UNESP – UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ―JÚLIO DE MESQUITA FILHO‖ INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DRAMATURGIAS EM EDUCAÇÃO: POÉTICAS PERFORMATIVAS NO COTIDIANO ESCOLAR LETÍCIA LEONARDI VIANNA SÃO PAULO 2019 LETÍCIA LEONARDI VIANNA DRAMATURGIAS EM EDUCAÇÃO: POÉTICAS PERFORMATIVAS NO COTIDIANO ESCOLAR TESE APRESENTADA AO INSTITUTO DE ARTES DA UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ―JÚLIO DE MESQUITA FILHO‖, PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTORA EM ARTES CÊNICAS. Linha de Pesquisa: Estéticas e Poéticas Cênicas Orientadora: Profa. Dra. Marianna F. Martins Monteiro Bolsa Capes - Demanda Social. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Campus de São Paulo Instituto de Artes São Paulo - 2019 BANCA EXAMINADORA __________________________________________________ Profa. Dra. Marianna Francisca Martins Monteiro (Orientadora) __________________________________________________ Profa. Dra. Carminda Mendes André __________________________________________________ Prof. Dr. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo __________________________________________________ Profa. Dra. Naira Neide Ciotti __________________________________________________ Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP L581d Leonardi, Letícia (Letícia Leonardi Vianna), 1984- Dramaturgias em educação: poéticas performativas no cotidiano escolar / Letícia Leonardi. - São Paulo, 2019. 241f. : il. Orientadora: Profa. Dra. Marianna Francisca Martins Monteiro Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, Instituto de Artes 1. Teatro na educação. 2. Performance (Arte). 3. Teatro - Aspectos políticos. 4. Teatro e sociedade. I. Monteiro, Marianna Francisca Martins. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 792.01 (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) Para todos os professores que passaram em minha vida, especialmente aqueles que não cessaram em reinventar-se. Aos meus antigos e novos alunos, sobretudo as crianças que colocam todo o saber acadêmico em xeque. Ao meu filho (a) que aí vem, um mistério que não posso calcular. AGRADECIMENTOS À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa cedida ao longo de três anos, que viabilizou a realização deste projeto. À profa. Marianna Monteiro, minha orientadora, que admiro tanto. Obrigada pelo conhecimento compartilhado, por me introduzir referências que eu desconhecia, pela curiosidade, pela franqueza, pela alegria vibrante e pelo seu olhar cirúrgico. Sobretudo, agradeço pela orientação intuitiva e generosa que me permitiu encontrar caminhos significativos. À Denise Getúlio que de outra maneira também me orientou ao longo desses mesmos anos me ajudando a descobrir o olhar amoroso que faltava para mim mesma. Ao Joel Katz que de maneira muito precisa me ajudou a compreender a necessidade de ingressar neste doutorado. À Carminda Mendes André e sua presença na minha história como estudante, pesquisadora e artista, por suas contribuições permanentes e também durante a qualificação. Por seu olhar atento, generoso e provocador que me inspira no ofício de professora e me despertou para caminhos que eu não poderia jamais supor. Ao Silvio Gallo por compartilhar os seus conhecimentos e por ter participado da banca de qualificação trazendo contribuições valiosas. Ao meu companheiro Alexandre Vianna que é o meu grande amor, o meu grande parceiro de vida e de arte, amor que acolhe e incentiva. À toda a minha família, mas sobretudo a minha mãe Maria Helena e a meu pai Léo, que nos momentos mais críticos da pesquisa me ofereceram sua casa como retiro acadêmico, com amor, afeto e comidas gostosas. Pelas leituras que minha mãe, como grande professora que é, fez de partes da pesquisa. Às minhas avós Zaira e Norma que sempre mostraram amorosa curiosidade por entender porque tanto eu escrevia e ao meu avô poeta Zé Leonardi que tanto me moveu naquilo que sou. À Alice, que desanuvia qualquer mente cansada, ao Rafa, a Marli, ao Bera e também à Juliana, que é a irmã mais amorosa, objetiva e sensata que eu poderia ter. À Cristina Angiolucci, Clarissa Moser, Andrea Fonseca, Élder Sereni, Camila Andrade, Beatriz Marsiglia, Juliana Mado, Jorge Peloso, Deise de Brito, Milene Valentir Ugliara e Kanzelu, amigos imprescindíveis, companheiros de arte e de pesquisa com os quais teci conversas e ouvi comentários acerca do trabalho. À Letícia Nunes de Moraes pelo olhar cuidadoso com a revisão do exemplar final. A todos os integrantes do Grupo Terreiro de Investigações Cênicas: teatro, brincadeiras, rituais e vadiagens, ao Coletivo Cênico Joanas Incendeiam, às crianças, aos professores e a todo corpo escolar que partilham comigo um cotidiano na escola. A minha gratidão a todos os professores que passaram pelo Laboratório Dramaturgias Contemporâneas em Educação e àqueles que permanecem, o meu reconhecimento mais profundo, especialmente: Carolina Cortinove e a sua dedicação incansável, a Alexandre Marques pelo seu filosofar desviante, a Alice Pamplona sempre alegre e disponível, a Fernanda Gois pelo enfrentamento e coragem consigo mesma, a Osmar Guerra por ter deixando marcas, a Luciana Amaral, presença leve e dançante, a Giovanna Ghiurghi e a Wagner Menegare por compartilharem suas narrativas. Obrigada a todos os professores ainda não citados até aqui que concederam suas histórias, fotografias e saberes: Denise Pinto, Mário Filhou José, Cynthia Aragão, Pedra Homem, Marília Amorim, Denise Pereira Rachel (Coletivo Parabelo), Renata Lima, Mariana Souto Mayor e Elodia Honse Lebourg. À minha professora Telma, da educação básica, que eu não sei por onde anda, mas que deixou marcas profundas naquilo que sou com pequenos gestos cotidianos em direção à curiosidade, à poesia e à arte. No início do mundo, A Verdade andava de vila em vila, de cidade em cidade, espalhando a verdade. Da mesma forma procedia A Mentira, passava de cidade em cidade, de vila em vila, contando a mentira. Às vezes, quem chegava primeiro era a Mentira, outras vezes, era a Verdade. Quem chegava depois desdizia aquilo que a primeira havia dito, narrando a sua versão. Sem se conhecerem, ambas aprenderam a se odiar... então, um dia, num vilarejo não muito distante, a Verdade cruzou com a Mentira e a Mentira cruzou com a Verdade, olharam-se fixamente em silêncio, e então duelaram. Em meio ao duelo, a Verdade cortou a cabeça da Mentira e, antes que a Mentira caísse, cortou também a cabeça da Verdade. As cabeças rolaram pelo chão de terra batida. Cega, a Mentira pegou a cabeça da Verdade e a Verdade colocou a cabeça da Mentira e ambas continuam a vagar de vila em vila, de cidade em cidade... (Conto de tradição oral ioruba). RESUMO Esta tese realiza uma pesquisa bibliográfica acerca de conceitos como teatralidade, performatividade, espaço performático, e o lugar do ritual para pensar processos artístico-pedagógicos na interface com uma metodologia de natureza cartográfica, onde o pesquisador se insere no contexto da pesquisa. Para tanto, utilizo-me de minha experiência na educação, do trabalho de campo realizado com educadores de contextos diversos, bem como da experiência no Laboratório Dramaturgias Contemporâneo em Educação, por mim desenvolvido ao longo da pesquisa. Problematizo assim, a experiência do jogo teatral enquanto repertório e as (re)escrituras da experiência vivida como práticas de arquivo. Proponho pensar práticas corporificadas na educação a partir dos conceitos de arquivo e repertório, de modo a propor uma dramaturgia (roteiro) da sala de aula que revele relações e tensões entre ética, estética e política. Busco demonstrar o potencial de se ler a escola, de projetá-la como entre-lugar, espaço liminar ou performático prenhe de imagens por meio da utilização da ferramenta de análise conceitual ―como se fosse performance‖. Para tanto, apresento e desenvolvo o conceito de microimagens, uma técnica de montagem tecida pelo olhar, que pode ser uma forma de registro a serviço do professor que deseja poetizar a escola, e como uma forma poética de transformação de si. Palavras-chave: teatro; educação; performance; arquivo; poética. RESUMEN Esta tesis realiza una investigación bibliográfica sobre los conceptos teatralidad, performatividad, espacio performativo y discute también el lugar del ritual con la intención de pensar procesos artístico-pedagógicos en interfaz con una metodología de naturaleza cartográfica en la que el investigador se inserta en el contexto de la investigación. Para la realización del trabajo de campo con educadores de diferentes contextos fue fundamental mi propia experiencia en el ámbito de la educación, sobre todo para la creación del Laboratorio Dramaturgias Contemporáneas en Educación, por mí desarrollado a lo largo de la investigación y donde se dieron las experiencias analizadas. Para repensar la experiencia del juego teatral como repertorio, propongo las (re) escrituras de la experiencia vivida como prácticas de archivo, recurso para pensar prácticas encarnadas en el cotidiano escolar a partir de los conceptos de archivo y repertorio. Com ello se propone la construcción de una dramaturgia (guión) de aula que revele las relaciones y tensiones entre ética, estética y política. Busco demostrar el potencial de leer la escuela tomándola como un espacio liminar o performativo, fértil de imágenes que se pueden capturar a través de la herramienta de análisis conceptual "como si fuera performance". Para ello, presento y desarrollo el concepto de ―microimágenes‖, que consiste en una técnica de montaje tejida por la mirada, una forma de registro que permite al profesor poetizar la escuela, si así lo desea, como también puede ser una forma poética de transformación de sí. Palabras clave: teatro; educación; performance; archivo; poética. Sumário Primeiro Movimento: arar o campo......................................................................12 Segundo Movimento A PERFORMATIVIDADE DO PROFESSOR .................................................... 27 A pesquisadora-professora e o corpo vibrátil ..................................................... 28 a) O teatro como uma forma de relação com o mundo.......................................31 b) O corpo participativo como elo entre dois mundos..........................................33 O professor profeta e o professor militante ....................................................... 35 O hibrido professor-performer................................................... ...........................43 O corpo do professor: abjeção e performatividade ............................................. 52 Corpos de professores ....................................................................................... 63 Terceiro Movimento O ESPAÇO PERFORMÁTICO .......................................................................... 78 Uma epistemologia dos sentidos ........................................................................ 79 Roteiros: arquivos e repertórios................... ........................................................83 O espaço performático.............. ....... ...................................................................85 Entre o teatro, a aula e o ritual ........................................................................... 89 a) A aula como sistema mágico-social, um ritual de integração ......................... 95 b)O ritual e o senso de coletividade ................................................................... 