CARLA CAROLINE OLIVEIRA DOS SANTOS BELOTO “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°”: o Romance Heroyco de António da Fonseca Soares (1631-1682) Assis 2022 CARLA CAROLINE OLIVEIRA DOS SANTOS BELOTO “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°”: o Romance Heroyco de António da Fonseca Soares (1631-1682) Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientador: Carlos Eduardo Mendes de Moraes. Assis 2022 Ao ser humano que mais admiro, obrigada por tanto minha filha Isadora Santos Beloto. AGRADECIMENTOS Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – campus de Assis-SP. Ao Centro Paula Souza pela parceria com a UNESP para investimento na formação de seus docentes. À Seção de Pós-Graduação e aos funcionários da Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – campus de Assis-SP. Ao professor e orientador Carlos Eduardo Mendes de Moraes, toda gratidão do mundo pelo apoio incondicional e a generosidade em compartilhar tanto conhecimento e tantas experiências de estudo e de vida. Aos companheiros de pesquisa do Grupo de Estudos “Escrita no Brasil Colonial e suas Relações”, por todas as colaborações e apoio em todo o percurso. Às professoras Sandra Aparecida Ferreira e Sílvia Maria Azevedo pelas contribuições fundamentais durante o exame de qualificação. Aos meus pais Rosemary Oliveira dos Santos e Edison dos Santos, à minha irmã Nathalia Caroline Oliveira dos Santos, ao meu marido Luís Beloto, à minha cunhada Juliana Bel e à minha filha Isadora Santos Beloto por serem meu alicerce. Aos meus amigos-irmãos de vida e de estudos, em especial à Micaiser Faria – por todas as contribuições em minha vida, à Janini Moreno, à Cirene Aparecida de Souza, à Angela Simone Ronqui, à Adriana David Fernandes e à Mayra Fadel por sempre estarem aqui; por fim, aos meus meninos e amigos de disciplinas, estudos, café e muito apoio nessa jornada Alexandre Marroni, Anderson Andrade e Clóvis Oliveira. Sem vocês nada seria igual. A todos aqueles que acreditaram e torceram por mais essa conquista da minha vida. BELOTO, Carla Caroline Oliveira dos Santos. “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°”: o Romance Heroyco de António da Fonseca Soares (1631-1682). 2019. 151 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2020. RESUMO Esta dissertação é resultado de uma pesquisa que tem como proposta principal a compreensão da construção híbrida “Romance Heroico”, do poema atribuído ao poeta português Antônio da Fonseca Soares, que recebeu a didáscalia, “A huma Dama [...] [enfor]cada por matar o seu f°” (Ms. 392, BGUC). Tal informação reúne as características de um poema composto consoante a tradição dos versos heroicos para um tema corriqueiro, segundo o decoro da época, adequado para ser glosado em forma de romances, o que acaba por gerar tensões que se refletem (ou se explicam) na condução da narrativa. Na elaboração do texto, primeiramente, preocupamo-nos com a apresentação do homem poeta, posto que dados como a sua formação, sua fortuna crítica e os caminhos trilhados importam para a compreensão da complexidade do objeto de análise. Para tanto, iniciamos os estudos que possibilitaram a construção do perfil fonsequiano à luz da ficção (com a referência de José Saramago), que muito nos auxiliou na composição da fortuna crítica do poeta, biografia e persona poética (reconstituídas a partir de referências ora biografistas, ora acadêmicas), as quais associamos por fim o poema, objeto de análise, transcrito a partir da sua versão manuscrita (supostamente inédita). Sequencialmente, destacamos os estudos em torno dos principais procedimentos da crítica textual, basilares para a escolha do método de transcrição. Ao final, dedicamo-nos à análise dos aspectos literários e retóricos que argumentaram favoravelmente à proposição híbrida “romance heroico”, recorrendo aos manuais de retórica e poética da Antiguidade, tão caros ao seiscentistas, principalmente por intermédio do modelo de discurso judiciário (cf. Retórica de Aristóteles), do qual o autor fez uso a fim de ajustar a matéria corrente à gravidade de um tema heroico; em termos teóricos, para tanto, fizemos uso, das preceptivas poéticas em vigor de maneira a justificar a adequação decorosa vigente na escrita do século XVII. Os resultados da pesquisa demonstram os caminhos seguidos pelo eu lírico para a elevação da matéria, que se deu por intermédio dos intertextos com narrativas trágicas e com elementos da estrutura do discurso judiciário, dos quais o poeta se valeu, até o ponto de tornar a matéria popular adequada para ser narrada em metro heroico. Palavras-chave: Romance, Heroico, António da Fonseca Soares, Tensão, Retórica. BELOTO, Carla Caroline Oliveira dos Santos. “To the Lady [...] [hang]ed for kill her son”: the Romance Heroyco by António da Fonseca Soares (1631-1682). 2019. 151 p. Dissertation (Mestrado in Letras) – São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2020. ABSTRACT The dissertation aims is a research thats the principal purpose is the understanding, um terms of a retoric’s apripriation about a thousant and six hundred sentury, of the hybrid contruction “Heroic Romance”, the poem assigned for a portuguese Antônio da Fonseca Soares, that recieves a caption, “To the Lady [...] [hang]ed for kill her son” (Ms. 392, BGUC). Such information collect the technical features that a poem composed by as heroic verse tradition for na ordinary topic, according to decorum of the time, right down to be glossed in a romance form, what ends for generating tensions that are reflected (or explain themselves) in a narrative conduction. In writing the text, firstly, concern ourselves in a presentation of the poet man, insofar as knowled an his academic education, his critical fortune and the matter of a paths trod for a comprehension of the complexity of the object in analyse. Therefore, we initiate the review that made it possible the building a Fonseca profile in the light of fiction (with references in José Saramago, that help us too much to composse the critical fortune), biografy and poetic persona (reconstituited times from the biographers, times for academics references), which we associate lastly the poem, object of analysis copy from the manuscript (supposedly unpublished). We start the studies about the main procedures of textual criticism, which are fundamental to the elect of the transcription method. At end, dedicate ourselves to the analysis of the literary and rhetorical aspects that argued favorably in favor of the hybrid proposition "heroic (composed by literate tradition) romance (popular composition) ", using the Antiquity’s rhetorical and poetic manuals, so dear to the sixteenth century, mainly through the model of judicial discourse (cf. Aristotle's Rhetoric), which the author made use of in order to adjust the current material to the gravity of a heroic theme, making use, therefore, of the poetic preceptives in force to justify the decorous adequacy prevailing in the writing of the XVII. The results of the research demonstrate the paths followed by the lyrical self for the elevation of the matter, which took place through the intertext with tragic narratives and with elements of the structure of the judicial discourse, of which the poet partially used himself, to the point of making popular matter to be narrated in a heroic meter. Keywords: Romance, Heroic, António da Fonseca Soares, Tension, Rhetoric. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 11 1 ATRIBUIÇÃO DA AUTORIA DO POEMA .................................................................... 19 1.1 O Manuscrito BGUC 392 .......................................................................................... 20 1.1.1 Da ficção à construção da persona António da Fonseca Soares ..................... 23 1.2.1 O poeta ............................................................................................................ 28 1.2.2 A persona ........................................................................................................ 33 1.3 A transcrição do poema: “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°” ... 39 2 FUNDAMENTOS DA PESQUISA ................................................................................. 52 2.1 Crítica Textual .......................................................................................................... 52 2.1.1 Manuscrito ....................................................................................................... 53 2.1.2 Fonte ............................................................................................................... 55 2.1.3 Filologia ........................................................................................................... 56 2.2 O Romance ............................................................................................................... 57 2.3 O Heroico.................................................................................................................. 66 2.4 METODOLOGIA ........................................................................................................ 75 2.4.1 Transmissão de textos manuscritos ................................................................. 76 2.4.2 Método de transcrição do poema ..................................................................... 77 3 TENSÕES RETÓRICAS NO POEMA........................................................................... 86 3.1 A retórica seiscentista: poema-discurso ............................................................... 89 3. 2 Eu lírico julga o julgamento ................................................................................... 97 3.3 A intertextualidade trágica .................................................................................... 129 3.4 Tensão na forma poemática “Romance Heroyco” .............................................. 135 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 144 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 147 ANEXO – Manuscrito: “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°” Romance Heroyco ........................................................................................................................ 