Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP Departamento de Economia OZIAS SANTOS DA CONCEIÇÃO OLIVEIRA REDES DE COMUNICAÇÕES MÓVEIS 5G: Contextualização a partir de uma revisão da literatura ARARAQUARA- SP 2021 OZIAS SANTOS DA CONCEIÇÃO OLIVEIRA REDES DE COMUNICAÇÕES MÓVEIS 5G: Contextualização a partir de uma revisão de literatura Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Economia da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Economia. Linha de pesquisa: Economia da Tecnologia e da Inovação. Orientador: Prof. Dr. Enéas G. de Carvalho Coorientador: Prof. Dr. Rogério Gomes ARARAQUARA- SP 2021 O48r Oliveira, Ozias Santos da Conceição Redes de comunicações móveis 5g : contextualização a partir de uma revisão da literatura / Ozias Santos da Conceição Oliveira. -- Araraquara, 2021 127 p. : il., tabs. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Enéas de Carvalho Coorientadora: Rogério Gomes 1. Teoria evolucionária. 2. Indústria 4.0. 3. Tecnologia 5G. 4. Economia. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. OZIAS SANTOS DA CONCEIÇÃO OLIVEIRA REDES DE COMUNICAÇÕES MÓVEIS 5G: Contextualização a partir de uma revisão de literatura Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Economia da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Economia. Linha de pesquisa: Economia da Tecnologia e da Inovação. Orientador: Prof. Dr. Enéas G. de Carvalho Coorientador: Prof. Dr. Rogério Gomes Data da defesa: 21/10/2021. MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Enéas G. de Carvalho Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Departamento de Economia Membro Titular: Profª. Dra. Tatiana Massaroli de Melo Universidade Estadual Paulista (UM GESP) – Departamento de Economia Membro Titular: Prof. Dr. Marcelo Pinho Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS Agradeço a todas as pessoas que contribuíram para que eu conseguisse chegar até aqui, especialmente agradeço à minha mãe e à minha irmã que sempre torceram por mim e me forneceram todo apoio nesta curta, mas árdua jornada que foi o mestrado. Agradeço ao Núcleo de Apoio ao Estudante (NAE) da Unesp-Fclar que me concedeu um auxílio de permanência estudantil que foi fundamental para que eu pudesse prosseguir no curso durante os períodos iniciais nos quais eu não possuía nenhuma bolsa. Ao orientador, professor Enéas de Carvalho, pelo acompanhamento com crít icas e conselhos durante todas as etapas desta pesquisa e pela paciência e compreensão diante das dificuldades e desafios que eu enfrentei ao longo do desenvolvimento deste estudo. Ao coorientador, professor Rogério Gomes, pelos conselhos e sugestões de leitura que foram fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa. Agradeço aos colegas da Pós-graduação que me acompanharam e me ajudaram com conselhos ao longo dessa jornada, especialmente: Luana, Larissa, Tatiana, Janaína, Lucas. Agradeço a oportunidade que a Univesp me concedeu de atuar como facilitador no ensino à distância. Foi uma experiência enriquecedora e que eu vou levar comigo. Agradeço ao professor Dr. Marcelo Pinho e à professora Dra. Tatiana Massaroli pelas críticas e sugestões. E agradeço também aos comentários e sugestões do professor Dr. Sebastião Guedes no exame de qualificação. Aos professores e a coordenação do programa de Pós-graduação em Economia da Unesp. E a todos os funcionários e funcionárias da Unesp-Fclar que cuidam da universidade e proporcionam as condições para um ótimo ambiente de estudo. Sou muito grato a todos! “Na verdade, a economia capitalista não é e não pode ser estacionária. Nem está simplesmente se expandindo de maneira uniforme. Está incessantemente sendo revolucionada de dentro por novos empreendimentos, isto é, pela introdução de novos produtos ou novos métodos de produção ou novas oportunidades comerciais na estrutura industrial tal como existe a qualquer momento dado.” Joseph Schumpeter in Capitalismo, Socialismo e Democracia (1942,p.13). “O cérebro eletrônico faz tudo Quase tudo Quase tudo Mas ele é mudo O cérebro eletrônico comanda Manda e desmanda Ele é quem manda Mas ele não anda” Gilberto Gil, “Cérebro eletrônico”,1969. RESUMO O objetivo desta pesquisa é identificar e explicitar os possíveis vínculos entre a tecnologia 5G e a Indústria 4.0 com base na teoria evolucionária neo-schumpeteriana. A mudança econômica é um dos pilares da dinâmica da economia capitalista e no atual contexto a Indústria 4.0 se apresenta como a principal mudança tecnológica que atravessa a economia global e promete reconfigurar a esfera produtiva. Esta pesquisa adota a hipótese de que a tecnologia 5G é fundamental para o pleno desenvolvimento e a efetivação da Indústria 4.0. A metodologia desta pesquisa é realizada a partir de uma revisão da literatura sobre a tecnologia 5G e de uma contextualização da Indústria 4.0; uma vez que esta última é um novo paradigma tecnoprodutivo, composto por um conjunto de inovações tecnológicas ou tecnologias emergentes, que atuam conjuntamente e que estão transformando a esfera produtiva da economia global. Por sua vez, a tecnologia 5G promete fornecer a infraestrutura de conectividade necessária para o bom funcionamento e a plena efetivação do conceito de fábrica inteligente, que é, por seu turno, um dos pilares da Indústria 4.0. Palavras-chave: Tecnologia 5G, Teoria Evolucionária, Indústria 4.0. ABSTRACT The aim of this research is to identify and explain the possible links between 5G technology and Industry 4.0 based on neo-Schumpeterian evolutionary theory. Economic change is one of the pillars of the dynamics of the capitalist economy and, in the current context, Industry 4.0 is presented as the main technological change that crosses the global economy and promises to reconfigure the productive sphere. This research adopts the hypothesis that 5G technology is essential for the full development and realization of Industry 4.0. The methodology of this research is carried out from a literature review on 5G technology and a contextualization of Industry 4.0; since the latter is a new techno-productive paradigm, composed of a set of technological innovations or emerging technologies, which act together and are transforming the productive sphere of the global economy. In turn, 5G technology promises to provide the necessary connectivity infrastructure for the proper functioning and full realization of the smart factory concept, which is, in turn, one of the pillars of Industry 4.0. Keywords: 5G Technology, Evolutionary Theory, Industry 4.0. LISTA DE FIGURAS Figura 1- Pilares tecnológicos da Indústria 4.0..................................p.49 Figura 2 - Elementos formadores da Indústria 4.0.............................p.51 Figura 3- Esquema de IoT entre máquinas....................................... p.54 Figura 4- Internet de serviços........................................................... p.55 Figura 5- Exemplo de um sistema de sensoriamento remoto de um veículo autônomo............................................................................................ p.60 Figura 6- Uso de Big data em companhias de grande porte............. p.61 Figura 7- Interseção das áreas na Biotecnologia.............................. p.63 Figura 8- Market Share global dos fornecedores de equipamentos de telecomunicações.................................................................................... p.77 Figura 9 -A evolução das tecnologias das comunicações móveis.... p.78 Figura 10- Comparação entre as tecnologias 1G,2G,3G e 4G.........p.82 Figura 11- Requisitos de capacidade da 5G comparados com a 4G.p.89 Figura 12– Capacidades centrais para diferentes cenários de aplicação da tecnologia 5G.......................................................................................................p.90 Figura 13- Casos de uso do 5G e IoT e setores de atividades socioeconômicas impactados..........................................................................................p.92 Figura 14 - O conceito de sistema 5G com os três serviços genéricos e os quatro habilitadores principais.......................................................................p.96 Figura 15 - Comunicação massiva do tipo máquina e os três tipos de acesso previstos............................................................................................. .p.98 Figura 16- Comunicação ultraconfiável do tipo máquina e suas aplicações para segurança e eficiência no trânsito e manufatura industrial..................................p.99 Figura 17- Principais países e regiões responsáveis pelas declarações de SEPs....................................................................................................p.107 Figura 18 – Contribuições técnicas para tecnologia 5G por empresa.p.108 Figura 19- Roteiro para 5G................................................................p.110 LISTA DE QUADROS Quadro 1- Princípios básicos da indústria 4.0...............................................p.46 Quadro 2 – Tendência tecnológicas emergentes ou Tecnologias essenciais da Indústria 4.0................................................................................................................... p.47 Quadro 3- Comparativo da IoT e M2M........................................................ p.62 Quadro 4 - Modelos de Política Industrial, segundo Unctad........................ p.69 Quadro 5- Requisitos IMT-Advanced para uma tecnologia de comunicação móvel ser considerada de quarta geração....................................................................... p.85 Quadro 6 – Requisitos estratégicos para tecnologia 5G................................p.87 Quadro 7 – Melhorias da tecnologia 5G em relação ao 4G..........................p.88 Quadro 8- Liderança da Plenária do 3GPP para os próximos dois anos......p.112 LISTA DE TABELAS Tabela 1- os requisitos do LTE/SAE a partir do release 8 do 3GPP.....................p.84 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS 0G: Zero Generation 1G: First Generation 2,5G: Second and a Half Generation 2G: Second Generation 3G: Third Generation 3,9G: 3,9 Generation 3GPP: 3rd Generation Partnership Project 4G: Fourth Generation 5G: Fifth Generation GSM: Global System for Mobile Communications IP: Internet Protocol IMT-2020: International Mobile Telecommunications 2020 IoT: Internet of Things IoS: Internet of Services ITU: International Telecommunication Union ITU-R: International Telecommunication Union - Radiocommunication Sector LTE/SAE: Long Term Evolution / System Architecture Evolution LTE: Long Term Evolution M2M: Machine to Machine OCDE: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico UNCTAD: United Nations Conference on Trade and Development Sumário INTRODUÇÃO ............................................................................................... 13 CAP.1 – Elementos para uma abordagem evolucionária ........................................ 17 1.1– Abordagem evolucionária neo-schumpeteriana........................................... 17 1.2- Concorrência Schumpeteriana ...................................................................... 20 1.3 -Noções sobre o conceito de empresa.............................................................. 24 1.4- Mudança Tecnológica como processo evolucionário .................................... 30 1.5- General Purpose Technologies ...................................................................... 35 CAP.2 – Indústria 4.0 e políticas industriais para sua efetivação ........................... 37 2.1- Origens e impactos da Indústria 4.0 ............................................................. 38 2.2 - O conceito de Indústria 4.0........................................................................... 44 2.3 - Políticas industriais diante do novo paradigma tecnoprodutivo ................. 