e de integral como um limite de somas. Karl Weierstrass (1815-1897) e Georg Bernhard Riemann (1826-1866) Obtenção de exemplos de funções que contradiziam a intuição da época. Richard Dedekind (1831-1916) e Georg Cantor (1845-1918) Fundamentação dos números reais, enunciando a propriedade de continuidade da reta real. Giuseppe Peano (1858-1932) Fundamentação dos números naturais em lógica matemática. Figura 1 – Ações dos estudiosos para a criação do Cálculo e sua fundamentação 21 Contudo, as informações históricas nos levam a compreender que as origens do Cálculo remontam a milhares de anos antes de Cristo, impulsionado pela curiosidade humana em explorar e resolver problemas. A partir desse desenvolvimento, surge a Análise como um esforço para estabelecer uma base sólida para o conhecimento acumulado pelo Cálculo ao longo dos séculos. Além disso, é importante mencionar outras contribuições significativas, como a criação da Integral de Lebesgue e as discussões em torno dos Fundamentos da Matemática. (THOMÉ; DURO; ANDRADE, 2020) Corroborando tais ideias, a obra How We Got From There To Here: A Story of Real Analysis6, de Rogers e Boman (2014), apresenta uma narrativa matemática que explora o desenvolvimento evolução do que costumeiramente chamamos de Cálculo para a Análise Real. Os autores têm como objetivo introduzir a Análise Real a partir de um contexto histórico, fornecendo um quadro que contextualiza os conceitos e expõe por que os matemáticos sentiram a necessidade de desenvolver definições rigorosas para substituir noções intuitivas. A abordagem é realizada a partir das noções de Leibniz (1646 – 1716), Newton (1643 – 1727) e outros matemáticos nos séculos XVII e XVIII, destacando a transição entre esses séculos e enfatizando o trabalho com os infinitesimais, que resultou no tratamento algébrico por meio de séries, bem como posteriormente em uma abordagem mais moderna desenvolvida nos séculos XIX e XX. As definições e técnicas apresentadas na obra são motivadas pelas dificuldades reais encontradas pela abordagem intuitiva e são apresentadas em seu contexto histórico. No entanto, não é um livro de história da Análise, é um livro-texto introdutório à Análise, apresentado pelas lentes da História. Como tal, não são inseridos simplesmente fragmentos históricos para complementar o material, a História é parte integrante da obra, em que os leitores são convidados a resolver problemas que ocorrem à medida que surgem em um contexto histórico. Nesse sentido, a narrativa é fundamental para apresentar a riqueza e a complexidade dos desenvolvimentos matemáticos ao longo do tempo, permitindo uma compreensão mais profunda do campo. Diante do exposto até aqui, é notável o papel fundamental desempenhado pela História da Matemática na compreensão do desenvolvimento do conhecimento matemático. Sua valorização na Educação Matemática decorre da capacidade de cultivar atitudes positivas em relação à aprendizagem e aprimorar habilidades advindas do pensamento matemático, tanto como uma ferramenta quanto como um objetivo em si. No entanto, surge a questão de como a 6 Como viemos de lá para cá: uma história de Análise Real. 22 exploração da História da Matemática pode ser enriquecida em um contexto que envolva tecnologias digitais. Sanches, Castilho e Mendes (2021) conduziram uma pesquisa bibliográfica com o propósito de identificar estudos que exploraram as contribuições conceituais e pedagógicas, bem como as metodologias para o ensino de Matemática, utilizando a combinação de informações históricas e tecnologias digitais. O objetivo do estudo foi compreender de que maneira as tecnologias digitais têm sido utilizadas nas pesquisas sobre História da Matemática, especificamente no contexto do ensino de Matemática. Ao mapear a literatura existente7, os autores buscaram identificar como as tecnologias digitais têm sido empregadas nesse campo, com o intuito de fornecer uma visão abrangente das diferentes abordagens e práticas adotadas. Foi observado um predomínio significativo do uso de softwares de geometria dinâmica, em particular o GeoGebra. Os pesquisadores constataram que o software foi amplamente utilizado como uma ferramenta para abordar o ensino de Matemática, incorporando informações históricas. No entanto, ao analisar os trabalhos, os autores notaram que, embora houvessem várias oportunidades para estabelecer uma interface entre a História da Matemática e o uso do GeoGebra, essa conexão não foi efetivamente explorada. Durante as atividades observadas, a História da Matemática e o uso do software seguiram caminhos diametralmente opostos, não havendo uma integração efetiva entre essas duas abordagens. Os autores argumentam que nos estudos analisados [...] o GeoGebra ainda não ultrapassa a fronteira de ser um substituto do quadro branco, da planilha, do kit de ferramentas geométrico, aonde não é explorado de maneira correta outras potencialidades que o software possui além de ser um mero instrumento para ser dirigido por um roteio de passos sequenciais. (SANCHES; CASTILHO; MENDES, 2021, p. 201) o que representa uma lacuna significativa em tais estudos, pois da maneira como foi utilizado nos estudos analisados, o software pode ser interpretado como uma domesticação (BORBA; VILLARREAL, 2005) de outras mídias. Contrapondo a análise anterior, Sousa (2020) busca estabelecer uma conexão entre a História da Matemática, as tecnologias digitais e a investigação matemática. A autora destaca a importância dessas três tendências e realiza uma análise das características comuns presentes nesse contexto, em que cinco aspectos são identificados como elementos compartilhados: (i) criação humana; (ii) fonte de geração do conhecimento investigativo; (iii) fonte de resolução 7 A busca das produções foi realizada no banco de dados do Centro Brasileiro de Referência em Pesquisa sobre História da Matemática e foram consideradas teses de doutorado e dissertações tanto de mestrados acadêmicos quanto de mestrados profissionais, entre os anos de 1990 e 2019, cujo foco de estudo tivesse relação com alguma das modalidades de pesquisa em História da Matemática. 