153 11 INTRODUÇÃO A presente dissertação se insere no contexto da linha de pesquisa Fontes Primárias e História Literária, do Programa de Pós-graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Sua relevância está na discussão da proposta de se compor um Romance Heroico, o que, na terminologia das escritas seiscentista e setecentista portuguesas sugere tratar-se de uma composição híbrida, pois a um tempo informa ser popular e a outro erudito-formal. No campo dos estudos retórico-literários, discute-se, portanto, essa tensão, que envolve conceitos fundamentais das poéticas greco-romanas, atuando nas convenções de escrita dos anos mil e seiscentos. Ao ditar a adesão pós- renascentista aos elementos formais, intrica-se, entretanto, com o caráter popular da tradição ibérica dos romances, complementada, neste embate, pela colocação da mulher como agente e paciente no centro da narrativa, fato incomum à época. A complexidade envolvida no trabalho com o texto literário se acentua por se tratar de um manuscrito. Acrescentam-se, portanto, procedimentos e questionamentos que adentram o campo da tradição de circulação manuscrita daquele século, que nada tem a ver com o que se conhece de manuscritos nos nossos dias. Logo, esse debate parte dos estudos de crítica textual e filologia e traz contribuições para as literaturas portuguesa e brasileira. Outro fator importante a ser ressaltado é a análise literária que será proposta com a finalidade de demonstrar a riqueza estética do poema e sua relevância para o período em que foi produzido. Revisamos as proposições apresentadas por Friedrich (1978) sobre a teoria e estrutura da lírica moderna, tratando da questão como um marco entre duas maneiras de entender literatura anterior e posterior ao século XIX, consequentemente, procedendo mais apropriadamente nosso trabalho de a análise literária do poema, em busca de reconhecer a contribuição de Fonseca Soares para a literatura luso-brasileira. Para o desenvolvimento desta dissertação, é importante retomarmos o primeiro contato com o poema que constitui o corpus deste trabalho. Esse contato se deu durante um estudo proposto durante o curso de Pós-Graduação – lato sensu 12 – “Língua Portuguesa”, na Faculdade de Ciências e Letras / UNESP, Assis, em 2009, no cumprimento da disciplina “Fases da Escrita em Língua Portuguesa”, ministrada pelo Professor Dr. Carlos Eduardo Mendes de Moraes, cujo título era “Iniciação em Crítica textual: um Romance Heroyco de António da Fonseca Soares”. Estudo em que, a partir da etapa de leitura e interpretação de manuscritos, foi produzida uma primeira proposta de reescrita, a qual contemplava as singularidades do documento e os entraves encontrados no cumprimento da atividade. Naquele momento, a reflexão se voltou para o processo de introdução à crítica textual e à filologia, que resultou em uma primeira transcrição do “Romance Heroyco”, de António da Fonseca Soares. Nesse contexto, a presente dissertação dá prosseguimento a esses estudos de modo mais detalhado, propondo uma leitura vertical do poema supracitado. O objeto de estudo é um dos poemas manuscritos que se encontra no Ms. 392, da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), de autoria de António da Fonseca Soares (século XVII) e recebe a didascália: “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°”. Na mesma cópia, também é apresentada a forma textual “Romance Heroyco”. Para tanto, a transcrição prévia nos serviu como forma de percepção dos debates e das tensões que estudamos aqui, tais como a estrutura híbrida apresentada no paratexto, a Dama anônima como protagonista, o crime e a sentença, do trato elevado à temática corriqueira, entre outras várias tensões que compõem a matéria e a forma. Justifica-se a escolha do referido poema, primeiramente, devido ao interesse da pesquisadora pelo trabalho de crítica textual, particularmente com a aplicação de fundamentos da filologia, assim como de literatura do século XVII. Também pelo fato de ser de grande importância ampliar as pesquisas sobre as particularidades do período com consequente valorização estética dos seiscentos e setecentos, de modo a proporcionar mais materiais que situem o momento literário em Portugal e no Brasil, tanto quer que diz respeito aos estilos textuais como no debate contextual no qual se inserem os dois momentos que marcam a obra do autor António da Fonseca Soares, especialmente a fase mundana. 13 Para além da literatura, o autor também tem notoriedade por sua vida intensa, que é retratada em dois momentos. A juventude é típica de um homem da fidalguia que encontra na farda, na literatura e nos amores seus interesses essenciais. Nesse momento, escreve poemas que circulavam em textos elogiosos, jocosos, circunstanciais ou líricos, estruturados em grande parte como romances, “no romance o poeta ri, graceja, brinca, fala sério, queixa-se, mas em tom de conversa, sem procurar palavras boas para se exprimir” (PONTES, 1953, p. 43), de forma a produzir textos que se diferem dos pormenores do estilo culto. No poema estudado, pode ser observado o tom intenso e as expressões que propõem o teor chão, de modo a salientar a importância da escolha vocabular aguda com o propósito de gerar efeito agressivo. Como pode ser observado nos dois primeiros versos da décima segunda estrofe do poema fonsequiano, em que o eu lírico apresenta, propositalmente, o vocábulo chão *beiço* ao contrário de lábios ou bocas1. Essa seleção vocabular, por exemplo, demonstra a degradação da linguagem como representação do delito. Nesse sentido, o uso desse sinônimo traz olhar repulsivo à boca, diminuindo a qualidade de quem se fala: “Horrisono clamor* beiço* Infame / aos ares espalhava o teu dilito”. Em contraste com a fase mundana, em um momento de maior maturidade, quando ficou conhecido como Frei, Fonseca Soares foi respeitado e criticado pelas celebrações religiosas, pois nas pregações havia o autoflagelo e os sermões excessivos em que chegava a jogar o crucifixo nos fiéis. Como Frei António das Chagas, buscou inspiração nos clássicos, compôs sobre temas que descreviam as fraquezas da vida mundana de sua sociedade. A propósito, Pimentel, ao citar a convergência de Fonseca Soares com o contemporâneo mais célebre, destaca: “No Desengano do mundo os primores literários e a transformação moral acentuam-se ainda mais. Chagas e Vieira encontram-se na descrição da formosura” (PIMENTEL, 2013, p. 892-893). Nesse momento, tanto na vida como em suas obras escritas, o religioso se mostrou 1 “Boca: Abertura por onde passam o sopro, a palavra e o alimento, a boca é o símbolo da força criadora [...]. Força capaz de construir, de animar (i. e. de dar alma ou vida), de ordenar, ou de elevar, é igualmente capaz de destruir, de matar de confundir, de rebaixar: a boca derruba tão de- pressa quanto edifica seus castelos de palavras [...]” (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1998, p. 133). 14 intenso, trouxe aos leitores a argúcia com as palavras como forma de demonstrar os conflitos entre razão e emoção comuns em seu tempo. Deus pede estrita conta de meu tempo. E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta. Mas, como dar, sem tempo, tanta conta Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo? (Frei António das Chagas, in 'Antologia Poética') Observamos, portanto, que a vida e a obra do autor foram divididas em dois ciclos, o secular e o religioso. Tal cisão foi representada em suas produções e determinante em seus estilos. Nesse contexto, após compreender os ciclos de António da Fonseca Soares, tratamos de um poema do primeiro momento, o secular, aquele conhecido, principalmente, pelos romances e textos de conteúdo chão. Assim, foi percebida a tensão inicial, o estilo dado e a erudição de um tema incomum nessa estrutura, isto é, o tratamento elevado dado à narração de um filicídio. O estudo do poema fonsequiano, escrito em meados do século XVII, dá-se a partir da leitura e de estudos em torno da crítica textual e da filologia, destacando- se as características da época, os reflexos sociais, as peculiaridades literárias, o estilo de escrita e a temática escolhida pelo autor, a erudição aplicada a temas mundanos, o olhar para as mulheres, entre outros. Observamos que já a didascália indica as primeiras tensões do poema em perspectivas múltiplas. Em primeiro plano, como título, posiciona-se como norteadora da leitura, porém não é de autoria do poeta, mas sim do copista. Em segundo plano, antecipa o crime e a sentença que são as matérias do poema, mas opõe-se à abordagem construída pelo eu lírico. Por fim, ao passo que enfatiza o crime e a sentença, textualmente sublinha a escrita do poema como dedicatória “A huma Dama [...]”, sendo “Dama” o único elemento, no título, que indica apreensão do tom compassivo proposto pelo eu lírico no poema. Logo após a didascália, as tensões continuam com a indicação do gênero literário híbrido feita no subtítulo “Romance Heroyco”, que tem a finalidade de 15 apresentar um “protocolo de leitura”2aos leitores do poema, para que eles tenham, desde o início, a compreensão do que trata o texto e a composição de seu estilo. Alicerçado em uma abordagem pautada, principalmente, no gênero judiciário, observamos que o eu lírico masculino induz, por meio das especificidades do gênero retórico, seus interlocutores a estabelecerem postura favorável à protagonista, de modo desfrutar das vantagens de se “cativar o ouvinte” (ARISTÓTELES, 2012, p. 8). Nesse sentido, o estudado poema fonsequiano utiliza- se de preceitos da retórica e apropria-se dos mecanismos de argumentação judiciária e epidíctica, a fim de conduzir o interlocutor para uma leitura compassiva em relação à Dama criminosa. A matriz de tensões construídas pelo autor (pelo tratamento compassivo do eu lírico) parte da abordagem heroica aplicada a um tema típico aos romances e, assim, de forma engenhosa, escapa do decoro proposto no período. O trecho a seguir encontra-se na nona estrofe do poema, nele observamos como o eu lírico eleva a imagem da mulher anônima por meio de elogiosos adjetivos, tal elevação é confirmada pelos versos decassilábicos no seu fazer narrativo. Quem ja vio prizioneira huã beldade. que não sintisse triste e compasivo Ao ver presa sahir em duros ferros quem foy branda prisão dos alvedrios Na estrofe, a perspectiva acolhedora do eu lírico é notável ao ver a protagonista criminosa como prisioneira, mas também prisão dos alvedrios, isto é, do arbítrio da libido. O contraste se intensifica pelo uso dos qualificadores duros e branda, atribuídos aos ferros e à figura feminina, respectivamente. Conforme ocorria o levantamento do material bibliográfico3, foi possível observar a dimensão dos debates que poderiam ser travados, considerando as questões discutidas em relação à escolha do método para o estudo e para a edição 2 “[...] que os títulos, funcionando como protocolos de leitura, induzirão o leitor a criar expectativas que ele procurará realizar no ato de ler, ao construir a significação a partir do que lhe é proposto como significado previamente constituído pelo título” (MOREIRA, 2013, p. 327). 3 A metodologia foi apresentada e comentada no início de cada capítulo. 16 de manuscritos, momento em que argumentamos em torno do decoro proposto à luz dos pressupostos clássicos para a produção da poética setecentista. Finalmente, a evolução da pesquisa fez referência às tensões encontradas no poema, desde a proposição da didascália pelo copista até a temática elevada à tragédia que pode ser percebida através da leitura do poema e da possibilidade de intertextos com algumas tragédias gregas, tópico explorado no terceiro capítulo. A título de exemplo, citamos Medeia, tragédia também protagonizada por uma mulher filicida. Compreendemos, portanto, os ideais propostos sobre a relevância dos textos manuscritos para a construção ou reconstrução desses documentos. Para tanto, passamos por alguns estudiosos e teorias em torno do trabalho editorial, da filologia e da circulação de manuscritos que trata da estrutura poética, sobretudo da compreensão dos termos “Romance” e “Heroyco”, apoiamo-nos nos estudos de teoria literária dos setecentistas pautados no decoro, comportamento poético comum da época. Para a recuperação da persona de António da Fonseca Soares fundamentamo-nos em teoria literária e ficção que retomam o autor. Por fim, discutiremos as tensões4 encontradas no texto como a elevação da temática diante da estrutura poética escolhida, imitações da abordagem trágica, como observado por Nietzsche (2013, p. 8), “o próprio da tragédia, não é, portanto, o quê, mas como”, o que nos remete à construção engenhosa como base de todos os gêneros literários e explorada com maestria por Fonseca Soares. Nesse momento, já descritos os caminhos metodológicos, as justificativas e as tensões, partiremos para uma breve descrição dos capítulos fundamentais dessa dissertação. No Capítulo I, “Atribuição da Autoria do Poema”, abordamos os motivos pelos quais é pertinente estudar António da Fonseca Soares, da ficção à persona. Nesse propósito, partimos do seu reconhecimento por um dos mais amplamente renomados autores portugueses contemporâneos, José Saramago, incorporando à constituição da persona as referências histórico-literárias feitas pelo romancista 4 O estudo das questões é possível para Friedrich (1978, p. 17), posto que “a língua poética adquire caráter de experimento”. 