96 c)O ritual como prática de transporte ................................................................101 d)Os desenhos, os contornos e os limites suscitados pelo ritual ......................102 f) A aula-ritual e o ritual na aula .........................................................................106 Quarto Movimento LER A ESCOLA E A SALA DE AULA COMO PERFORMANCE....................109 A performance como uma ferramenta de análise conceitual...........................................................................................................116 Estranhamento, construção e desconstrução....................................................119 Registro e narrativas em educação: alguns modos de leitura e as disputas do olhar.. ................................................................................................................124 a) A narrativa dramática.............................................. ........ ..............................128 b) A narrativa científica.................................................................... ..................129 c) A narrativa do jogo: jocosa ou poética................................................ ...........129 d) A narrativa épica............................................................................................132 Imagem e narrativa épica como criação de um locus político- epistemológico...................................................................................................134 Microimagem, novo batismo para um problema antigo................................................ .................................................................141 a) A alegoria e as microimagens............................................ ....... ....................144 b) O detalhe nas microimagens............................................... ....... ...................145 c) O tempo e o espaço nas microimagens..................................................... ....147 d) As imagens dialéticas nas microimagens...... ........ ........................................148 e) Atos estéticos e microimagens................................................ ............. .........152 f) A pensatividade da imagem e as microimagens............................ ...... ..........154 g) Ausência e distância em Walter Benjamin e Jacques Rancière.... ... .............158 Microimagens como roteiros: o que elas testemunham......................... .. .........160 Quinto Movimento O LABORATÓRIO DRAMATURGIAS CONTEMPORÂNEAS EM EDUCAÇÃO......................................................................................................175 Uma introdução ao Laboratório: como, por que e para que registrar as experiências.......................................................................................................177 Metodologia e perguntas de pesquisa acerca do Laboratório Dramaturgias Contemporâneas em Educação........................................................................184 Avaliação do Laboratório no âmbito da pesquisa..............................................190 a)O ritual, o espaço performático e o senso de coletividade entre os professores do Laboratório....................................................................................................197 b)Ser fiel ao roteiro do Laboratório: estrutura e espontaneidade.......................200 c)Transporte: afirmação da vida e criação artística no Laboratório...................201 d)Algumas formas de registro e poéticas de transformação de si presentes no laboratório..........................................................................................................204 e)Por uma atenção diferente: corpo sutil, vazio e silêncio................................206 Sexto Movimento MICROIMAGENS E ROTEIROS COMO POÉTICAS DE TRANSFORMAÇÃO DE SI NO TRABALHO DO PROFESSOR........................................................208 Pequenas colheitas............................................................................................221 Referências Bibliográficas..................................................................................230 12 Primeiro Movimento: Arar o campo ―Se os frutos produzidos pela terra Ainda não são Tão doces e polpudos quanto às peras Da tua ilusão Amarra o teu arado a uma estrela (...)‖ Amarra o teu arado a uma estrela. Canção de Gilberto Gil. Durante a fase final desta pesquisa, por dois meses consecutivos ou mais, escutei esta canção de Gilberto Gil a caminho da escola onde leciono, um caminho cuja ponte corta o espaço entre duas cidades, este ―entre‖ é uma grande e colorida favela com suas frentes pequeninas e escadas que dão em lugares impossíveis, como se subissem para o céu. Quando a música chegava ao fim, eu a escutava novamente, de modo que ela se tornou um mantra para mim. Eu a repetia e a compreendia a cada dia de modo renovado. Esta é, portanto, a trilha sonora das primeiras palavras que dão início à presente pesquisa: https://www.youtube.com/watch?v=Q0fN4-4mEu0. O que orienta este e os cinco movimentos a seguir é a preocupação com os processos de formação e transformação que relacionam teatro, performance e aprendizagem, e os possíveis trânsitos e tensões entre eles em espaços educativos. Neste trabalho o teatro figura como algo capaz de fundar um espaço ritual, teatro é por isso campo expandido que pode apontar percepções acerca da ―realidade‖. Busco uma aproximação, uma integração, entre o meu olhar de artista de teatro de grupo e algumas experiências artistico-pedagógicas vividas na educação. Artístico- pedagógicas porque compreendem o processo artístico e a aprendizagem como indissociáveis. Procuro, nesta aproximação, que se apresenta como uma colagem – de pequenos atos, imagens, cenas, narrativas, reflexões – que permite olhar o espaço escolar com olhos de artista e perceber neste contexto uma dramaturgia presente. A palavra dramaturgia, neste caso, apesar da sua pesada carga histórica associada muitas vezes ao texto teatral é comprendida aqui em um sentido contemporâneo, enquanto escrita –corpo, (re) escrituras de um ao vivo que almeja inclusive cambiar a relação com as palavras. Está associado, portanto, o termo dramaturgia a um teatro 13 de caráter performático que contaminou e foi contaminado pelas artes da performance. Apesar dos problemas e implicações relacionados também ao termo contemporâneo e o seu suposto significado de ―ato inaugural‖ ou viés de ―novidade‖, a perspectiva abordada neste trabalho não o compreende enquanto continuidade daquilo que se convencionou nominar de educação moderna ou arte moderna. Compreendo que estes regimes convivem simultaneamente e negociam entre si. Contemporâneo, portanto, não é o tempo histórico, mas a atitude de estranhar o próprio tempo, nem que para isso seja necessário por alguns momentos dele se recolher e se distanciar, o que Friedrich Nietzsche definiu como conseguir ser um ―estrangeiro do seu próprio tempo‖. A dramaturgia, nesta perspectiva, se circunscreve enquanto fragmento de um estranhamento sobre o próprio tempo; é um roteiro em estrito senso, um programa ou uma sequência de ações, de cenas que encarnam não somente palavras de um texto, mas as relações dos corpos presentes entre si, em interação com a luz, com a música, com os sons e atmosferas do espaço que pode ser um teatro, um pátio, a rua ou a sala de aula. Indago, com esta dramaturgia, em que medida, temas como – o corpo, o ritual, a coletividade, a presença, a performance e as suas práticas, os exercícios, os jogos e as reflexões podem contribuir não somente para a realização artística da aula, mas também para que a sua composição seja uma forma de viver melhor a experiência de ser professor. Viver melhor pode significar para cada pessoa possibilidades muito diferentes, porém, aqui, este ‗viver melhor‘ é compreendido por mim como uma atitude ética, política, poética e afetiva diante das experiências na educação. Como se nós, professores e artistas, buscássemos nessa trama amarrar o nosso arado que dia a dia vai criando novos sulcos, caminhos, vincos no aqui e no agora da sala de aula como estratégias para cultivar a terra. É no labor e na labuta da sala de aula, numa artesania entre paradoxos – aprender e ensinar, libertar e colonizar, falar e escutar, abrir espaços e construir limites, estar presente e desaparecer – que se dá esta artesania: a aula como cultivo de si para sair de si e encontrar uma coletividade possível. Coletividade esta que se estabelece na escola em caráter efêmero, provisório, fragmentado. Não se trata de uma visão de espírito religioso que procura 14 um todo homogêneo e harmônico, ao contrário, procurei mostrar um emaranhado de relações em que ―regimes de disciplinamento e regimes de subjetivação estão implicados‖ na aula de teatro/artes e na figura dos artistas-educadores. (ICLE, 2010, p.86) Assim, a Pedagogia Teatral tanto promete a criação de regimes de subjetivação quanto pode implementar regimes de disciplinamento, pois não se trata de uma linguagem desconectada dos seus contextos e tampouco está acima das lógicas de poder. Este encontro com a coletividade é parte, pontanto, de um mesmo mundo paradoxal no qual o extremo ponto oposto está o individualismo, a satisfação imediata das necessidades e o consumo. Professores, estudantes, diretores e coordenadores assistem de um lado ―o declínio do poder organizador que o coletivo tinha sobre o individual. Deixando a si mesmo desinsserido, o indivíduo se vê privado dos esquemas sociais estruturantes que o dotavam de forças interiores que lhe possibilitavam fazer frente às desventuras da existência‖. (LIPOVETSKY, 2004, p.14. pdf) De outro lado, um verdadeiro levante destes profissionais é travado buscando dentro ou fora da escola maneiras de vivenciar as experiências em educação de modo menos isolado, partilhado, acolhido. Nesta perspectiva foi criado o Laboratório Dramaturgias Contemporâneas em Educação, projeto de pesquisa-ação que aconteceu no Instituto de Artes da Unesp, de agosto à novembro de 2017. Teve duração de quatro meses, totalizando 23 encontros e gerou importantes reverberações na pesquisa, reafirmando a importância de seu caráter prático e experencial para a construção de um conhecimento vivido. Em agrupamentos como este, as pessoas buscam formas poéticas e coletivas de vivenciar suas experiências, bem como desenvolver uma escrita que tem como objetivo resistir aos imperativos da verdade, do isolamento do professor e da crença de que os problemas da educação pública são puramente da ordem da formação, ou seja, relacionados ao mérito o que consequentemente culpabiliza este profissional e também os estudantes por um suposto fracasso, compreendendo como sucesso a lógica neoliberal. Fazendo emergir alguns inssucessos, momentos de choque e estranhamentos como importantes formas de aprendizagem, a pesquisa ilustra, através das transformações do olhar, um jogo poético possível no cotidiano escolar e 15 a performatividade de figuras fundamentais para a constituição e transmissão de novos olhares e saberes sobre a escola sob uma perspectiva artística: estética, ética e poética. As performatividades presentes em educadores-artistas, professores- performers, professores militantes, pessoas que pela sua proximidade com a arte, detém a capacidade de fomentar coletivos e gerar perturbações no cotidiano fazem emergir por meio de gestos, atos e manifestações artísticas um currículo oculto na escola. Esse currículo oculto trazido à tona evidencia aspectos que frequentemente não estão explícitos nos contextos educativos, pois não estão impressos em documentos, relatórios, diretrizes e diários de classe. A minha principal motivação para esta pesquisa foi perceber como as ações cotidianas e aquilo que acontece no mundo nos convocam a deslocamentos e transformações nos nossos gestos e modos de operar que estão naturalizados e colados aos nossos corpos e como estas experiências do ―ao vivo‖ podem ser arquivadas, registradas, guardadas, revividas e reinventadas. Esta perspectiva em parte aponta para o cotidiano aqui compreendido como invenção, mas invenção do próprio modo de pensar a pesquisa na experiência crítica ao modelo da ciência moderna que subjulgou certas formas de conhecimento presentes na escola como mero ―senso comum‖. Partindo do entendimento