23 de problemas; (iv) produção da Matemática genuína e; (v) impacto dessas tendências na relação de ensino e aprendizagem da Matemática. A abordagem proposta por Sousa (2020) evidencia a interconexão entre as três tendências como elementos que podem potencializar o ensino e a aprendizagem da Matemática. Ao reconhecer a criação humana como um elemento comum, percebe-se que tais tendências são frutos do pensamento humano, oferecendo uma base sólida para a construção do conhecimento matemático. Além disso, ao considerar a fonte de geração do conhecimento investigativo, entende-se que as tendências consideradas compartilham a característica de serem fontes ricas de informação e recursos para a exploração de conceitos matemáticos, oferecendo oportunidades de aprendizagem que vão além do simples domínio de fórmulas e procedimentos, permitindo o envolvimento em processos investigativos e desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo. Outro aspecto abordado por Sousa (2020) é a função dessas tendências como fonte de resolução de problemas. A História da Matemática fornece exemplos de como os problemas matemáticos surgiram e foram resolvidos ao longo do tempo, enquanto as tecnologias digitais oferecem ferramentas e recursos que podem auxiliar os estudantes na busca por novas soluções, já a investigação matemática, por sua vez, apresenta incentivos à exploração, formulação de hipóteses e execução de estratégias para resolução dos problemas. Sousa (2020) introduz o conceito de atividades-históricas-com-tecnologias ou investigações-históricas-com-tecnologias, que consiste em tarefas de investigação baseadas em problemas/episódios/temas históricos, utilizando recursos tecnológicos como suporte. Tais atividades são estruturadas com elementos essenciais que englobam a preparação prévia, as informações básicas necessárias para contextualizar o problema histórico, o desenvolvimento da atividade e a avaliação do processo. Além disso, a autora destaca a importância de fornecer orientações claras para a aplicação dessas atividades, garantindo que os alunos possam explorar os aspectos históricos e utilizar as tecnologias digitais de maneira efetiva. Com o objetivo de contribuir para as reflexões sobre o uso de tecnologias digitais em um contexto histórico, Zengin (2018) propõe a integração do GeoGebra em um curso de História da Matemática. O autor argumenta que softwares de matemática dinâmica são ferramentas poderosas que podem auxiliar na exploração de problemas históricos em matemática, oportunizando a criação de novas construções em um ambiente interativo e visual. Além disso, os resultados da pesquisa realizada por Zengin (2018) mostram que a utilização do GeoGebra no curso proposto teve um impacto significativo na percepção dos professores em formação. A visualização, a concretização e a aprendizagem por meio da 24 construção dos conceitos oferecidos pelo software desempenharam um papel importante na promoção do ensino de Matemática. Os dados revelam que o GeoGebra possibilita o desenvolvimento histórico de conceitos e métodos matemáticos, como o exemplificado pelo processo de exploração do número 𝜋 utilizando o Método de Arquimedes. Durante essa atividade, ao aumentar o número de lados do polígono com o auxílio do controle deslizante em um ambiente dinâmico, os participantes puderam compreender o esforço de Arquimedes para realizar tal estimativa. Assim, a possibilidade de investigar conceitos matemáticos sob uma nova perspectiva se abre ao se utilizar tecnologias digitais, permitindo a investigação das conexões existentes nos problemas matemáticos históricos e a compreensão da harmonia entre as diferentes unidades que compõem os conceitos matemáticos. Dessa maneira, o GeoGebra possibilita a percepção de conexões entre ideias e conceitos matemáticos, proporciona um ambiente computacional de aprendizagem dinâmico, em que a experimentação e validação de conjecturas são viabilizadas, enquanto a História da Matemática é utilizada como uma ferramenta. A seguir, compartilho um breve relato da minha jornada, juntamente com a delineação da estrutura da tese. 1.2 Trajetória da pesquisadora No primeiro semestre de 2010, iniciei o curso de Matemática na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Campus Uberlândia. Já no segundo semestre, tive a oportunidade de ingressar como bolsista no Programa de Educação Tutorial (PET), o que me permitiu ter um contato mais próximo com o mundo acadêmico. Durante esse período, desenvolvi pesquisas de Iniciação Científica em diferentes temáticas, incluindo o estudo de Frações Contínuas, Teoria dos Jogos e Computação Gráfica. No quinto período da graduação, optei pela modalidade de licenciatura e busquei uma professora que pudesse me orientar na escrita da monografia. A docente com a qual me identifiquei, Ana Maria Amarilo Bertoni, sugeriu que trabalhássemos com a exploração de conceitos fractais e sua construção em diferentes softwares, como o GeoGebra. Foi amor à primeira vista quando conheci os fractais. Comecei a construí-los, investigá-los e nunca mais parei. Apresentei trabalhos em conferências e publiquei artigos sobre Geometria Fractal e suas conexões (BARBOSA; BERTONE; SILVA-JUNIOR, 2013; BARBOSA; BERTONE, 2013a; BARBOSA; BERTONE, 2013b; BARBOSA; BERTONE, 2013c; BARBOSA; BERTONE, 2013d; BERTONE; BARBOSA; MATOS, 2013). 25 Todos esses estudos se reuniram em um trabalho intitulado "Fractais: Dimensão, Autosemelhança e Construções nos Softwares Livres", que apresentei como Trabalho Final de Curso. Essa parceria entre orientadora e orientanda foi tão bem-sucedida que nos dedicamos a reativar o Instituto de GeoGebra de Uberlândia, e então tive a oportunidade de representar o instituto em diversos eventos. Mesmo após a graduação, continuamos essa parceria, o que resultou em outros estudos (BARBOSA; BERTONE; COELHO, 2015; BARBOSA; BERTONE, 2015; BARBOSA; BERTONE; MARTINS, 2017). Concluí minha graduação no segundo semestre de 2013, em março de 2014. Nesse mesmo mês, fui contratada como professora substituta para lecionar nas séries finais do Ensino Fundamental em uma escola particular de Uberlândia, permanecendo na instituição até julho do mesmo ano, quando fui convidada para atuar como professora colaboradora em um Curso Pré-Vestibular na cidade, conhecido como "Cursinho". Em 2015, ingressei no curso de Ciência da Computação na UFU e continuei atuando como professora efetiva na escola mencionada e colaboradora no cursinho. Com o retorno ao ambiente universitário, retomei a parceria com a mesma orientadora e trabalhamos em um projeto cujo objetivo era elaborar atividades no software GeoGebra para serem implementadas em um Ambiente Virtual de Aprendizagem, visando o estudo de Cálculo Diferencial e Integral ao ensino à distância. No ano seguinte, decidi que era hora de elaborar um projeto de mestrado na área de Educação Matemática. Porém, qual seria o tema? No projeto inicial, propus investigar a formação de professores e o uso de tecnologias digitais. No entanto, ao ser aceita no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (PPGEM) do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Campus Rio Claro, sob a orientação do professor Ricardo Scucuglia, ele me fez a proposta de investigar os aspectos do pensamento matemático e geométrico de estudantes de graduação em Matemática a partir da construção de fractais, o que me deixou muito feliz, pois voltaria a trabalhar com as construções que sempre me encantaram. Ao cursar as disciplinas