17 contemporâneo em sua obra Viagem a Portugal (SARAMAGO, 1998). Em momento posterior, o estudo biográfico foi produzido baseado na obra dos principais estudiosos fonsequianos, como, Pimentel (2013), Pontes (1953) e Lapa (1939). Por fim, apresentamos o manuscrito estudado “A huma Dama [...]”. No Capítulo II, “Fundamentos da Pesquisa”, discorremos sobre o levantamento bibliográfico e definimos os conceitos que envolvem os termos comuns à crítica textual e são relevantes para a compreensão da sua condição de fonte primária e também para a compreensão da forma híbrida do manuscrito. Assim, empreendemos o levantamento das necessidades de transcrição do manuscrito e as funções literárias e sociais de estudos desta natureza. A seguir, por intermédio da busca às referências clássicas presentes na escrita dos anos seiscentos e setecentos, conceituamos em forma e tema os versos que eram usuais à forma Romance e ao metro Heroico, com o intuito de identificar e colocar em debate a tensão dada pela construção dúbia trazida pela forma poemática. Buscamos, em paralelo, o entendimento em torno do conceito antigo de tragédia, já que a protagonista de nosso poema é apresentada como uma “filicida” que, a despeito de seu crime, é vista pelo eu lírico como vítima do destino. Nesse sentido o poeta tece o poema com um eu lírico que se propõe a julgar o julgamento, questionando o destino e as práticas sociais, de forma colaborar para a elevação do poema, bem como compor um elemento central da tensão em debate. No Capítulo III, “Tensões Retóricas no Poema”, detalhamos os recursos argumentativos característicos da retórica setecentista na poesia de António da Fonseca Soares. Destacamos o Romance Heroico como composição híbrida que estimula a sensibilização do olhar do leitor a partir de tensões em diversos níveis, desde a fusão dos gêneros explicitada no subtítulo, até as tensões vocabulares mínimas já reconhecidas como típicas do período. No poema estudado, observamos a didascália “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°”, a qual o eu lírico se utiliza para narrar em duzentos e trinta e seis versos decassílabos divididos em cinquenta e nove estrofes organizadas em quadras, a história de final patético dessa Dama, findada em um 18 pedido de oração para que seja salva a alma da protagonista de uma “infeliz tragédia”. 19 1 ATRIBUIÇÃO DA AUTORIA DO POEMA Para a recuperação da persona de António da Fonseca Soares, iniciamos o roteiro com uma visita aos Reservados Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, mais precisamente ao Manuscrito 392, onde o poema “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°” se encontra, com o fito de compreender a importância do local e da forma como é arquivado o documento. Em seguida, reportamo-nos à obra Viagem a Portugal, texto histórico- ficcional de José Saramago (1998), no qual a referência à figura de Fonseca Soares ajuda a corroborar a justificativa da escolha do binômio autor/tema. Posteriormente, trazemos subseção voltada à biografia do poeta seiscentista para entendimento dos dois momentos de escrita do autor, com suporte bibliográfico de Nogueira (2019) que trata das questões históricas e religiosas que cercam o período e autor estudado; Pimentel (2013) falando sobre a vida do homem e do padre, ambos intensos para seu tempo; Lopes (2012) contribuindo com informações em torno dos extremos e do perfil de capitão e Frei, Penna (2007) falando sobre a produção literária do período e do poeta, Lapa (1939), cuja contribuição foi a respeito da produção e reconhecimento fonsequisano e Pontes (1953) renomada estudiosa de Fonseca Soares que subsidiou amplamente as pesquisas no que toca o homem, poeta, Frei e suas produções. Os estudos em torno da obra de António da Fonseca Soares e Frei António das Chagas têm sido ampliados pelo grupo de pesquisa “Escrita no Brasil Colonial e suas Relações”, organizado pelo Dr. Carlos Eduardo Mendes de Moraes, desde 1995. Nesse contexto, realizam-se reuniões semanais com a finalidade de dar visibilidade aos textos lusófonos do século XVI e XVII, frequentemente registrados em manuscritos. Dentre os estudos, existem os trabalhos investigativos e de crítica textual, bem como são observadas as questões que envolvem a importância social dos documentos e os debates acerca dos estudos e teorias que amparam, entre os temas mais gerais, os poemas fonsequianos. 20 Assim, ao longo das pesquisas, a importância de Fonseca Soares é confirmada tanto quantitativamente quanto pela qualidade dos textos produzidos, haja vista que a engenhosidade do autor, demonstrada em suas produções literárias, traz uma amostra significativa do universo português do século XVII, no que toca à língua portuguesa, ao contexto, às formas de expressão e de representação do mundo. 1.1 O Manuscrito BGUC 392 A primeira parada acontece na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), localizada em Portugal, país de nascimento e morte de António da Fonseca Soares. Na Sala dos Reservados, encontramos a seguinte referência para o códice Ms. 392: 21 Fonte: webopac.sib.uc.ptsearch*por/a?a. Acesso em: 02 dez. 2020, 9:33. No manuscrito propriamente dito consta da sua primeira página, sem sumário, sem capa, o poema “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°”. Esta organização, própria de um volume, demonstra o trabalho executado pela 22 Biblioteca, que reuniu poesias várias, tendo como parâmetro a contemporaneidade e a condição de manuscrito. A procedência do manuscrito traz informações sobre o espaço onde o documento pode ser localizado. No arquivo, obras encontradas são datadas dos séculos XVI e XVII, entre eles, manuscritos e impressos, os documentos são considerados raros e alguns deles inéditos, como é o caso do poema que estudamos. A respeito dos mantenedores dos arquivos: Os Reservados da BGUC constituem um núcleo de espécies bibliográficas de maior valor bibliográfico e patrimonial, em permanente actualização. É constituído por manuscritos, incunábulos e impressos do séc. XVI a XVIII. Esta colecção começou a ser constituída antes da construção do actual edifício, sabendo-se apenas que estiveram depositados na Biblioteca Joanina até serem transferidos para o novo edifício em 1957-1958. É uma colecção em permanente actualização, onde ingressam obras que vão sendo consideradas particularmente raras e preciosas (cotas R e Cofre), simplesmente valiosas (cota RB) ou sobretudo ilustradas (cota RC). Recentemente, foram incorporadas importantes colecções de publicações periódicas antigas de Coimbra (UNIVERSIDADE DE COIMBRA, 2019, on- line). Ainda de acordo com informações apresentadas no Catálogo Digital de Manuscritos da BGUC, o Ms. 392 se encontra na Sala de Reservados, o volume apresenta arquitetura de 21,3x14,5cm de altura e largura, respectivamente, encadernação de carneira5 e quatro nervos na lombada6, as páginas são enumeradas7, o códice também traz três folhas de resguardo8 ao final do livro. Nas descrições do Boletim da Biblioteca da Universidade, os textos encontrados no Ms. 392 são caracterizados como “Papéis vários”, documentos de inúmeros autores do período, dentre eles alguns romances de Fonseca Soares, décimas de descrições burlescas, sonetos de variadas matérias, abundantes curiosidades em prosa, cartas, orações, hieróglifos, prosas amenas (poesias intercaladas), entre outras formas e gêneros literários. No que diz respeito ao 5 Normalmente produzida manualmente em pele de carneiro. 6 São as costuras para a ligação entre as folhas. 7 Enumeradas a lápis por um punho diferente. 8 Folhas em branco. 23 conteúdo, o manuscrito é repleto de poesias diversas, algumas são anônimas e outras assinadas: Além de muitas anônimas, há poesias de António Barbosa Bacelar, António na Fonseca Soares, António Preto D’Araújo, António Solis, Cristóvão de Melo e Silva, Conde de Ericeira, Conde de Palma, Padre Diogo Lobo, Estévão Nunes, D. Francisco Manuel, Gregório de Matos, Jerônimo Vahia, João Aires de Morais, Julião de Campos Barreto, Lope de Veja, Luis da Ascenção, Luis Borges de Carvalho, Luis Botelho Frois de Figueiredo, Luis do Couto Félix, Manuel Sebastião da Fonseca Paiva, D. Maria das Saudades, Mendo de Foios, Simão António de Santa Catarina, Simão Barreto, D. Tomas de Noronha, Tomas Pinto Barreto, D. Tomás Noronha, Tomás Pinto Brandão, Sôror Violante do Céu (UNIVERSIDADE DE COIMBRA, Ms. 392, on-line). A respeito do material escolhido para transcrição, é nítida a degradação resultante da ação do tempo. Sendo assim, para que as condições desse acervo não fossem agravadas, optamos por pedir cópias digitalizadas pela própria BGUC. Por fim, quanto às tintas usadas, no alto das páginas, foi apresentada a enumeração, único registro com tinta e caligrafia diferentes, sendo que o poema estudado aparentemente foi todo escrito pelo mesmo punho. O maior desafio do processo de transcrição esteve associado à leitura das margens, em virtude da degradação das folhas nas partes inferiores das páginas, nos extremos esquerdo e direito. 1.1.1 Da ficção à construção da persona António da Fonseca Soares A construção da persona de Fonseca Soares pelo leitor do século XXI pode ser iniciada pela “viagem” que é proposta por um outro autor português mundialmente reconhecido e premiado9, José Saramago (1922-2010). Embora se constitua como fonte quase terciária (segundo a arquivística, os dicionários e os 9 Dentre os principais: Prêmio Camões de literatura em língua portuguesa, de 1988 (Disponível em: https://www.bn.gov.br/explore/premios-literarios/premio-camoes-literatura. Acesso em: 07 set. 2020, 10:05) e Prêmio Nobel de Literatura de 1998 (Disponível em: https://www.nobelprize.org/pri- zes/literature/1998/8069-jose-saramago-1998/. Acesso em: 07 set. 2020, 10:07). http://web.bg.uc.pt/cman/show.asp?i=392 24 verbetes se colocam nessa classificação), é importante que façamos uma ponte entre o poeta que aqui estudamos e a repercussão de sua obra, a fim de justificarmos a escolha do corpus. Nesse sentido, escolhemos uma passagem da obra de José Saramago, Viagem a Portugal (1998), na qual são descritos lugares históricos da sua terra natal e, como bom augúrio para esta pesquisa, refere-se à associação entre um desses lugares (a Vidigueira) e a vida de António da Fonseca Soares, que passamos a apresentar na subseção seguinte. Em Viagem a Portugal (1998), Saramago proporciona ao leitor o acesso aos relatos de uma viagem que realmente foi feita por ele às cidades do interior e grandes capitais de Portugal, o texto narra o caminho com suas belezas artísticas e traz à memória grandes nomes da história portuguesa, especialmente artistas. No âmbito literário, nomes como Luiz Vaz Camões, Padre Antônio Vieira são lembrados com destaque, assim como “o homem que o mundo chamou de António da Fonseca Soares” (SARAMAGO, 1998, p. 258). Notoriamente, o reconhecimento da qualidade das obras de José Saramago legitima a escolha e acentua o contentamento presente na descoberta da referência ao autor António da Fonseca Soares, estudado nesse trabalho. De maneira que, apoia a justificativa e evidencia a atualidade de Fonseca Soares também aos olhos dos leitores contemporâneos. Consoante as afirmações do autor José Saramago (1998), no capítulo “Entre Mondego e Sado, parar em todo lado”, é destinado um subcapítulo intitulado “O capitão Bonina” para descrever o encontro entre o protagonista e a pintura do Frei António das Chagas. Porém, agora trata-se da Sala do Capítulo, que para o claustro dá. Em comprimento, largura e altura, é de rigorosa proporção. São excelentes os azulejos setecentistas. Por cima do silhar estão retratos de frades, e o viajante vai passando de um para outro, sem dar muita atenção a pinturas que no geral não são boas, quando de repente fica pregado ali no chão, tão feliz da vida que nem sabe explicar. Tem na sua