63 2.4 - Estratégias nacionais para indústria 4.0 ...................................................... 70 2.4.1 Estratégia da Alemanha para Indústria 4.0.................................................. 71 2.4.2 Estratégia da China para Indústria 4.0 ........................................................ 71 2.4.3 Estratégia dos EUA para Indústria 4.0 ........................................................ 72 CAP.3 - DESENVOLVIMENTOS DA TECNOLOGIA 5G ................................... 74 3.1 Evolução das tecnologias de comunicações móveis ........................................ 77 3.1.1 Especificações e requisitos das redes 4G .................................................... 82 3.2- A quinta geração de redes de comunicações móveis (5G) ............................ 84 3.2.1 - Casos de usos da tecnologia 5G ............................................................... 90 3.2.2 - Conceito de sistema 5G ........................................................................... 94 3.2.3-Impactos econômicos potenciais da tecnologia 5G ..................................... 98 3.3 Padronização e a corrida pelas patentes ...................................................... 101 3.4 - Iniciativas globais e estratégias para o desenvolvimento da tecnologia 5G ......................................................................................................................................... 112 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 116 REFERÊNCIAS: .................................................................................................... 121 13 INTRODUÇÃO A mudança tecnológica em curso na indústria de comunicações móveis tem gerado grandes expectativas e mobilizado não apenas empresas do setor, mas também diversos países ao redor do globo. O acirramento da concorrência neste setor pode ser percebido pela atuação ofensiva do governo americano na disputa pelos desenvolvimentos da internet 5G. Isto ocorre devido à importância da internet 5G no atual contexto da economia global. Como aponta o World Economic Forum (2020, p.4), as principais tecnologias1 emergentes associadas à chamada ‘Quarta Revolução Industrial’ dependem da conectividade para se concretizarem e terem um desempenho satisfatório. Esta revolução tecnológica trará consigo, muito provavelmente, novos determinantes para competitividade e produtividade dos mais variados setores industriais e proporcionará significativas implicações para o desenvolvimento socioeconômico das nações. O setor de internet foi fundamental para a ‘Terceira Revolução Industrial’, pois gerou impactos consideráveis no desenvolvimento dos países, uma vez que a ampla difusão dos subprodutos da internet pela economia se configurou como relevante vetor de crescimento econômico (PEREIRA,2014, p.29). Agora, com a ‘Quarta Revolução Industrial’, a Internet também desempenhará um papel relevante e as redes de comunicações móveis 5G, em especial, prometem assegurar e impulsionar todo o potencial desta ‘Revolução Tecnológica’. Segundo o World Economic Forum (2020, p.4), as redes 5G serão um fator crítico para o sucesso da iminente ‘Revolução Tecnológica’, pois permitirá níveis de conectividade sem precedentes que transformarão muitos setores. Estes níveis de conectividade serão promovidos principalmente por cinco elementos: banda larga super-rápida, comunicação de baixa latência ultra confiável, comunicações massivas do tipo-máquina, alta confiabilidade e (ou) disponibilidade e uso eficiente de energia (ibid., p.4). Adiciona-se a isto, o fato de que “o número crescente de dispositivos conectados impõe outro desafio à futura rede móvel”, pois no contexto atual de uma sociedade super 1Tecnologias como: internet das coisas, inteligência artificial, processos de automação, computação em nuvem, realidade virtual etc.(World economic Forum,2020,p.4) 14 conectada, outra tendência marcante propagada pela internet das coisas é que “todos e tudo estarão interconectados”, ou seja, uma grande quantidade de dispositivos estará interconectada e à disposição das pessoas (Saghezchi et al., 2015.p.2). Como apontam Saghezchi et al. (2015, p.2), a infraestrutura requerida para as redes móveis 5G, ao ser compatibilizada com o Big Data, possibilitará a construção de cidades inteligentes, pois os dados serão gerados em todo e qualquer lugar “tanto por pessoas como por máquinas”. A promessa é que a análise e uso destes dados gerados, ao filtrar informações sobre “hábitos e preferências das pessoas”, conduziria a melhorias no trânsito de veículos nas cidades e também contribuiria para o “monitoramento de saúde” de pacientes e o acompanhamento de idosos (ibid.p.2). As redes de comunicações móveis serão fundamentais para o sucesso das comunicações entre máquinas e, segundo os autores mencionados (ibid., p.2), as redes 5G poderão contribuir para que “veículos comuniquem-se entre si ou com uma infraestrutura na estrada para avisar ou até ajudar os motoristas em caso de riscos invisíveis, abrindo caminho para carros autônomos”. Saghezchi et al. (2015, p.2) destacam que as redes 5G poderão efetivar algo que antes era apenas visto como uma possibilidade, isto é, a convergência entre redes com e sem fio (wireless). Isto significa que a infraestrutura das redes 5G, principalmente devido à baixa latência da infraestrutura de wireless, “conectará a sociedade e impulsionará a economia do futuro” (idem.p.2). O principal objetivo desta pesquisa é mostrar como os desenvolvimentos da tecnologia 5G se conectam com o atual contexto de revolução tecnológica, especificamente com a consolidação da indústria 4.0. Parte-se da hipótese de que a tecnologia 5G é fundamental para a viabilização da indústria 4.0. Sendo assim, os países que se destacarem no fornecimento da infraestrutura da tecnologia 5G tenderão a ocupar posições de destaque na divisão internacional do trabalho. A relevância desta pesquisa está no fato de que a economia global está atravessando um momento de significativas mudanças na esfera produtiva. A emergência da assim chamada ‘Quarta Revolução Industrial’ (Schwab,2017) pode ressignificar o que se chama de indústria e pode estar por trás de uma nova reconfiguração da divisão internacional do trabalho. A internet desempenhou um papel importante na ‘Terceira Revolução Industrial’ e, agora, na ‘Quarta Revolução Industrial’, ela, muito provavelmente, desempenhará também um papel central. 15 Por isto, a tecnologia 5G tem despertado o interesse de diversos agentes econômicos pelo mundo e pode ser um elemento crítico para o futuro da economia global. Logo, não surpreende, a acirrada disputa entre as duas maiores potências econômicas da atualidade, EUA e China, pelo fornecimento da infraestrutura 5G. Como apontou a OCDE (2019), esta infraestrutura poderá impactar amplamente muitas indústrias verticalmente integradas, assim como terá implicações para o transporte, o setor da saúde, a agricultura, a segurança pública, o meio ambiente e o turismo. Para atingir os objetivos desta pesquisa, a metodologia utilizada terá como base uma revisão da literatura sobre 5G e uma necessária contextualização da indústria 4.0. É importante ressaltar que o tema analisado nesta pesquisa ainda é muito recente e que o acesso aos dados sobre os desenvolvimentos da tecnologia 5G também é muito restrito – uma vez que esta tecnologia é vista como estratégica para muitos países e empresas. Outro ponto observado na revisão de literatura é o caráter especulativo em torno tanto do 5G quanto da Indústria 4.0. Além desta introdução, esta dissertação é composta de três capítulos mais as considerações finais. O primeiro capítulo faz uma breve apresentação de alguns dos principais conceitos da corrente de pensamento evolucionária neo-schumpeteriana. Neste esforço, busca-se demonstrar porque a concorrência através das inovações é o pressuposto básico para as mudanças tecnológicas na economia capitalista. No segundo capítulo é feita uma breve revisão da literatura sobre a Indústria 4.0. Inicialmente apresentam-se as origens da Indústria 4.0 e alguns dos seus possíveis impactos econômicos. Apresentam-se também algumas visões sobre o conceito de Indústria 4.0, ressaltando as tecnologias essenciais que compõem tal Indústria. Como esse conceito envolve muitas expectativas de diversos agentes econômicos, é apresentada também uma crítica ao excesso de expectativas em torno da Indústria 4.0 - mostrando que não é muito adequado encará-la como uma nova revolução industrial -, pois a Indústria 4.0 é fruto de prolongados desenvolvimentos incrementais que se estenderam ao longo das últimas décadas. Por fim, apresentam-se algumas visões sobre a retomada da política industrial por diversos países interessados em construírem as bases para indústria 4.0 ou Manufatura Avançada em seus territórios. 16 No terceiro capítulo é realizada uma revisão da literatura sobre as redes de comunicações móveis 5G. Inicialmente mostra-se a evolução das tecnologias de comunicações móveis e seus referidos padrões técnicos. Em seguida é feita uma caracterização da tecnologia 5G, apresentado seus objetivos e requisitos principais. Também são apresentados os principais cenários de uso e casos de uso para tecnologia 5G. Apresenta-se, ainda, o conceito de sistema 5G, que é composto por três serviços base e quatro capacitadores. Por outro lado, é feita, também, uma caracterização do processo de padronização da tecnologia 5G, destacando o papel que as patentes e as contribuições técnicas desenvolvidas pelas empresas desempenham em tal processo. Por fim, apresentam-se algumas estratégias nacionais e regionais para os desenvolvimentos da tecnologia 5G. 17 CAP.1 – Elementos para uma abordagem evolucionária Este capítulo busca apresentar alguns dos elementos ou ingredientes para uma abordagem evolucionária do sistema econômico capitalista e está dividido em cinco seções. Na primeira seção é feita uma caracterização da abordagem evolucionária neo- schumpeteriana, contrapondo este enfoque à abordagem da ortodoxia neoclássica. Na segunda seção apresenta-se o conceito de concorrência schumpetariana, destacando a importância de uma visão ativa do processo de concorrência e também o papel central das inovações em tal processo. A terceira seção apresenta algumas noções sobre o conceito de empresa, destacando a importância das empresas no processo de valorização do capital, bem como visões que analisam a empresa enquanto um agente ativo no processo de concorrência. A quarta seção apresenta alguns aspectos da abordagem evolucionária neo-schumpeteriana sobre a mudança tecnológica, na qual esta é vista como um processo evolucionário e com múltiplas dimensões. A última seção apresenta algumas noções sobre o conceito de General Purpose Technologies. 