como aluna regular do programa, deparei-me com o conceito de Pensamento Computacional, o que me fez repensar meus objetos de estudo e reestruturar a pesquisa. Em janeiro de 2019, defendi a dissertação intitulada Aspectos do Pensamento Computacional na Construção de Fractais com o Software GeoGebra (BARBOSA, 2019a), cujo objetivo foi investigar os aspectos desse pensamento que emergiam em um grupo de estudantes de graduação em Matemática ao explorarem a Geometria Fractal com o software. Antes do mestrado, a Educação Matemática era uma área pouco explorada por mim. Porém, como bolsista do PPGEM, tive a oportunidade de mergulhar em experiências reflexivas 26 e aprendi muito com meus colegas de programa, especialmente com o Grupo de Pesquisa em Informática, outras Mídias e Educação Matemática (GPIMEM). Sentindo essa motivação, desejei continuar na área acadêmica e submeti um projeto para ingressar no doutorado, mesmo antes de defender minha dissertação. O projeto foi submetido em 2018 e fui aceita para ingressar no programa em 2019, novamente sob a orientação do professor Ricardo. Nem é preciso mencionar o quanto essa parceria também foi bem-sucedida! Durante esse período, alguns trabalhos foram publicados (HONORATO; BARBOSA; SCUCUGLIA, 2017; BARBOSA; SCUCUGLIA, 2019a; BARBOSA; SCUCUGLIA, 2019b; BARBOSA, L. M, 2019b; SCUCUGLIA et al., 2021a; IDEM, R. C.; BARBOSA, L. M.; NESPOLI, T. S., 2021; SCUCUGLIA et al., 2021b), e pude perceber o quanto e como a Educação Matemática difere da Matemática Aplicada, área na qual estive envolvida desde 2017. O projeto que submeti para o doutorado não abordava a temática dos fractais. Senti que era hora de explorar outros temas. Levando em consideração minhas experiências anteriores na criação de atividades para o ensino de Cálculo no GeoGebra, propus um projeto cujo objetivo era investigar a compreensão dos professores de Matemática sobre problemas e demonstrações do Cálculo Infinitesimal com o auxílio desse software. Durante as disciplinas, estudos foram realizados, e o projeto foi se reestruturando até chegar ao ponto que culminou nesta tese. Minha trajetória como pesquisadora na pós-graduação foi enriquecida e moldada por uma série de ambientes que tive a oportunidade de vivenciar ao longo desse percurso. Esses diversos espaços desempenharam um papel fundamental no meu desenvolvimento acadêmico, profissional e pessoal, contribuindo para a construção de uma identidade como pesquisadora. Por meio das disciplinas cursadas, pude ampliar minha base teórica, desenvolver habilidades metodológicas e aprofundar meu entendimento sobre os principais conceitos e debates na minha área de estudo. Os professores e orientadores do programa foram essenciais na minha formação, fornecendo reflexões valiosas, estimulando meu pensamento crítico e incentivando a exploração de novas ideias e abordagens. Continuar no GPIMEM foi crucial no meu processo de doutoramento, o grupo exerceu (e continuará exercendo) uma influência significativa em minha trajetória como pesquisadora. Estive imersa em um ambiente colaborativo de produção de conhecimento de qualidade! Além disso, a participação ativa em projetos desenvolvidos pelo grupo proporcionou oportunidades de colaboração, coautoria e vivências acadêmicas para além da escrita de uma tese, como a coordenação da comissão organizadora de eventos internacionais e a realização de estágio supervisionado. 27 Além disso, destaco a influência significativa dos colegas e professores ao longo da minha trajetória na pós-graduação. As interações diárias com os parceiros de curso e de pesquisa estimularam meu pensamento crítico, proporcionaram debates enriquecedores e geraram parcerias de estudo. Como resultado da imersão em diversos ambientes na pós- graduação, minha trajetória como pesquisadora foi profundamente enriquecida. Estar na UNESP foi uma oportunidade ímpar que me possibilitou adentrar ao campo da docência no ensino superior, ampliando minha experiência como educadora. Ao longo do doutoramento, ministrei disciplinas como professora substituta e bolsista em diferentes áreas da Matemática e Educação Matemática, o que me permitiu vivenciar a dinâmica da sala de aula em distintos cursos de graduação, fortalecendo meu desejo pela dedicação à docência e à pesquisa na área de Educação Matemática. Contudo, todos os espaços e momentos possibilitados por esses ambientes não contribuíram apenas com a escrita desta tese, mas foram essenciais e primordiais para meu desenvolvimento como pesquisadora, docente, mulher, pessoa! 1.3 Estrutura da tese Além da presente introdução, no Capítulo 2, intitulado Compreensões acerca de narrativas, são discutidos aspectos que se referem à constituição de narrativas e como elas são entendidas e caracterizadas por diferentes pesquisadores. A narrativa como investigação é destacada e estudos no âmbito da Educação Matemática são apresentados assim como a ideia de narrativas matemáticas. Conceitos relevantes para o desenvolvimento do termo demonstração e prova, para a Matemática e Educação Matemática, são apresentados no Capítulo 3, nomeado Compreensões acerca de verdades matemática. Possibilidades e considerações que pesquisadores elencam em relação ao uso de softwares acerca da temática também são elaboradas no capítulo. No Capítulo 4, Metodologia de pesquisa e procedimentos metodológicos, são discutidos os modos de produção e de análise dos dados, de forma que o desenvolvimento da produção dos dados é descrito e os participantes e as fontes que compõem os dados da pesquisa são apresentados. A análise dos dados e os resultados da pesquisa são evidenciados e discutidos no Capítulo 5, intitulado por Análise e Discussão dos Dados, que é dividida em subseções em relação aos encontros e documentos analisados em que ao final, uma discussão geral sobre o que se mostra nos dados é proposta. 28 Nas Considerações Finais, as conclusões referentes a este estudo são destacadas, assim como possibilidades de estudos futuros. 