frente, em admirável pintura, o retrato de frei António das Chagas, homem que no mundo se chamou António da Fonseca Soares, foi capitão do terço de Setúbal, matou um homem quando ainda não tinha vinte anos, viveu dissipadamente no Brasil em folguedos de arte amatória, e enfim 25 perdoado o seu crime da juventude veio a entrar como noviço na Ordem de S. Francisco, depois de outras não poucas andanças e algumas recaídas em tentações mundanais. Enfim, um homem de carne e sentidos que levou para a religião os seus arrebatamentos militares de escaramuça e guerrilha, e sendo grande pregador alvoroçava os auditórios, chegando a arremessar-lhes do púlpito o crucifixo, última e violenta argumentação que rendia de vez os fiéis, aos gritos e suspiros prostrados no pavimento da igreja. Chamaram-lhe capitão Bonina, e ao pregar, não tendo outros inimigos carnais à mão, dava a si mesmo violentas bofetadas, tais e tantas que um seu director espiritual lhe aconselhou moderação no castigo. Tudo isto é barroco, contrário aos declarados gostos do viajante, mas este Frei António das Chagas, que no Varatojo morreu em 1682, tendo nascido na Vidigueira em 1631, foi homem inteiro e por isso excessivo, escritor gongórico, filho do tempo, lírico e obsceno, figura que nunca soube fazer nada sem paixão. Para o fim da vida sofreu de vertigens e fluxos nasais, e desse continuado ranho, a que eruditamente chamava estilício, dizia impávido: o estilício é memorial do modo com que Vossa Mercê há-de aceitar o que lhe vem de Deus, ou seja mal ou bem. O estilício cai da cabeça no peito, e significa que o que lhe vem de Deus é cabeça nossa, deve Vossa Mercê meter no coração, que no peito tem o seu lugar. Com um homem que argumenta assim, ninguém se atreva a discutir. Fosse mau este retrato, e o viajante o contemplaria com a mesma fascinação. Mas a pintura, torna a dizer, é excelente, digna de museu e de lugar principal nele. O viajante sente-se feliz por ter vindo a Varatojo. Numa dessas celas morreu o fradinho, que assim lhe chamavam ao tempo. Na hora de morrer, madrugada de 20 de outubro, pediu ao companheiro que o assistia que lhe abrisse a janela para ver o céu. Não viu a paisagem nem o Sol que lhe alumiara os excessos. Apenas a grande e definitiva noite em que ia entrar. ..................................................................................................................... ..... Vai sendo tempo de partir. O viajante sai da igreja, atravessa o claustro, olha uma vez mais o capitão Bonina («Ou morrer na empresa ou alcançar a vitória», são palavras dele), e enquanto desce a colina vai pensando que, se um dia se meter a frade, é à porta do Varatojo que virá bater. [...] Em Aldeia Gavinha é que foi o bom e o bonito. Ido o viajante à busca de quem lhe abrisse a porta da igreja (sobre os diferentes modos de pedir uma chave poderia escrever um tratado), há um alvoroço na família, iam sair todos a passeio, mas um dos homens da casa põe-se ao serviço do viajante, vai com ele aonde a chave está, e depois acompanha-o, dá explicações sobre as imagens e o geral conjunto do templo, e enquanto estão nisto chegam duas mulheres das que iriam sair também, nada impacientes, abençoadas sejam, apenas para verem o forasteiro e auxiliarem no que fosse preciso. Dizer que a Igreja de Nossa Senhora da Madalena merece visita, seria dizer pouco. Os azulejos, amarelos e azuis, são dos mais belos, e o baptistério, todo forrado deles, dá vontade, pela lindeza que é, de voltar outra vez à pia baptismal. Intrigante é a imagem da padroeira: agora no interior da igreja, depois de ter passado longos anos no nicho da frontaria, tem os olhos baixos, fechados, se não se iludiram os do viajante. Ou está assim para melhor ver os impetrantes, ou recusa-se a ver o mundo, no que muito mal fará, pois o mundo tem boas coisas, como poderia explicar Frei António das Chagas. 26 ..................................................................................................................... ..... O viajante é acompanhado na visita por uma irmã muito sorridente e distraída, que dá sempre as respostas certas, mas parece estar a pensar noutra coisa. Em todo o caso, é ela quem chama a atenção para um relógio de sol que a tradição diz ter sido oferecido ao convento por Damião de Góis. Não estava o viajante esquecido de que Damião de Góis nasceu e morreu em Alenquer, mas ouvir dizer-lhe ali o nome, pelos inocentes lábios desta freira, que continua a sorrir, como lhe hão-de ter recomendado para que à saída a propina seja certa, fez-lhe sério abalo, como se lhe falassem de um parente ou de alguém com quem muito privou. O viajante foi ao piso superior do claustro, a instâncias da irmã, que queria mostrar a Capela de D. Sancha, fundadora, e não lhe achou particular interesse. Andavam por ali dois velhos do asilo à espera da morte, um sentado num banco e olhando o altar, o outro cá fora, ao ar mais livre, ouvindo talvez cantar os pássaros. Ao lado está o cemitério. «É ali que está a Sãozinha», diz a irmã. O viajante acena compungido a cabeça e pensa: «Sim, Damião de Góis.» O que é um disparate, pois Damião de Góis não se encontra aqui. Se ainda continua na Igreja de São Pedro, cem metros mais abaixo, isso não pode o viajante jurar, tantos são os baldões por que passam ossos. Pelo menos parece certo que aquela cabeça de pedra, mutilada, na parede por cima da lápide em latim que o próprio Damião de Góis escreveu, o retrata. Falta-lhe uma parte inferior da cara, mas vê-se que era, ao tempo, um velho robusto, claro homem da renascença no gorro e no penteado, no modo desafrontado de olhar. Alenquer viu nascer Damião de Góis e viu-o morrer. Há quem diga que acabou por causa duma queda que deu. Outros dizem que o mataram os criados, por cobiça de haveres ou a mandado de ocultas vontades. Não se saberá. Cá de baixo, o viajante saúda Damião de Góis, espírito livre, mártir da Inquisição. E sem entender bem o que poderá aproximar esses dois homens tão diferentes, pensa de si para consigo que também Damião de Góis poderia ter escrito aquelas palavras de Frei António das Chagas: «Ou morrer na empresa ou alcançar a vitória.» Enfim: vitória ou morte. Um grito que vem de longe e ainda não se calou (SARAMAGO, 1998, p. 262-266). Partimos da leitura do excerto para compreender a importância que se pode atribuir à obra de António da Fonseca Soares, ao ponto de o autor ser mencionado e dar título a um subcapítulo, “O Capitão Bonina” (SARAMAGO, 1998, p. 258), como referência histórico-literária. A sua presença entre as referências saramaguianas são a um tempo ficcionalizadas e historicizadas comprováveis pela exatidão dos nomes citados: relato e testemunho de um tempo em Portugal, relembrado pelo narrador da Viagem a espaços não-literários como Vidigueira e Varatojo, que foram frequentados pelo personagem histórico. A narrativa retrata a memória do autor com a imagem que faz o protagonista ficar pregado no chão a admirar o quadro de Frei António das Chagas. No texto, o 27 religioso é lembrado como um “homem de carne e sentidos”, as menções surgem em forma de breve biografia, que funde vida mundana e eclesiástica. O renomado religioso, conhecido pelas pregações passionais, visto e admirado pelo viajante, foi retratado, na imagem, como Frei António das Chagas, com destaque da forma como morrera, no claustro, em Varatojo, Portugal. No texto de Saramago, podemos observar que o Capitão Bonina teve na farda um desígnio, lutando com o exército português contra os espanhóis, na Guerra da Restauração. Por outro lado, conhecido pela impulsividade, foi sob a proteção da farda que biógrafos afirmam que o poeta matou por amor e se notabilizou pelas obras amoroso-eróticas. Observamos no romance 54 do Manuscrito BGUC 2998, destacado no livro organizado por Moraes (2013, p. 55): Sabe o Céu com quantas ânsias Nos ermos da minha alcova De não guardar dessas regras Fez pertinência a memória Mas hoje hei de ir vos ver Anda ainda minha alma tão doida. Que com ser toda cartuxa se vai saindo das conchas De volta a Portugal, reconhecido por seu alto desempenho militar, promoveram-no a capitão do Terço de Setúbal. A propósito do quadro, no texto saramaguiano, o viajante fica admirado com a bela pintura e, muito embora as obras do período barroco não lhe sejam de interesse, o quadro de Frei António das Chagas o atrai. O retrato de alguém que viveu e escreveu de forma excessiva, desde a intensidade e o furor para apreciar a juventude, até o momento religioso, no qual uma das marcas era exatamente o estilo arrebatador de se ferir e flagelar-se durante os sermões, a figura de Chagas traz a história de um homem que escreveu o que viu e viveu, da doçura à acidez de seus romances e de suas pregações fortes 28 e persuasivas. Era mesmo “filho do tempo, lírico e obsceno, figura que nunca soube fazer nada sem paixão” (SARAMAGO, 1998, p. 263). Nesse sentido, observamos que Saramago trouxe, de forma ficcional, em Viagem a Portugal (1998), traços da identidade portuguesa quanto à qualidade dos locais e tipos humanos. Essa representação é uma forma encontrada pelo autor para apresentar características que ampliam alguns tipos humanos por quadros que retomam figuras importantes para a história portuguesa, como o caso do Capitão Bonina. Dessa forma, uma nova viagem é multiplica por cada leitor durante a leitura. 1.2 António da Fonseca Soares Nesse momento da pesquisa Viagem se encerra. Entretanto, seguindo no propósito de apresentar o autor a quem o poema “A huma Dama [...]” é atribuído, propomos duas abordagens da vida de António da Fonseca Soares. A primeira trata da vida do homem que foi filho, militar e amante das mulheres; a segunda, de Frei António das Chagas, o qual é de muita importância para compor o voraz autor de inúmeras obras ainda desconhecidas. Na qualidade de escritor, buscamos a construção desse homem que fez repercutir o que viveu e a forma com que viveu em seus poemas, principalmente na produção de romances, mas também, em menor número, nos poemas elogiosos às armas e à guerra, em alguns poemas jocosos, e, inúmeros textos religiosos. 1.2.1 O poeta Após a viagem histórico-literária na forma de argumento de autoridade conferido a José Saramago, partimos para uma caminhada na direção biográfica. Nascido em 25 de junho de 1631, na Vidigueira, em Portugal, António da Fonseca Soares era o primeiro filho homem do fidalgo português António Soares de Figueiroa e Helena Elvira Zuñiga, membro da nobreza irlandesa. Segundo Pontes 29 (1953, p. 20), “o pai era da principal nobreza da vila e a mãe irlandesa, fugida à perseguição movida na sua pátria contra os católicos”, a origem de Fonseca Soares resulta da mistura do sangue irlandês materno e do sangue real português do pai. Pelas nomeações à Judicatura do pai, a família passou por diversas cidades de Portugal. Ainda conforme Pontes (1953), a família do autor era grande, foram ao todo seis filhos, a mais velha se casou, logo após veio António da Fonseca Soares, em sequência, duas filhas que se tornaram dominicanas em Moura; dos mais novos, os gêmeos, um tomou o hábito de Franciscano, enquanto o outro, ficou conhecido como D. Frei João Soares de Figueiroa. Todos da família acompanharam o patriarca durante suas promoções na carreira de juiz, o contexto de alta classe e cultura que entornara Fonseca Soares ofereceu-lhe acesso às praticidades e particularidades da vida nobre. Em decorrência do contexto em que viveu, Pimentel (2013) narra que o estudado escritor, desde a infância, manifestara envolvimento com as letras; durante a juventude cursou filosofia, latim e humanidades em Évora. Neste momento, percebeu suas predileções para a poesia. No entanto, as atividades intelectuais foram interrompidas junto com a maioridade por conta de um episódio familiar, a morte do pai e o retorno à Vidigueira fizeram surgir a vocação aos trabalhos militares. Aos 19 anos, António Fonseca Soares estreou nas Guerras da Restauração. Nesse tempo, a juventude e a farda proporcionaram ao Capitão tudo o que um jovem português comum vivia, das festas até os amores, em semelhante proporção; fato que se associava à habilidade de produzir poemas sobre as pretendentes, temáticas corriqueiras e sociais. Chamado de Capitão Bonina, era conhecido como quem chefiava a infantaria, além de poeta vulgar da época. Pontes (1953) e Pimentel (2013) enfatizam a presença do comportamento impositivo de Fonseca Soares em seus textos: “Espadachim, soldado, versejador namorado impenitente e ousado, Fonseca vivera furiosamente mil e uma aventuras” (PONTES, 1953, p. 2). O amor foi o motivo pelo qual matou um adversário, e também foi o primeiro passo para sua futura mudança. 