de que as pessoas que participam do cotidiano escolar são capazes de apontar soluções para os problemas nele vivenciados enquanto professores-pesquisadores, o conceito de cotidiano neste caso se avizinha da ideia de cultura, dos Estudos Culturais ―no cotidiano‖ e ―do cotidiano‖ e busca compreender como estes saberes culturais estão encarnados em multiplas ―redes cotidianas‖ (ALVES, 2003) em cada pessoa que participa da escola. Atuando na educação há 14 anos, observo que os professores, quando se reúnem, sentem uma profunda necessidade de falar acerca das situações que ocorrem em suas escolas e salas de aula. Assim, cria-se no encontro entre professores um terreno de discussão altamente centrado nas noções tradicionais de política, debate de ideias e críticas, aspectos fortemente voltados para um logos. Compreendo que o problema destas formações é que, em muitos casos, o professor não encontra um espaço coletivo para exercitar as práticas que o fortaleçam em um sentido mais amplo que o logos e as tradicionais noções de política e verdade, 16 encontra pouco espaço, portanto para (re)invenção do seu cotidiano. Campo este que está associado em alguma medida ao fazer artístico, ao cuidado e as práticas de transformação de si: práticas e exercícios que tem como objetivo despertar certas qualidades de presença, de consciência e de transformar o modo de ser daquele que a elas se dedica. Assim, se os esquemas sociais estruturantes presentes nas coletividades e rituais estão em declínio, como a arte e o teatro na escola podem reinventá-los? Se as forças interiores geradas pelos coletivos estão escassas como podem as Pedagogias do Teatro contribuir para fortalecer esta musculatura do ―ser‖ no espaço escolar gerando novos agrupamentos sociais? Diante do medo, do assombro e de diferentes situações de estranhamente vividas na escola, como é possível mudar o curso do arado ao invés de abrir mão de toda a plantação? Enfim, as Artes Cênicas poderão nos ajudar a desvendar caminhos outros para viver a esquizofrenia, a fragmentação da escola como multiplicidade, poesia, arte e invenção em oposição aos esquemas sacrificiais, a utopia de um paraíso perdido e de um homem novo? Difícil responder a estas perguntas. No entanto, este trabalho é um convite para que possamos nos debruçar sobre estas questões, verticalizando nosso olhar para o nosso gesto cotidiano, mas também o espraiando rumo às paisagens das escolas, às plantações e espaços educativos em que as artes cênicas têm algum alcance. Iniciamos, portanto, realizando duas circulações importantes: dentro e fora; ou seja, sentindo o próprio corpo na experiência e também espraiando para fora, misturando-se com a paisagem – plantação, como se pudessemos a um só tempo, viver a experiência de arar a terra e observá-la enquanto linguagem, labor, poesia, pesquisa e plantação. Este movimento visa problematizar o material de pesquisa não enquanto uma verdade acabada, factual, essencial, mas como questões que ―estão sendo‖ tecidas na perspectiva da pesquisadora com seus pares. O leitor se confrontará na tese com mais cinco movimentos, sendo eles: A performatividade do professor, O Espaço Performático, Ler a escola e a sala de aula como performance, O Laboratório Dramaturgias Contemporâneas em Educação e Microimagens e roteiros como poéticas de transformação de si no trabalho do professor. 17 Esses movimentos foram criados a partir de uma metodologia de natureza cartográfica. O método cartográfico pressupõe sobretudo o acompanhamento de processos e é o seu aspecto interventivo, os impactos percebidos e calculados no campo que orientam o pesquisador na busca por respostas e problematizações e não somente objetivos definidos a priori. Os objetivos e metas podem existir, mas o pesquisador sabe que são apenas um ponto de partida, pois serão revistos, reconfigurados e, até mesmo, dilacerados durante o percurso da pesquisa e os encontros que esta provocará. Nesta perspectiva, pesquisar não é simplesmente representar a realidade, mas nela intervir. Por isso, o pesquisador não se encontra fora do contexto da pesquisa; tanto o campo, como os saberes, as pessoas envolvidas no trabalho e o próprio pesquisador sofrem os efeitos de um processo que não é apenas de acúmulo de conhecimento, mas de transformação pessoal. Deste modo, tornou-se fundamental para o desenvolvimento da pesquisa perceber em que medida os caminhos tomados, os conteúdos abordados, as histórias colhidas em campo e a experiência com a pesquisa-ação durante os laboratórios geravam reverberações em meu corpo de pesquisadora, ou seja, produziam afe(c)tações sobre mim, daí a necessidade de um olhar atento mas também sensível ao instante. Para Virgínia Kastrup (2015), este olhar é ao mesmo tempo concentrado e flutuante, se detém o tempo necessário sobre determinada emergência para continuamente permanecer no movimento dos acontecimentos. Assim, as escolhas da pesquisa foram feitas a partir deste olhar, um olhar de corpo inteiro, portanto, acreditando que o meu corpo de pesquisadora não é constituído de uma individualidade somente, mas de toda uma coletividade, um contexto; uma história o envolve como uma dobra de fora, daí a justificativa por tal procedimento que poderá impactar e afe(c)tar também outros professores como eu, modificando percepções e ampliando perspectivas. Para a realização do método cartográfico utilizei as seguintes ferramentas de pesquisa: leitura e revisão bibliográfica acerca dos conteúdos em questão, entrevistas individuais com educadores-artistas de diferentes contextos, revisão, observação e reescrita de meu diário de campo de artista-educadora, observações em campo na escola pública onde leciono e em espaços de educação não formal, realização do Laboratório Dramaturgias Contemporâneas em Educação, produção de 18 um diário de campo voltado para este contexto e a criação de um site1 a partir das experiências ali realizadas. Em alguns destes contextos produzi, além de textos, narrativas e microimagens, também fotografias, vídeos, áudios e anotações de campo que foram revisitadas durante todo o percurso da pesquisa. O meu cotidiano e a minha relação com diferentes educadores, sobretudo com as atrizes do Coletivo Cênico Joanas Incendeiam, companheiros de trabalho que atuaram comigo no SESC e os participantes do Grupo Terreiro de Investigações Cênicas - teatro, ritual, brincadeira e vadiagem foram importantes contextos de troca e amadurecimento durante a pesquisa. Os movimentos que seguem são, portanto, uma costura de territórios e contextos diversos presentes na experiência da pesquisa. Eles podem ser lidos separadamente, mas não pude fazê-los de modo isolado, então os construí aos moldes da tradição como um caminho fractal, mas linear, porque esta metodologia empregada é nova para mim e talvez esta seja um aspecto de fragilidade na estrutura da presente tese. Isso não impede que um leitor mais ousado do que eu possa ler os capítulos conforme sua escolha enfrentando poucos problemas. SEGUNDO MOVIMENTO: A PERFORMATIVIDADE DO PROFESSOR O movimento aborda o conceito de corpo vibrátil do professor e as noções de performatividade, abjeção e deriva. Apresenta a ideia do corpo vibrátil como um elo entre o corpo do artista e o corpo do professor. O objetivo desta reflexão é perceber como identidades de gênero e de sexualidade, modos de atuação, comportamentos, rituais, regras estão tão naturalizadas e coladas aos nossos corpos que muitas vezes nos esquecemos de que todos estes comportamentos são construções culturais, papéis sociais que envolvem histórias de dominação, opressão e ideologias. Ao fim do movimento, trago um arcabouço de imagens de professores. Essas fotografias são uma forma de arquivo que não ignoram os vestígios de vida inscritos nos corpos dos professores e os seus dramas sociais. Assim, compreendo as fotografias neste contexto como um memorial que 1 Disponível em: https://dramaturgiasemeduc.wixsite.com/website. https://dramaturgiasemeduc.wixsite.com/website 19 convoca elementos de um corpo presente, ou seja, vestígios do ao vivo, do corpo-em-experiência e de um aqui e agora impossível de se repetir. Para pensar algumas performatividades que compreendem uma aprendizagem de tipo corporal, experiencial e cartográfica, retomo, na condição de pesquisadora-professora, o conceito de professor militante e o híbrido professor-performer contidos no espectro mais amplo que nomeio de educador- artista, figura que vivencia e observa a escola com olhos de artista. A escrita deste movimento é também uma apresentação da professora-pesquisadora que, na metodologia de natureza cartográfica utilizada ao longo desta investigação, se inscreve dentro da moldura da pesquisa como participante. Assim, são apresentadas de antemão a minha relação e história com o teatro e a educação, para enfim pensar algumas performatividades presentes no cotidiano escolar: o professor-profeta, o professor-militante, o híbrido professor-performer, etc. Um modelo bastante conhecido nas escolas brasileiras é o do professor-profeta, aquele que conduz ao ―bom caminho‖ e mostra a sua verdade como o único percurso possível. Na contramão do professor-profeta está o educador-artista, aquele que encontra no próprio caminho, traçado em parceria com os estudantes, invenções e verdades temporárias que os ajudam no exercício do conhecimento e da coletividade. O educador-artista trabalha metodologicamente como o cartógrafo que se deixa ser afetado em seu corpo vibrátil por aquilo que acontece no aqui e no agora e são os afetos e acontecimentos que o fazem construir um caminho com interrupções, desvios e atalhos em parceria com os estudantes. A cartografia como metodologia pode ser visualizada na imagem de um rizoma conforme o conceito desenvolvido por Félix Guattari e Gilles Deleuze, que se assemelha, enquanto imagem, a uma planta sem raiz única que pode se ramificar em qualquer ponto, formando uma composição de linhas que se espalham sem se fixar. O rizoma cresce desordenadamente em um movimento de desterritorialização e reterritorialização. A primazia deste processo não está sobre metas e objetivos previamente estabelecidos, mas se constrói sobre a própria experiência do caminhar da pesquisa, do pesquisador e das pessoas envolvidas em torno dela. 20 TERCEIRO MOVIMENTO: O ESPAÇO PERFORMÁTICO Neste movimento problematizo o que pode ser a constituição de um espaço performático, construção esta que não apresenta em língua portuguesa uma palavra exata para defini-lo, isso porque as palavras sinalizam elementos, coisas e pessoas que são valorizados e nomeados dentro de uma determinada cultura. A ausência de uma palavra que defina o espaço performático é produto de uma lógica logocêntrica na qual se enraíza a nossa cultura que buscou eliminar outras formas sensíveis de conhecimento, entre elas, as espacialidades que se assemelham ao espaço performático. Depois de apresentar o conceito de corpo vibrátil no movimento anterior, aqui a performance é apresentada como uma forma de transmissão de conhecimento. Trata-se de uma leitura do espaço educativo e de uma teatralidade ali inscrita a fim de mostrar como atos, gestos e pessoas podem configurar-se como formas de saber que não se relacionam somente a um logos e a uma semiologia, mas também por intermédio do corpo vibrátil, dos sentidos, da experiência ao vivo, promovendo, para além da semiologia, uma sismologia2 em arte. Porque estas formas de aprendizagem e de conhecimento que envolvem o corpo e o ―ao vivo‖ não são facilmente apreendidas, neste movimento discuto o conceito de arquivo (livros, documentos, CDs, ossos, fósseis, etc), contrapondo-o à noção de repertório (saberes orais, performances, danças, atos e gestos), a fim de problematizar como seria possível criar arquivos encarnados, corporificados e como criar vestígios documentais do que foi uma experiência ao vivo, de repertório. Começo por delinear neste movimento aquilo que nomeio de microimagens e algumas fotografias como formas de roteiro, isso porque os roteiros, segundo Diana Taylor, embora assumam a forma de notação, 2 Tomo o termo de empréstimo do professor é John Dawsey que propõem uma antropologia enquanto sismologia, ou seja, tal qual ocorre no estudo dos terremotos, Dawsey propõem uma análise dos movimentos de instabilidade, tensão e choque presente no trabalho de campo. Dawsey é professor em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP), desenvolve pesquisas em antropologia da performance, antropologia da experiência, e antropologia benjaminiana. Coordenador fundador do Napedra (Núcleo de Antropologia, Performance e Drama), Coordenador do Núcleo de Artes Afro-Brasileiras, USP. Coordenador e organizador (junto ao Napedra) do Encontro Internacional de Antropologia e Performance (EIAP/2011) e do I Encontro Nacional de Antropologia e Performance (ENAP/2010). Seu trabalho é uma importante referência nesta pesquisa. 