30 CAPÍTULO 2 A criança e o adulto, o rico e o pobre, o sábio e o ignorante, todos, enfim, ouvem com prazer as histórias – uma vez que essas histórias sejam interessantes, tenham vida e possam cativar a atenção. A história narrada, lida, filmada ou dramatizada, circula em todos os meridianos, vive em todos os climas, não existe povo algum que não se orgulhe de suas histórias, de suas lendas e seus contos característicos. (TAHAN, 1966, p.16). COMPREENSÕES ACERCA DE NARRATIVAS Quem não adora uma boa história? De histórias de ninar a fofocas maliciosas, as histórias são um aspecto difundido de nossas vidas diárias. Usamos histórias para entreter, informar e instruir. De fato, grande parte de nossa herança cultural nos é transmitida por meio de algum gênero de narrativa – contos de fadas, fábulas, parábolas, novelas, crônicas, romances, literatura, textos acadêmicos e científicos, entre outros. Não apenas as histórias desempenham um papel importante em nossas vidas, mas alguns estudiosos (BRUNER, 1997; POLKINGHORNE, 1988) argumentam que nossas vidas são histórias – histórias sobre nós mesmos que contamos a nós mesmos e a outras pessoas. (MURRAY, 2009). Barthes et al (2011, p. 19) afirmam que a narrativa é “internacional, trans-histórica, transcultural; a narrativa está aí, como a vida” e Murray (2009), argumenta que uma maneira de entender a experiência humana seria documentar essas histórias e estudá-las, fazendo com que a investigação narrativa emergisse como uma forma de pesquisa. Neste capítulo, apresento o que concebo como narrativas, com foco na investigação narrativa, e discuto algumas das questões que cercam essa forma de investigação na Educação Matemática. 2.1 A constituição de uma narrativa Por que contamos histórias? Ginzburg (2000), em seu estudo, nos apresenta aspectos que podem ter influenciado a natureza do ato de contar histórias e sua origem. Segundo esse pesquisador, que toma como referência os trabalhos de Nicolau Sevcenko (1988), Lévi-Strauss (1988, 1989) e Walter Benjamin (1984, 1985, 1987 e 1988), as narrativas estariam associadas à cultura xamã8, e envolviam musicalidade, rituais e danças. Dessa forma, “para o pensamento 8 O xamanismo é um termo genericamente usado em referência a práticas etnomédicas, mágicas, religiosas, e filosóficas, envolvendo cura, transe, transmutação e contato entre corpos e espíritos de outros xamãs, de seres míticos, de animais, dos mortos. (XAMANISMO, 2021) 31 mítico, associado a forças e comportamentos que atingem os sentidos físicos [...], a narrativa seria como que um pharmakós, um remédio, e o narrador xamã seria o centralizador das operações purificadoras da tribo.” (GINZBURG, 2000, p. 113, grifo do autor). Sendo assim, é possível pensar que as narrativas, de alguma forma, seriam capazes de atuar e alterar o estado de seu ouvinte. Ginzburg (2000) compara a atividade de um narrador ao trabalho de um caçador, alegando que um caçador deve procurar sinais que permitam identificar locais em que sua caça esteve presente, tentando sempre estabelecer vínculos entre os sinais encontrados, a fim de traçar uma trajetória a partir do entendimento dos movimentos percebidos para que se localize a caça. Nesse sentido, A atividade do narrador consistiria em levantar as marcas da experiência humana, encarando-as não como se fossem isoladas umas das outras, mas procurando estabelecer vínculos de continuidade temporal e de causa e efeito, tal como o caçador. Esses vínculos entre os movimentos da experiência humana permitiriam estabelecer um sentido para a experiência que, antes de ser assim examinada, não passava de mero acúmulo de acontecimentos. Para o historiador, no caso, o modo como esses vínculos são propostos é que permite dar sentido à História e pensar, a partir da compreensão do passado, possíveis desdobramentos da experiência humana. (GINZBURG, 2000, p. 115). Ao vincular tais desdobramentos a episódios de casualidade e continuidade, uma narrativa é constituída, dando ordem aos acontecimentos, articulando significados com base na temporalidade e consequentemente dando sentido à experiência vivida. (GINZBURG, 2000). Considerando a narrativa como um gênero de discurso e tomando seu entendimento mais genérico, Ginzburg (2000) afirma que é possível classificar como narrativas formas que não pertencem necessariamente à Literatura, como: a História, em que a narrativa teria como propósito referenciar a realidade concreta do passado; os Textos Jornalísticos, em que a narrativa assume o compromisso também de referenciar a realidade, mas em observações ligadas ao presente; e o Cinema, que pode assumir uma postura ficcional e conta com a presença de outros recursos de linguagem, como o visual e sonoro, e outro modo de produção, que é coletivo e amparado por tecnologias. Para Demetrio (2011), durante o processo de constituição de uma representação do passado, o historiador de posse das fontes e/ou rastros passa a agir como articulador, garantindo interpretações e significados a fatos selecionados. Tais estratégias também são mantidas pelos escritores de ficção e em alguns momentos as narrativas podem ser associadas a relatos, o que não dispensa a inteligibilidade, porque a mesma é construída nos entremeios da própria narrativa, através de ordenamentos e composições, sempre submetidos a controle, daqueles dados inseridos na intriga como vestígios ou indícios. A aproximação entre narração e inteligibilidade se faz plenamente possível na medida em que os vestígios ou indícios permitem uma reconstrução válida de realidades 32 quando metodologicamente questionados, aferindo-se sua validade enquanto elementos que têm a ver um passado inaudível. (DEMETRIO, 2011, p. 8). Dessa forma, a escrita da História não deve ser julgada como mera elaboração discursiva, visto que tal narrativa é engendrada a partir da intersecção de um arsenal teórico- metodológico assumido pelo pesquisador enquanto critério de objetividade para compreensão de aspectos relacionados com o real e suas fontes. (DEMETRIO, 2011). Portanto, admitir o elemento subjetivo na elaboração da narrativa histórica não significa dizer que o pesquisador lance mão das fontes segundo seus interesses, de maneira indiscriminada. Para Demetrio (2011, p. 9), “o objeto é construído a partir do diálogo entre o que permitem dizer as fontes e os protocolos de análise propostos” pelo pesquisador, concedendo legitimidade à narrativa. Polkinghorne (1988) discorre sobre a importância das narrativas na compreensão do mundo e de nossa relação com ele, indicando que a narrativa é um esquema por meio do qual os seres humanos dão sentido à sua experiência de temporalidade e ações pessoais. O pesquisador argumenta que as narrativas são uma forma fundamental de compreender a realidade. As histórias que contamos sobre o mundo e sobre nós mesmos ajudam a dar sentido à nossa experiência, a estabelecer nossas crenças e valores, e a moldar nossa compreensão da verdade. O pesquisador destaca que, tanto na ciência quanto na religião, as narrativas são usadas para explicar e interpretar os dados e as experiências vividas. Segundo Bruner (1997), narrativas são tidas como uma forma de pensamento e de organização da experiência humana. Elas são constituídas por uma sequência singular de eventos, estados mentais e acontecimentos envolvendo seres humanos, como personagens ou atores que não têm vida ou significado próprios. Eles são dados pelo lugar que ocupam na configuração geral da sequência como um todo, seu enredo ou sua fábula. O ato de captar uma narrativa é duplo: “o intérprete tem que captar o enredo configurador da narrativa a fim de extrair significado de seus constituintes, os quais ele deve relacionar ao enredo.” (BRUNER, 1997, p. 46). Dessa forma, a configuração do enredo deve, em si, ser extraída da sucessão de eventos, visto que uma narrativa apresenta uma sequência de acontecimentos, ações e experiências de personagens. A narrativa pode ser real ou imaginária sem perder seu poder de história na medida em que o significado e a referência (dessa história) guardam um relacionamento anômalo entre si. (BRUNER, 1997). Ou seja, A sequência das suas sentenças, e não a verdade ou falsidade de quaisquer dessas sentenças, é o que determina sua configuração geral no enredo. É essa sequencialidade singular que é indispensável para a significância de uma história e para o modo de organização mental em cujos termos ela será captada. (BRUNER, 1997, p. 46). 