1 Universidade Estadual Paulista - UNESP “Julio de Mesquita Filho” Instituto de Artes Ângela da Silva Oliveira Maracatu em São Paulo: expressões artísticas e culturais de Lokan Oba - Maracatu Nação. São Paulo - SP 2012 2 Universidade Estadual Paulista - UNESP “Julio de Mesquita Filho” Instituto de Artes Ângela da Silva Oliveira Maracatu em São Paulo: expressões artísticas e culturais de Lokan Oba - Maracatu Nação. São Paulo - SP 2012 Dissertação submetida à Universidade Estadual Paulista-UNESP como requisito parcial exigido pelo Programa de Pós- Graduação em Artes, área de concentração em Artes Visuais, linha de pesquisa Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais da Arte, sob a orientação do Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento para a obtenção do título de Mestre em Artes. 3 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP Oliveira, Ângela da Silva. 1982. Maracatu em São Paulo: expressões artísticas e culturais de Lokan Oba - Maracatu Nação. / Ângela da Silva Oliveira. – São Paulo: [s./n.], 2012. Orientador: José Leonardo do Nascimento Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. 1. Maracatu de baque virado. 2. Grupos de Maracatu de baque virado. 3. Lokan Oba - Maracatu Nação. 4. Maracatu Nação Cambinda. I. Nascimento, José Leonardo. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. 4 BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________________ Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento ______________________________________________________________ Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda ______________________________________________________________ Prof. Dr. Luis Dagoberto Aguirre 11 de outubro de 2012. 5 Aos amados João e Filippo, sobrinhos queridos que me inspiram e alegram meus dias. 6 Agradecimentos Um agradecimento especial a todos e todas que direta ou indiretamente participaram da realização desta dissertação. Gratidão aos meus pais Niquinho e Cida, irmãos Solange e Fernando, companheiros (as) e amigos (as) pelo apoio e amor compartilhado. Ao Programa de Pós-Graduação em Artes da UNESP por ter possibilitado o estudo do tema. Agradeço ao prof. José Leonardo pela leitura crítica e comentários. Ao CNPQ, pelo fomento à pesquisa por dois anos. Agradeço ao grupo de estudo Terreiro de Investigações Cênicas pelas conversas, leitura e discussões e especialmente aos professores Marianna Monteiro, Ikeda e Paulo Dias, pelo incentivo e por acreditar neste trabalho. Aos funcionários por todo apoio prestado, especialmente à querida Marisa pelo carinho e a amizade. À Ibeji, em memória, Morgada, Neide, Ró, Gustavo, Yuri, Preta, Junior, Luís, Érick, e toda família do terreiro. À acolhida da família Trindade, à Raquel e Vitor da Trindade. Ao Bloco de Pedra pelas vivências dos baques do maracatu. À Jesum Biasin por me ensinar o toque e a dança do maracatu. Ao Sílvio Ribeiro Viana da Cia Porto de Luanda e Nelci Abilel do Grupo de Maracatu Ilê Aláfia pela atenção e parceria com a pesquisa. E aos maracatuzeiros e maracatuzeiras que historicamente vivem e lutam pela arte- cultura de resistência e transformadora do maracatu. 7 Resumo O maracatu de baque virado é uma manifestação da cultura popular do Recife, Estado de Pernambuco, expressa com a realização de cortejos de coroamento dos reis e rainhas negros. Contudo, as apresentações de maracatu de baque virado tem se tornado cada vez mais frequente em outras regiões do país, até mesmo internacionalmente, através da formação de grupos percussivos de maracatu de baque virado, estabelecendo uma linguagem artística própria de atuação. Neste sentido, este trabalho busca compreender como ocorre o processo de reterriotorialização da prática do maracatu de baque virado adotada pelos grupos de maracatu de baque virado na cidade de São Paulo, tendo como referência os maracatus-naçãode Recife. Assim, o que se pretende com essa pesquisa é realizar um resgate histórico da experiência do grupo precursor do maracatu de baque virado em São Paulo com o Lokan Oba – Maracatu Nação e ainda trazer uma reflexão dos atuais grupos da cidade discutindo seus aspectos culturais artísticos. Palavras-chave: Maracatu. Grupos de maracatu de baque virado. Lokan Oba - Maracatu Nação. Grupo Folclórico Irmãs Ibejis. 