21 descrevem os corpos de personagens/performers/atuantes ou mesmo abrem espaços para que o leitor ou os artistas que com eles se relacionam preencham essas lacunas do ―ao vivo‖ de modo a não ignorar os dramas sociais, o corpo e aquilo que está implícito. Para ler estes corpos e a espacialidade presente nos espaços educativos sob a perspectiva do artista, perpasso a ideia de teatralidade e de performatividade como conceitos operativos que propõem um campo de aprendizagem que se dá a partir da construção de um espaço performático que implica olhar para o cotidiano, realizar ações sobre ele e refletir coletivamente acerca do impacto dessas ações. O espaço performático é uma espacialidade expressiva, temporária e de experimentação, um lugar de inteireza, de adensamento, exacerbação, ampliação da presença e também um lugar de jogo. Trata-se de um campo artístico-pedagógico de instauração de um tempo/espaço outro capaz de desenvolver o pensamento artístico e a possibilidade de exercício de uma atitude ética que compreende a busca por uma maior aproximação entre a arte e um modo de viver a escola. A aprendizagem que visa criar condições para que este espaço emerja nas experiências pode promover uma aprendizagem de um tipo singular, pois não está voltada somente sobre os conteúdos transmitidos – no campo da história da arte, da aprendizagem de técnicas necessárias para o exercício teatral - mas também naquilo que pode ser descoberto e inventado na experiência coletiva, configurando-se, portanto, como saberes não legitimados pelos tradicionais cânones escolares e por aquilo que compreendemos como conhecimento. QUARTO MOVIMENTO: LER A ESCOLA E A SALA DE AULA COMO PERFORMANCE No quarto movimento, apresento o conceito ―como performance‖ tomado de empréstimo de Richard Schechner como uma ferramenta de análise conceitual para ler os eventos, acontecimentos e estranhamentos ocorridos na sala de aula como uma forma de dramaturgia capaz de revelar aspectos ocultos ou soterrados do cotidiano e a partir deles desenvolver uma poética que não quer se colar ao lado da verdade, mas se apresenta como invenção. 22 Analiso como as narrativas e disputas do olhar manifestam-se na escola, ora em nome do jogo, ora em nome da verdade. Assim, apresento a narrativa dramática; a narrativa científica, a narrativa do jogo - jocosa ou poética – e, por fim, a narrativa épica como uma forma de construção daquilo que nomeio de microimagem. As microimagens são esmiuçadas enquanto conceito neste movimento. Referem-se a um problema antigo para o qual diferentes pessoas buscaram respostas para uma mesma pergunta: por que algumas imagens nos perturbam tanto? Por que algumas destas imagens se inscrevem nos nossos corpos por toda uma vida? Buscando responder a essa pergunta a partir da minha experiência, mas também por intermédio da experiência com outros professores, afirmo que as microimagens são fruto de uma técnica de montagem tecida pelo olhar, mas também podem ser uma forma de registro a serviço do professor que deseja dar destino inventivo para as imagens percebidas que o cercam, como uma maneira de poetizar a escola, de trabalhar sobre si mesmo e também como uma forma de cuidado de si (FOUCAULT, 1984). A construção de uma microimagem pode gerar não somente uma mudança de perspectiva como também o deleite da criação artística que se dá não somente por um sistema lógico, mas também por intermédio das sensações e da intuição. Como veremos nos últimos movimentos, as microimagens são, por isso, um tipo de poética de si, que inclui: relações de proximidade entre arte e vida mediadas por um corpo vibrátil desperto e um estado de presença, uma escrita de si e exercícios e reflexões para trabalhar sobre si mesmo. Tal qual ocorre na alegoria, as microimagens são tecidas na multiplicidade de signos que não buscam uma homogeneização, não são uma ilustração da história presente no cotidiano, mas uma forma de expressão deste que não se conclui, pois é permanentemente renovada em seu aspecto meditativo. Ao final do terceiro movimento, busco entender como as imagens dialéticas de Walter Benjamin e a pensatividade da imagem descrita por Jacques Rancière podem nos ajudar a entender a constituição destas microimagens, capazes de acionar, através de um único detalhe, todo um universo social, alargando-se de um microuniverso para um macro universo. 23 As microimagens, assim como ocorre com as imagens dialéticas em Benjamin, nos detém em estado de pausa, de tensão, não por intermédio de uma narrativa resolutiva e ordenada, mas por meio da interrogação. Isso ocorre pela junção de elementos de natureza distinta, mas a transformação de uma narrativa em imagem, quadro corporificado, não advém somente de seu caráter dialético, mas do aparecimento do limite da linguagem no texto. O que ocorre quando surge este limite é, segundo Rancière, a ―pensatividade da imagem‖, presente, ora na alusão aquilo que não pode ser dito em palavras, ora na incidência de vários regimes artísticos e formas convivendo de modo heterogêneo. As corporificações que atravessam a linguagem, mas não podem estar contidas nela são exemplos dessa categoria de imagem que aponta para um caráter meditativo, pensativo e impalpável. É o confronto com o poder desta ―pensatividade da imagem‖ que a torna uma imagem de cura e de aprendizagem. O seu aspecto meditativo e reflexivo nos coloca diante de um problema sem solução, um confronto em que a microimagem nos exige um labor, com a diligência de um ofício. O labor, nestes casos, não é a resolução, a resposta, mas a mudança de perspectiva, a inventividade e a poética que estas imagens são capazes de gerar enquanto imagens de transmutação. QUINTO MOVIMENTO: O LABORATÓRIO DRAMATURGIAS CONTEMPORÂNEAS EM EDUCAÇÃO Este movimento é constituído na interface com o site Dramaturgias Contemporâneas em Educação3 que retoma a experiência de mesmo nome que vivenciada no Instituto de Artes da Unesp, de agosto a novembro de 2017, com os professores da rede pública de educação. Como professores de diferentes contextos narram, criam e ressignificam as imagens percebidas em seu cotidiano? Essa foi a pergunta disparadora para a criação do laboratório, um espaço investigativo em pesquisa- 3 Site em processo e disponível em: https://dramaturgiasemeduc.wixsite.com/website. https://dramaturgiasemeduc.wixsite.com/website 24 ação que alimentou a pesquisa e a modificou no encontro com outros profissionais da educação. Tanto este quarto movimento, quanto o site em processo buscam novas poéticas no intuito de criar um arquivo vivo, encarnado, que possa ser ponto de partida para outras experiências em outros contextos. Nesta perspectiva repenso o ―como, por que e para que registrar as experiências‖, contraponho a ideia de um ―arquivo sobre‖ e um ―arquivo para‖, o arquivo sobre estaria para o conceito tradicional de arquivo na acepção de Diana Taylor, enquanto o ―arquivo para‖ esbarra naquilo que a autora nomeia de repertório, pois visa convocar elementos de um corpo presente, de um ―ao vivo‖, apesar da impossibilidade de realizar esta ação por completo. Suely Rolnik afirma que o ―arquivo para‖ seria capaz de convocar uma nova experiência para o leitor, produzindo nele um ―estado de arte‖. O ―estado de arte‖ foi um dos elementos perseguidos durante o laboratório, que teve em vista criar um espaço coletivo e performático de compartilhamento poético de experiências de professores em sala de aula por intermédio de jogos teatrais contemporâneos e de elementos da performance e da intervenção urbana. Em meio a este processo eu buscava compreender como os professores (re) elaboram e ressignificam acontecimentos e histórias vividas na sala de aula em diferentes momentos de suas vidas por intermédio de práticas inventivas de escrita ou dramaturgia, ou seja, quais as ferramentas que dispunham para transformar histórias vividas em novas experiências que poderiam ser compartilhadas. Buscava entender quais os exercícios que eles realizavam consigo mesmos para sustentar-se na criação e como professores da educação pública. Ainda neste movimento, a fim de registrar as experiências no laboratório, discuto a ―noção de eu‖ numa perspectiva mais próxima do estoicismo e de uma leitura feita a partir dele por Gillies Deleuze, bem como a ideia de sentido e acontecimento a partir da acepção deste mesmo autor. Preparo a discussão destes conceitos a fim de criar um universo comum com o leitor que permita então adentrar em aspectos específicos do laboratório entre eles: o ritual, o espaço performático e o senso de coletividade; a constituição dos roteiros na interface entre estrutura e espontaneidade, a ideia 25 de transporte, poéticas de transformação de si e a compreensão do que vem a ser uma ―atenção diferente‖, por intermédio do desenvolvimento de um corpo sutil. SEXTO MOVIMENTO: MICROIMAGENS E ROTEIROS COM POÉTICAS DE TRANSFORMAÇÃO DE SI NO TRABALHO DO PROFESSOR Ao longo do sexto movimento, abordo as microimagens e os roteiros como poéticas de transformação de si no trabalho do professor, para tanto, retomo conceitos levantados nos movimentos anteriores buscando integrá-los com esta ideia. Tanto os roteiros como as microimagens abrem espaços no aqui e no agora da experiência dos corpos vibráteis para que possamos falar de um si mesmo, compreendendo que este ―falar‖ está para o campo da expressão e não somente da palavra. Sensações, atmosferas, fluxos são reinventados, revividos e reorganizados artisticamente e coletivamente como modos de dar destino as microimagens percebidas, mas também como uma maneira de trabalhar e transformar a si mesmo. A arte, portanto, se insere em um campo não somente estético como também ontológico, ou seja, que diz respeito ao ser e a transformação deste. Contudo, tanto as microimagens que estão mais voltadas para o educador-artista, quanto os roteiro que ele desenvolve com os estudantes, apresentam limitações. Isso ocorre pela junção de diferentes elementos criando uma montagem, uma surpresa, um estranhamento inapreensível pelo todo da linguagem. E foi pelo desejo, mas também pela impossibilidade de apreender por completo estas imagens, que dei forma e linguagem às minhas microimagens e às de outros educadores-artistas. Primeiro, surgiram as microimagens enquanto experiência estética, ética, de surpresa e perturbação. Somente depois, no encontro com autores como Diana Taylor, Gilles Deleuze, Suely Rolnik e Jacques Rancière, é que as microimagens ganharam conceitos e formas. 