33 Portanto, as narrativas ocupam um papel central em nossa constituição como pessoa. É contando a nós mesmos, histórias sobre nós mesmos e aos outros, que passamos a entender quem somos, quem eles são e qual é a relação entre nós. Dessa forma, a narrativa não é uma construção livre, ela conta os significados que a pessoa constrói para o si mesmo. (BRUNER, 1997; RABELO, 2011). Ao desenvolver seus estudos sobre narrativas, Bruner (1991) nos apresenta dez características, cuja preocupação central não é como o texto narrativo é construído, mas como ele opera como um instrumento mental de construção de realidade. O Quadro 1 traz uma síntese das características apresentadas e suas interpretações. Quadro 1 – Características de narrativa e suas interpretações Característica Interpretação Diacronicidade narrativa A narrativa é uma exposição de eventos que ocorrem com o passar do tempo. Particularidade Narrativas têm acontecimentos particulares como sua referência conhecida. Vínculos de estados intencionais Narrativas são sobre pessoas que agem em um cenário, e os acontecimentos devem ser pertinentes a seus estados intencionais enquanto estiverem atuando - com suas convicções, desejos, teorias, valores, e assim por diante. Composição Hermenêutica9 Contar uma história e compreendê-la como uma história dependem da capacidade humana para processar o conhecimento de maneira interpretativa. Canonicidade e violação Narrativas requerem roteiros como fundo necessário, mas eles não constituem por si próprios uma narrativa. Para se tornar apta a ser contada, uma história precisa ter implicitamente um enredo convencional que foi quebrado, violado, ou desviado de maneira a romper com sua legitimidade. Referencialidade A aceitabilidade de uma narrativa não pode depender de sua correta referência à realidade, caso contrário não haveria nenhuma ficção. O realismo em uma ficção deve ser uma convenção literária e não uma questão de referência correta. Genericidade O gênero narrativo pode ser pensado não apenas como uma forma de construir situações humanas, mas como um guia para o uso da mente, na medida em que o uso da mente é guiado pelo uso de uma linguagem facilitadora. Normatividade Por causa de sua narrabilidade como uma forma de discurso que se baseia em uma violação da expectativa convencional, a narrativa é necessariamente normativa. Uma violação pressupõe uma norma. Sensibilidade ao contexto e negociabilidade A dependência do contexto da explicação narrativa permite a negociação cultural que, quando bem sucedida, torna possível a coerência e interdependência que uma cultura pode alcançar. Acréscimo narrativo As narrativas fazem acréscimos e tais acréscimos podem criam algo bastante variado chamado cultura ou história ou, mais livremente, tradição. As narrativas dependem de estarem colocadas em uma continuidade provida por uma história social construída e compartilhada, na qual localizamos nossos egos e nossas continuidades individuais. Fonte: Adaptado de Bruner (1991) 9 A palavra hermenêutica implica que existe um texto ou algo semelhante por meio do qual alguém está tentando expressar um significado e alguém está tentando extrair um significado. Isso, por sua vez, implica que há uma diferença entre o que é expresso no texto e o que o texto pode significar e, além disso, que não há uma solução única para a tarefa de determinar o significado da expressão. (BRUNER, 1991, p. 7, tradução nossa, grifo do autor). Texto original: The word hermeneutic implies that there is a text or a text analogue through which somebody has been trying to express a meaning and from which somebody is trying to extract a meaning. This in turn implies that there is a difference between what is expressed in the text and what the text might mean, and furthermore that there is no unique solution to the task of determining the meaning for this expression. 34 Com a descrição de tais características, Bruner (1991) nos mostra algumas das propriedades de um mundo de realidade construído de acordo com princípios narrativos. Dessa forma, ele vai por diferentes caminhos descrevendo poderes mentais narrativos e os sistemas simbólicos do discurso narrativo que torna possível a expressão desses poderes. Bruner (1997) considera que seremos capazes de interpretar os significados e a produção de significados de uma forma orientada por princípios apenas na medida em que formos capazes de especificar a estrutura e a coerência dos contextos mais amplos nos quais significados específicos são criados e transmitidos. (BRUNER 1997, p. 60) Assim, a narrativa passa a ser entendida como um modo alternativo de conhecimento que permite relatar ações e eventos de maneira inteligível, se tornando também uma forma de comunicação que se vale da capacidade humana fundamental de transferir experiências de uma pessoa para outra por meio da narrativa de vivencias pessoais. De acordo com Carr (1986), a narrativa não está associada a experiências e ações elementares de curto prazo, mas pertence a sequências de ações, experiências e eventos humanos de longo prazo ou em larga escala. Ele argumenta que a ação, a vida e a existência histórica são estruturadas narrativamente, que o conceito de narrativa é nossa maneira de experimentar, agir e viver, tanto como indivíduos quanto como comunidades, e que a narrativa é nossa maneira de ser e lidar com o tempo. Squire (2014, p. 273) define, de forma ampla, a narrativa como uma cadeia de signos com sentidos sociais, culturais e/ou históricos particulares, o que significa que “narrativas podem implicar conjuntos de signos que se movimentam temporalmente, causalmente ou de alguma outra forma socioculturalmente reconhecível e que, por operarem com a particularidade e não com a generalidade, não são reduzíveis a teorias” possibilitando assim, que as narrativas operem em diferentes mídias, inclusive em imagens, visto que elas decorrem da sucessão de signos, independentemente do sistema de símbolos, da mídia ou da matriz semiótica em que