8 Abstract The “maracatu de baque virado” is a manifestation of popular culture in Recife, Pernambuco State, expressed with the achievement of crowning black kings and queens processions. However, the “maracatu de baque virado” presentations have become increasingly common in other parts of the country, even internationally, through the formation of “maracatu de baque virado” groups, establishing an artistic language of work itself. In this sense, this work seeks to understand how occurs this process of deterriotorialization of “maracatu de baque virado” practice as art from the afro-Brazilian culture of resistance adopted by the “maracatu de baque virado” groups in the São Paulo city, with reference to the “maracatu de baque virado” nations from Recife. So what is intended with this research is to conduct a historical rescue of experiences from the “maracatu de baque virado” groups in Sao Paulo and its metropolitan area, from the precursors groups of Lokan Oba and Cambinda Nation and also bring a reflection of current groups city discussing its artistic aspects. Keywords: Maracatu de baque virado. Maracatu de baque virado groups. Lokan Oba. Cambinda Nation, São Paulo. 9 Lista de Figuras Capítulo 1 Figura 1: Coroação de um Rei Negro nos Festejos de Reis e Cortejo da Rainha Negra na Festa de Reis. Aquarelas de Carlos Julião (1740-1811). ....................................................................... 23 Figura 2: Congada (1935). Pintura de Johann Moritz Rugendas (1802-1858). ...................................................................... 30 Figura 3: Nossa Senhora do Rosário (1828). Pintura de Jean-Baptiste Debret (1768-1848). ............................................................................. 31 Capítulo 2 Figura 4: Mapa dos grupos percussivos de maracatu de baque virado pelo Brasil. ....................44 Figura 5: Mapa dos países com grupos de maracatu de baque virado. .......................................45 Figura 6: Porta-estandarte da Cia Porto de Luanda. ................................................................... 53 Figura 7: Brasão do Grupo Maracatu Ilê Aláfia. ........................................................................ 62 Capítulo 3 Figura 8: Reportagem de jornal. Carnaval de 1996. Sambódromo do Anhembi. ...................... 74 Figura 9: Carro alegórico. Carnaval de 1996. Sambódromo do Anhembi. ................................ 76 Figura 10: Faixa de apresentação. Carnaval de 1996. Sambódromo do Anhembi. .................... 78 Figura 11: Carro alegórico. Carnaval de 1996. Sambódromo do Anhembi. .............................. 80 Figura 12: Ala das dançarinas. Carnaval de 1996. Sambódromo do Anhembi. ......................... 82 Figura 13: Ala das dançarinas. Carnaval de 1996. Sambódromo do Anhembi. ......................... 84 Figura 14: Esboço de desenhos dos personagens do maracatu Lokan Oba. ............................... 86 Figura 15: Porta-estandarte. Carnaval de 1996. Sambódromo do Anhembi. ............................. 88 Figura 16: Porta-estandarte. Cortejo do Lokan Oba em 1980. ................................................... 89 10 Figura 17: Porta-estandarte. Cortejo do Lokan Oba em 1980. ................................................... 90 Figura 18: Porta-estandarte. Cortejo do Lokan Oba em 1980. ................................................... 91 Figura 19: Ala da nobreza. Carnaval de 1996. Sambódromo do Anhembi. ............................... 93 Figura 20: Ala da nobreza. Carnaval de 1996. Sambódromo do Anhembi. ............................... 95 Figura 21: Dama do paço. Carnaval de 1996. Sambódromo do Anhembi. ................................ 97 Figura 22: Rei, rainha, dama do paço e boneca calunga. Cortejo do Lokan Oba em 1980. ....... 99 Figura 23: Rei, rainha, dama do paço e boneca calunga. Cortejo do Lokan Oba em 1980. ..... 100 Figura 24: Rei e rainha. Cortejo do Lokan Oba em 1980. ........................................................ 