1.1– Abordagem evolucionária neo-schumpeteriana O objeto de estudo da ciência econômica está sujeito a sofrer mudanças e transformações ao longo do tempo. Os elementos mais básicos que compõem e configuram a economia lhe conferem um caráter dinâmico inextrincável – tornando a analogia com um organismo vivo, desde que mantida dentro de certos limites, bastante plausível e útil. Por isto, a ciência econômica necessita de uma abordagem capaz de explicar as mudanças e as transformações (as ‘mutações’) que ocorrem no sistema econômico. A abordagem evolucionária neo-schumpeteriana surgiu com o intuito de superar as deficiências da ortodoxia neoclássica, no que tange às explicações e à importância da mudança econômica para dinâmica do sistema capitalista. Antes de prosseguir, é importante salientar que a abordagem da ortodoxia neoclássica se desenvolveu bastante ao longo dos últimos anos e tem lançado esforços para incorporar elementos metodológicos capazes de proporcionar análises econômicas que capturem mais nuances da dinâmica da economia capitalista. Diante disto, as críticas que serão feitas a abordagem da ortodoxia neoclássica se referem aos manuais introdutórios e aos 18 estudos de nível intermediário que não abandonam nem relaxam nenhuma das premissas tradicionais. De fato, os estudos mais avançados e contemporâneos da abordagem da ortodoxia neoclássica tentam relaxar pelo menos algumas das premissas tradicionais, mas, ao não abandonarem a maior parte das mesmas, acabam limitando as possibilidades de análises do papel que as mudanças econômicas e tecnológicas exercem no dinamismo e na evolução do sistema capitalista. As premissas básicas da abordagem tradicional da ortodoxia neoclássica são: (a) o método de inferência dedutivista, baseado em uma perspectiva de individualismo metodológico; (b) algum axioma de racionalidade, predominantemente de racionalidade substantiva maximizadora de preferências; e (c) alguma concepção de equilíbrio. Ao procurar caracterizar a abordagem evolucionaria neo-schumpeteriana, Possas (2008, p.281) destaca que não é novidade o fato de que alguns pensadores da ciência econômica foram influenciados pelas ideias formuladas por Darwin e tentaram aperfeiçoar a teoria e as análises econômicas com base em algumas das suas concepções. Todavia, foi apenas com o trabalho seminal de Richard Nelson e Sidney Winter, publicado em 1982, que ocorreu uma sistematização e a incorporação efetiva de certas ideias e argumentos da biologia evolucionária no interior da teoria econômica (idem., p.281). As contribuições destes autores foram fundamentais para a construção da chamada economia evolucionária neo-schumpeteriana, que – ao adotar uma abordagem teórica que articula alguns princípios da biologia evolucionária com um enfoque heterodoxo da teoria econômica - abandona os tradicionais princípios de racionalidade substantiva maximizadora e de equilíbrio postulados pelo enfoque neoclássico típico. Esta vertente evolucionária é, por sua vez, fortemente influenciada pelas contribuições do economista Joseph Schumpeter, especialmente pela forma com que este autor aborda o papel que as inovações assumem na dinâmica da economia capitalista. Nelson e Winter construíram uma nova base teórica para investigação no campo da economia, a partir de analogias com alguns elementos básicos da biologia evolucionária, como, por exemplo, as noções/conceitos de fenótipos, de populações, de genes, de mutação e de aptidão. Segundo Possas (2008, p.287-288), as mutações correspondem ao processo de inovação feito pelas firmas que, por sua vez, possuem 19 rotinas específicas que direcionam o processo de busca por inovações. Estas firmas correspondem aos fenótipos e as rotinas correspondem aos genes. A seleção dessas rotinas e, consequentemente, das inovações é feita pelo mercado e a lucratividade das firmas resulta da aptidão das mesmas (idem., p.288). É a partir destas analogias com a biologia que os autores evolucionários descrevem o funcionamento do sistema econômico, enfatizando que as firmas dependem de suas capacidades e rotinas para alcançarem maiores níveis de lucros, e que a inovação é resultado do processo de busca realizado pelas firmas (Marsilli,2001, p.71). De acordo com a abordagem evolucionária, é a interação entre o processo de busca realizado pelas firmas e o processo de seleção realizado pelo mercado que determina, em boa medida, a dinâmica industrial. E é este processo de seleção que contribui para as mudanças significativas na estrutura das indústrias, visto que, após realizada a seleção, as firmas mais antigas que conseguirem sobreviver a tal processo tendem a construir novas capacidades e novas rotinas para enfrentar as firmas recém entrantes na disputa pelo mesmo mercado (Idem., p.71) A principal diferença entre a abordagem evolucionária e a abordagem da ortodoxia neoclássica padrão consiste nos pressupostos considerados por esta última abordagem para descrever o funcionamento do mercado. A ortodoxia neoclássica parte do pressuposto de que os agentes econômicos são perfeitamente racionais e que, consequentemente, conseguem, sempre, realizar escolhas ótimas. Esta noção de racionalidade substantiva é o que sustenta os modelos de equilíbrio desenvolvidos pela ortodoxia e que sintetizam a maneira pela qual este enfoque interpreta o funcionamento do mercado (Marsilli,2001, p.72). Já a abordagem evolucionária utiliza as contribuições de Herbert Simon sobre racionalidade limitada para se contrapor à noção de racionalidade substantiva, pois, para os evolucionários o sistema capitalista é um sistema evolutivo complexo e, por isto, os agentes econômicos não têm condições de acessar todas as informações necessárias para realizar uma escolha ótima. Como foi mencionado anteriormente, o processo de seleção do mercado é crucial para os modelos evolucionários, que mostram a maneira diferenciada e original com que o enfoque evolucionário interpreta o funcionamento do 20 mercado - sem recorrer às noções de equilíbrio -, visto que essa abordagem enfatiza o caráter mutável e dinâmico do sistema capitalista (Marsilli,2001, p.72). Outra diferença importante entre os enfoques mencionados é a maneira pela qual eles tentam representar os principais agentes econômicos. Segundo Marsilli (2001, p.70), a ortodoxia neoclássica standard trata a tecnologia como uma função de produção que abrange todos os métodos possíveis para uma firma e que condiciona o nível de conhecimento tecnológico desta. Enquanto a abordagem evolucionária, por sua vez, trata a tecnologia como uma fonte de conhecimento, incluindo atributos e características que não são consideradas pela abordagem padrão - como, por exemplo, o conhecimento tácito e as capacidades e as habilidades desenvolvidas através do aprendizado (Marsilli,2001, p.70). Como mencionado anteriormente, neste último enfoque, o conceito de rotinas cumpre um papel fundamental, uma vez que é através dele que uma firma incorpora e armazena os conhecimentos necessários para o processo produtivo. Apesar das consideráveis contribuições fornecidas pela abordagem evolucionária, Possas (2008, p.288) chama a atenção para o fato de que ainda existem algumas limitações no que diz respeito às analogias elaboradas pelos autores evolucionários. Dentre estas limitações, o autor destaca que a correspondência entre genes e rotinas não é muito precisa, levando por isto os autores a conceituarem as rotinas de uma maneira bem ampla e a enfatizarem a necessidade de sua persistência ao longo do tempo. Além disto, segundo este mesmo autor, o modo como os evolucionários tratam a questão da replicação dos genes, isto é, das rotinas, é baseado em uma analogia fraca. Possas (2008, p. 289) também aponta que o fato das mutações, isto é, as inovações serem geradas pelas próprias firmas cria uma certa dificuldade para a analogia proposta pelos autores evolucionários, visto que não existe uma equivalência adequada entre a evolução econômica e a transmissão genética. 1.2- Concorrência Schumpeteriana O conceito de concorrência perfeita desenvolvido pelos teóricos da ortodoxia neoclássica nunca foi capaz de refletir plenamente a realidade da concorrência 21 capitalista. Esses teóricos, ancorados nas contribuições de Marshall, analisam o processo de concorrência a partir da noção de concorrência perfeita, que defende que os agentes econômicos, empresas e consumidores, são demasiadamente pequenos para interferir no preço de mercado, sendo este determinado pelo equilíbrio entre oferta e demanda (POSSAS,2012). Nesta perspectiva teórica, as empresas têm um comportamento passivo diante do mercado, atuando apenas como tomadoras de preço, o que sustenta a visão estática adotada por tal perspectiva para o processo de concorrência. A partir do final do século XIX, com o surgimento e a consolidação das grandes empresas, ganhou ênfase o desenvolvimento do conceito de concorrência monopolística. Assim, Schumpeter (2017) enfatizou que o capitalismo deve ser entendido como um processo evolutivo, um sistema atravessado por mudanças econômicas geradas por fatores endógenos e exógenos. Segundo o autor, é a constante busca pelo novo que constitui o principal impulso para as mudanças no sistema econômico, isto é, a criação pelas empresas capitalistas de “novos bens de consumo, [d]os novos métodos de produção e transporte, [d]os novos mercados e [d]as novas formas de organização industrial” (SCHUMPETER,2017,p.119). Por esta razão, as empresas são os principais elementos que endogenamente impactam o funcionamento do sistema e o transforma. A noção de concorrência desenvolvida por Schumpeter é, atualmente, intitulada concorrência schumpeteriana. Como dito anteriormente, ela enfatiza uma visão “dinâmica e evolucionária do funcionamento da economia capitalista” (POSSAS, 2012, p.246). Isto implica em um entendimento de que a economia evolui e se transforma com o passar do tempo, devido à incessante introdução e difusão de inovações no seio do sistema econômico e do ambiente de atuação das empresas (Idem., p. 246). Estas inovações são fruto da permanente busca das empresas por lucros extraordinários e são capazes de proporcionar a elas vantagens competitivas, além de diferenciá-las nas disputas que se desdobram no mercado. Estas são, pois, algumas das características fundamentais da concorrência schumpeteriana e é através delas que os monopólios temporários podem ser gerados e mantidos por um determinado período de tempo, até que sejam destruídos por outras inovações (Ibidem., p.247). 22 Por isto, diferentemente da perspectiva neoclássica, os schumpeterianos definem a concorrência como um processo ativo - em que as empresas criam novos espaços de atuação e no qual não há nenhum nível de equilíbrio preestabelecido capaz de assegurar qual será o desfecho de tal processo -, posto que as forças que interagem no mercado são complexas e passíveis de alterações ao longo do tempo (POSSAS, 2012, p.247). Como a criação de diversidade é entendida como recorrente dentro do capitalismo, o processo de geração de diferenças entre as empresas se torna mais relevante do que a eliminação das mesmas (POSSAS, 2012, p.247). Analogamente, a concorrência em preços - que tem posição central na abordagem neoclássica – é deslocada na concorrência schumpeteriana para uma posição secundária, uma vez que nesta última atribui-se papel ainda mais relevante às inovações e à diferenciação de produtos (Idem.p.247). Sendo assim, os preços não são a única e nem a principal arma utilizada pelas empresas nas disputas pelo mercado. Existem outras armas que são, até, mais eficazes. A empresa é o principal agente analisado pela abordagem da concorrência schumpeteriana e o mercado é entendido como o principal ambiente no qual as empresas interagem e implementam as suas estratégias competitivas. Como aponta Possas (2012, p.247), é a interação entre as estratégias competitivas das empresas e os fatores ambientais, isto é, as estruturas de mercado já consolidadas, que molda a dinâmica industrial que vai se transformando com o passar do tempo. As próprias estruturas de mercado estão sujeitas a sofrerem alterações, visto que elas podem influenciar e condicionar a atuação dos agentes econômicos, mas também podem ser modificadas pelas estratégias implementadas por estes agentes. As estruturas de mercado são, portanto, parcialmente endógenas ao processo de concorrência e resultam da referida interação dinâmica. A concorrência, por sua vez, deve ser vista, principalmente, como “um processo de interação entre empresas voltadas à apropriação de lucros” (idem., p.248). Na maioria das vezes, estas interações provocam desequilíbrios e não se adequam ao pressuposto de equilíbrio suposto pelos neoclássicos, pois as empresas lutam para obter e manter vantagens competitivas e se diferenciarem entre si (ibidem., p.248). 