30 Parece que um homicídio, que António da Fonseca Soares cometera na Vidigueira, teria origem na concorrência amorosa aos favores de alguma das moçoilas pletóricas de sangue minhoto (PIMENTEL, 2013, p. 40). Diante da possibilidade da prisão, Fonseca Soares recorreu à sombra da família, que, como dito, fez pesar a carga nobre do sobrenome paterno, assim como aproveitou-se dos benefícios de suas habilidades com as armas; em virtude disso, foi promovido a Capitão do Terço de Setúbal, fatores que facilitaram a mudança do referido à colônia. Reitera Pontes (1953, p. 2), no fragmento em que comenta a estadia de Fonseca Soares no Brasil: Fugido às justiças, ensanguentadas ainda as mãos com sangue de rival morto de duelo, desterrara-se para o Brasil. E foi lá, na cidade de S. Salvador da Baía, que a leitura das Obras Espirituais de Frei Luís de Granada o despertou para uma vida nova, feita de arrependimento e dor. Conforme Pimentel (2013, p. 57), “embarcou para o Brasil na companhia de um desembargador seu parente, talvez porque as justiças da Vidigueira instassem pela condenação do homicida”, estima-se que na colônia passou três anos. Nesse tempo, continuou escrevendo obras literárias de teor profano, habitando os prazeres do mundo e a vida boêmia. Entretanto, não temos conhecimento a respeito da catalogação isolada das produções fonsequianas no Brasil. Os relatos que tratam da vida de Fonseca Soares apresentam o Brasil como possível local de primeira tentativa para a conversão. As justificativas negativas entornam os erros do passado, os quais tomaram conta de seus pensamentos e levaram-no à religião como configuração de redenção. Entretanto, a Ordem de São Francisco não confiou, inicialmente, na construção de sua conversão, de modo a resultar no indeferimento do sacro pedido. Como afirmado por Pimentel: Defrontou-se António da Fonseca Soares com a recordação dos seus erros e desvarios, e sorriu-lhe a ideia de uma reabilitação que lhe pudesse dar o Céu depois de haver gozado a Terra. Os contrastes são sempre impressivos. Mas os gozos mundanos têm o que quer que seja de embriaguez: aborrecem depois que se libam copiosamente, e tentam de novo quando a gente imagina que a lição do aborrecimento lhe aproveitara (2013, p. 80). 31 Quando retorna a Portugal, desliga-se do voto religioso e retoma a vida de Capitão Bonina, nesse momento, retoma também os comportamentos mundanos dos quais, por tempo limitado, havia se distanciado. Era homem inteligente, admirado e bem quisto pelos lugares que passava, desfrutava da presença da família e dos amigos sempre que buscava descanso na Vidigueira (LOPES, 2012). As circunstâncias colocaram-no em vida dividida em meio a farda, poesias profanas e devassas, além dos conflitos psicológicos de corpo e alma, do fervor do pregador e da vida do homem mundano. Antônio da Fonseca Soares foi um homem de extremos, quando estava no século desfrutou de tudo o que o mundo lhe oferecera. No exército, foi soldado exemplar e participou ativamente nas campanhas de restauração, chegando à patente de Capitão. Na vida religiosa, não havia de ser diferente. Percorreu Portugal de ponta a ponta, chegou a pregar treze sermões num dia. Sempre fiel ao voto da Ordem Franciscana, na religião, levou uma vida de humildade, criticando sempre a vaidade e a ostentação, praticadas pelos membros da corte e da própria Igreja (LOPES, 2012, p. 16). O homem Fonseca Soares revela um perfil de extremos, ecoam as palavras de Saramago “figura que nunca soube fazer nada sem paixão” (SARAMAGO, 1998, p. 263). Enquanto homem comum viveu tudo o que o mundo ofereceu até completar 31 anos; contudo, ao ser acometido por séria doença, surgiu novamente a necessidade de buscar o perdão religioso, ao mesmo passo que a sociedade portuguesa se esqueceu dos erros sobrevindos. Pontes (1953, p. 37) aponta que, “nesta altura parece estar já livre do crime que fora impedimento à sua entrada em religião”. Logo, retoma o interesse pela vida eclesiástica, até converter-se e ordenar-se padre. Em Lisboa, seguiu em conversas com religiosos que incentivaram tal transformação; passado um tempo, o hábito (que não lhe fora concedido imediatamente) lhe foi dado no convento de Évora. Em Lapa (1939), observamos que o período de 1662 a 1682 foi quando o Frei conquistou mais seguidores religiosos, sendo respeitado pela habilidade com as palavras e pela facilidade em 32 persuadir seus interlocutores. Durante a vida religiosa, continuou a escrever várias obras, dentre as quais as mais conhecidas são os Sermões Genuínos e as Cartas Espirituais. As obras do período em que Fonseca era o Frei António das Chagas foram publicadas em número exponencialmente maior que a obra de António da Fonseca Soares, homem secular. Conta e tempo [...] O tempo me foi dado, e não fiz conta, Não quis, sobrando tempo, fazer conta, Hoje, quero acertar conta, e não há tempo. Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta, Não gasteis vosso tempo em passatempo. Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta! Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo, Quando o tempo chegar, de prestar conta Chorarão, como eu, o não ter tempo... Frei António das Chagas, in 'Antologia Poética'10 O momento histórico em que se encontram os textos de Frei António das Chagas indica diversas características que podem ser visualizadas no poema acima, o conhecido estilo “Barroco” da época, ainda que o termo não nos permita representar toda a riqueza e variedade de produções literárias do período, como forma de trazer as tensões entre a vida mundana e o plano religioso. Para Nogueira (2019, p. 29-30): O século XVII foi uma época de crise a qual afetava o homem nas atividades econômicas, políticas, religiosas, sociais, culturais, e, por consequência desse momento turbulento, decorriam variações intensas em suas vontades e sensibilidades. Sob forte influência humanista, o período seiscentista inicia-se difundindo o moralismo, como tendência a insistir no esforço pessoal, desafiando os vícios, os pecados e os defeitos advindos da vida terrena por meio de exercícios sistematizados das virtudes. Resultado da Contrarreforma, havia o incentivo de ações que refletissem penitências na perseverança pessoal de santificação. Assim, desponta uma literatura de produção de 10 Disponível em: https://bit.ly/2UfZEIu. Acesso em: 06 maio 2020, 19:00. http://purl.pt/16732/4/353358_PDF/353358_PDF_24-C-R0150/353358_0000_rosto-24_t24-C-R0150.pdf https://bit.ly/2UfZEIu 33 vários textos doutrinais, como sermões, cartas, poesias, tendo como base a religião. Nesse contexto, Frei António das Chagas tentou mitigar sua história pecadora, seja por pedidos aos companheiros de hábito ou à família. Na posição de Frei, pregou por diversas localidades em Portugal; de forma vívida e inesquecível, como podemos observar no fragmento supracitado, aproveitou do dom da escrita para criar os sermões, os quais eram longos e originais. Tornou-se conhecido e respeitado como religioso. Incansável na prática da pregação, procurava nela enaltecer o nome de Deus a fim de diminuir o ódio entre os homens pelas reflexões das tensões por eles vividas. 1.2.2 A persona Na literatura antiga, o termo persona designava a máscara que era usada pela personagem durante a representação de uma peça teatral. Aqui nesse estudo, trataremos a persona como a pessoa que escreve, em outras palavras, as facetas do autor por meio do eu lírico, de modo a explorar suas veias mundana, militar e religiosa. Um marcante questionamento de Pontes, estudiosa da obra de Fonseca Soares, foi acerca da sua ação: Mas quem foi Antônio da Fonseca Soares? Antônio da Fonseca Soares vem à luz da ribalta, trazido por Frei Antônio das Chagas, que é o próprio Fonseca, ele mesmo, penitente, arrependido, ardente, apostólico, a arrastar as multidões, a quem pregava penitência e mudança de vida, a dirigir na austeridade, na finalidade a uma regra, freiras que por sua virtude eram, naqueles tempos, como oásis em deserto. E, se não fora o autor das Cartas Espirituais, talvez o moço irrequieto, espadachim, esbelto e facundo, versejador inesgotável, fazedor de romances e sonetos que o Fonseca era, não tivesse conseguido remover o esquecimento, que o havia de confundir no anonimato, igualando-o tantos contemporâneos seus que, por obras valiosas, se não assinalaram (PONTES, 1953 p. 6). No que toca à composição do autor, observamos a vastidão de produções divididas entre o cunho mundano e religioso. Enfatizamos aqui, os trabalhos do tempo em que assinava ainda como António da Fonseca Soares e a veia mundana, 34 1631 a 1662 (LAPA, 1939), um poeta de ampla produção, mas pouco reconhecimento. Nesse sentido, a falta de valorização às obras fonsequianas pode ser associada à ruptura com a vida mundana do autor, ou até mesmo pelo fato dos textos religiosos estarem nas bibliotecas católicas (LOPES, 2012). Para Pontes, o autor apresentava um estilo de produção, enquanto homem do mundo, voltado aos romances de cunho vulgar, “mas até chegar o tempo de desengano, Fonseca, a quem sobejava tempo para versos e aventuras, escreveu romances sobre romances, sonetos e outras composições e levou vida de apaixonado valdevinos” (1953, p. 42). Dentre as obras da faceta mundana, destaca-se “A huma Dama [...]”, poema analisado nesta dissertação, além de ensaios de poemas épicos e homenagens a alguns colegas de farda, em suma, composições de caráter circunstancial que costumeiramente se escreveram à época, tanto nas academias, nos salões de recitação e nas cerimônias oficiais, quanto individualmente, conforme destacado: Soldado de guerras da Restauração, poeta épico como muitos dos seus contemporâneos, o Capitão Bonina pertenceu a uma geração de poetas- soldados. Proliferaram no seu tempo as gestas frustradas, os papeis de versos heroicos, que já aludi. Mourão restaurado e Elvas Socorrida entram, pois, no número das malogradas epopeias que as campanhas do Alentejo suscitaram (PONTES, 1953, p. 122). Ademais, no que toca as obras mais comuns do período mundano de Fonseca, destacam-se grande número de romances, derivados das cantigas comuns da literatura trovadoresca, em que originavam predicados notáveis, os quais configuram a autenticidade da obra do autor, “mesmo os romances de amoricos, todos inconstantes, infidelidades, saídas e ausências, esperanças e dor, mesmo nestes romances se encontram pormenores curiosos” (PONTES, 1953, p. 48). Dentre os “pormenores” destacados por Pontes, o trato de temas comuns de forma aguda, bem como a crítica social a partir de sutilezas eram formas de trazer as temáticas chãs de forma notável. A título de exemplo do detalhamento sutil dado a cada representação, na décima quinta estrofe do poema estudado, são manifestadas as caracterizações 35 que constroem os perfis dos julgadores da enforcada, pela perspectiva do eu lírico que busca elevar a temática chã através da elevação da Dama e questionar a autoridade julgadora: Peza a tua beleza em cruel jugo a hum nefasto quando vi[l]u ministro* pareseo