101 Figura 25: Ala dos cantores. Carnaval de 1996. Sambódromo do Anhembi. ……….............. 103 Figura 26: Mapa com distribuição dos personagens do maracatu no desfile. …...................... 109 Figura 27: Verso do Mapa com distribuição dos personagens do maracatu no desfile. ........... 110 Figura 28: Mapa com distribuição dos personagens do maracatu no desfile. …...……........... 111 Figura 29: Mapa com distribuição dos personagens do maracatu no desfile. …...…….....…. 112 Figura 30: Foto das Irmãs Ibeji. …….........................................................................….......… 116 Figura 31: Foto das Irmãs Ibeji. ….........................................................................……...…… 117 Figura 32: Foto das Irmãs Ibeji. Apresentação em show. ……................................................ 118 Figura 33: Foto das Irmãs Ibeji. ….........................................................................…............... 120 Figura 34: Foto das Irmãs Ibeji. …........................................................................................… 121 Figura 35: Foto das Irmãs Ibeji. Apresentação em show. ………....................................…… 123 Figura 36: Foto das Irmãs Ibeji. Participação em programa de televisão. …........................... 124 Figura 37: Foto das Irmãs Ibeji. Participação em programa de televisão. ……...........…........ 125 Figura 38: Foto das Irmãs Ibeji. Participação em programa de televisão. ……........................ 126 Figura 39: Foto das Irmãs Ibeji. Apresentação de frevo. …...................................…….....….. 127 11 Figura 40: Foto das Irmãs Ibeji. Apresentação de frevo. …...................................……...…… 128 Figura 41: Foto das Irmãs Ibeji. Apresentação de frevo. ……….........................................…. 129 Figura 42: Foto das Irmãs Ibeji. Apresentação de frevo. …................................................….. 130 Figura 43: Foto das Irmãs Ibeji. Reportagem de jornal com apresentação de frevo. ….....….. 131 Figura 44: Foto das Irmãs Ibeji. Apresentação de baianá. ………........................................… 133 Figura 45: Capa do compacto de Ibeji “No Reino de Nanã Burukuê”. ….............…..….....… 135 Figura 46: Contra-capa do compacto de Ibeji “No Reino de Nanã Burukuê. ….......….......… 136 Figura 47: Imagem do compacto de Ibeji “No Reino de Nanã Burukuê”. ……........….....….. 136 Figura 48: Reportagem de jornal. Compacto de Ibeji “No Reino de Nanã Burukuê. ..........… 137 Figura 49: Capa do disco de Ibeji “Abaça de Oxalá”. ……..................................................... 140 Figura 50: Capa de disco. Sem referência exata de nome. ……..................................….....… 141 Figura 51: Capa do disco “Saudação à Umbanda”. ………..................................................… 143 Figura 52: Foto dos integrantes do grupo de maracatu Lokan Oba. ….................................… 146 Figura 53: Capa do disco de Ibeji “De Olinda a Pirajussara”. ….....................................…… 149 Figura 54: Contra-capa do disco de Ibeji “De Olinda a Pirajussara”. ….................….....…… 150 Figura 55: Reportagem de jornal. Espetáculo do Grupo Brasil Folclórico Ibeji. …..….....….. 154 Figura 56: Reportagem de jornal. Ibeji Albuquerque com o Mister Douglas. ……..….....….. 156 Figura 57: Capa do LP de Ibeji “Ibeji no Forró Hoje Eu Quero”. ….....................……........... 157 Figura 58: Desenho do porta-estandarte do merengoche. …….................................….....….. 158 12 Sumário Introdução …………………………………………………………………………………….. 13 Capítulo 1 - Ressignificando a história do maracatu. ……….........................................…… 16 1.1 - Perseguições e resistências ao maracatu. ............................................................. 18 1.2 - Congadas e maracatu. .......................................................................................... 25 1.3 - Maracatus e suas definições. ............................................................................... 