23 Foi a partir da noção de que a incessante busca pelo novo, por parte das empresas, está vinculada a não existência de um equilíbrio competitivo que Schumpeter desenvolveu o conceito de destruição criadora - que ressalta que as antigas estruturas são transformadas pelas ações dos agentes econômicos, especialmente das empresas, e substituídas por novas estruturas, num processo interminável que dinamiza e renova continuamente o sistema capitalista. Por isto, Schumpeter defende que a noção de concorrência deve ser ampliada para além da suposta centralidade dos preços, devendo incorporar também outras dimensões mais importantes como as inovações e a diferenciação de produtos. Isto porque o que está por trás das mudanças econômicas são formas de concorrência que transcendem a simples utilização dos preços como arma nas disputas que se realizam nos mercados através da introdução de “nova[s] mercadoria[s], nova[s] tecnologia[s], nova[s] fonte[s] de abastecimento” (SCHUMPETER, 2017, p.122). Estas outras formas de concorrência prevalecem, segundo Schumpeter, pois elas são mais eficazes do que a concorrência em preços. Para Schumpeter (2017, p.133), a estratégia de concorrência almeja evitar flutuações sazonais, fortuitas ou cíclicas dos preços e que estes variem apenas como reação às mudanças nas condições dos custos que servem de base a estas oscilações. Assim, tal estratégia procura se mover ao longo de uma linha funcional que aproxima as tendências a longo prazo (Idem, p.134). Portanto, a definição e a implementação de uma determinada estratégia de concorrência pelas empresas, em uma estrutura de mercado oligopolista, leva em consideração, dentre outros fatores, a evolução desta estrutura, a presença de vantagens competitivas significativas por parte destas empresas e a observação atenta do comportamento dos concorrentes estabelecidos e potenciais (POSSAS,1999). Em suma, como aponta S. Possas (1999), o processo de concorrência é incessante e inesgotável, e seu possível fim pressupõe o fim do próprio sistema capitalista. Sempre existe a possibilidade de surgir um novo concorrente e os que são vitoriosos hoje podem deixar de ser amanhã (idem.). Por isto, o entendimento da concorrência como um processo evolutivo implica que a abordagem econômica deve levar em consideração o caráter dinâmico do sistema econômico - em especial, o papel que as inovações 24 desempenham ao gerar endogenamente mudanças neste sistema (POSSAS, 2012). Esta tarefa não pode ser levada a bom termo pela abordagem neoclássica convencional, uma vez que esta, em razão das limitações dos seus principais pressupostos, não escapa às restrições da estática comparativa, enquanto a realidade do mundo capitalista é predominantemente dinâmica. 1.3 -Noções sobre o conceito de empresa Neste momento é válido destacar algumas noções elementares sobre o conceito de empresa, enquanto empreendimento2, ou seja, enquanto um projeto e/ou uma ação conjunta dos membros de uma “organização formada para explorar um negócio” ou nicho(s) de mercado(s). Em essência, o agir cotidiano da empresa visa, primordialmente, a auto-expansão (o próprio crescimento enquanto organismo social e/ou entidade administrativa), pois a empresa é “uma unidade de acumulação de capital” (POSSAS,1995). Desta forma, a empresa possui uma série de objetivos para os quais são requeridos inúmeros processos e atividades que visam conquistar vantagens competitivas e, com elas manter e/ou ampliar o market share (fatias de mercado) e as margens de lucro. Sendo estes dois últimos objetivos intimamente conectados e, muitas vezes, até confundidos por alguns estudiosos das empresas preocupados em hierarquizar os objetivos das firmas (POSSAS,1995). Na verdade, o principal objetivo da firma é conquistar, gradativamente, mais poder econômico e com isso ampliar seu capital (POSSAS,1995). Para tanto, manter e buscar incessantemente mais e mais vantagens competitivas nas intermináveis rodadas dos processos de concorrência é crucial (POSSAS,1999). Nelson e Winter (2005, p.45), como mencionado anteriormente, destacam que a principal deficiência da teoria neoclássica padrão reside nas dificuldades enfrentadas por esta corrente ao analisar as várias nuances da mudança econômica. Segundo Dantas et al. (2012, p.20), essa tradicional corrente econômica trata o mercado como um espaço abstrato de encontro entre oferta e demanda, sob a dicotomia concorrência perfeita 2HOUAISS (2009): “1.ato de quem assume tarefa ou responsabilidade; 2.essa tarefa ou responsabilidade; projeto, realização; 3.organização montada para explorar um negócio. ” 25 versus monopólio. Além disto, a tradição neoclássica postula que a maior preocupação dos economistas deve ser com a resolução do problema da “alocação de recursos escassos e necessidades ilimitadas” (DANTAS et al,2012, p. 20). A empresa, nesta perspectiva, é como uma caixa-preta, pois o mais importante não é saber o que acontece dentro desta unidade de produção, mas sim saber que - ao perseguir o seu objetivo principal que é a maximização de lucros - a empresa combina insumos (input, fatores de produção) e gera produtos (output), sendo este processo produtivo capaz de atingir uma alocação ótima dos recursos da empresa, inclusive, por esta estar sujeita às leis dos rendimentos decrescentes (DANTAS et al,2012.p.17). Ronald Coase identificou, além da alocação de recursos através do mercado, uma outra forma de alocação condicionada pela hierarquia interna da empresa (DANTAS et al,2012. p.17). Porém, este autor perpetua o lugar central ocupado pelo “problema alocativo” dentro da teoria econômica, inclusive, utilizando “o cálculo racional e a análise marginal na formulação do tamanho ótimo da empresa que maximiza lucros”, que são ferramentas de análise comuns a abordagem da ortodoxia neoclássica (idem, p.17). Foi só com Chandler e Penrose que os problemas alocativos começaram a perder relevância no campo da Economia Industrial. Para estes últimos autores, a empresa, enquanto objeto de análise, é multidimensional. Isso significa que diferentes abordagens podem enfatizar diferentes aspectos desse objeto de investigação científica (DANTAS et al.,2012, p.15-16). Chandler afirma que a empresa é antes de qualquer coisa uma “entidade legal” e, portanto, firma contratos para atingir seus objetivos (idem, p.15-16). Ainda segundo este autor, a empresa é também uma entidade administrativa, pois existe uma divisão de tarefas e uma organização hierárquica de grupos de pessoas que buscam alcançar os objetivos (e estratégias) previamente formulados pelas pessoas que estão no topo da hierarquia organizacional (idem, 16). Depois de firmados tais objetivos “a empresa se torna um conjunto articulado de qualificações, instalações e capital líquido” (ibidem, p.16). Desta forma, na busca por lucros, “as empresas têm sido e são instrumentos de economias capitalistas para produção de bens e serviços e para o planejamento e a alocação para produção e a distribuição futuras” (CHANDLER,1992, p.483 apud DANTAS et al,2013, p.16). 26 Assim, como destacam Nelson e Winter (2005, p.64), Chandler, em sua análise histórica, discutiu a articulação entre o conceito de estratégia empresarial e a análise da organização da firma. Este autor aceitou, ainda que implicitamente, a tese de H. Simon de que é impossível maximizar os lucros, pois a realidade econômica é complexa demais para ser plenamente compreendida pelos agentes envolvidos nas transações e decisões de cunho econômico (NELSON e WINTER,2005, p.64). Na verdade, as ações das firmas são guiadas por regras de decisão e procedimentos que não podem ser caracterizados como ótimos (idem. p.64). Esta é a síntese do conceito de Racionalidade Limitada de H. Simon e, que serviu de base para Chandler elaborar o seu conceito de estratégia. Este último sugere que a conduta da empresa é moldada pelas “interpretações subjetivas” que esta faz da realidade econômica. Essas interpretações tendem a se conectar com as estratégias adotadas pelas firmas que orientam suas ações. Por sua vez, as estratégias “diferem de uma firma para outra” e são delimitadas pela estrutura organizacional” (ibidem.,p.64). Já Penrose se enquadra no grupo de economistas que Nelson e Winter (2005, p.64) classificam como aqueles que fazem análises da organização buscando investigar as relações “que unem o crescimento e a lucratividade de uma firma à sua estrutura organizacional, às suas capacidades e ao seu comportamento”. Penrose, assim como os gerencialistas, percebe que as empresas buscam outros objetivos além dos lucros, já que leva em consideração o fato de que a “motivação gerencial” também influencia os rumos e o comportamento da empresa. Isto é, existe uma relação entre crescimento da empresa, a sua estrutura e a respectiva motivação gerencial (idem.,p.64). Ainda segundo Penrose, o modo mais adequado para definir o que é uma empresa é aquele que privilegia a explicação das atividades exercidas internamente no cotidiano desta entidade (PENRONSE,1959, p.10, apud DANTAS et al. p.16). Assim, o conceito de empresa3 é indissociável da perspectiva teórica adotada pelo pesquisador, isto é, diferentes abordagens do conceito de empresa equivalem a diferentes visões da origem e do funcionamento da economia capitalista. Como sugerem Dantas et al. (2012, p.16), um aspecto que pode contribuir para o entendimento do que é empresa é a perspectiva 3Assim como outros conceitos como tecnologia. 27 da “evolução histórica das unidades que organizam a produção”, o que seria uma junção das contribuições da Penrose e do Chandler. Ao considerar a “separação entre propriedade e controle”, os gerencialistas estão assumindo que os executivos possuem objetivos que podem destoar dos propósitos e interesses dos acionistas e investidores que privilegiam o máximo de lucratividade (DANTAS et al,2012, p.18). O corpo executivo (ou gerentes profissionais) consideraria, além das margens de lucros, elementos como: “parcelas de mercado das empresas, grau de risco, crescimento das vendas” (idem, p18). Ou seja, elementos que podem impactar a progressão da carreira do corpo executivo, como, por exemplo, remunerações mais elevadas. Por isto, os executivos poderiam abrir mão de um pouco de lucro para obter um volume maior de vendas. Diante deste quadro, nota-se que “variáveis associadas ao crescimento da empresa ocupam papel preponderante na abordagem dos gerencialistas” (ibidem, p.18). A principal contribuição de Penrose é exatamente relacionada à teoria da empresa, segundo a qual as empresas crescem “acumulando capacidades e recursos”, uma vez que elas recolhem e absorvem “experiências e conhecimentos acumulados ao longo de sua existência” (DANTAS et al.2012, p.18). Isto é o que torna cada empresa única, pois é resultado de uma trajetória particular que contém os problemas que ela enfrentou, as estratégias bem-sucedidas ou fracassadas que permitiram gerar e acumular conhecimentos, que podem ser reaproveitados futuramente (idem., p.18-19). Assim, para Peronse, os vários objetivos dos gerentes podem ser sintetizados na busca pelo crescimento da empresa e os outros possíveis objetivos são tratados como “resultado e fator de crescimento, em uma visão dinâmica da empresa que se transforma e cresce” (ibidem.,p.18-19). Para entender essa lógica de expansão das empresas é interessante seguir as interpretações propostas por S. Possas (1995,p.1). Esta autora trata a empresa como uma “unidade de valorização do capital”, cujo processo produtivo está condicionado ao movimento da valorização. Segundo a autora: “...numa economia capitalista toda lógica de decisão e ação econômicas deve ser apreendida a partir da predominância da busca de valorização. A firma industrial produz, ‘é a unidade 28 básica para a organização da produção’, e há uma lógica básica nos processos produtivos que realiza” (Possas, 1995, p.1) Nesta perspectiva, as empresas são os principais agentes do processo de concorrência que se desdobra no palco do mercado mundial. Empresas são como organismos que, dentre outras