a sucessão ocorre. Além disso, para Squire (2014) o movimento de signo para signo tem um significado social, cultural e histórico reconhecível. A pesquisadora argumenta que Uma série numérica é uma progressão de signos, mas seu sentido primordial é matemático e não se encontra em âmbitos sociais, culturais ou históricos. Um corolário desta definição é que as histórias não têm vigência universal; elas se valem de recursos simbólicos sociais, culturais e históricos particulares e operam dentro deles. A “leitura” de histórias pode, portanto, mudar ou se romper entre universos sociais, culturais e históricos distintos. (Squire 2014, p. 273, grifo do autor) A partir dessa definição, materiais visuais certamente podem se constituir narrativas. Dessa forma, as narrativas nos permitem integrar diferentes aspectos da realidade, contribuindo para uma conexão entre nossas experiências pessoais com a história mais ampla da humanidade 35 e do universo, nos permitindo visualizar as interconexões entre as diferentes áreas do conhecimento, sendo parte fundamental da nossa compreensão da realidade, nos possibilitando dar sentido às experiências e estabelecer crenças e valores. 2.2 A narrativa como investigação No centro da investigação narrativa está uma história ou uma coleção de histórias. Dessa forma, a investigação narrativa envolve criar e documentar tais histórias. Porém, como ir além do contar uma história? Como pode uma história ser considerada pesquisa? Para Murray (2009) uma história se torna uma pesquisa quando é interpretada à luz da literatura de um campo, e quando esse processo produz implicações para a prática, pesquisas futuras ou construção de teorias. Clandinin e Connelly (2015) colocam as pesquisas com narrativas no âmbito da pesquisa qualitativa, enfatizando a compreensão e interpretação das histórias e experiências dos participantes como forma de conhecer e entender a realidade. A investigação narrativa parte do pressuposto de que as pessoas constroem significados em suas vidas a partir das histórias que contam sobre si mesmas e sobre os outros, e que essas histórias são o meio principal para se compreender a complexidade da experiência humana. Dessa forma, os pesquisadores buscam analisar, em profundidade, as histórias que os participantes contam, por meio de entrevistas, observação participante ou outros métodos, procurando entender os significados que eles atribuem às suas experiências e como essas histórias se relacionam com as suas identidades, valores e crenças. Para Clandinin e Connelly (2015) a investigação narrativa é uma abordagem aberta e flexível, que permite ao pesquisador trabalhar de forma colaborativa com os participantes e adaptar sua análise às particularidades de cada contexto e história. O objetivo final da investigação narrativa é a construção de um entendimento mais profundo e contextualizado das experiências humanas vividas, por meio da análise e interpretação das histórias que as pessoas contam e/ou produzem sobre si mesmas e suas experiências. Bruner (1998) defende que o conhecimento narrativo é uma forma legítima de raciocínio e propõe dois modos de pensamentos que se completam: o paradigmático (ou lógico-científico) e o narrativo. [O pensamento] paradigmático ou lógico-filosófico, tenta preencher o ideal de um sistema formal e matemático de descrição e explicação. Ele emprega a categorização ou a conceitualização e as operações pelas quais as categorias são estabelecidas instancias, idealizadas e relacionadas umas às outras para formar um sistema. [...] [O pensamento narrativo] trata de ações e intenções humanas ou similares às humanas e 36 das vicissitudes e consequência que marcam seu curso. Ele se esforça para colocar seus milagres atemporais nas circunstâncias da experiência e localizar a experiência no tempo e no espaço. (BRUNER, 1998. p. 14). A grosso modo, o pensamento paradigmático lida com causas gerais e faz uso de procedimentos para assegurar se sua referência é verificável e testar a verdade empírica. Seu domínio é definido não apenas por observações, aos quais suas declarações básicas se relacionam, mas também pelo conjunto de mundos possíveis que podem ser logicamente gerados, testados e conduzidos por hipóteses fundamentadas. Já o pensamento narrativo se vincula ao conhecimento prático, abarcando o saber popular. Assim, os sentimentos, ações, histórias, imagens, entre outros, são considerados nos discursos e os procedimentos utilizados são hermenêuticos, interpretativos e narrativos. (BRUNER, 1998; RABELO, 2011). Para Rabelo (2011, p. 178) estes dois modos de cognição “não representam uma oposição, mas sim a complementaridade.”. Contudo, cada um dos modos de pensamento tem princípios operativos próprios e seus próprios critérios de boa formação, se diferenciando radicalmente em seus procedimentos para verificação. Uma boa história e um argumento bem formado são tipos naturais diferentes, mas ambos podem ser usados como meio para convencer o outro. Porém, a natureza de tal convencimento é fundamentalmente diferente: os argumentos convencem alguém de sua veracidade, as histórias de sua semelhança com a vida. O pensamento paradigmático, muitas vezes, recorre a procedimentos para estabelecer provas formais e empíricas, já o narrativo estabelece não a verdade, mas a verossimilhança. (BRUNER, 1998). Sinclair, Healy e Sale (2009) argumentam que o pensamento narrativo e o paradigmático possuem papéis fundamentais na construção e organização do conhecimento, porém têm motivações diferentes. [E]nquanto o paradigmático se preocupa com o que é, dadas as limitações do sistema em questão, e com a identificação e comprovação de generalidades que caracterizam objetos e relações no sistema, o narrativo foca em atividades particulares desses objetos à medida que se desenrolam no tempo, no que pode estar por trás dos eventos em questão e em como eles se assemelham ou nos lembram de outras coisas que conhecemos.10 (SINCLAIR; HEALY; SALE, 2009, p. 443, tradução nossa). Polkinghorne (1995) utiliza a distinção apresentada por Bruner (1998) para identificar dois tipos de investigação narrativa: (a) análise de narrativas, ou seja, estudos cujos dados consistem em narrativas ou histórias, mas cuja análise produz tipologias ou categorias 10 [W]hile the paradigmatic is concerned with hat is, given the constraints of the system in question, and with identifying and proving generalities that characterise objects and relations in the system, the narrative focuses on particular activities of these objects as they are played out in time, on what might be behind the events in question and on how they resemble or reminds of other things we know about. 