branco sisne junto a um corvo junto a hum fereo leopardo, hum branco arminho Nos dois primeiros versos, surge a beleza da Dama em julgamento, como se essa beleza lhe acarretasse maior castigo; na contramão das belas feições surge a imagem de um ser nefasto, o dono da sentença criminal, aquela que colocaria fim à vida da mulher. Nos dois versos finais, as imagens criadas são paradoxais e sustentam a perspectiva que se apresenta favorável à condenada, ut pictura poesis11. Enquanto a ela é trazida à semelhança de um “branco sisne e arminho” imagens associadas à pureza; ao homem julgador, são atribuídas imagens como “corvo e fereo leopardo”, aludindo a agouro e à agressividade, em contraposição enfática à Dama. Tais pormenores trazidos pela escolha vocabular auxiliam na produção da narrativa e indicam a injustiça considerada a partir do ponto de vista do eu lírico. A notoriedade trazida pela agudeza da escrita de António da Fonseca Soares levou-o a frequentar a academia dos Generosos12, uma das mais importantes do 11 “No Renascimento, o símile horaciano, que continuou a conhecer grande divulgação sobretudo entre os humanistas, contribuiu para igualar em excelência ambas as artes, assim como para difun- dir a importância da componente pictórica na poesia, como o comprova o sucesso alcançado pela chamada poesia descritiva até meados do século XVIII. Leon Battista Alberti, um dos autores mais representativos da discussão que envolvia as duas artes no início do Renascimento, já irá desen- volver a questão não a partir do símile horaciano mas sim adaptando o modelo do orador de Cícero às artes visuais. A excelência do pintor, segundo Alberti, passa assim a estar directamente depen- dente da sua capacidade de impressionar o indivíduo, tal como o bom orador deve ser capaz de mover os seus ouvintes. Os teóricos maneiristas e neoclássicos deram grande importância a esta questão, dividindo-se as hostes em favor ora da poesia ora em favor da pintura, mas concordando na necessidade de delimitar os processos de imitação a que ambas as artes obedecem. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/ut-pictura-poesis/. Acesso em: 21 nov. 2020, 14:23. 12 A academia dos Generosos, é a primeira conhecida em Portugal, posteriormente nomeada como Academia Portuguesa. https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/renascimento/ https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/simile/ https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/imitacao/ https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/ut-pictura-poesis/ https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Academia_dos_Generosos&action=edit&redlink=1 36 período seiscentista, local em que poderia demonstrar a qualidade de seus poemas. Fonseca para ser bem do seu tempo, não podia deixar de frequentar academias. Doutorado já em amores vadios, procurou igual título no domínio das Musas, solicitando-o do Parnaso oficial, cujos interesses os académicos geriam (PONTES, 1953, p. 62). Conforme Tavares (1989), o culto à forma conduzia o homem à perfeição. Dessa forma, eram apreciadas, para a produção dos textos no período, características como a imitação dos antigos, idealismo centrado no trato das temáticas de forma a apresentá-las com engenho – que representa a construção do texto através de artifícios e mecanismos que introduzem um modo particular de escrever do autor, ainda que respeitando o decoro. Na fixação de gêneros, característica acentuada desde o classicismo até o período em que escreve Fonseca Soares, houve a marcação de particularidades estruturais pelas quais diferenciavam-se temáticas, decoro e gêneros. Tais abordagens dominaram o período em que foi escrita a obra estudada: Simultaneamente, quase, começou a rever-se e a valorizar-se o barroco como período artístico, e, por extensão, esboçaram-se as primeiras reabilitações do seiscentismo como época literária (PONTES, 1953, p. 68). Analisamos, nesse âmbito, que o ilustre poeta-capitão escreveu seguindo referências da fase clássica, observou regras do decoro, segundo os preceitos horacianos, mas trouxe também a engenhosidade setecentista ao manipular tensões e propô-las aos seus interlocutores. Para Penna: O objetivo da análise dos poemas horacianos é verificar as implicações da métrica em seus poemas. O esquema métrico permitindo o jogo das palavras com seus sentidos, das frases com seus significados, impondo seu ritmo dentro do contexto estrófico e definindo a musicalidade do poema parece exercer também papel semântico (2007, p. 146). 37 Assim, o decoro horaciano se define por adequação necessária para a produção de um bom poema, podemos defini-lo, também, por agir com decoro13 e adequação, regras que guiavam a produção poética do século XVII. Consideramos que o resgate do equilíbrio horaciano ofereceu, portanto, importantes contribuições para a literatura portuguesa e, de forma complementar, para a brasileira. Cumpre destacar que alguns escritores do período produziram composições híbridas, as produções longas se expressavam em versos curtos, mais adequados à expressão lírica, enquanto as outras de menor fôlego vinham concorrer, de maneira mais difusa, com o soneto. No estilo, estão inclusas as questões de igual importância como a opção pelo gênero, a emulação14, as relações com a antiguidade clássica e com a religião, todas elas vinculadas a um fazer do próprio tempo da obra. Poemas de outros gêneros, líricos, épicos, enconomiásticos, principalmente os últimos têm destinatários que referem letrados do governo [...]. tanto pelo gênero quanto pela destinação prescrita no gênero, evidencia-se neles o padrão da escrita, escritas por um ator letrado para a leitura de personagens letradas. Contrastivamente, aplicando a caricatura de tipos para refletir pessoas do local, a sátira dirige-se sempre a um público que ela fantasia iletrado, tematizando os discursos locais em sua forma aberta (HANSEN, 1989, p. 39). Em “A huma Dama [...]”, há diversas indicações da importância da leitura pública declamada, dentre elas: a posição do eu lírico e seu desejo expresso de convencer o ouvinte, o questionamento das autoridades e, por fim, a questão moralizadora por indicações dos vícios da sociedade vigente. Observamos na vigésima estrofe a máxima da morte do corpo para elevação da alma: Sirva de bandida do triunfo, da piedade o brasão do zello digno 13 “Guarde cada gênero o lugar que lhe coube e lhe assenta” (HORÁCIO, 1981, p. 57). 14 Emulaçam: emulação. Estímulo que nos incita a obrar tão bem como os outros, ou melhor se for possível. Segundo os aristotélicos, distingue-se a emulação em duas; huma virtuosa, que procura imitar as boas acçoens de seus conhecidos; & outra viciosa, que não pode sofrer sua prosperidade, fortuna, honra, & gloria. Esta segunda emulação, he filha da enveja. Disponível em: https://bit.ly/3bBs0CN. Acesso em: 29 jul. 2019, 14:20. 38 se da morte do Corpo endosso claro Da vitoria da alma serto indisio No poema estudado, observamos a argúcia marcada que permite o entendimento dos recursos empregados, consoante as diversas expressões que representam a elevação da matéria. Conforme os conceitos tratados por Muhana (1997), para que se produza a emulação, propõe-se o estudo das práticas literárias vigentes na época, cujas características servem de base para produção de outras obras. A emulação vem atrelada à produção de uma obra modelar que será glosada, imitada e, finalmente emulada. O texto em pauta, apesar de se desenvolver em versos heroicos, ocupa-se de matéria comum para romances do século XVII. Tratou-se de poesia circunstancial, aquela cujo objeto dialoga com assuntos do cotidiano; no entanto, Fonseca Soares usou ferramentas que representam características da retórica de Aristóteles, as quais demonstram a habilidade de avaliar, em cada caso particular, os meios específicos de se persuadir alguém. Como escritor do século citado, António da Fonseca Soares tinha habilidades para usar dos discursos e instrumentos comuns à retórica, os “caracteres” e as “virtudes”, já que para Aristóteles (2012, p. 12) a retórica deve ser compreendida como “a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir”. No caso no poema discutido “A huma Dama [...]”, constatamos que, como parte dos artifícios para a arquitetura do convencimento, o autor recorreu ao discurso judiciário, haja vista que o eu lírico do poema propõe também um julgamento do julgamento e, portanto, temos tanto a acusação como a defesa, aquela empreendida contra o próprio ato de julgar e esta voltada à Dama criminosa. Em síntese, a persona António da Fonseca Soares é o misto de um homem letrado, que dedicou parte de sua vida à carreira militar e o final à vida religiosa e, no domínio da palavra, destacou-se por seus versos profanos e por sua oratória religiosa. Nas suas referências biográficas, conciliou o ímpeto da juventude com a conversão religiosa, ambos registrados pelo domínio da palavra, em verso, que lhe valeu a crítica de ter sido o melhor romancista do século XVII (premiado ainda que 39 sem nenhuma publicação impressa em vida) e um modelo de oratória religiosa contemporânea e concorrente, oposta à oratória do Padre Vieira (NOGUEIRA, 2019). 1.3 A transcrição do poema: “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°” A propósito de trazer o acesso ao poema para o leitor do presente trabalho, nesse momento, apresentamos a transcrição do manuscrito e salientamos que o método utilizado para a edição é o proposto por Moreira (2013), que foi concebido pelos grandes pesquisadores em torno do tema para o trato com manuscritos do século XVII, fator que será discutido na metodologia desse trabalho. Com a finalidade de ampliar as informações sobre o texto transcrito, os parágrafos que seguem tratam do poema de António da Fonseca Soares. Nosso corpus se encontra na primeira página enumerada do Ms. 392 e recebe a didascália “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°” e o paratexto “Romance Heroyco”, que se encontram escritos no início da primeira página com a mesma tinta e a mesma escrevedura que o manuscrito foi apresentado. Vale ressaltar que por se tratar de um texto inédito e único, visto não ter sido encontrada nenhuma outra cópia, não foi possível comparar didascália e paratexto, ainda que, sobre o tópico, Moreira (2013, p. 326) saliente a importância para o historiador da leitura de investigar variantes de títulos e didascálias “porque nos subministram informação indireta sobre o direcionamento da construção do significado textual durante a leitura”. O poema é formado por duzentos e trinta e seis versos, divididos em cinquenta e nove quadras, todos versos são decassílabos15. Ao poema é dada a nomenclatura de “Romance Heroyco”16, enquanto a didáscalia adianta as pretensões do autor pela percepção do copista. Também observamos, na 15 As questões de versificação foram abordadas no capítulo 3. 16 O termo será discutido no decorrer do trabalho. 40 perspectiva de Spina (1977), que a apresentação de cláusulas finais indica aos leitores do poema um momento de oração pela Dama retratada no texto, tal cláusula é espiritual, comum às cláusulas finais e somam quatro linhas do mesmo punho do copista de todo o texto. “A huma Dama [...] [Enfor]cada por matar o seu f°” Romance Heroyco 1 Valhate Deus por Dama; e quem pudera Esqueserse do teu cruel destino que fas; que aInda se pague cuidadoso Que julguei de ver te compasivo. 2 Vi te morrer violento; e magoado, de que agora tristisimo me aflijo. E talves no forsozo sintimento se te contemplo bem; perco o sintido. 3 Desta pena por ultimo sufragio17 este pezar confuso te didico, e da dor natural por de dezafogo Asim canto, asim choro, asim suspiro 4 No orbicular18 visório, ja da assombros fizeste o teu papel, tudo pordigios. primeira Dama na infiliz tragédia que hojy em ti representa o fado iniquo19 17 “Toda a obra pia por alma dos defuntos”, isto é, refere-se à obra escrita para quem morreu. Dis- ponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/sufragio Acesso em: 21 nov. 2020, 14:34. 