coisas, são capazes de mudar a si mesmos visando aperfeiçoar capacidades para as próximas batalhas competitivas; e elas fazem isso através das inovações. Estas últimas modificam “o poder relativo dos diversos participantes do mercado, alterando seu próprio ambiente de seleção” (Possas,2006, p.32). Ao interpretar as contribuições de Steindll, S.Possas (2006,p.32) destaca que “o papel das economias de escala e dos diferenciais de margens de lucro gerados por inovações” atua “na criação de assimetrias nos mercados”. Isto significa que, com economias de escala, as firmas mais progressistas – em geral as maiores - têm margens de lucro (diferenciais de custo e de lucro) “que lhes permitem acumular capital mais rapidamente” (idem., p.32). Existe, portanto, entre as firmas maiores e menores “uma assimetria de poder e de margens de lucro” (ibidem,p.32) Ainda seguindo os argumentos da autora (Possas,1995, p.2), pode-se perceber que a principal característica da empresa é a sua “estrutura de poder de compra, a partir da utilização de seus recursos também pensados enquanto valores”, cuja alocação é determinada por decisão de cunho administrativo (como definido por Penrose). Como aponta S. Possas (1995,p.2), a empresa “dispõe de recursos e precisa valorizá- los”. Tais recursos são físicos, humanos, financeiros e imateriais como, por exemplo, a experiência e as capacidades4(idem., p.2). O grau de flexibilidade desses recursos é variável, sendo os financeiros os mais flexíveis e os ativos intangíveis - como conhecimento tácito - os de menor flexibilidade, isto é, apresentam maior dificuldades para serem transformados em dinheiro (ibidem., p.2). As empresas, na busca por proteção frente às incertezas envolvidas em seus processos de tomada de decisão, levam em consideração “o diferente grau de flexibilidade dos seus recursos” e privilegiam a 4As firmas podem e devem ser representadas “pelas capacidades que possuem e sua competência em empregá-las e aumentá-las”. Teece,1992, p.101-2 apud Possas,1995, p.2. 29 experiência acumulada, ao longo do tempo, antes de definirem os objetivos e estratégias a serem perseguidos por certo período (ibidem., p.2). Uma vez que toda produção envolve algum tipo de ativo intangível e pouco flexível, este tipo de ativo está umbilicalmente conectado à natureza das vantagens competitivas que mais se destacam. Isto é, “que mais aumentam o grau de apropriabilidade das inovações”, e, portanto, possibilitam à empresa, a aquisição de um volume significativo de poder de compra por uma extensão temporal significativa para a organização empresarial (S. POSSAS,1995, p.2-3). Nas palavras da autora S. Possas (1995, p.3), estes ativos são “específicos e (ou) não transmissíveis. São (...) atributos que os tornam difíceis de se reproduzir e obter e, por isso, dão aos seus detentores um elevado grau de poder sobre o processo produtivo e, com ele, capacidade de apropriação de valor”. Como destaca S. Possas (1995, p.3), existe um consenso entre as diversas correntes de pensamento econômico sobre a relevância do “estabelecimento de uma taxa de salário básica para o trabalho desqualificado” e do estabelecimento de “uma remuneração básica para o capital”, uma vez que “abaixo desses níveis básicos, a produção não se efetua, devido à mobilidade de capital e trabalho”. Portanto, como afirma a autora (POSSAS,1995, p.3), “a concorrência é a luta pela apropriação de poder de compra, de preferência, acima desses níveis básicos”. S. Possas (1995, p.3) destaca também que o que importa é que, além de existirem particularidades nos processos explorados (desenvolvidos) pelas empresas, existem “trunfos” ligados a estas particularidades. Estas vantagens possibilitam que as empresas empreendam no contexto da dinâmica da concorrência capitalista contemporânea e /ou moderna. Isto é, os “trunfos” permitem que as empresas conquistem ganhos extraordinários, uma vez que os primeiros geralmente tomam “a forma de ativos especiais, não reprodutíveis com facilidade pelos concorrentes existentes e potenciais, portanto não encontráveis no mercado” (idem,1995, p.4). Os teóricos da abordagem evolucionária neo-schumpeteriana, como mencionado anteriormente, caracterizam a empresa a partir das suas capacidades e das competências específicas. E interpretam que estas últimas são influenciadas pelas rotinas organizacionais de cada empresa. As rotinas, por sua vez, são definidas como os 30 procedimentos adotados pelas empresas para atingir certos objetivos. Tais procedimentos são passíveis de aprendizado e compostos por atividades muito padronizadas e que requerem um certo nível de conhecimento tácito (KON,2017, p.127). Foi com base nas contribuições de Penrose e de Chandler, entre outros, que D. Teece e G. Pisano desenvolveram a abordagem teórica das assim chamadas “capacitações dinâmicas”, segundo a qual empresa é definida como “um repositório de ativos e capacitações voltados para valorização do seu capital, em especial por meio de processos inovativos” (GRASSI,2005, p.37). Nesta abordagem as rotinas das empresas cumprem o papel de acumular todo o conhecimento organizacional das mesmas e as fontes de lucratividade e crescimento das empresas são determinadas pelos recursos ou ativos que as empresas possuem e pelo conhecimento e capacitações adquiridas e acumuladas ao longo do tempo pelas mesmas (GRASSI,2005, p.38). Segundo esta perspectiva, o acúmulo de conhecimentos adquirido através de processos de aprendizado organizacional caminha conjuntamente com a obtenção de capacitações e de competências capazes de fornecer vantagens competitivas para as empresas nas intermináveis disputas que se efetuam no mercado (Idem, p.38). 1.4- Mudança Tecnológica como processo evolucionário Existe uma distinção importante entre os conceitos de invenção e inovação. Enquanto a primeira diz respeito à criação “de um processo, técnica ou produto inédito” sem necessariamente conquistar uma adequada aplicação comercial e econômica, a segunda consiste exatamente na adequada e bem-sucedida aplicação comercial e econômica de uma invenção, ou seja, a inovação pode ser entendida como uma invenção que gera impactos econômicos e se difunde pelo mercado e pela sociedade (TIGRE, 2014, p.74). A partir dessa distinção elementar é possível entender os desenvolvimentos das teorias sobre a mudança tecnológica Os primeiros modelos sobre a mudança tecnológica eram lineares, pois considerava-se que o processo de inovação seguia um caminho igualmente linear. Isto é, supunha-se 31 que a pesquisa fundamental originava a pesquisa aplicada que, por sua vez, viabilizava a produção de um protótipo que, uma vez aperfeiçoado e adaptado às condições de fabricação, dava origem, por fim, a um produto comercial acabado (REIS,2008, p.51). Com o avanço das pesquisas neste campo, alguns autores perceberam que os modelos lineares originais não eram os mais adequados e deveriam ser substituídos por modelos interativos de inovação, que abordam o processo de inovação como não sendo uniderecional e conta, em geral, com a participação de diversos atores (REIS,2008, p.51). Segundo Reis (2008, p.52) o processo de inovação tecnológica sugerido por Schumpeter seria composto por três fases: (a) a invenção - que aponta a viabilidade de um novo produto ou processo criado; (b) a inovação - que denota os resultados bem- sucedidos obtidos pela empresa com a venda de um produto novo ou aprimorado; e (c) a difusão tecnológica – que é caracterizada pela crescente adoção das inovações por outras empresas. No que diz respeito às origens das mudanças técnicas, duas teorias principais acabaram se destacando, são elas: a teoria da indução pela demanda (demand-pull) - que aponta o papel das forças do mercado e dos seus sinais como sendo as principais fontes da mudança tecnológica -, e a teoria do impulso pela tecnologia (technology-push) - que destaca uma certa autonomia da tecnologia (DOSI,2006, p.30). Dosi (2006, p.31) teceu algumas críticas à abordagem da indução pela demanda, ou seja, à centralidade dos sinais fornecidos pelo mercado para efetivação da mudança tecnológica. Esta abordagem reforça a ideia do “reconhecimento de necessidades”, uma vez que existiriam, no âmbito do mercado, alguns bens que supostamente representariam, num certo momento, as distintas “necessidades dos consumidores” (DOSI,2006, p.31). Entretanto, as noções sobre necessidades podem apresentar certa ambiguidade, uma vez que as necessidades dos consumidores podem acabar sendo analisadas sem se levar em consideração as formas pelas quais elas são satisfeitas - o que indicaria falta de relevância econômica - ou poderiam, ainda, ser analisadas levando-se em consideração as formas especificas pelas quais elas são satisfeitas - mas isto implicaria que cada “necessidade” específica não poderia surgir “antes da invenção básica à qual se refere”(idem, p.31). 32 O segundo argumento defendido por esta abordagem de indução pela demanda é o que sustenta que os consumidores manifestariam as suas preferências, em relação às características dos bens que almejam adquirir e que satisfazem suas necessidades, por meio dos seus padrões de demanda (DOSI,2006, p.32).Segundo esta perspectiva, o processo de inovação se iniciaria somente após os produtores identificarem as necessidades manifestadas pelos consumidores e embutidas nos movimentos da demanda e dos preços (DOSI,2006,p.32). De maneira geral, os teóricos da abordagem da indução pela demanda defendem que é possível saber antes de se iniciar o processo de inovação qual é a precisa direção que o mercado deve seguir, de modo a condicionar e induzir as atividades relacionadas ao processo de inovação dos produtores. Eles também afirmam que os sinais fornecidos pelo mercado podem ser identificados pelos movimentos dos preços relativos e das quantidades (DOSI,2006, p.32). Dosi (2006, p.33) aponta, também, as dificuldades enfrentadas pelo enfoque da indução pela demanda na tentativa de oferecer uma adequada interpretação do processo inovação, uma vez que as teorias da inovação baseadas principalmente nos movimentos da demanda podem não ser as mais adequadas para se entender e interpretar os determinantes da mudança tecnológica. Na visão de Dosi (2006, p.33), uma teoria da inovação deve se voltar para interpretação dos “avanços tecnológicos principais e secundários” e não se restringir a mera explicação do progresso técnico “incremental”, com base apenas nos produtos e processos já existentes. Nesta perspectiva, Dosi (2006,p.34) aponta três fragilidades da abordagem da indução pela demanda. São elas : 1) a “reatividade” às mudanças tecnológicas é tratada de maneira demasiadamente mecânica e passiva; 2) a dificuldade para se definir por que e quando alguns desenvolvimentos tecnológicos são escolhidos em vez de outros; e 3) “a desconsideração das mudanças ao longo do tempo, da capacidade de invenção”, que, por sua vez, não tem relação direta com os condicionamentos fornecidos pelo mercado e que estão sujeitos a sofrer alterações (DOSI,2006,p.34). No que tange às teorias do impulso pela tecnologia, Dosi (2006,p.36) aponta que tais teorias se baseiam no fato de que elementos econômicos são relevantes para condução 33 do processo de inovação. Com efeito, “o processo de crescimento e de mudança econômica, as variações nas participações distributivas e nos preços afetam a direção da atividade de inovação” (DOSI,2006,p.36). Dosi (2006,p.36) assinala, ainda, que existe de fato uma “complexa estrutura de retroalimentação entre o ambiente econômico e as direções das mudanças tecnológicas” e que uma teoria sobre a mudança tecnológica precisa definir a natureza dos mecanismos envolvidos e responsáveis por tais interações. No entanto, nem as teorias da indução pela demanda nem as teorias do impulso pela tecnologia parecem ser capazes de executar tal tarefa (idem, p.36). Por isto, Dosi (2006, p.38) desenvolveu um modelo alternativo, sobre os determinantes e direções da mudança tecnológica, levando em consideração as principais características do processo de inovação. Este modelo é caracterizado pelo que Dosi (2006,p.40) chamou de paradigmas tecnológicos e de trajetórias tecnológicas. Os paradigmas tecnológicos, ou os programas de pesquisa tecnológica, funcionam como uma analogia aos paradigmas científicos, ou aos programas de pesquisa científica apontados por Kuhn. Os paradigmas tecnológicos são definidos por Dosi (2006, p.41) como “um ‘modelo’ e um ‘padrão’ de solução de problemas tecnológicos selecionados, baseados em princípios selecionados, derivados das ciências naturais, e em tecnologias materiais selecionadas”. Isto significa que um paradigma tecnológico é capaz de definir “um certo campo de investigação” e, consequentemente, “os problemas e procedimentos/tarefas a ele associados” (SILVA,2010, p.227). Já a trajetória tecnológica é definida por Dosi (2006,p.42) “como o padrão da atividade ‘normal’ de resolução do problema (isto é, do ‘progresso’), com base num paradigma tecnológico”. Ou seja, as trajetórias tecnológicas “podem ser definidas pela atividade normal de resolução de problemas tecnológicos que se expressa pelo avanço nos múltiplos trade-off entre variáveis que o paradigma considera relevantes” (SILVA,2010, p.227). Assim sendo, a mudança tecnológica pode ser entendida como um processo evolucionário em que novas possibilidades tecnológicas disputam umas com as outras e com a prática em vigor e a seleção dos vencedores ocorre posteriormente e é marcada 34 por forte incerteza (SILVA,2010, p.224). Com base nestes conceitos de paradigma e trajetória tecnológica, Dosi(2006) propõe outros três conceitos com o intuito de viabilizar explicações mais adequadas da dimensão econômica das inovações e de suas principais características. Eles são os conceitos de cumulatividade, de grau de oportunidade tecnológica e de apropriabilidade. O conceito de cumulatividade do progresso técnico denota o fato deste não se dar de modo aleatório, mas seguir uma trajetória tecnológica (POSSAS,1999, p.92). O conhecimento e a experiência acumulada no aperfeiçoamento de uma tecnologia estão submetidos às regras rotineiras das firmas na busca por inovações (idem, p.92). Por um lado, isto evidencia que apesar da incerteza forte presente no processo de busca, tal processo apresenta regularidades e não é aleatório. Por outro lado, a cumulatividade se relaciona com a ideia de que existe path-dependency no avanço tecnológico, ou seja, uma vez escolhido um caminho, este impõe uma trajetória tecnológica própria e descarta rotas alternativas conforme o caminho escolhido for difundido. Outra consequência da cumulatividade é que ela cria assimetrias, pois o caminho escolhido gera diferenciação, lucros extraordinários e favorece novos avanços acentuando as diferenças entre as firmas (ibidem, p.93). A apropriabilidade privada dos efeitos da mudança tecnológica define “o grau de compromisso das empresas em relação às atividades de inovação” (DOSI,2006, p.131). Segundo Possas (1999, p.91), “o que determina a apropriabilidade de uma inovação é a evolução do grau de diferenciação do produtor que ela proporciona”. Em outras palavras, a apropriabilidade diz respeito à capacidade e a possibilidade da empresa que inovou ter um controle sobre sua inovação, buscando garantias de que a sua inovação não será facilmente imitada por outras empresas. O empresário decide se vale a pena ou não investir no desenvolvimento de algo novo de acordo com essas referidas garantias. O último conceito a ser tratado aqui é o de oportunidade tecnológica que corresponde “às possibilidades vislumbradas de incorporar avanços tecnológicos a um ritmo intenso” e que ao mesmo tempo sejam rentáveis (POSSAS,1999, p.95). Dosi considera os conceitos de oportunidade tecnológica e de apropriabilidade como as condições interligadas para a atividade de inovação, mas destaca que a oportunidade tecnológica 35 está subordinada à apropriabilidade privada dos frutos da mudança tecnológica [Dosi (2006); Possas (1999); Silva (2010) ]. A combinação destes três últimos conceitos reflete a criação, a manutenção e a ampliação das vantagens competitivas de algumas empresas em relação a outras. Isto gera assimetrias tecnológicas e econômicas e fornece, ao mesmo tempo, os impulsos para que a dinâmica tecnológica continue permanentemente - acompanhando o insaciável desejo de valorização do capital - o que acaba promovendo, por sua vez, a contínua mutação do ambiente competitivo (mudanças nas estruturas de mercado). A adaptabilidade dos agentes é pré-requisito para a própria sobrevivência dos mesmos, que, uma vez adaptados, transformam - através das suas interações complexas - o ambiente econômico. A partir destes conceitos é possível inferir que as dinâmicas tecnológica e econômica se combinam e contribuem para a continuada transformação das estruturas de mercado dentro de um sistema complexo adaptativo - atravessado pela persistência evolutiva da mudança tecnológica. Isto significa que a incessante e interminável busca pela valorização do capital é o que está por trás e o que torna a mudança tecnológica um processo evolutivo, uma vez que as empresas, enquanto unidades de valorização do capital, estão predispostas a adotar inovações e, consequentemente, a ampliar as suas vantagens competitivas e conquistar lucros cada vez maiores. 1.5- General Purpose Technologies Esta seção busca apresentar algumas noções sobre general purpose technologies. Primeiramente, é importante diferenciar técnica e tecnologia. Segundo Tigre (2014, p.74), tecnologia corresponde ao “conhecimento sobre técnicas”, enquanto estas “envolvem aplicações deste conhecimento em produtos, processos e métodos organizacionais”. Dosi (2006, p.40), por sua vez, define tecnologia como “um conjunto de parcelas de conhecimento de know-how, métodos, procedimentos, experiências de sucesso e insucessos e também dispositivos físicos e equipamentos”. Os estudos sobre general purpose technologies se iniciaram nos finais dos anos 1980 e foram influenciados pelas contribuições de Nathan Rosenberg (ALBUQUERQUE, 2021, p.65). Como aponta Albuquerque(2021, p.65), alguns dos principais autores que 36 contribuíram para os desenvolvimentos dos estudos sobre GPTs - como Bresnahan e Trajtenberg5 - fizeram comentários agradecendo as contribuições de Rosenberg e citaram a obra escrita por este autor - Inside the black box - para basear suas formulações. E. Helpman – que é o autor do livro intitulado general purpose technologies - classificou uma GPT como resultado de um drástico processo de inovação e que possui quatro características principais. Elas são: i) um amplo espaço para os aperfeiçoamentos iniciais; ii) a existência de muitos usos possíveis; iii) a possibilidade de várias aplicações em diversos ramos da economia; e iv) a existência de uma considerável complementaridade com outras tecnologias (ALBUQUERQUE,2021, p.66). Segundo Bresnahan (2010, p.763), o conceito de general purpose technologies passou a ser adotado por diversos campos de estudo dentro da economia. Este conceito foi utilizado por estudiosos do campo da macroeconomia do crescimento, por exemplo, com o intuito de observar as interligações de eras de expressivo crescimento econômico com a aplicação de determinadas tecnologias consideradas GPTs, como o motor a vapor, o motor elétrico e os computadores (BRESNAHAN,2010, p.763). No campo da microeconomia, o conceito de GPTs vem sendo utilizado para analisar a mudança tecnológica e fazer uma distinção entre determinados tipos de inovações (idem.,p.763). O conceito de GPTs surgiu a partir da curiosidade de se analisar o papel que certas tecnologias-chave desempenharam para o crescimento econômico ao longo da história (BRESNAHAN,2010, p.763). Para Bresnahan (2010, p.764), a estrutura básica do GPT é composta por três partes: “(1) é amplamente utilizada, (2) é capaz de melhoria técnica contínua e (3) permite a inovação em setores de aplicação”, sendo que os componentes (1) e (2) formam o que o autor chama de “complementaridades inovativas”. Estas complementaridades significam que as inovações realizadas no âmbito de uma GPT podem contribuir para elevação dos retornos oriundos das inovações realizadas em cada setor de aplicação específico (idem, p.764). 5 Conhecidos como os criadores do termo General Purpose Technologies. 37 CAP.2 – Indústria 4.0 e políticas industriais para sua efetivação Este capítulo busca entender o que é a chamada Indústria 4.0, quais são os seus principais agentes e, também, quais as principais estratégias implementadas pelos mesmos para sua efetivação. Deste modo, inicialmente mostra-se que a Indústria 4.0 só pode surgir devido aos avanços tecnológicos desenvolvidos e implementados pelas revoluções industriais e tecnológicas que se desdobraram ao longo da história humana. Após apresentar as origens da Indústria 4.0, aborda-se, também, alguns dos possíveis impactos econômicos desta indústria para as economias contemporâneas. Em seguida, apresentam-se três visões sobre as tecnologias que compõem a chamada Indústria 4.0. A primeira visão é a das tecnologias essenciais e dos princípios básicos da Indústria 4.0. A segunda abordagem é a dos pilares tecnológicos e o terceiro enfoque é o dos elementos formadores da Indústria 4.0. Além destas três abordagens, existe ainda a perspectiva das tecnologias impulsionadoras, que são aquelas capazes de ampliar os horizontes de atuação da Indústria 4.0. Apesar destas visões não serem tão divergentes entre si, é interessante apresentá-las pois, assim, entende-se, com mais profundidade, as características e os papéis que serão desempenhados por estas tecnologias no âmbito da chamada Indústria 4.0. Este novo estágio do desenvolvimento das tecnologias industriais ainda está em uma etapa inicial de formação, uma vez que ao mesmo tempo em que os atores tentam desenvolver e implementar estas referidas tecnologias, ocorre, simultaneamente, a discussão a respeito da natureza destas novas tecnologias e da sua respectiva importância para as atividades produtivas da sociedade contemporânea. Na seção seguinte apresenta-se a concepção da Indústria 4.0 como um novo paradigma tecnoprodutivo, a partir da perspectiva de autores selecionados. Serão feitos, também, alguns comentários críticos a respeito de certos exageros interpretativos em torno da Indústria 4.0. Neste sentido, destaca-se que a Indústria 4.0 é fruto de um desenvolvimento incremental de tecnologias, ao longo das últimas décadas, e que seria provavelmente prematuro considerá-la como o centro ou o motor propulsor de uma 38 nova revolução industrial, uma vez que o seu único caráter potencialmente revolucionário é a fusão de tecnologias de distintas áreas do conhecimento humano. Apresentam-se também algumas visões sobre as políticas industriais necessárias para a implementação da Indústria 4.0. E, por fim, procura-se caracterizar as principais bases das estratégias nacionais de países selecionados para a construção e a implementação da indústria 4.0 em seus territórios, destacando as narrativas construídas por estes países para adotarem políticas industriais explícitas, bem como a estrutura e os instrumentos destas referidas políticas. 