26 Gostaria que este trabalho despertasse o leitor neste sentido, que o fizesse acionar também as suas próprias microimagens em educação ou o nome que ele quiser dar a esta experiência com a imagem. Ao que parece, as imagens chegam sempre antes, são portais da percepção. Assim, para encerrarmos este ―começo‖ com uma imagem, trago uma cena, ou uma microimagem, que descreve estes portais. Numa tarde, não me lembro quando, telefonei para a minha mãe e quem atendeu a ligação foi a minha avó materna, Norma, minha avó que quase não enxerga mais é uma mulher que antevê as coisas, ela tem 92 anos e uma inteligência sofisticada, embora pouco tenha estudado em matéria de escola. É uma mulher religiosa e articula bem as palavras, ocorre que neste dia ela me explicou algo que com toda a minha dedicação acadêmica não havia encontrado nem mesmo palavras próximas. Perguntou-me o que eu fazia naquela tarde, respondi-lhe que escrevia. Ela disse: ―é preciso muita imaginação‖, ―haja imaginação vó‖ e então ela, como quem muda de assunto, mas na verdade faz um salto dialético, me diz: ―primeiro a imagem de Nossa Senhora apareceu (ela disse firme e pausou e depois com alegria na voz concluiu) e depois disso os homens imaginam tudo‖. No princípio era a imagem, depois, somente depois, a pesquisa e a busca por palavras que pudessem dizer sobre elas, mas isso era sempre um exercício incompleto e impossível. De qualquer forma, as imagens eram as pilastras e os pontos de referência no caminho que eu ia construindo, elas me davam pistas sobre um método e não o contrário. 27 A PERFORMATIVIDADE DO PROFESSOR 28 A pesquisadora-professora e o corpo vibrátil Na busca por um conhecimento corporificado, revisitei minhas experiências no cotidiano da educação, desde as mais tenras imagens de infância às mais recentes experiências vividas como professora de Artes ou de Teatro. Valendo-me destas experiências, criei um diário de campo contento antiguíssimas memórias que me acompanharam como lembranças leves ou fantasmas. Depois, passei a colecionar imagens e histórias de outros professores, tratando esse material como quem cria uma delicada obsessão por uma coleção de retratos ou objetos antigos, cada fragmento desta coleção nomeei de microimagem. A primeira microimagem aqui impressa é uma apresentação da pesquisadora-professora, pois, de acordo com esta metodologia, o pesquisador não fica de fora da ―moldura‖ da pesquisa. Microimagem nº1 Em casa, se embriagava com o cheiro do mimeógrafo, muito pequena tomou gosto pelo café adoçado e pelas bolachas água e sal que figuram na sala dos professores da educação pública de todo o país. Não havia completado seis anos, a mãe não tinha com quem deixá-la e, por isso, ela participava das famosas ―atividades extras‖, ―estudos de meio‖, ―trabalhos de campo‖. Acreditava que ser professora era essa itinerância, essa invenção entre parques, teatros, exposições de arte, cantorias em algum ônibus, e, sobretudo, o planetário, uma beleza! Certa vez, já mais crescida, uma cartomante tomou-lhe a mão e disse: ―você será professora‖, a mãe abruptamente puxou-lhe e disse que tal mulher não sabia de nada. (LEONARDI. Meu diário de campo. São Paulo - sem data). Nasci em família de classe média, branca, mas não toda branca porque minha avó materna casou-se com um homem negro que, ao olhá-la pela primeira vez, disse-lhe: ―vou casar-me com você, branquinha‖ e casou-se. 29 Sempre de terno claro, de linho muito bem engomado, falava bonito, mas se recusava veementemente a usar dentadura. Era cheio de histórias e arrumou uma mesa de ―dotor‖, como ele dizia, embora não a utilizasse para fins de escrita porque só sabia assinar o nome. Nunca voltou para a Bahia, sua terra natal, porque disse que só voltaria quando pudesse ajudar toda a gente. Presenteava os netos e depois voltava a pé porque não tinha dinheiro para a passagem de ônibus. Certa vez, durante um surto de riqueza, comprou cinco pastas em couro legítimo com botão dourado, ao estilo ―dotor‖, para os cinco netos que tinham menos de nove anos. Minha mãe me obrigou a usar a pasta na escola por uma semana! Eu dizia: ―Mas mãe eu só tenho oito anos, as crianças riem de mim, todas as crianças usam mochila‖; ao que ela respondia: ―A pasta que seu avô deu é linda e você vai usar. O Ênio usa!‖ O Ênio era um vizinho que estudava em escola particular. A pasta é um objeto que encarna a história de meu avô, de minha mãe, a primeira pessoa a cursar a universidade na nossa família, e também a minha história. Meu avô, quando me presenteou com a pasta, desejou que eu fosse algo que ele não sabia bem o que significava, mas que estava apartado do seu mundo. No entanto, o maior presente que guardo de meu avô é um sorriso leve de afronta e de recusa, ninguém poderá jamais representá-lo! Vivendo em uma pequena cidade católica, turística, cheia de jardins, muitas pessoas me diziam como eu deveria ser e o que fazer, diziam que a imagem que uma mulher encarna é mais importante do que qualquer coisa, mas, felizmente, aprendi com o sorriso de meu avô, que não tinha um único dente, que é preciso manter uma boa dose de afronta e de recusa. Quando eu tinha 12 anos, minha mãe passou a ministrar aulas também no ensino privado e lá eu fui estudar como bolsista. Eu, minha cabeleira afro, selvagem, que naquele tempo ficava mais presa do que solta, em torno do sorriso de meu avô. Chegávamos às terças-feiras com o fusca cinza do meu avô paterno que, quando se aproximava da escola, começava a fazer mais barulho do que nunca. Depois que minha mãe estacionava, colocava uma trava vermelha e uma enorme corrente com cadeado e saia do carro carregando uma pilha de livros e cadernos, derrubando tudo pelo caminho. Eu não sabia dizer por que não gostava das terças-feiras, do fusca, do meu cabelo e de minha mãe 30 exposta na escola, tão íntima ali a derrubar materiais por todos os lados, como hoje eu costumo fazer. Tudo se dava de tal modo naquela escola pequena, na cidade pequena, que mesmo eu, tão pequena, não passava despercebida. Na sexta série apareceu na escola a professora Maria Ângela4 e ela era mesmo professora de teatro! Como na minha cidade não tinha teatro, primeiro vivi mais intensamente a experiência de fazer teatro, e não de assistir. Aos treze anos, eu não dizia mais que queria ser professora e sim atriz, de modo que qualquer ônibus de excursão da APEOSP (Sindicato dos Professores de Ensino Oficial do Estado de São Paulo), da terceira idade, do sindicato dos artesãos, fosse o que fosse, minha mãe arrumava um jeito de incluir a mim e uma grande amiga que hoje é também atriz do grupo Folias. A mãe da minha amiga era professora de história e restauradora e, quando vinha trabalhar em São Paulo, deixava a gente em algum lugar onde pudéssemos fazer uma oficina ou assistir a alguma peça, mas isso nem sempre era possível, então faziam parte do ―nosso teatro‖ as mais diversas experiências, desde conversar com hare krishnas na Avenida Paulista até se esconder no banheiro do Teatro Municipal para assistir ao espetáculo seguinte. Como éramos muito jovens, sem dinheiro e sem a experiência de circular na cidade, cada espetáculo era acompanhado de uma grande aventura, lembro-me depois de assistir Raul Cortez em Rei Lear,5 (2000, Sesc Vila Mariana) quase tivemos que lavar pratos no restaurante em que as senhoras finas da excursão quiseram jantar após a peça. Certa vez, entramos em um teatrinho pequeno no centro da cidade, quando os atores faziam um ensaio geral e disseram que a gente podia assistir. Até aquele momento foi, talvez, o que eu havia visto de mais incrível. De um lado, a interpretação dos atores era realista, mas subitamente um Coro de Bombeiros surgia, crítico, dinâmico, energizante e cheio de músicas. Eu, com recém-completos dezesseis anos, me lembro de ter visto aquilo e pensado ―teatro para mim é algo assim‖ que, ao final, faz explodir alguma coisa. 4 Maria Ângela de Ambrosis Pinheiro Machado, atualmente professora na UFG (Universidade Federal de Goiás). 5 Direção de Ron Daniels. Tragédia de William Shakespeare. Segundo seus criadores, ―retrata um mundo em crise de transformação, a fragmentação do Estado e a transferência do poder, o questionamento dos valores sociais e a relação torturada dos pais com os filhos.‖ Sinopse do espetáculo. Disponível em: http://www.raulcortez.com.br/reilear/release.htm. Acesso em 26 abr. 2017. http://www.raulcortez.com.br/reilear/release.htm 31 E explodiu! Com alguns galões de gasolina, sob direção de Geogette Fadel, eu assistira, em 2001, a um ensaio geral de Biedermann e os incendiários.6 Anos depois, eu viria a descobrir quem eram os atores daquela Companhia São Jorge de Variedades e que, naquele dia, eu havia, pela primeira vez, pisado em mais um vagar despretensioso pela cidade de São Paulo no Teatro Eugenio Kusnet, o Teatro de Arena. Semanas depois de assistir ao ensaio geral, em uma terça-feira, dia do fusca, eu atravessava a quadra da escola quando alguém veio gritando algo sobre o Word Trade Center, que eu mal sabia o que era, mas ao chegar em casa, diante da televisão alguma coisa de Biedermann e os incendiários ainda ressoava no meu corpo adolescente. Somente em 2009, dois anos após concluir o curso de Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas, na Unesp (Universidade Estadual Paulista), é que, juntamente com Camila Andrade, Beatriz Marsiglia e Juliana Mado, consolidou-se o Coletivo Cênico Joanas Incendeiam, um grupo de teatro formado por mulheres que, como eu, atuam também no campo da educação. O sorriso de afronta e recusa de meu avô, o barulho do escapamento do fusca nas terças-feiras, as pilhas de materiais de minha mãe caindo pela escola, o Word Trade Center, Biedermann e os incendiários e as Joanas Incendeiam: estava tudo ali em uma sobreposição entre os meus cabelos, agora livres. a) O teatro como uma forma de relação com o mundo E foi nesta trama de significados que passei a exercer a dupla função de atriz e educadora. Atriz dedicada a processos de criação que envolvem o teatro como uma forma de se relacionar com as pessoas, com as aprendizagens e saberes de diferentes lugares e contextos. Uma das maneiras que meu grupo, 6 Biedermann e os incendiários, de Max Frisch. Direção: Georgette Fadel, Produção: Cia. São Jorge de Variedades. Estreou durante o projeto de ocupação Harmonia na Diversidade no Teatro Eugênio Kusnet. ―A peça, segundo a concepção dos criadores, nos leva a refletir sobre como os mecanismos de alienação minam a capacidade de mudança dos homens‖. Cia. São Jorge de Variedades. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: . Acesso em: 27 de abr. 2017. Verbete da Enciclopédia. 32 o Coletivo Cênico Joanas Incendeiam, encontrou para fazer isso é por meio do trabalho colaborativo, da pesquisa de campo e das experiências com a cultura popular e o ritual. Para entendermos alguns elementos que compõem a natureza do trabalho que desenvolvo com o Coletivo Cênico Joanas Incendeiam e de tantos grupos teatrais contemporâneos, gostaria que o leitor me acompanhasse em um primeiro salto. Vamos fazer uma trilha ao longo destas páginas que não é linear, mas repleta de obstáculos, mudanças de rota e transposições. Pois bem, primeiro, façamos um salto para trás a fim de compreender que muitos grupos teatrais contemporâneos inevitavelmente sofreram grande influência de Jerzy Grotowski. Este diretor, professor e teórico teatral polaco foi considerado um dos grandes nomes do teatro no século XX e apontou importantes inovações para o ofício do ator/performer. Ao final de sua pesquisa, depois de ser reconhecido em todo o mundo, decidiu não mais realizar espetáculos e passou a se dedicar, então, mais intensamente a uma prática com cantos rituais e àquilo que o ator pode fazer para trabalhar sobre si mesmo. Este trabalho ficou conhecido como a Arte como veículo ou Artes rituais. O que me interessou basicamente no trabalho deste homem de teatro, que me levou a desenvolver uma pesquisa de mestrado7 e a formular algumas questões que aparecem neste novo trabalho, é que na Arte como Veículo Grotowsky se refere a um processo que não se ocupa da percepção do público, mas da percepção dos atuantes, ou seja, de quem faz a criação cênica. O objeto maior de seu interesse nesta fase não é, portanto, o espetáculo, mas a prática teatral como uma pedagogia. Esta contribuição de Grotowsky é importante porque fundamenta este trabalho: a percepção de que os processos artísticos e pedagógicos são indissociáveis e que podem estar a serviço da percepção dos atuantes e não de um público que eventualmente pode visualizar o processo ou alguma forma de espetáculo. 