37 paradigmáticas; e (b) análise narrativa, ou seja, estudos cujos dados consistem em ações, eventos e acontecimentos, mas cuja análise produz histórias (por exemplo, biografias, histórias, estudos de caso). A análise narrativa paradigmática, ou análise de narrativa, baseia-se em dados consistidos de narrativas ou estórias, mas cujas análises produzem tipologias ou categorias paradigmáticas, sendo utilizados como elementos ou base comum de dados. Coletam-se relatos estoriados para os dados, usando um processo que identifica aspectos como instâncias de categorias. A investigação narrativa do tipo paradigmático produz conhecimento de conceitos. A análise narrativa, propriamente dita, opera com elementos combinados entre uma estória “enredada”, coletando descrições de eventos, acontecimentos, ações, cujas análises produzem estórias (por exemplo: biografias, estórias, estudos de caso). A análise narrativa produz conhecimento de situações particulares. (RABELO, 2011, p. 180, grifo nosso). Assim, a análise narrativa é o processo de desmontar uma história em seus componentes estruturais e analisar como esses componentes são organizados e inter-relacionados para criar um todo significativo. Esses componentes estruturais podem incluir personagens, ações, eventos, configurações espaciais e temporais, e a linguagem utilizada para contar a história. A análise narrativa, segundo Bruner, envolve uma apreciação da forma como a história é construída, bem como a atenção ao conteúdo que é comunicado por meio da história. Além disso, a análise narrativa é um processo ativo de construção de significado que envolve o leitor ou ouvinte da história. (BRUNER, 1998). Tanto Sinclair, Healy e Sale (2009) quanto Polkinghorne (1995) nos mostram que uma investigação narrativa tem como objetivo reunir casos/dados individuais não com o intuito de generalizar cada um sobre uma categoria, mas com o princípio de efetuar analogias, nas quais os indivíduos podem ter aspectos similares a outros, ou singulares. Assim, as investigações narrativas envolvem uma trama argumental singular, com uma sintetização dos dados produzidos. Clandinin e Connelly (2015) contextualizam a narrativa na sala de aula em relação aos professores e definem a abordagem narrativa em comparação com as abordagens empíricas tradicionais. Os pesquisadores observam que, por meio de métodos tradicionais, os professores são vistos como implementadores de programas curriculares para atingir objetivos predefinidos e alcançar determinados resultados, enquanto na investigação narrativa eles são vistos como parte do currículo, envolvidos no estabelecimento de metas e na obtenção de realizações. O interesse pela investigação narrativa foi incorporado tanto na prática educacional quanto na pesquisa. A proeminência da narrativa surge em parte por causa das restrições dos métodos convencionais de pesquisa e sua incompatibilidade com as complexidades do aprendizado humano. Contudo, é importante salientar a associação da narrativa com a atividade humana e a sua sensibilidade para com questões não reveladas em estudos não qualitativos. 38 2.3 Narrativas em Educação Matemática De acordo com Polkinghorne (1995) há um crescente interesse na investigação narrativa entre os pesquisadores qualitativos. Tal interesse se dá, pois, a narrativa é uma “forma linguística exclusivamente adequada para exibir a existência humana como ação situada [e suas] descrições narrativas exibem a atividade humana como um engajamento proposital no mundo.” (POLKINGHORNE, 1995, p. 5). Além disso, a narrativa está presente em todos os tempos, lugares e sociedades (BARTHES et al, 2011). Nemirovsky (1996) argumenta que no cerne da modelagem matemática estão as narrativas matemáticas. Ele propõe uma atividade sugerindo que os alunos conectassem representações matemáticas (símbolos, gráficos, entre outros) com eventos ou situações (que ele considera como qualidades da narrativa), e argumenta que os alunos que visualizam a mesma representação matemática podem construir histórias diferentes sobre uma determinada situação. O pesquisador analisou os alunos enquanto construíam gráficos e percebeu que eles “[...] esperam que um gráfico, para ser útil, tenha que mostrar o que eles concebem como toda a história [...]” (NEMIROVSKY, 1996, p. 200, tradução nossa11). O que sugere, que uma narrativa construída por um aluno reflete o que uma experiência significou para ele, já suas histórias conectam peças que ainda não fazem sentido em uma estrutura coerente. Acompanhando a construção dos gráficos, Nemirovsky (1996) descreve três aspectos chave da construção narrativa: os reparos, que ocorrerem quando os alunos reorganizam a narrativa de forma a torná-la mais coerente com toda a história; a execução, que ocorre quando os alunos encenam sua narrativa de acordo com sua compreensão de uma representação; e a idealização, que ocorre quando os alunos utilizam narrativas para concluir a semelhança entre diferentes representações. Tais aspectos reforçam as características narrativas apresentadas em Bruner (1991) e nos evidenciam a diferença entre narrativa e história. Portanto, a história é a sequência cronológica de eventos que ocorreram em um determinado período de tempo, enquanto a narrativa é a organização dos eventos de uma história de uma forma que dá sentido e significado a eles. Em outras palavras, a história é uma série de eventos que ocorrem em uma ordem cronológica específica, enquanto a narrativa é a maneira como esses eventos são contados e organizados para criar um sentido e um significado para o ouvinte ou leitor. (BRUNER, 1991). 11 [...] expect that a graph, in order to be useful, has to show what they conceive as the whole story [...]. 39 Por exemplo, uma história pode ser sobre a vida de um grande líder, contando os eventos que ocorreram em sua existência em uma ordem cronológica específica. No entanto, a narrativa pode ser contada de diferentes maneiras, dependendo do propósito do narrador. O mesmo conjunto de eventos pode ser organizado de forma a enfatizar diferentes aspectos da vida do líder, como suas realizações, suas lutas, seus relacionamentos, entre outros. Assim, enquanto a história se concentra nos eventos em si, a narrativa se concentra na forma como esses eventos são organizados e apresentados para comunicar um significado mais amplo. Doxiadis (2003) apresenta uma forte conexão entre narrativa, Matemática e Educação Matemática, expondo a existência de um isomorfismo entre a estrutura subjacente de uma história e o processo de provar um teorema, afirmando que o paradigma da exploração matemática é a linguagem mais pura para expressar a construção de uma história. O pesquisador defende a necessidade de desvinculação do pensamento matemático do rigor formalista, colocando a narrativa como base para tal e expondo o hibridismo entre os modos de pensamentos narrativo e paradigmático, no ensino de Matemática, baseado na construção