35 Capítulo 2 - Grupos de maracatu na cidade de São Paulo. .................................................... 41 2.1 - Cia Porto de Luanda. ............................................................................................ 47 2.2 - Grupo de Maracatu Ilê Aláfia. .............................................................................. 54 Capítulo 3 - Lokan Oba - Maracatu Nação: o maracatu de baque virado chega em São Paulo. ........................................................................................................................................... 64 3.1 - Lokan Oba - Maracatu Nação. ............................................................................. 64 3.2 - Grupo Brasil Folclore Ibeji. .............................................................................. 114 Considerações Finais ............................................................................................................... 167 Referências Bibliográficas ....................................................................................................... 170 13 Introdução Este trabalho pretende discorrer sobre a manifestação cultural do maracatu de baque virado na cidade de São Paulo, através do grupo precursor o extinto Lokan Oba - Maracatu Nação, fundado na cidade de São Paulo, em 1967, pertencente ao Grupo Brasil Folclore Ibeji. Assim, objetivamos com a pesquisa traçar um resgate histórico da trajetória do grupo de maracatu de baque virado em São Paulo, e ainda realizar o mapeamento dos atuais grupos da capital paulista, que a partir do final da década de 1990, constitui-se aproximadamente em torno de vinte referências, que dentre eles abordaremos as expressões maracatuenses dos grupos Cia Porto de Luanda e Grupo de Maracatu Ilê Aláfia. A escolha em pesquisarmos o grupo de maracatu Lokan Oba - Maracatu Nação deve-se pela inexistência de material ou acervo sistematizado que retrate a memória e a história das primeiras experiências de maracatu em São Paulo que, por sua vez, fora realizado por esse grupo. Considerando necessário e de extrema importância o registro desse trabalho cultural e artístico, procuramos com essa investigação resgatar a importância e singularidade que o Grupo Brasil Folclore Ibeji ocupou na cidade de São Paulo, tornando-se referência de representação artística da cultura popular brasileira para a época. O corpo documental utilizado pela pesquisa foi formado por entrevistas, pesquisas bibliográficas realizadas em bibliotecas e arquivos públicos e pesquisas em jornais. As entrevistas foram realizadas com os integrantes dos grupos pesquisados que apesar de termos um roteiro com questões centrais a serem tratadas em cada encontro, o relato livre foi o procedimento adotado no intuito de que o processo levasse à configuração da memória do/da entrevistado/da e nos fornecesse dados acerca das experiências com o maracatu de baque virado na cidade de São Paulo. Tendo em vista a especificidade do tema e a escassez de 14 fontes sobre o assunto, as entrevistas ocupam lugar de destaque na relação das fontes utilizadas. Além das entrevistas analisamos o repertório videográfico e fotográfico dos grupos pesquisados e realizamos um estudo de campo acompanhando ensaios, apresentações e cortejos dos grupos Cia Porto de Luanda e Grupo Maracatu Ilê Aláfia. Ao grupo Lokan Oba - Maracatu Nação por não realizarem mais apresentações seguimos juntos com participações no terreiro de candomblé da família idealizadora do grupo, compartilhando suas festas, rituais, cerimônias, almoços e os encontros com batuques por eles promovidos. O despertar pelo interesse em pesquisar sobre o maracatu partiu de minha experiência prática em São Paulo com o Grupo Maracatu Bloco de Pedra, sendo por ele batizada e batuqueira do instrumento alfaia. A participação no grupo e a vivência mais próxima com o universo cultural e artístico promovido pelo maracatu levaram-me a fazer algumas questões sobre o percurso histórico do maracatu na cidade de São Paulo; como ocorreu o processo de reterritorialização da cultura popular do maracatu de baque virado, procedente da capital de Pernambuco, Recife, mas que ganha notoriedade