7 Em minha dissertação de mestrado, O Ator criador na Fondazione Pontedera Teatro: reflexões acerca do ―diretor ignorante‖ e do ―ator emancipado‖, defendida em 2012, analisei os trabalhos e a história de uma companhia italiana chamada Companhia Laboratorio di Pontedera, dirigida por Roberto Bacci, o que fiz a partir de dois referenciais teóricos: Jerzy Grotowski e Jacques Rancière. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/86859. Acesso em 29 jan. 2019. 33 Feito este primeiro salto com leitor, na tentativa de fazê-lo compreender que a minha prática como atriz está inserida em um campo que relaciona teatro, ritual, e os processos artísticos ganhando uma dimensão maior que o espetáculo na medida em que são uma prática pedagógica voltada para os atuantes, passo agora a explicar como eu procurava dar contornos similares a estes também ao meu trabalho como artista-educadora. Como atriz, sentia-me preparada para o meu público em qualquer situação. Porém, como professora, não. Se algo saía do esperado, isso muitas vezes era, para mim, motivo de frustração. Além disso, a emergência de situações de extremo estranhamento que o trabalho na sala de aula produzia gerava perturbações tão poderosas em meu corpo professoral que eu necessitava encontrar um destino para estas percepções e sensações, um modo de registrar estes sobressaltos. b) O corpo participativo como elo entre dois mundos Esses estranhamentos ocorriam mais frequentemente quando eu me imbuia de uma ―atenção diferente‖ na aula, um estado de presença, uma escuta de corpo todo que não se referia somente ao desencadeamento lógico da aula, mas a todo detalhe, gesto, ação, pois, qualquer ocorrido na sala de aula poderia dar origem ao próximo passo do processo, eu sabia disso. Esta outra atenção foi apenas um dos aspectos que fui descobrindo em minha prática. Paralelamente, fui percebendo a necessidade de ritualização da aula para a criação de um espaço performático, sobre o qual falarei profundamente mais adiante, que incluía: relações entre arte e vida, risco e momentos de vazio. Chamo de vazio um espaço de espera, onde nada aconteceu ainda, é o momento presente e o adensamento no presente que fará algo acontecer no jogo, na cena, na relação com o outro. Nestes momentos prevalece o tempo, a respiração e as relações do corpo com o espaço, em um estado de inteireza e afetação com o ―aqui agora‖. Sentia-me afetada pelas experiências do cotidiano de educadora de corpo inteiro, estava aí o ponto de maior conexão entre ser artista e ser 34 professora: a presença de um mesmo corpo sensível que quer fazer prevalecer- se nas experiências, tanto da sala de aula quanto do teatro. Um teatro como o que vimos em nosso primeiro salto, fortemente conectado ao ritual, voltado para os atuantes e que se faz existir não enquanto espetáculo somente, mas como uma forma de criar e intensificar as relações dos atuantes com o mundo, construindo uma nova cartografia das experiências vividas. Suely Rolnik8 afirma que para os geógrafos, a cartografia – difere do mapa porque este seria uma representação estática – enquanto a cartografia se faz na experiência, constrói novos mundos e desmancha outros. Constatando esta conexão entre o meu corpo de professora e de artista, proveniente de um corpo em processo contínuo de construção e desconstrução, corpo participativo, corpo de cartógrafo, conforme a terminologia de Rolnik, eu me via como alguém que não teme o movimento. Deixa seu corpo vibrar todas as frequências possíveis e fica inventando posições a partir das quais essas vibrações encontrem sons, canais de passagem, carona para a existencialização. Ele aceita a vida e se entrega. De corpo e língua. (ROLNIK, 1989, p.3) Participar, fazer experiências consigo mesmo, ser afetada e afetar parecem ser desígnios deste ―corpo vibrátil‖ descrito por Rolnik. Contornos do que poderia ser uma educação contemporânea começavam a se desenhar para mim em torno deste corpo que há muito estava presente em minha prática como atriz de teatro, mas que, por diferentes razões, nem sempre era potencializado no cotidiano da educação. Isto porque, se como atriz eu buscava criar uma arte que provocasse deslocamentos na percepção, estranhamentos, inquietações, explosões como as de Biedermann ou do fusca de meu avô e, sobretudo, diferentes pontos de vista sobre o espetáculo eram sempre bem-vindos; como educadora, porém, nem sempre isso ocorria. Não acontecia porque não poucas vezes eu tendia a intervenção e a conciliação dos diferentes pontos de vista que surgiam na aula, o que implicava ―iluminar‖ e ―explicar tudo bem explicado‖, não deixando espaço para imprecisões. 8 Suely Rolnik é psicanalista, crítica de arte e cultura, curadora, professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e, desde 2007, docente convidada do Programa de Estudios Independientes do Museu de Arte Contemporâneo de Barcelona. Sua investigação enfoca as políticas de subjetivação em diferentes contextos, abordadas de um ponto de vista teórico interdisciplinar e indissociável de uma pragmática clínico-política. 35 Ao contrário do que acontecia no mundo da arte, os estranhamentos, ruídos e sustos da sala de aula eram muitas vezes encarados por mim como um desvio e uma frustração em relação ―à aula bem-feita‖. Ao encarnar a professora mediadora,9 ainda que comprometida com o jogo teatral e com as funções desempenhadas pelo corpo no processo educativo, a partir da linguagem do teatro, em alguns momentos, eu trazia à tona a professora profeta. O aparecimento desta figura gerava diferentes reverberações. Diante disso, de acordo com a turma e por algum período, julguei necessário trancafiar esta personagem. O professor profeta e o professor militante Microimagem nº2 Eu queria falar da minha professora de História, professora Leni, que morava lá em Niterói, pegava o 268. A gente ficava tudo na esquina esperando dona Leni na sétima e na oitava série. E, uma vez, ela desconsiderou uma questão minha de História porque eu respondi com as minhas palavras, e eu não podia ter respondido, porque ela me disse que ela me deu o questionário e era para ter respondido igualzinho estava no questionário. (...) Mas, graças a Deus, como professora, eu consigo me desvencilhar disso e não exijo do meu aluno isso. Isso é uma das coisas que eu consegui bem trabalhar dentro de mim e não sou desse lado que o aluno tem que reproduzir do jeito que eu quero, a resposta sempre fechada, porque a gente sabe que tem outras possibilidades, mas a parte daquela rigidez, daquela postura, infelizmente, eu não consegui me desvencilhar. Fiquei passada com aquilo porque eu estudei tanto, cara, e ela me deu nove? Aí ela me justificou, não estava igual ao questionário, era para eu ter respondido igual: ―Aline, eu não dei o questionário?‖. Eram vinte questões, aí ela pegou dez questões e deu na prova: ―Eu não dei o questionário? – Deu, dona 9 Denise Pereira Rachel aborda diferentes tipos de professores entre eles, o professor mediador, e alerta para os riscos de uma posição conciliadora por parte dele: ―A tentativa de conciliar diferentes pontos de vista, entretanto, pode se aproximar da função apaziguadora de conflitos com caráter homogeneizador, na qual as diferenças são liquefeitas para se chegar a uma conclusão ordenada, sob o comando do professor. Se compreendida dessa forma, a ação mediadora acaba por apontar para a construção de um saber padronizado, que depende do aval do docente, já que ele possui autoridade para desqualificar a para legitimar os discursos com os quais compactua.‖ (RACHEL, 2014, p.48) 36 Leni –Mas você não respondeu igual! – Pode deixar, dona Leni, da próxima vez eu vou fazer o dever de casa direitinho, vai ser igualzinho com todos os pontos e vírgulas! (Professora Aline. In: SERPA, Andréa. As alunas que fomos, as professoras que nos tornamos: conversas sobre as tramas de nossa formação, p.9) O professor Silvio Donizetti de Oliveira Gallo criou o conceito de ―educação menor‖ tomando de empréstimo a literatura menor,10 de Gilles Deleuze. Para Silvio Gallo, a educação menor é aquela que está em oposição à educação maior, uma educação das grandes diretrizes e projetos, é aquela que quer se institucionalizar. A educação maior está estritamente associada à máquina de controle sobre ―o que, como e para quem ensinar‖. O professor representante da educação maior é, segundo o autor, o professor profeta, aquele que anuncia as possibilidades a alguém e mostra um novo mundo. Já a educação menor, segundo Silvio Gallo, é rizomática: segmentada, fragmentária, não está preocupada com a instauração de nenhuma falsa totalidade. Não interessa à educação menor criar modelos, propor caminhos, impor soluções. Não se trata de buscar a complexidade de uma suposta unidade perdida. Não se trata de buscar a integração dos saberes. Importa fazer rizoma. Viabilizar conexões e conexões; conexões sempre novas. Fazer rizoma com os alunos, viabilizar rizomas entre os alunos, fazer rizomas com projetos de outros professores. Manter os projetos abertos [...] (GALLO, 2002, p.175). O professor militante, segundo a terminologia de Silvio Gallo, é um professor que participa de uma educação e de uma aprendizagem rizomática, procura viver as situações e dentro delas gerar potencialidades em uma ação coletiva. A partir de Silvio Gallo, de Jacques Rancière, com o livro O mestre ignorante (2004), e também a partir de Gilles Deleuze e Felix Guattari, compreendo que a aprendizagem rizomática está em oposição a uma aprendizagem previsível, cartesiana, evolutiva tal qual a estrutura de uma árvore: raízes, tronco, galhos e folhas. Trata-se de processos de criação e aprendizagem que não ocorrem de modo hierárquico, ou seja, negligenciam a chave ―das etapas‖ e do ―passo a passo‖, em que o professor não assume a função de um instrutor que divide o conhecimento em pontos a serem 10 Literatura menor é a literatura que está à margem e não tem pretensão de se institucionalizar. 