2.1- Origens e impactos da Indústria 4.0 Para entender as origens da Indústria 4.0 - também chamada por alguns autores de Quarta Revolução Industrial - é necessário ter algumas noções sobre as revoluções industriais que a antecederam. Por isto, será traçado, a seguir, um breve esboço das principais características de cada revolução industrial que ocorreu ao longo da história. Os artesãos do final do século XVIII eram os principais responsáveis pela fabricação dos produtos não agrícolas necessários à sobrevivência das suas famílias nas sociedades ocidentais. Alguns destes artesãos vendiam seus produtos para outros indivíduos, porém a produção naquela época era principalmente voltada para o próprio consumo de quem produzia (QUINTINO,2019a, p.11). A Inglaterra e França possuíam as maiores oficinas da Europa e nelas vários artesãos vendiam sua força de trabalho para os donos das respectivas oficinas. Tais oficinas de artesãos ficaram conhecidas como manufaturas artesanais, e tinham como características: produtos sem padronização, “baixo volume de produção, com alto custo de fabricação” e trabalhadores que dominavam todo processo de fabricação e comercialização (idem, p.11-12). Foi aproximadamente a partir de 1750 que diversos processos de produção, que antes eram realizados pelos artesãos de forma manual, passaram a ser realizados por fábricas que utilizavam equipamentos mecanizados (QUINTINO,2019a, p.12). A invenção do tear a vapor, por James Whatt, possibilitou que os trabalhadores não especializados participassem dos processos de produção e também inaugurou a tecelagem num nível 39 industrial, dando início à Primeira revolução industrial. Esta última tinha como suas características principais a “mecanização da produção com uso de máquina a vapor”, a aceleração dos processos produtivos e a emergência dos donos das empresas e do operários fabris como novos atores sociais (idem, p.12). Foi neste período que surgiu a classe operária - que vendia sua mão-de-obra para os detentores dos meios de produção e que cumpria extensas jornadas de trabalho nas fábricas, que chega a atingir dezesseis horas diárias (SACOMANO e SÁTYRO,2018a, p.19). A partir dos anos de 1870 ocorreu um impressionante desenvolvimento tecnológico, pautado pela utilização da energia elétrica, pela difusão do uso do aço e da química orgânica, que possibilitou um considerável aprimoramento das máquinas, equipamentos industriais e dos processos produtivos. Além disto, o processo de industrialização rompeu fronteiras e se expandiu por diversos países, dando origem, nos EUA, a um novo modelo de produção industrial conhecido como fordismo. Este último primava pela padronização, pela produção em massa de produtos que demandavam atividades extremamente repetitivas e extenuantes dos operários nas linhas de produção (QUINTINO,2019a, p.12). Isto deu início à Segunda Revolução Industrial, que foi basicamente marcada pelo uso da eletricidade, das novas tecnologias do aço e pelos avanços da indústria Química. Nesta etapa ocorreram também a introdução da manufatura em massa de produtos discretos - com o pioneirismo da indústria automobilística - e houve uma considerável redução nos custos de produção e nos preços dos produtos fornecidos aos consumidores. Além disto, ocorreu, ainda, a padronização de produtos e a preocupação das empresas em participar de todas as etapas do ciclo de produção, desde o manuseio da matéria- prima até a venda dos seus produtos (SACOMANO e SÁTYRO,2018a, p.20). Com o esgotamento do fordismo, desenvolveu-se no Japão, a partir dos anos 1950, um novo modelo de produção industrial chamado toyotismo, que adotava uma produção flexível (QUINTINO,2019a, p.13). O Sistema Toyota de Produção tinha como princípios para uma produção enxuta a “redução de desperdícios ao mínimo, a eliminação de perdas, a preocupação constante com a qualidade desde o projeto do produto, o bom desempenho do processo de manufatura, a produção conforme a demanda dos clientes, redução de estoques, automação” (SACOMANO e 40 SÁTYRO,2018a, p.21). Adiciona-se a isto o desenvolvimento dos semicondutores – que ganhou força com a criação dos circuitos integrados nas empresas Texas Instruments e na Fairchild, no biênio 1960-61 (DOSI, 2006, p. 65) - que contribuiu de maneira decisiva para o desenvolvimento da microeletrônica e para a criação dos microcomputadores, e que facilitou, por sua vez, a posterior introdução no mercado de equipamento eletrônicos e digitais. Este processo consubstanciou a revolução tecnológica da microeletrônica e que tem sido considerada, por vários autores, como a Terceira Revolução Industrial. A revolução tecnológica microeletrônica pode ser descrita por apresentar as características seguintes: a automação industrial microeletrônica, a nanotecnologia, a biotecnologia, a mecatrônica e as tecnologias de comunicações e informações (QUINTINO,2019a, p.13). É importante destacar também o surgimento dos controladores lógicos programáveis que contribuíram para a evolução da automação industrial microeletrônica e para a introdução das tecnologias da informação como suporte e controle dos processos de manufatura (SACOMANO e SATYRO,2018a, p.21). A produção enxuta, a evolução da microeletrônica - incluindo- se os avanços na automação industrial - e o uso intensivo das tecnologias da informação proporcionaram, por sua vez, significativos ganhos para os diversos ramos industriais e formaram as bases do que tem sido chamada, por vários autores, de Terceira Revolução Industrial (idem, p.21). O surgimento do conceito de fábrica inteligente (ou Smart Factory) marcou o período de intensa interação digital, conhecido como Indústria 4.0, e que tem, também, sido qualificada por alguns autores de Quarta Revolução Industrial (QUINTINO,2019a, p.13). Em 2011, o governo alemão lançou um projeto chamado Plataforma Indústria 4.0 (Plattform Industrie 4.0), buscando aperfeiçoar os sistemas automatizados que monitoram os equipamentos e as operações industriais - de maneira a permitir que estes equipamentos se tornassem capazes de estabelecer comunicações e troca de informações e de dados entre si mesmos e os seres humanos - com o intuito de atingir os mais elevados patamares de otimização dos processos industriais (SACOMANO e SÁTYRO, 2018a ,p.23). Este projeto foi realizado através de uma parceria público-privada e foi disseminado por diversas organizações, tornando-se um programa governamental da Alemanha em 2015 (idem, p.23). 41 Em um primeiro momento, o conceito de Indústria 4.0 se restringia ao âmbito da manufatura; posteriormente passou a ser incorporado em outros ramos de atividades, como a agricultura e os serviços (QUINTINO,2019a, p.13). O governo alemão criou o projeto Indústria 4.0 visando atingir maiores níveis de produtividade e de competitividade industrial e assim enfrentar os novos desafios trazidos pelo desenvolvimento dos países asiáticos (idem, p.13). No entanto, este projeto ambicioso, que se originou na Alemanha, acabou se difundindo por diversos países ao redor do globo, e ganhou novos âmbitos, além da automação mais elevada dos processos produtivos. Âmbitos estes que incorporam diversas áreas do saber humano como a “nanotecnologia, [a] computação quântica, [o] sequenciamento de DNA, [a] Internet das coisas” etc (ibidem, p.13). A indústria 4.0 promete, segundo vários autores, transformar, consideravelmente, a forma como os indivíduos trabalham, se relacionam e vivem suas vidas (idem, p.13). É válido ressaltar que o termo “Quarta Revolução Industrial” foi introduzido por Klaus Schwab, na reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos, em 2016. Klaus Schwab defende que este termo denota o surgimento de uma nova fase do desenvolvimento industrial, fase esta que tem sido impulsionada pela evolução e invenção de um conjunto de tecnologias que podem funcionar conjuntamente e serem aplicadas em processos de fabricação, em serviços e em muitas outras atividades da vida humana (QUINTINO,2019b, p.21). Klaus Schwab destaca, também, que a principal diferença da Quarta Revolução Industrial com as revoluções anteriores é que nela estão ocorrendo transformações tecnológicas ao mesmo tempo em que tenta entender e definir suas especificidades, alcances e limitações, uma vez que as outras revoluções industrias só passaram a ser estudadas depois que as transformações se efetivaram (AGUIAR,2019, p.97). Uma especificidade da Quarta Revolução Industrial é que nela diversas tecnologias passam a ser consideradas conjuntamente, permitindo a fusão dos mundos físicos, digitais e biológicos, e por isto esta revolução, na visão de Klaus Schwab, é um movimento que incorpora “uma onda de novas descobertas” fundamentada na evolução da tecnologia digital (idem, p.97). 42 No que tange aos possíveis impactos econômicos da chamada Quarta Revolução Industrial ou Indústria 4.0, Aguiar (2019, p.94) destaca que que esta revolução poderá afetar significativamente a economia global, influenciando o comportamento de diversas variáveis econômicas como o PIB, os investimentos, o consumo, o crescimento econômico, o emprego e o comércio. A noção de indústria como é tradicionalmente entendida está em vias de sofrer uma drástica transformação graças à combinação de variadas tendências tecnológicas, capazes de unir os âmbitos virtual e físico (AGUIAR,2019, p.94). Esta transformação promoverá, ainda segundo este autor, impactos econômicos e sociais e influenciará principalmente as bases das relações entre governos e cidadãos, e das empresas com seus empregados, acionistas e clientes, influenciando inclusive o modo como as superpotências econômicas interagem com países menos desenvolvidos (idem, p.94). A Indústria 4.0 poderá impactar, principalmente, o comportamento da variável emprego, visto que a modernização das atividades industriais e a transformação digital tende a reduzir os custos de produção, fazendo com que mais profissionais sejam requeridos para atividades estratégicas das empresas e menos profissionais sejam requeridos para atividades operacionais; o que exigirá um grande esforço de capacitação da mão-de- obra para os países que buscarem se adaptar ao que é esperado da Indústria 4.0 (AGUIAR,2019, p.94). Isto acontecerá porque a produção e toda cadeia de valor se tornará mais flexível, visto que uma maior descentralização da gestão dos processos produtivos e uma maior utilização de dispositivos inteligentes e interconectados passarão a determinar as bases de funcionamento de praticamente toda cadeia de produção e de logística (AGUIAR,2019, p.95). Soma-se a isto o fato de que a redução do custo de produção tem facilitado aos produtores fabricarem produtos personalizados com um custo próximo ao custo da produção em massa (idem, p.95). O mercado também será afetado pela Indústria 4.0, pois cada vez mais novos modelos de negócios poderão ser criados pelas empresas que buscam se adaptar às exigências desta indústria para se manterem competitivas (AGUIAR,2019, p.95). Assim como as empresas, os países também precisarão incentivar não só a inovação, mas também a 43 criação de um ambiente de mercado que favoreça e estimule o fornecimento de produtos e serviços inovadores (idem, p.95). Ainda no que tange aos possíveis impactos da Indústria 4.0 sobre a variável emprego, é válido destacar que existe muito receio de que os computadores e os robôs substituam os seres humanos nas mais diversas atividades produtivas. De fato, um dos possíveis efeitos da Indústria 4.0 é a substituição do trabalho humano por capital e com isso o desaparecimento de alguns cargos de trabalho e aumento de pessoas desempregadas (AGUIAR,2019, p.96). Todavia, como já foi mencionado, ao mesmo tempo em que algumas profissões desaparecerão haverá, com o aumento da procura de novos produtos e serviços, a criação de novas oportunidades de emprego, isto é, novas profissões que exigirão pessoas capacitadas (idem, p.96). Não é possível prever, claramente, o número de profissões e postos de trabalho que serão substituídos pela automação. O que muitos estudiosos especulam é que, de fato, a natureza do trabalho nos mais variados setores será alterada pelo surgimento de novas tecnologias, uma vez que muitas mudanças radicais estão ocorrendo simultaneamente e com muita rapidez (ibidem, p.96). Assim, ressurge o espectro do chamado desemprego tecnológico, que terá como efeitos principais, segundo Venturelli (2018 apud AGUIAR,2019, p.97): 1) a “substituição de mão-de-obra por máquinas ou sistemas”; 2) a “substituição de operação intelectual conhecida por máquinas ou sistemas”; e 3) a “dispensa de trabalhadores por novos modelos e padrões que evoluíram ou não existiam”. Algo que alguns estudiosos têm observado é que a chamada Quarta Revolução Industrial “parece estar criando menos postos de trabalho nas novas indústrias do que as revoluções anteriores” (AGUIAR,2019, p.97). Todavia, como esta “revolução” ainda está na etapa inicial, é preciso cautela antes de se tirar conclusões prematuras. O que se sabe, até aqui, é que, com a evolução e adoção em massa da internet, máquinas e equipamentos, dotados de inteligência artificial, terão a capacidade de “aprender”, e uma vez aplicados nas indústrias poderão levar a “substituição do conhecimento humano por sistemas inteligentes e automatizados” (AGUIAR,2019, p.98). Resumidamente, o que tende a acontecer é que profissões como motoristas, operadores de caixa, operadores industriais, que são profissões que desempenham tarefas repetitivas e rotineiras (pouco qualificadas) tenderão a ser substituídas por máquinas (idem, p.98). 