18 Definição: olhos. 19 Contrário à equidade; injusto. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/ini- quo Acesso em: 21 nov. 2020, 15:23. http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/sufragio http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/iniquo http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/iniquo 41 5 Na primeira jornada de domingo fes primeiro galam marido digno. porem nesta segunda, amor julgado te comprou escrava de Cupido20 [1] 6 Na viuves, e na idade te desculpo. porque humana te vi, bella te admiro: porem só destruir do amor effeito. como mais desumana te crimino.. 7 Sega te julgo, fragil te desculpo: E asim todo emclinado a genio pio Enfelis. Como linda, te contemplo porvida, Como pobre, te devizo21_ 8 Pera saiste de horroroso ergástollo22. que em luxuria he qual o do egipto. dos criminosos terreal Inferno. sivico progatorio dos dilitos 9 Quem ja vio prizioneira huã beldade. que não sintisse triste e compasivo Ao ver presa sahir em duros ferros quem foy branda prisão dos alvedrios23. 10 Quexouse ultragada a fremosura. em lastimosos lugubres suspiros. que ferirão tristisimos os peitos e que bradão os olhos, dos ouvidos. 20 Para Chevalier e Gheerbrant (1998), o mito tem como símbolo Cupido – representante do amor as necessidades carnais – o corpo, que vê o amor em Psique a qual personifica a alma tentada a encontrar esse amor. 21 “de visu: Rubrica: termo jurídico. Por ter presenciado (expressão usada em relação à testemunha visual” (HOUAISS, 2009). 22 Ergastulo: significa o lugar, em que antigamente os escravos estavão presos como cadeas. [...]. Disponível em: https://bit.ly/3h1JTid. Acesso em: 24 jul. 2019, 17:40. 23 Mesmo que decisão própria, livre arbítrio. 42 [2] 11 Lamentava piedade em tristes Ecos da tua enffeliz sorte os desatinos. mas clamava a justiça em ferios brados. Comtra a tua piedade os teus castigos 12 Horrisono clamor* beiço* Infame aos ares espalhava o teu dilito. Ay de quem de tal vos escuta o ecco24 e he de oco tão vil no ar narcizo25 13 A cadeya* que a teu Candido Colho26 lhe servio de fatal, inproprio a linha. se algun dia foy prizão dos agrados hoje foy desagrados dos sentidos 14 serviate de sinta27 hum duro ferro*.. e ouves sinta tão durá em brando sinto. porque não deu ar ao teu donayré28. sim hoje odezas29 do seu castigo. 24 Eco: ou Echo, ouy ecco, ou eccho. Deriva-se do verbo grego Ichem, que vale o mesmo, que soar, ou retomar, & o eco, não é outra cousa, que repercussão da espécie do som, ou certo movimento tremulo, que do corpo folido, & alguma cousa côncavo reflete, & se propaga até ouvido, & das palavras repete última, ou fim dela. (...) Também se chama a fabulosa Nynpha, filha do ar, da qual diz ovidio, que em castigo de entreter com seus palavrios a Juno, para que não chegasse a apanhar de Jupiter, estando com suas Damas, foy condenada a não responder mais, que três ou quatro palavras, a quem lhe quisesse falar. Acrescenta pois, o dito poeta, que Eco, namorada de Narcizo, vendo-se desprezada dele, morreo & convertida em um penedo, só com a vos continuou a vida. Disponível em: https://bit.ly/3cJ1at4. Acesso em: 24 jul. 2019, 18:11. 25 Narciso: flor branca, açafroada por dentro, & às vezes vermelha. Nasce de um talo oco, despido de folhas, & mais alto de hu palmo. Dá ao narciso folhas semelhantes ao porro, excepto que são muito mais pequenas e miúdas. O mancebo, chamado Narciso, fabuloso filho do rio Cephiso, & da Nynpha Liriope, he o que desprezou os amores de Eco, & namorado de si próprio, vendo-se em huma fonte, & querendo-se abraçar com a sua imagem, se deitou dentro da água, onde perdeu a vida, & foi mudado nesta flor, à qual deo o seu nome, segundo Ovídio no livro 3. Disponível em: https://bit.ly/3cFzmWy. Acesso em: 24 jul. 2019, 18:00. 26 Cinto de castidade. 27 Cinto de castidade, de ferro ou metafórico. 28 Donayre: (...) Bom ar. Disponível em: https://bit.ly/37bCUPk. Acesso em: 24 jul. 2019, 18:15. 29 Não foi encontrado a definição do vocábulo. 43 15 Peza a tua beleza em cruel jugo a hum nefasto quando viu ministro*30 pareseo branco sisne31 junto a um corvo32 junto a hum fereo leopardo33 hum branco arminho34 [3] 16 Deste emffiliz os tres primeiros passos que só foram perpasos bem sintidos Porque os forçosos desalemtos Forão Estes teus pasos foram parasismos35 17 Chamava o apostólico*36 disvello de hum sosio de Jesus de Ignacio filho de cujo zello o inextinguivel jogo disparava em cada equo, hum rajo vicio 30 Quem dá a sentença. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/ministro Acesso em: 21 nov. 2020, 14:47. 31 Cisne: Da Grécia antiga à Sibéria, passando pela Ásia Menor bem como pelos povos eslavos e germânicos, um vasto conjunto de mitos, de tradições e de poemas celebra o cisne ave imaculada, cuja brancura, cujo poder e cuja graça fazem uma viva epifania da luz (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 257). 32 Ao que parece, a conclusão a tirar de um estudo comparativo dos costumes e crenças de numerosos povos é que o simbolismo do corvo só tomou seu aspecto negativo há pouco tempo e quase que exclusivamente na Europa. Consideraram-no com efeito, nos sonhos, como uma figura de mau agouro, ligada ao temor da desgraça. É ave negra dos românticos, plantado por sobre os campos de batalha a fim de cevar a carne dos cadáveres (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 293-294). 33 Leopardo: Os sacerdotes egípcios cobriam-se com uma pele de leopardo nas cerimonias fúnebres. Essa pele representava o gênio de Set, o Deus do mal, o inimigo, o adversário dos homens e dos deuses. Cobrir-se ridiculamente com ela significava que Set fora imolado, que o adversário estava vencido e que a pessoa trazia sobre si, a prova e a virtude mágica do sacrifício. Este resguardava os seres dos malefícios dos espíritos maus que vagam ao redor dos defuntos. Encontram-se práticas e crenças análogas entre xamãs da Ásia, bem como nas civilizações ameríndias (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 544). 34 Arminho: Carnívoro de pelo branco imaculado. A túnica de Mozetta, o manto de pele de arminho, simbolizam inocência e pureza – na conduta, no ensino, na justiça (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 80). 35 Hora de aflição. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/parasismos Acesso em: 21 nov. 2020, 15:30. 36 Representante da igreja, o padre, e amante. http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/ministro http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/parasismos 44 18 Ai Importante brado quando Justo Reverente aplicasté o prunto ouvido: Estanpando machiar37 o fiel retrato do ante Deus sagrado corsiffixo 19 Atras hiã os dois juris consultos equestres juises. selbery menistros do supremo senado delegados por legais asistentes do suplisio 20 Sirva de bandida do triunfo.. da piedade o brasão do zello digno se da morte do Corpo endosso claro Da vitoria da alma serto indisio [4] 21 Poblicava o pregão: te dava morte pella que deste a cruel a hum temrro filho Felisidio38 fatal que ofende o raro ao natural, direito, e ao devino 22 Que se do divino Rey de bello sangue Clamou da terra Comtra o fratrisidio deste Ignocente o sangue ao Rey humano Tambem clamou justiça, a mudos gritos 23 Que a porporção*39 da culpa fosse a pena sentensie pordente aquelle juizo: que se aos fios da corda o afogaste te afogasem tanbem da corda os fios 37 Machiar: o mesmo que degenerar, e ficar estéril. Diz-se da planta, que em certo modo se faz macho, quando cessa de produzir, & dar fruto. Disponível em: https://bit.ly/3h1l1Y0. Acesso em: 27 jul. 2019, 19:30. 38 Filicídio: ato de matar o próprio filho. Disponível em: https://bit.ly/2A2aSJY. Acesso em: 27 jul. 2019, 19:38. 39 Lei de talião – “A amputação de braços, pernas, olhos, língua, mutilações diversas, queima de carne a fogo, e a morte, em suas mais variadas formas, constituem o espetáculo favorito das multi- dões desse período histórico” (GUZMÁN, 1983, p. 77). 45 24 Justo rigor, se bem inuzitado porque sempre o mais fragil teu asilo porem não te valeu o privilegio que já logrou o sexo40 fiminino 25 Hoje em ti, por disgrassa do teu fado de perverter tão piadozo estillo ficando exemplo lugubre do sexo espetacollo oRorozo do destino [5] 26 De poder ordinario o soberano* juizar não podia o teu castigo: E como almã do Rey, primite justo o que o animo real reprima I muito 27 A munto custo o seu nobre genio consente se castigue o teu delito Porque se he no extrior justiniano he no real intrior Andrade Pio. 28 Asim no comsidera, a experiensia E tantos, grandes perdoados vimos Pela sua real piedade suma que exsede a de Ragano e a de Ponpillo41 29 Diria sertamente, como aquelle embasador, que sedo lle perfiro o frimar de huma morte o real decreto digna satisfação de hum crime altivo 40 Sexo: A alternâncias de sexo são bastante raras nas mitologias, mas não excepcionais. Na verdade, não é a realidade física do sexo que interessa ao simbólico, mas a significação que afeta o sexo na imaginação dos povos. Ora cada ser do ponto de vista histórico, traz em si ao mesmo tempo o masculino e o feminino, como o sol e a lua, o Yang e o Yin, o espírito e a alma, o consciente e o inconsciente. O sexo indica, não só a dualidade do ser, mas sua bipolaridade e sua tensão interna. Quando à união sexual ela simboliza a busca da unidade, a diminuição da tensão, a realização plena do ser. Por isso os problemas místicos adotam a linguagem erótica para tentar expressar a inefável união do corpo e da alma de Deus (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 832). 41 Numa Pompilio, rei piedoso e religioso de Roma (753 – 673 a.c.) (GRANDAZZI, 1997). 46 30 Dise o quem pesa Cargo tão violento numca soubera, descrever o estilló dito sempre imortal, ainda que o feito fosse muito deversso deste dito 31 asim o nosso Rey sempre magnanimo e aInda mais que aquelle compasivo primite te castiguem, justiseiro dezejando perdoaste emternesiado [6] 32 Emfim como em teu mal não há remedió Andando foste o mais cruel caminho se pesa as tuas plantas todo abrolhos Pesa os nossos olhos todo espinho 33 Teus brandos pes pizando os duros seixos os deixavão de dor embravesidos e a contato gentil dos pes descalçoz Pululavão jasmins entre martirios 34 Partemse as pedras, por teus pes tocadas quebramse os corações dos ays feridos aquella é semsiveis naufragos estes quaze emsensiveis nos deliquios42 35 Cho[r]avam Compasivas as deidades dever huma deidade, em tal suplisio aprendendo de ti, que ao duro fado esta sugeito até o inperio lindo 36 A janellas a ver te vinhão muitos mas vendo a tua casa co teu destino os olhos que abrião de curiosos por te não ver serravam de sentidos 42 Mesmo que chagas; perda dos sentidos. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicio- nario/1/DELIQUIO. Acesso em: 21 nov. 2020, 15:14. http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/DELIQUIO http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/DELIQUIO 47 [7] 37 Roubastes muitas lagrimas aos olhos porque foi teu aserrimo43 castigo de compaxão geral piedozo gesto de hum univercal pesar justo motivo 38 Só arde* cuja vida desafogo escandallo he gloria dos genios pios as pias regionais. figuras humanos Vernais dargois liopardos femeninos 39 Aquellas em quem he vida o desafogo Com que o despejo vil he exsersisio Lingoas danadas que as do cam serbero exsede no rigor sempre ferino 40 Ipo[critas] da honra e da piedade affetando lealdade aos maridos Sendo talvez piores miretrizes. Virão com complacensia, o teu suplisio [8] 41 Dizey brabaras em pior das danarias em que Libia nasestes, pois ouvimos que mostrastes violentos, e inproprio Gosto O dever vosso sexo asim punido 42 Mas Ja chega a Infelice fromozura aquelle campo vil funesto sitio anfitiatro funebre dos mortos.. orroroso pati[b]ullo dos vivos. 