de narrativas, o que denominou paramatemática. Quatro propostas são pontuadas por Doxiadis (2003) para incorporação da paramatemática: (i) inserção das narrativas no currículo escolar; (ii) interação e complementação de narrativas matemáticas no processo de ensino e aprendizagem de Matemática; (iii) inserção de narrativas matemáticas na Educação Infantil visando a criação de ambientes que utilizem a História da Matemática para contribuir no processo de abstração; e (iv) introdução de biografias e História da Matemática no currículo. A partir desses pontos, o pesquisador busca por mudanças no ensino, alegando que as narrativas matemáticas existentes têm sido responsáveis pelo ressurgimento do interesse pela Matemática na cultura geral. Considerando o paralelo entre representações, textos ou discursos matemáticos e a emergência de narrativas matemáticas para comunicar e representar a Matemática, Scucuglia (2014) se concentra nas maneiras pelas quais estudantes de graduação produzem Performances Matemáticas Digitais, concebidas como narrativas multimodais, que oferecem ao público surpresas (maneiras de ver o que é novo e maravilhoso na matemática), criação de sentido, momentos emocionais e sensações viscerais. São discutidas as relações entre narrativa, paramatemática e identidade, proporcionando modos de se ver o processo de ensino e aprendizado de Matemática como uma atividade múltipla e diversa e não como absoluta, oferecendo modos de desconstruir imagens estereotipadas, fomentando a construção de imagens alternativas nos cenários educacionais e sociais. 40 Retomando o conceito de narrativas, Nacarato, Passos e Silva (2014) apontam os estudos biográficos, a análise sociolinguística e a história oral como algumas das diferentes perspectivas teóricas relacionadas ao tema. As autoras destacam como o uso de narrativas vem ganhando espaço nas pesquisas em Educação Matemática principalmente no campo da formação docente e constatam uma polissemia que envolve a palavra narrativa, argumentando que “em muitos casos, não se trata de termos correlatos, mas com múltiplos significados e múltiplas formas de abordagem teórica e de análise.” (NACARATO; PASSOS; SILVA, 2014, p. 702). O movimento de entrada, apropriação e circulação das investigações narrativas na comunidade acadêmica, em um contexto brasileiro de Educação Matemática, é apresentado por Silva e Silva (2019). As autoras investigam e descrevem esse movimento a partir dos grupos de pesquisa que estudam narrativas na formação de professores que ensinam matemática e percebem que tem se tornado crescente as abordagens envolvendo narrativas no âmbito da Educação Matemática, mais especificamente, nesse campo da formação. O estudo destaca a complexidade e heterogeneidade de temáticas na constituição desse objeto de investigação e aponta para o uso de diferentes terminologias que se relacionam, como: histórias de vida, história oral, narrativas de aula, escritas de si, memoriais de formação, diários de formação, dentre outros. A heterogeneidade apontada por Silva e Silva (2019) é evidenciada quando se busca por pesquisas desenvolvidas no âmbito de narrativas na plataforma online Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES12. Na procura por títulos utilizando as palavras-chave Narrativas e Educação Matemática foram encontrados mais de duas centenas de estudos e, para situar as contribuições da investigação aqui relatada para a Educação Matemática, analisei pesquisas que tratam, em algum nível, da noção de narrativas realizadas e publicadas nas áreas de concentração em Educação Matemática e Ensino de Ciências e Educação Matemática com o intuito de observar as formas que o termo é utilizado. A seleção das pesquisas ocorreu levando em consideração o título, as palavras-chave e o resumo. Foram desconsiderados estudos que não tinham como objeto de investigação as narrativas no âmbito da Educação Matemática e/ou Ensino de Matemática; os estudos que não estavam disponíveis para acesso na plataforma online; estudos autobiográficos; ou então aqueles que tinham como escopo a Educação Infantil ou Anos Inicias do Ensino Fundamental. A partir desses critérios, foram encontradas 31 (trinta e uma) pesquisas envolvendo narrativas 12 https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/ https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/ 41 nos programas de Pós-Graduação em Educação Matemática e Ensino de Ciências e Educação Matemática. Como forma de limitar os trabalhos evidenciados nesta seção, dado o espaço reduzido para apresentar os resultados da busca, optei por evidenciar apenas as teses de doutorado publicadas na plataforma, com exceção de uma dissertação de mestrado que julguei ser significativa sua apresentação para esta investigação, totalizando assim 10 (dez) estudos. Silva (2015), Fillos (2019), Tizzo (2019), Zaqueu-Xavier (2019) e Silva (2020), desenvolveram pesquisas que tratam o conceito de narrativas nos pressupostos da História Oral (GARNICA, 2005). O trabalho de Silva (2015) apresenta a produção de narrativas sobre os movimentos de criação e funcionamento de Licenciaturas em Matemática e Ciências no estado do Mato Grosso do Sul. Foram analisados quatro cursos, sendo três deles vinculados à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (em Campo Grande, Três Lagoas e Corumbá) e um deles à Universidade Católica Dom Bosco. As narrativas apresentadas podem ser entendidas como uma tentativa de promover uma discussão sobre aspectos que a autora percebe terem permeado os discursos sobre a formação de professores em uma determinada região do país. Nesse sentido, ela apresenta como tem entendido a formação de professores de Matemática no Mato Grosso do Sul e como pensa que seus entrevistados entendem atualmente tal formação. Fillos (2019) analisa a dinâmica de idealização e desenvolvimento dos primeiros cursos de especialização com ênfase na Modelagem Matemática, realizados na década de 1980, e as correlações entre tais cursos e a constituição da Educação Matemática no espaço acadêmico- científico brasileiro. A pesquisadora interpreta e discute as experiências pessoais relatadas por professores envolvidos com os primeiros cursos realizados em uma faculdade na cidade de Guarapuava – PR, e investiga os enraizamentos e relações desses cursos com outros realizados posteriormente no Brasil. Para tal, realiza entrevistas com doze professores, gestores dos cursos ou responsáveis por ministrar as disciplinas; além de mobilizar fontes escritas encontradas em arquivos, como cronogramas, relatórios e ementas. Como parte de seu estudo, a pesquisadora relaciona o conceito de narrativas com o de experiência, baseando-se nos estudos de Benjamin (1994) e Larrosa (2016) e afirma que [...] é possível apontar que a experiência é o ponto central e funda