44 Enquanto profissões que exigem criação, abstração e atuação em atividades novas, como engenharias, computação, matemática, gestão estratégica, tendem a crescer e definir um novo perfil para os trabalhadores nesta era em transformações (ibidem, p.98). 2.2 - O conceito de Indústria 4.0 O conceito de Indústria 4.0 ainda está em desenvolvimento. Por isto, coexistem múltiplas visões sobre os elementos e tecnologias que compõem a Indústria 4.0. Esta seção toma como principal referência, para o entendimento do conceito de Indústria 4.0, a perspectiva de Furtado et al (2019) que defendem que as grandes transformações na esfera produtiva global podem ser sintetizadas nas noções de Indústria 4.0 (ou Manufatura Avançada). Como mencionado na seção anterior, o termo Indústria 4.0 foi concebido na Alemanha - com o intuito de descrever um conjunto de novas tecnologias da manufatura – que, supostamente, viabilizariam a elevação dos níveis de competitividade internacional da indústria germânica. Já a expressão Manufatura Avançada, que têm significado e propósito semelhantes, foi adotada pelos EUA. Basicamente, estes termos se referem ao conjunto de inovações tecnológicas associadas ao novo paradigma industrial contemporâneo, muitas vezes intitulado de “Quarta Revolução Industrial” (FURTADO et al.,2019, p.172). O funcionamento da Indústria 4.0 é sintetizado na seguinte passagem: “...no interior das fábricas inteligentes e modulares da Indústria 4.0, sistemas ciber-físicos (CPS) monitoram processos, criam uma cópia virtual da realidade e tomam decisões descentralizadas. Através da Internet das Coisas (IoT), os CPS se comunicam, cooperam entre si e com seres humanos em tempo real, e por meio da Internet dos Serviços (IoS) são oferecidos serviços organizacionais internos e externos, utilizados por participantes desta cadeia de valor.” (Hermann, Pentek e Otto,2015, apud., FURTADO et al.,2019, p.172) Nota-se nesta passagem o papel central da internet para a dinâmica de funcionamento da Indústria 4.0. A conectividade será pré-requisito para a operação das fábricas do futuro. Consequentemente, todos os atores integrantes da construção e consolidação da indústria 4.0 também estão interessados e, portanto, com muitas expectativas em relação 45 à tecnologia 5G - que será a internet do futuro, responsável por promover um salto expressivo nos padrões de conectividade atuais. As tecnologias essenciais para a consolidação da Indústria 4.0 dependem deste novo padrão de conectividade. Porém, o conceito de Indústria 4.0 não se restringe ao uso destas tecnologias, uma vez que, de acordo com Furtado et al. (2019), ela também “cria e articula fábricas inteligentes em um sistema produtivo e de comercialização substancialmente diferentes”. A gestão destas fábricas inteligentes possibilitará a redução ou, até mesmo, a eliminação de estoques, tornando o processo de fabricação condicionado pela demanda de quantidades mínimas (FURTADO et al.,2019,p.173). Isto poderá ocorrer porque haverá uma interconexão entre os sistemas de produção e os respectivos processos das fábricas e empresas envolvidas, viabilizando a gestão, em tempo real, dos processos de logística e de fabricação do momento inicial até o final (idem,p.173). Basicamente, a consolidação da Indústria 4.0 possibilitaria que “equipamentos e componentes lógicos coletem, compartilhem e processem dados em tempo real”, a partir do uso combinado de tecnologia essenciais como a “IoT, computação em nuvem, inteligência artificial, big data e sensores inteligentes” (DIEGUES e ROSELINO, 2020, p.8). Seguindo a exposição de Furtado et al. (2019) apresenta-se, a seguir, dois quadros que procuram sintetizar os princípios básicos e as tecnologias essenciais à Indústria 4.0. Quadro 1- Princípios básicos da indústria 4.0 Interoperabilidade Diz respeito à “capacidade de comunicação entre produtos, sistemas de produção e de transporte através da rede” (Furtado et al.,2019, p.175). Virtualização Diz respeito à “capacidade dos sistemas de monitorar processos, utilizando dados provenientes de sensores, para criar uma versão digital que espelha o mundo físico” (Furtado et al.,2019, p.175). 46 Descentralização Devido à crescente complexidade e individualização nos processos produtivos ligados à Industria 4.0, a tomada de decisão descentralizada é crucial (Furtado et al.,2019, p.176). Capacidade de Resposta em Tempo Real Visa “garantir a capacidade de reação do sistema a mudanças de demandas ou problemas de operação”, por isso é preciso que exista “coleta e análise dos dados gerados pelos sistemas inteligentes para propiciar respostas em tempo real” (Furtado et al.,2019, p.176). Orientação ao Serviço “Trata-se da disponibilização das funcionalidades de empresas, sistemas inteligentes e operadores humanos encapsulados sob a forma de serviços prestados em plataformas da Internet dos Serviços” (Furtado et al.,2019, p.176). Modularidade São sistemas modulares com capacidade “de se ajustar e reorganizar pari passu com mudanças na demanda ou necessidade de customização de produtos” (Furtado et al.,2019, p.176). Quadro 2 – Tendência tecnológicas emergentes ou Tecnologias essenciais da Indústria 4.0 Sistemas ciber-físicos (CPS) “[C]ombinam atuação no mundo físico com conexão com o mundo virtual, empregando sensores que permitem capturar informações sobre a realidade, transformá-las em dados e utilizá-los na tomada de decisão e atuação com algum grau de automatismo” (Furtado et al.,2019, p.176). Computação em nuvem Esta tecnologia “se baseia na transferência de dados e realização de processos computacionais em instalações externas à empresa e posterior recuperação destes dados e resultados, por meio da internet” (Furtado et al.,2019, p.177). Internet das Coisas (IoT) “[T]rata-se do meio digital por onde as versões virtuais de sistemas inteligentes e integrados se comunicam. Com a redução de custos de sensores e miniaturização de componentes eletrônicos cresce o número de objetos conectados à Internet (Smart Objects) gerando dados obtidos por eles sobre a realidade, dando origem ao termo que descreve sua interação e dinâmica de comunicação” (Furtado et al.,2019, p.177). 47 Internet dos serviços (IoS) “[É] o meio digital por onde empresas, pessoas ou sistemas inteligentes podem se comunicar com o objetivo de disponibilizar e obter serviços” (Furtado et al.,2019, p.177). Impressão 3D Diz respeito “a processos produtivos que, diferentemente dos métodos clássicos de fabricação, adicionam camadas de material como forma de traduzir uma geometria virtual em objeto físico.” (Furtado et al.,2019, p.177). Big Data Analytics “Compreendem um conjunto de técnicas e ferramentas computacionais para extrair valor (analisar e utilizar esses dados de forma estratégica) de grandes volumes de dados gerados pela aplicação de CPS e demais equipamentos conectados no sistema produtivo” (Furtado et al.,2019, p.176). Inteligência Artificial Que é “definida pela capacidade de computadores de realizar tarefas tipicamente associadas exclusivamente a seres dotados de inteligência. Idealmente, um elemento que exiba inteligência artificial será capaz de avaliar seu ambiente, processar informações de forma flexível, aprender com novas experiências e maximizar suas chances de sucesso em seus objetivos” (Furtado et al.,2019, p.178). Colheita de energia “[Q]ue reúne um conjunto de técnicas e mecanismos que buscam aproveitar pequenas quantidades de energia de processos físicos e mecânicos ou do ambiente (como energia solar, do vento, gradientes de salinidade, campos eletromagnéticos e gradientes de temperatura) e transformá- las em energia útil” (Furtado et al.,2019, p.178). Realidade Aumentada “[É] a sobreposição computacional de elementos virtuais sobre o ambiente físico do usuário em tempo real, modificando ou incluindo elementos visuais e/ou auditivos que complementam sua experiência” (Furtado et al.,2019, p.179). Quintino (2019a, p.14) apresenta uma abordagem do conceito de Indústria 4.0 que não difere muito da apresentada anteriormente. A principal distinção entre estas visões está no entendimento das tecnologias essenciais que compõem a Indústria 4.0. Quintino (2019a, p.14) entende que existem nove tecnologias que compõem os pilares básicos da Indústria 4.0, como pode ser visto na figura 1 abaixo. 48 Figura 1- Pilares tecnológicos da Indústria 4.0 Fonte: QUINTINO,2019, p.14 adaptado de elenabsl/Shutterstock.com Assim, além de considerar a Internet das coisas, a computação em nuvem, a impressão 3D, a realidade aumentada, o big data, Quintino (2019a) também considera como tecnologias essênciais para Indústria 4.0 a cibersegurança, a integração de sistemas, a simulação e a robótica autônoma Ainda segundo Quintino (2019a, p.15), a robótica autônoma indica que foi só com a chegada dos conceitos da Indústria 4.0 que a robótica ganhou inovações como a robótica colaborativa, em que os robôs e os seres humanos atuam conjuntamente nos processos produtivos. Os robôs utilizam equipamentos capazes de tomar decisões e trocar informações com outros equipamentos, proporcionando soluções e dividindo tarefas com alguns seres humanos especializados (QUINTINO,2019a, p.15). Além disto, os robôs podem ser utilizados em tarefas que exigem mais precisão, velocidade e repetição, enquanto os humanos podem manter o foco no gerenciamento e na realização de outras tarefas (idem, p.15). 49 A simulação computacional, de acordo com o mesmo autor, indica que os softwares de simulação são programas capazes de simular fidedignamente “comportamentos de produtos, processos e até plantas industriais completas” (QUINTINO,2019a, p.15). A simulação computacional consiste na execução do programa que abrange as equações ou algoritmos de modelos computacionais, que visam capturar os possíveis comportamentos de um sistema qualquer sujeito à modelagem (QUINTINO,2019a, p.16). Assim, é possível saber, com antecedência, quais são os pontos fortes e fracos de um projeto sujeito à modelagem, corrigindo eventuais erros e falhas antes da sua implementação (idem, p.16). A ciberseguraça, como aponta Quintino (2019a, p.16), “contempla o conjunto de técnicas e tecnologias que visam detectar, prevenir e combater ataques a dados, programas e redes”. Isto é importante porque na Industria 4.0 “praticamente tudo está conectado e integrado” e a proteção dos dados e dos sistemas torna-se uma necessidade crucial (QUINTINO,2019, p.16). Já a integração de sistemas, ainda segundo Quintino (2019a, p.16), indica a integração de “sistemas que compõem toda a cadeia de valor produtiva, como SAP, ERP, MES e outros, integrando fabricante, fornecedores, distribuidores e clientes, facilitando análise e tomada de decisão”. Com o intuito de aprofundar o en