43 Deste tempo bramia um mar furiozo as balizas pasando do sentido trasladandose todo aos nossos olhos na lugubres borrasca dos suspiros 43 Mesmo que muito forte. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/acerrimo Acesso em: 21 nov. 2020, 15:17. http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/acerrimo 48 44 A terra disparava de’agoa os rayos Quando aos ares tirou de crista[.]linos Já elevado aos celestes polos. Já abatido aos horridos abismos. 45 Soava o vento o mar alvorosando, E entre o mar emcrespado e o vento riso Sentimento do mar forão os roncos e solusos do vento os aso[b]ios [9] 46 Tremeo a terra vendo lle cortavão a melhor flor, que vio seus prados ricos Athe mudou de esphera triste o fogo queria es[ta]r nos peitos bem nascidos. 47 E louco O ceo, a agoa neste cazo Agoa benta a julguei, cujos borrifos Ou seria de aspergir de piedozo ou lagrimas serão de enternecido. 48 Chegaste á escada a quem no[ssa] piedade Julgava de Jacobi pois prezumimos, que por ella, a tua alma, como hu Anjo. Subia a ver a Deus no ceo in espirto, 49 Tiranna escada, escada venturoza agora te contemplo e te deviso pois por ti sobe uma alma hu regio throno Se por ti sobe hu corpo a hu vil castigo. 50 Já no sino da escada o algoz fero na garganta te poem cordel indgno: Quem ja mais vio emcolho tão fermozo hu laso tão improprio, e tão esquivo 49 51 As mãos te aprizionou branco verdugo prendendodo-te os teus pes negro ministro: pês que para os seus passos forão soltos; Sempre primeira os três passos são capitivos [10] 52 Sobre os olhos teus cabellos bellos forão desses dous sóis eclipces lindos Ou nuvens, que o vel tando-lhe o lustrozo, Mais lhe ilustravam seus reflexos finos. 53 Cahirente os cabellos sobre os olhos foy de teu grande estrago hu claro indicio; porque nas tempestades dos disgostos servirão deses sois rayos cahidos. 54 Só para ver a Deos foste compollos e mostrando ao comcurso o rostro lindo, foy em nos compaxão o dezalento foy em ti compostura o desalinho 55 Jaculatorias de insensivel zello te dectitava debaixo o fiel ministro de Jezus, que com puros eccos gratos Te animava a morrer a sacros gritos. 56 Já cubertos teus olhos, e vendados pello preso da dor forão vendidos; converteo nosso amor a gala em lutos, póis lutto foy as vendas dos cupidos. [11] 57 Do lince cego Deos foste retrato porque, ainda que ao morcegos, vimos, que lhe furtaste o arco para o triunfo e elle a venda te deu primeira o suplicio 50 58 Aqui agora só fale o cilencio; pois quem eu não posso ja, da dor vencido, formar mais rasgos, que os do terno peito nem buscar mais Conceitos, que os suspiros 59 Se na forca já morta te comtemplo inmortal la na gloria te imagino he bem, que á minha penna o fim suponho Adonde a tua gloria tem principio Amem Pede o autor a quem ler ou ouviir este romance, pello amor de Deus hu Padre nosso e huã Ave Maria pella alma desta enforcada Em suma, salientamos que o objetivo de edições e transcrições dessa natureza é, sobretudo, restituir o texto de forma confiável, a partir dos fundamentos da crítica textual e da filologia com o apoio de outras disciplinas norteadoras para evitar ao máximo interferências não autorais do documento, ainda que se trate de um apógrafo. Apesar da possibilidade da prática de erros cometidos pelo editor, embasados nos estudos de crítica textual (MOREIRA, 2013), o trato das questões técnicas e o rigor científico garantem que os problemas discutidos sejam minimizados. Ressaltamos que não é nosso interesse principal apresentar um trabalho específico de edição, senão seguir os preceitos da crítica textual para permitir uma leitura mais acessível aos leitores não familiarizados com a escrita do século XVII do presente trabalho. Os objetivos foram, a partir da transcrição apresentada, discutir os preceitos clássicos da retórica e da poética que desempenharam a função de conjunto de regras para a escrita; tornar o documento passível de estudo da língua portuguesa e da literatura lusófona, por intermédio de reflexões que reverberam a cada leitura. Com isso, as tensões e intertextualidades aqui discutidas podem se revelar inesperadas para os leitores que atualizam a obra no tempo da 51 leitura e os ajudar a perceber como a organização da sociedade do século XVII tem muito a ensinar à sociedade do século XXI. 52 2 FUNDAMENTOS DA PESQUISA A pesquisa realizada para a produção do presente capítulo é dividida em três momentos. O primeiro é voltado para a crítica textual, está fundamentado em Febvre & Martin (2017), com o levantamento da relevância do estudo dos manuscritos e suas origens; em Cambraia (2005), Spaggiari e Perugi (2004), Spina (1997) e Azevedo Filho (1987), no que diz respeito ao trabalho com manuscritos; e em Borges e Souza (2012) e Souza (2007), na discussão dos produtos que resultam do trabalho da crítica textual. O segundo momento apresenta os estudos que entornam os estilos diferentes da formação do gênero híbrido que trata da estrutura poética, sobretudo para a compreensão dos termos “Romance e Heroyco”, os quais fazem parte das investigações da teoria literária dos setecentistas pautados no decoro, comportamento poético comum à época. A contribuição das obras a seguir, são necessárias para a compreensão dos estilos de forma separada e das temáticas que se enquadram em cada um deles. Os textos são: Ramalho (2016), Curtius (2013), Moisés (2013), Moraes (2013), Hansen (2012), Aristóteles (2007), Said Ali (2005), Coutinho (2005), Spina (2003), Wellek e Warren (2003), Rosenfeld (2002), Zumthor (2001), Ilari (1999), Bosi (1994), Chociay (1993), Hansen (1989), Tavares (1989), Spina (1977), Chociay (1974), Moisés (1973), Diez Echarri e Franquesa (1970), Pontes (1953) e Horácio (1778). Por fim, o terceiro momento trata da compreensão e da escolha de um método de manejo do manuscrito “A huma Dama [...]”, a partir de Hansen (2019), por intermédio do qual discutimos a relevância da reconstituição arqueológica de um manuscrito, e Moreira (2013), cuja contribuição teórica utilizamos para organizar e elencar critérios adequados para a transcrição de textos seiscentistas e setecentistas. 2.1 Crítica Textual 53 O acesso às fontes de obras que complementam os estudos histórico- literários de séculos passados esbarra sempre na necessidade de interpretação desses documentos. Nesse sentido, o conceito crítica textual, de acordo com Cambraia (2005), diz respeito às formas de reprodução e apresentação de um texto (de tradição manuscrita e/ou impressa) sem que ele perca sua integridade. Trata da transmissão desse texto com nenhuma ou com o mínimo de interferências possíveis por parte do editor / pesquisador ao longo do processo de edição. O levantamento de critérios, métodos e princípios serve de apoio para que as transcrições, cópias e edições sejam fiéis aos manuscritos. As transcrições e as edições são fundamentais, mas trazem intrinsecamente as dificuldades de, além da promoção do estudo dos seus conteúdos, promover-se o diálogo com a fidedignidade nascida da “decifração” desses documentos. A respeito, Cambraia (2005, p. 19) enfatiza que “com certeza a contribuição mais importante da crítica textual é a recuperação do patrimônio cultural escrito de cada cultura”, por oferecer um caminho mais seguro para o tratamento desses documentos. A decifração e a reprodução de um documento podem ser realizadas com mais segurança e propriedade quando se tem consciência de como eram produzidos os documentos, em que classes se distribuíam e como se estruturavam internamente, sobretudo porque constantes formais em termos tanto estruturais quanto linguísticos (CAMBRAIA, 2005, p. 25). Passamos, então a compreensão dos conceitos elementares da crítica textual: manuscrito, fonte e filologia, no âmbito do objeto de nosso estudo, o Ms. 392, no qual consta o poema dedicado à “Dama enforcada...”, atribuído a António da Fonseca Soares. 2.1.1 Manuscrito 54 Iniciamos o debate pelo conceito manuscrito44, que, para Cambraia (2005), é definido por conjunto de folhas com textos escritos à mão, que circulavam em duas formas: livros ou folhas avulsas, que ainda poderíamos subclassificar em autógrafos (originais ou cópias), apógrafos e ainda idiógrafos. Os manuscritos foram uma maneira de expandir pensamentos, teorias, textos religiosos e outros estudos considerados relevantes. Mesmo depois da chegada dos livros impressos, a ampla produção manuscrita permaneceu pelo fato de a cultura livreira não ter sido difundida em Portugal como em outros países europeus. Quando se trata da prática escribal portuguesa, percebemos uma relevante produção manuscrita dos textos que retornavam à antiguidade clássica, de modo a seguir os manuais de retórica e respeitar os preceitos estabelecidos. Nosso propósito é apenas o de mostrar, em algumas páginas, de que maneira, desde a metade do século XIII, mais ou menos, até o final do século XV, a produção do livro manuscrito organizou-se no ocidente, diante da crescente demanda, e indicar a que necessidades este se encarregava de responder quando o livro impresso veio substituí-lo” (FEBVRE; MARTIN, 2017, p. 55). Para Febvre; Martin (2017), a história dos manuscritos foi dividida em dois grandes momentos, o primeiro, o “Período Monástico”, quando os textos existiram até o século XII, advindos de estabelecimentos eclesiásticos contendo conteúdos predominantemente religiosos (principal forma de circulação de livros e textos, até então). Ainda para os autores: Essa literatura não se dirigia a eclesiásticos (embora fosse muitas vezes escrita por eles) e ia ser redigida sobretudo em língua vulgar. Obras originais, a princípio em verso, depois em prosa, remanejamento de obras antigas, traduções ou adaptações de obras latinas clássicas ou medievais iam em breve pulular. Para difundi-las, para satisfazer às exigências de um público cada vez mais vasto, tornar-se-ia necessária uma nova organização de livros (2017, p. 64). 44 “Manuscrito – Lat. Med. Manuscriptus; manu, à mão, scriptus, escrito; scribere, escrever. Livro ou documento escrito à mão. Também se denomina manuscrito o original um livro que se envia ao editor. A rigor, o termo aplica-se a todo documento redigido com pena, pincel e derivados. De parte ficam os escritos sobre a pedra, tábuas, tijolos etc. Abreviatura: ms., singular, mss., plural” (MOISÉS, 2013, p. 283). 55 O segundo momento é conhecido como “Período leigo”, relacionado ao início do século XIII e à criação das universidades, quando, apesar de ainda sobre grande domínio religioso, o número de leitores foi ampliado e, consequentemente, observou-se a necessidade de aumentar o número de cópias manuscritas, além de ampliar os tipos e estilos de textos a serem criados ou copiados (FEBVRE; MARTIN, 2017). 2.1.2 Fonte A propósito da definição do conceito fonte45, no contexto apresentado, diz respeito à origem do texto, isto é, tudo o que fornece informações sobre o seu ponto de origem ou de partida, situando-o no processo de diálogo com outros textos de igual teor. O estudo das fontes o situa também em relação ao contexto, ao estilo da época entre diversas questões que o circundam, como atestados de fidedignidade aplicáveis a esse texto a ser analisado. Dessa forma, além da reconstituição da tradição das suas versões ou cópias, são estudadas outras produções que citem ou pesquisem o mesmo assunto, autor, estilo e período. Posto isso, entendemos que as matrizes e teorias apoiam a compreensão da tradição de um texto sob duas perspectivas: [...] a tradição direta [que] compreende todos os testemunhos de um dado texto [...] a tradição indireta [que] compõe-se de todos aqueles testemunhos