e visibilidade no município de São Paulo e em seu entorno; e quais as relações estabelecidas entre os maracatus-nação de baque virado de Recife com os grupos percussivos de maracatu da cidade de São Paulo, refletindo nos termos de permanências e rupturas dos grupos de maracatu de São Paulo, tendo como referência as características “tradicionais” empreendidas pelos maracatus-nação de Recife. Neste sentido, a proposta da dissertação é dividir-se em três capítulos tratando o primeiro sobre a ressignificação histórica da origem do maracatu de baque virado a partir do conceito de transculturalismo, abordado pelo pensador Renato Ortiz e debatido pelo historiador e maracatuzeiro da Nação Cambinda Estrela, Ivaldo Marciano de França Lima, destacamos as 15 perseguições e resistências sofridas pelo maracatu e algumas definições estabelecida sobre o conceito “maracatu”. Para o segundo capítulo optou-se em realizar um levantamento, mapeamento e descrição dos grupos de maracatu de baque virado da cidade São Paulo, do Brasil e de alguns países que localizamos a prática do maracatu de baque virado e a partir disso elegemos a Cia Porto de Luanda e Grupo de Maracatu Ilê Aláfia pertencentes à cidade de São Paulo para discutir e analisar os aspectos culturais e artísticos por eles desenvolvidos. E por fim ao terceiro capítulo apresentaremos a atuação do grupo de maracatu de baque virado pioneiro na cidade de São Paulo o Lokan Oba - Maracatu Nação e sua respectiva entidade de atuação o Grupo Folclore Irmãs Ibeji. 16 Capítulo 1 – Ressignificando a história do maracatu A partir de 1532 chegam ao Brasil povos de diferentes regiões e etnias africanas, sobretudo oriundos da costa ocidental e da África centro-meridional, atuais Nigéria, Benin, Angola, Congo e Moçambique, pertencentes em sua maioria a dois grandes grupos de língua e cultura bem distintas: os sudaneses, que abrigavam os hauçás, mandingas e nagôs; e os bantos, referindo-se aos cambindas, benguelas, congos e angolas. Erradicado brutalmente do seu meio e convívio para a exploração da mão-de-obra na produção açucareira, o negro depara-se com um projeto colonial, escravista e de monocultura que o desapropria de suas tradições e o submete a condições desumanas de sobrevivência, com a privação de sua autonomia e liberdade. Uma das conseqüências do comércio negreiro, traficante de africanos escravizados para o Brasil, foi estabelecer obrigatoriamente relações entre os que provinham de diversas regiões da África, imbuídos entre si de vasta pluralidade cultural, e estes com as populações que viviam no Novo Mundo. Inserido politicamente no modo de produção escravista, o africano coagidamente passa adotar a forma de vida calcada na obediência e sujeição dos ditames dos senhores. Contudo não reage a isso de forma inerte e paulatinamente transmite à nova sociedade suas práticas e valores, redefinindo dentro ou fora da senzala elementos culturais que vão sendo integrados ao cotidiano brasileiro. Assim, o contato afro-brasileiro resultou no processo de assimilação cultural, ou seja, os códigos culturais do negro na condição de escravo transformaram-se e reconstituíram-se na medida em que entrecruzaram, como um amálgama, com a estrutura cultural européia e 17 ameríndia. A alteração cultural ocorre mutuamente, sendo absorvidos certos aspectos culturais oriundos da África pelos brancos e índios. Darcy Ribeiro (RIBEIRO, 1995: 103) observa que o processo de reconstituição do ser cultural destituído de suas tradições interfere no processo de transformação cultural do povo brasileiro e concomitantemente modifica a sua, pois para ele os negros: “foram compelidos a incorporar-se passivamente no universo cultural da nova sociedade”. Para combater a opressão e perseguição do modelo ideal europeu de civilização que apropria e explora o trabalho compulsório e impõe ao povo africano sobreviver de forma subservil o escravismo dos engenhos e das minas, o negro escravo procura preservar suas crenças religiosas, práticas mágicas, etc, como descreve Darcy Ribeiro: Consegue, ainda assim, exercer influência, seja emprestando dengues ao falar