37 superados, mas sim estabelece relações de multiplicidade entre pessoas diferentes e cria parcerias, onde ele próprio coloca o seu saber em risco. O rizoma, conceito desenvolvido por Félix Guatarri e Gilles Deleuze, assemelha-se à imagem a uma planta sem raiz única que pode se ramificar em qualquer ponto, formando uma composição de linhas que se espalham sem se fixar. Os autores esclarecem em Mil Platôs: Não se deve confundir tais linhas ou lineamentos com linhagens de tipo arborescente, que são somente ligações localizáveis entre pontos e posições. [...] O rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga. São os decalques que é preciso referir aos mapas e não o inverso. (DELEUZE; GUATTARI, 2004, v.1 p.33) Ou seja, não existe no ―modelo‖ rizomático proposições ou fundamentos principais. O rizoma cresce desordenadamente em um movimento de desterritorialização e reterritorialização. Esta imagem do rizoma está em oposição à estrutura de árvore, ou modelo arbóreo. Este, por sua vez, cresce para cima representando um sistema hierárquico que parte de raízes estáveis e fixas. Paola Berenstein Jacques, por meio da obra do artista brasileiro Hélio Oiticica, também descreveu uma arquitetura em formato de rizoma, a imagem labiríntica das favelas e o modo como se dá esta construção é uma imagem bastante representativa do processo de criação ao qual me refiro. Jacques traz, em contraposição à estrutura indefinida do rizoma (treliça), a estrutura de árvore, cuja imagem é definida a priori, lembrando a pedagogia tradicional: o mestre que ensina por transmissão de seu conhecimento. A autora afirma que ―a ideia de obra de arte vai desaparecendo gradualmente em proveito da ideia mais ampla de experimentação artística‖. (JACQUES, 2001, p.108). No contexto da educação, a priorização do experimento artístico pode ser mais interessante que a obra acabada (o espetáculo) na medida em que se transforma em prática pedagógica. No conceito de processo de criação/aprendizagem rizomático prevalece a pesquisa que também pode estar presente, evidentemente, em processos que preveem a montagem de espetáculos. O professor de teatro, em uma aprendizagem rizomática, prepara sua aula, aprofunda seus conhecimentos, estuda, relê, analisa os riscos da proposta, 38 separa o material que irá precisar, calcula o tempo que irá levar, como qualquer outro profissional comprometido. Depois, avalia a experiência, registra-a a seu modo, pensa naquilo que não funcionou ou em como poderia ter agido diferente. Mas uma das diferenças entre este educador e um professor de uma ―aprendizagem arbórea‖ é que, embora saiba o ponto de partida de uma ação, saiba das suas expectativas porque se importa com o processo e com os participantes, cria mecanismos para impedir que as suas esperanças e o seus desejos borrem um processo no qual não deve haver protagonistas, mas sim a experiência coletiva. Ao traçar uma rota, sabe que ela será reconfigurada, dilacerada, reconectada de modo que não pode prever. Silvio Gallo utiliza as terminologias acerca do professor profeta e professor militante como modelos sobre os quais discorre em prol de uma ―educação menor‖, uma educação em moldes anarquistas. Suas contribuições para pensar a educação anarquista (1990) são de grande importância para as práticas contemporâneas em educação. Considero que esta separação nos provoca a pensar sobre os papéis que desempenhamos na sala de aula, nos auxilia a compreender a nossa ação cotidiana não somente como ética, mas política, porém, esta divisão não pode ser compreendida de um modo dualista. Os padrões – professor profeta e professor militante, educação maior e educação menor, micropolítica e macropolítica – colidem, negociam, são surpreendidos um pelo outro e estão em estado de troca e de tensões permanentes com a realidade dos espaços educativos. Realidade esta que não pode ser desenhada tal como um mapa sobre o qual o professor imprime ideais de modo linear, pleno e a contento, mas sim uma cartografia dos possíveis que se metamorfoseiam constantemente nos encontros com limites do espaço, das hierarquias, do desejo dos alunos, etc. No campo do ensino de Artes, se retomarmos as alterações feitas na Lei de Diretrizes e Bases com a medida provisória 746, de 2016, é possível pensar como uma educação maior reconfigurou o currículo de tal modo que, no âmbito prático, uma educação menor torna-se mais e mais restrita já que a disciplina de Artes deixou de ser obrigatória no Ensino Médio. Esse fato implica, a longo prazo, entre outros aspectos prejudiciais à formação e experiência de vida dos estudantes, a ausência de professores com esta formação, seja no 39 Ensino Médio, seja nos cursos superiores, que cada vez mais são pressionados a funcionar com base em demandas de mercado. Embora o conceito de micropolítica seja frequentemente utilizado por educadores como uma alternativa à macropolítica, partilho da perspectiva de Silvio Gallo que não prevê estes conceitos de modo dual. João Leite Ferreira Neto11 também observa o micro e o macro em interação e não em oposição. Tal método de leitura, segundo Neto, ajuda a nos precaver dos perigos de um ―neomoralismo antimolar‖, ou ainda, uma recusa da macropolítica. Tal recusa, poderia ser apropriada pelas correntes neoliberais e correntes religiosas em educação que se afirmam sob o argumento de uma ―pseudo neutralidade‖ do professor como, por exemplo, sugere o projeto ―Escola Sem Partido‖.12 O projeto pressupõe uma condição de tutela dos estudantes, como se estes não fossem capazes de tecer suas próprias críticas, posições e sínteses a partir de tudo aquilo que lhes é apresentado. O ―Escola sem Partido‖ é um lamentável exemplo de como a micropolítica e a macro política estão embrincadas a tal ponto que optar por uma ou outra implica imposição, vigilância, ausência de liberdade de expressão e debate, tal qual defende o projeto orientando estudantes a denunciar professores que se posicionem politicamente. É por isso que Deleuze e Guattari desenvolvem o conceito de micropolítica de modo a não separá-lo de uma macropolítica, embora o façam ―didaticamente‖, o que é incomum nos trabalhos destes autores que evitam o tom didático com ironias e devaneios: ―servimo-nos de um dualismo de modelos para atingir um processo que se recusa todo o modelo‖ (Deleuze; Guattari,1995, v.1 p. 32.). Assim, discorre Guattari em entrevista que consta no livro Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo, de Suely Rolnik: 11 João Leite Ferreira Neto é graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, 1984), mestre em Filosofia pela UFMG (1994), e doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP (2002) e pós- doutor em Psicologia Social pela UERJ (2010). Professor adjunto IV do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e técnico superior de saúde da Prefeitura de Belo Horizonte. Pesquisador CNPq PQ2 (2013-2016) e FAPEMIG (Pesquisador Mineiro, 2009-2011 e 2014- 2016) Editor Chefe do periódico Psicologia em Revista (2010-2012; e 2014-2017), passou a Editor Associado em 2017. Tem experiência na área de Psicologia, com pesquisas que contemplam principalmente os seguintes temas: saúde pública/saúde mental, promoção da saúde, políticas públicas, formação do psicólogo. Trabalha esses temas tendo como um dos eixos analíticos as contribuições da arqueogenealogia de Foucault. 12 Projeto Escola Sem Partido (PLS 193/2016, PL 1411/2015 e PL 867/2015). Disponível na íntegra em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1317168.pdf. Acesso em: 26 abr. 2017. http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1317168.pdf 40 (...) micropolítica – ou seja, a questão de uma analítica das formações do desejo no campo social – diz respeito ao modo como se cruza o nível das diferenças sociais mais ampla (que chamei de ―molar‖) como aquele que chamei de ―molecular‖. (...) essa oposição entre molar e molecular pode ser uma armadilha. Eu e Gilles Deleuze sempre tentamos cruzar essa oposição com uma outra, a que existe entre micro e macro. As duas são diferentes. O molecular como processo, pode nascer no macro. O molar pode se instaurar no micro . (GUATTARI abud ROLNIK, 1989, p.127-128). A fim de visualizar o molar e o molecular, a micropolítica e a macropolítica imbricadas na perspectiva de Gilles Deleuze e Guattari tomemos como exemplo a militância de professores e artistas em São Paulo. Em nível molar, essas classes constituíram organizações para reivindicar direitos, unir forças, se proteger de segregações como, por exemplo, ocorreu com o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP), em 1945, ou com a formação da Cooperativa Paulista de Teatro (CPT), em 1979. Podemos dizer que estas organizações estão inseridas em uma macropolítica e em nível molar. Mas, paralelamente, em nível molecular, a autonomia de professores e artistas não diz respeito somente a quem se considera militante e pertencente a estas organizações, mas a todos os professores e artistas, estudantes, público, comunidade escolar, inclusive aqueles que não pertencem à militância. Assim, não há uma lógica de contradição entre os níveis molares e moleculares, pois os componentes individuais e coletivos estão sempre presentes em um mesmo espaço social, podem inclusive ―funcionar, a nível molar, de modo emancipador, e coextensivamente a nível molecular, serem extremamente reacionários. A questão micropolítica é a de como reproduzimos (ou não) os modos de subjetividade dominante‖. (GUATTARI, 2000, p.33) Opor uma política molar das grandes organizações, presentes em qualquer nível da sociedade (micro ou macro), a uma função molecular que considera as problemáticas da economia do desejo, igualmente presentes em qualquer nível da sociedade, não implica uma valoração na qual o molecular seria o bom e o molar o mau. Os problemas se colocam sempre e, ao mesmo tempo, nos dois níveis. (GUATTARI, 2000, p.33) A citação de Guattari contribui para pensar que, sendo a filosofia deleuze-guattariana uma filosofia do acontecimento que se atém ―a emergência de novos campos possíveis‖, no aqui e no agora, não faria sentido defender uma micropolítica em detrimento de uma macropolítica, mas sim perceber as tensões, 41 negociações e potências que fazem emergir em sua interação: ―tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macro política e micropolítica‖. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.90) Por exemplo, chefes, professores, diretores e pais podem, em um nível molar serem democráticos, pregar a igualdade, enquanto na esfera molecular podem ter atitudes autoritárias, reproduzindo os modos de subjetividade dominantes. Ao contrário do que prevê o projeto ―Escola sem Partido‖, acontecimentos que configuram opressão devem ser aproveitados na escola e no próprio espaço da aula para serem objeto de reflexão democrática, tanto por estudantes como por professores, a fim de se reestabelecer novas relações e aprendizados, e isso implica que todos os envolvidos não são neutros, mas que, ao vivenciarem tais situações, devem se posicionar, sob a condição de consentimento. Se todos se posicionam quando a situação exige, o choque de ideias e mesmo a tensão proveniente destas situações são uma oportunidade de amadurecimento intelectual e emocional, mas, muitas vezes, na escola abrimos mão de oportunidades como estas para ―cumprir o conteúdo‖ a qualquer custo, como se estas tensões não dissessem respeito a um saber e mesmo à vida. Evitar estes embates na esfera escolar, familiar ou pública é o que nos torna inseguros, silenciosos e suscetíveis à opressão. Há de se perguntar então que educação e que escola queremos para que um estudante não consinta passivamente a tudo aquilo que lhe acontece? E há de se perguntar também que constituições familiares são estas que não podem se haver com as diferenças a ponto de querer impor uma conduta única ao professor, enquanto este constantemente lida com a diversidade? Ao que parece, as famílias que apoiaram o Escola sem Partido estão sendo reféns do medo que é constituído na sua própria ideologia de educação promovida no lar: uma educação do silêncio e da moral que não deixa margem para a pluralidade de ideias e modos de vida e que, por isso, teme a subversão, tão característica de regimes autoritários. O que a ―lei da mordaça‖, como ficou conhecido entre os professores o projeto Escola sem Partido, pode fazer em nome dos valores familiares das pessoas com ela identificadas é camuflar as disputas de poder e os regimes de 42 opressão. O discurso de respeito aos valores e ideologias familiares dos estudantes é positivo, mas, na conjuntura de ascensão de uma elite conservadora, funciona apenas como dissimulação das problemáticas da diversidade – sexualidade, religião, gênero, ideologia – além de funcionar também como máquina para oprimir e perseguir valores, ideologias de professores e os próprios professores que também tem as suas famílias e os seus valores. Em oposição a uma educação do silêncio e da moral, que pode gerar a passividade dos estudantes, podemos pensar em uma educação que preze pela ética e pelos ―componentes de expressão do desejo‖ dos estudantes no nível molecular, ou seja, que se constitua a partir dos desejos deste coletivo, mas isto também implica que o professor faça parte deste coletivo: ele não está acima, mas também não pode se omitir. Em termos processuais, isso implica entender a manifestação dos desejos em uma perspectiva coletiva, tomar decisões e depois lidar com os espaços de desamparo que esta experiência pode gerar para estudantes, professores, pais e diretores. Proteger-se do desamparo é o que nos torna oprimidos por nós mesmos e por nossas convicções, mas é também no desamparo que tecemos parcerias, encontros, agenciamentos e um sentido de partilha do sensível, como afirma Jacques Rancière (2009). Essa prática coletiva é também uma política dos afetos, segundo Vladimir Safatle: A verdadeira tarefa política é a reconstrução de nossos afetos. Inebriados por discussões a respeito de sistemas de normas e instituições, demoramos muito tempo para perceber que a política é, acima de tudo, uma questão de mobilização de afetos. Discursos circulam e levam os corpos a sentirem de uma determinada forma, a temerem certas situações. A política é a arte de afetar os corpos e de levá-los a impulsionar certas ações. Devido a isso, nunca entenderemos nada das dinâmicas dos fatos políticos se esquecermos sua dimensão profundamente afetiva. Por exemplo, não é difícil perceber como, nas últimas décadas, uma máquina de medo e ressentimento foi colocada em funcionamento. (SAFATLE, 2014) A arte contemporânea e a sua capacidade de gerar deslocamentos na percepção é, sem dúvida, uma das formas de enfrentamento dessa máquina do medo e uma forma de mobilização política dos afetos. De acordo com a perspectiva performática, o professor não precisa se limitar a um modelo ou outro, profeta ou militante, mas, taticamente, ao invés de 43 pensar em termos de identidade, procura agir de forma a possibilitar o movimento, o trânsito, os deslocamentos e os estranhamentos na sua percepção e na percepção do grupo. A figura de um professor sabido demais pode inibir a turma, assim como alguém que se apresenta, de imediato, de modo transgressor pode gerar desconfiança, mas em cada contexto estes elementos reverberam de um jeito e ambos podem ser potentes de acordo com a situação, isso porque em uma educação rizomática prevalece a função do professor como um provocador, tal qual o performer. O hibrido professor-performer Enquanto professor, me aproprio da palavra performance para falar de uma atitude pedagógica diferenciada. Não só corpo voz e lugar estão imbrincados, como também, nessa forma de ver a performance, está implicada uma preocupação pedagógica. (CIOTTI, 2014, p.62) Pensando a prática artística na escola como acontecimento, e acontecimentos são os efeitos resultantes do encontro entre os corpos que geram provocações e deslocamentos na percepção e novas cartografias, o híbrido professor-performer, analisado primeiramente pela pesquisadora Naira Ciotti e também sob uma perspectiva bastante importante a partir do olhar de Denise Rachel, apresenta algumas surpresas que me parecem importantes de serem analisadas e que se relacionam a uma perspectiva rizomática em educação, ou ainda, uma ―educação menor‖. A hibridação professor-performer não distingue processo artístico e aprendizagem, uma vez que, nesta perspectiva, eles são indissociáveis porque o aluno é produtor em arte, aprendiz e pesquisador a um só tempo, tal qual o professor, embora este seja o responsável pela condução do processo e aquele que tem maior experiência. Neste contexto, ensinar é, acima de tudo, um processo de criação e experimentação. Um trabalho com alto índice de responsabilidade, mas isso não deve servir como empecilho para que o professor de arte enfrente as dificuldades de repertório e de criatividade de seus alunos. (CIOTTI, 2014 p. 44) 44 O enfretamento com as dificuldades de repertório, criatividade e, sobretudo, escuta deve ser encapado pelo professor com labor, isso significa, em um primeiro momento, abranger dificuldades aparentemente muito simples, para depois trabalhar o amadurecimento de alguns aspectos e, enfim, poder investigar espaços mais amplos, grupos grandes jogando simultaneamente, e propostas mais abertas. Algumas turmas, sobretudo formadas por crianças pequenas acostumadas com formatos de aula rígidos e espaços controlados, vivem um estado de excitação desenfreada e também um desamparo muito grande diante do universo e da sensação de liberdade do que pode ser a aula de teatro. Este estado de excitação individual, autocentrado, sem conexão com o coletivo pode ser perigoso, violento e não é a aparente liberdade (liberação) presente nesta posição que conduzirá ao trabalho e ao diálogo tão necessário à prática do teatro: A performance é uma voz que procura o diálogo. (...) E o performer incorpora, corporifica e, dessa forma, comunica. Para se comunicar através da voz, ele precisa ter consciência de seu corpo e do lugar onde ele está. (CIOTTI, 2014, p.37) Estando no espaço escolar, diferente de outros contextos, por muitas vezes assumi uma postura firme diante de situações de violência, racismo e desrespeito. Buscando resguardar alguns valores no grupo, eu afirmei por muitas vezes ―isso não vai ser permitido aqui, eu não vou permitir este comportamento comigo e com as outras pessoas‖. Essa fala me parece bastante tradicional, impositiva, pouco dialógica, mas os limites do trabalho existem e o professor, mesmo o professor-performer é o responsável por desenhar e marcar estes limites durante o trabalho. Se estes contornos não podem ser compreendidos na linguagem artística, sensível, e o professor não consegue, naquele momento, responder a outro modelo que não o autoritário isso não significa que o trabalho está perdido. Mas, se o professor só possui o berro, a coação, a ameaça como ferramentas e como linguagem, se não procura trabalhar em si mesmo outras formas de percepção dos acontecimentos para dar respostas criativas a eles na relação com o espaço escolar, então o trânsito, a surpresa, as mudanças de 45 lugar que a performance tem a oferecer enquanto prática artístico-pedagógica não podem ser aproveitadas em sua potencialidade. O professor-performer busca na própria aula e na sua composição dramatúrgica, simbólica, espacial, material, afetiva, sensível, ao sugerir, como em um roteiro, o desenho dos espaços de liberdade e os limites necessários para o encontro. Assim, as regras do jogo, a espacialidade e os objetos vão delineando os contornos e os limites sobre os quais o professor-performer realiza a sua prática tornando possível a vivência da experiência do não saber e da liberdade de se criar junto. Naira Ciotti relata que Kandinsky trabalhou com outra qualidade de matéria, diferente daquela que se encontrava nos ateliês, ao invés de utilizar tintas, quadros, gravuras, o corpo de seu trabalho, sua materialidade esteve presente também nas suas próprias aulas e livros. As aulas eram, portanto, roteiros artísticos que buscavam criar um estado de arte, causar modificações espaciais e se assemelhavam à constituição daquilo sobre que me debruço no movimento denominado ―espaço performático‖. Alcançar um estado de arte, uma escuta e um corpo coletivo que permita que algo aconteça é uma tarefa difícil, mas este é o trabalho do professor-performer, do educador-artista e do próprio artista. Com alguma facilidade chegamos à criação deste campo sensível e de criação em centros culturais, sedes de organizações não governamentais, em cursos de teatro, nas universidades, porém, a escola não é tão porosa como outros espaços. ―Na obra de Joseh Beuys, podemos perceber que somente quando o lugar é imantado com a performance, ela está realmente acontecendo (...) Esse lugar fica temporariamente alterado em todas as suas qualidades‖ (CIOTTI, 2014, p.41). A escola parece resistir às alterações, mas é por isso mesmo que os pequenos ruídos geram grandes estrondos. Então, na prática do professor-performer a própria aula seria uma obra de arte e o seu corpo e o espaço são campos artístico-pedagógicos; este professor não busca a unidade de processo, a verdade, a negação das emoções e tensões. Ele as vivencia, mas em um movimento de viver a experiência e dela se afastar para observá-la. Cassiano Quilici (2015) ao referir-se ao trabalho do ator-performer em Grotowski afirma que o que este deve aprender a agir e, ao mesmo tempo, 46 observar-se sem mentalizar verbalmente essa observação. Seria também este um caminho para o professor-performer? Ao que parece este estado de atenção, de abertura, se relaciona com o conceito de corpo vibrátil já apontado aqui. Estar com o corpo vibrátil desperto e não ―em coma‖ permite que vivenciemos ―o acaso‖ e a experiência com maior largueza. A percepção mais ampla sobre o cotidiano permite ao professor e aos estudantes novas invenções e metamorfoses. Estar sensível a estas possibilidades não é uma tarefa fácil, tanto como artista como professora, alcanço, mas algumas vezes perco esta atenção e esta presença. A palavra experiência, neste contexto, está associada a uma ideia de risco, por isso o trabalho suscita momentos de crise, de desamparo, isso não significa abandono absoluto, ausência de limites e contornos, caso contrário o corpo vibrátil sucumbe, adoece e enlouquece. Vivenciar as mudanças de rotas e a perda de fronteiras nos processos artísticos em educação exige espaço delimitado13 e preparo. Na minha experiência, algumas vezes performar significou ser só professora, abrir mão de uma aula poética e fazer uma aula mais tradicional, estruturada, teórica; em outros casos foi possível desconstruir e criar potencialidades poéticas jamais pensadas na minha individualidade professoral. O que tecemos com os grupos são movimentos de idas e vindas, visando uma aprendizagem mais ampla, ir mais longe, mas juntos, coletivamente, por isso dar alguns passos para trás, às vezes, se faz necessário, não se trata de fracasso, mas de atitude tática. Quando afirmo a necessidade de um preparo para instauração de processos de natureza performática, estou me referindo não somente aos elementos que compõem a estrutura da aula – objetos, música, espacialidade, roteiro, conceitos da aprendizagem, tema, simbologia – mas também às práticas e exercícios que o professor pode desenvolver sobre si mesmo, os seus cuidados para consigo: Cuidar-se é curar-se, desaprender os vícios desmanchar os hábitos nocivos, trabalhar os humores, cultivar a ação reta. Não que as especulações cosmológicas e lógicas desapareçam mas não estão 13 Sobre este aspecto me dedico no terceiro movimento ao abordar as relações entre aula e ritual. 47 rigorosamente subordinadas à construção do ―sujeito ético‖. (QUILICI, 2015, p.158) Curar-se é então este trabalho sobre si mesmo, conceito sobre o qual dedicou-se Foucault retomando o que os gregos nomeavam de ―cuidado de si‖14. Por ora, é importante compreender que a inclinação para tais técnicas – práticas de liberdade (FOUCAULT, 2004) – parece apontar como alternativa para que o professor aceite o que está inacabado, no espaço, nos estudantes e em si mesmo, isso não significa deixar de perseguir a aprendizagem. É a sensação de falta, de incompletude e de fracasso que, às vezes, nos acomete e que nos permite novas invenções e metamorfoses como professores. Além disso, o professor-performer busca compreender as impermanências que cercam o cotidiano, mesmo os ―bons processos‖, ―os bons resultados‖ não são um núcleo duro e fechado, eles não são permanentes, não se trata de essências, mas de estados. Na perspectiva do professor-performer o político e o poético não se dão como essências do professor, mas como movimentos de uma – tomando de empréstimo o termo de Vladimir Safatle (2015) – política dos afetos: ―Os corpos distinguem-se entre si pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão e não pela substância.‖ (SPINOSA, 2009, l. 49). Ao pensarmos em movimento ao invés de substância, rompemos com a ideia daqueles que ―são‖ ou daqueles que sabem e daqueles que não sabem, dos bons professores e dos maus professores, e dos bons alunos e também dos maus alunos porque não existe uma unidade de conhecimento, como não existe uma unidade de ignorância: ―as formas de ignorância são tão heterogêneas e interdependentes quanto as formas de