lusitano, seja impregnando todo o seu contexto com o pouco que pode preservar da herança cultural africana. Como esta não podia expressar-se nas formas de adaptação – por diferir, consideravelmente, no plano ecológico e tecnológico, dos modos de prover a subsistência na África – nem tampouco nos modos de associação – por estarem rigidamente prescritos pela estrutura da colônia como a sociedade estratificada, a que se incorporava na condição de escravo – sobreviveria principalmente no plano ideológico, porque ele era mais recôndito e próprio. Quer dizer, nas crenças religiosas e nas práticas mágicas, a que o negro se apegava no esforço ingente por consolar-se do seu destino e para controlar as ameaças do mundo azaroso em que submergira. Junto com esses valores espirituais, os negros retêm, no mais recôndito de si, tanto reminiscências rítmicas e musicais, como saberes e gostos culinários. (RIBEIRO, 1995: 104). Assim, o negro busca na herança cultural africana suas raízes ancestrais para (re) criar formas de reafirmação e repersonalização (QUEIROZ, 1987: 41) que o identifique como ser humano para si e para a ordem social estabelecida, permitindo-lhe expressar a consciência afro- descendente. Todavia, para o africano a escravidão gera desdobramentos paradoxais no exercício de sua cultura como em momentos que são por vezes restritos ou proibidos de se manifestarem, resultado de uma intensa política de impedimento, e outros períodos de permicidade. Vejamos 18 como os pesquisadores Marianna Monteiro e Paulo Dias (MONTEIRO; DIAS, 2010: 349-372), e (MONTEIRO, 2011: 31) classificam essa dualidade como “divertimentos honestos” e “divertimentos desonestos”: A perspectiva das classes dirigentes impõe à cultura de africanos e seus descendentes, na América portuguesa, a fórmula que estabelece a identidade cultural a partir da distinção entre divertimentos honestos, como os reinados de congo, as folias e pastoris, e os desonestos, como calundus, lundus, batuques. Essa dualidade percebida pelos estudiosos de cultura popular, pensada até agora exclusivamente na chave da dominação escravista, a meu ver, dever ser também compreendida a partir de fins do século XVIII, na afirmação de um pensamento ilustrado na colônia. A princípio a cultura popular é combatida em nome da perseguição religiosa contra resquícios pagãos; na América, contra práticas fetichistas de negros, percebidas por portugueses e estrangeiros como diabólicas. Em fins do século XVIII, já se pode pensar em batuques permitidos, baile popular, lazer profano, que, sem serem inocentes, correspondem aos fandangos e fofas portuguesas, e são diferentes dos batuques de terreiro, voltados para os cultos fetichistas. As danças da “ralé” poderiam ser toleradas desde que profanas. (MONTEIRO, 2011: 31). As expressões dos negros nas vilas e cidades como os ajuntamentos, jogos de qualquer tipo, batuques, formas artísticas e religiosas fora do âmbito da cristianização, eram vedadas, evitando-se agrupamentos que viabilizassem organizações para insurreições ou que o negro se conscientizasse de sua condição. Obstante a isso, espaços de resistências formavam-se para a construção e o fortalecimento de uma identidade afro-brasileira, como veremos a seguir com a presença das congadas e maracatus. 1.1 - Perseguições e resistências ao maracatu O maracatu é um modelo de manifestação cultural afro-descendente que sofreu represálias por autoridades civis e eclesiásticas na supressão de sua dança, música e toques de tambores quando o negro, desterritorializado de suas origens e sofrendo os impactos do movimento diásporo, intentava resgatar práticas que mantivesse vivo seus costumes. 19 O músico e etnomusicólogo Paulo Dias (DIAS, 1999: 01) discorre que para os bantos ao tambor foi dado o nome de ngoma, correspondendo à junção e articulação da dança, do canto e da ação ritualística desenvolvida em comunidade através do encontro com o ngoma. Quando chega ao Brasil o ngoma simboliza a conexão do povo da África com o seu novo mundo. A comunidade do tambor sobrevive rearranjando-se com os elementos do substrato cultural afro- brasileiro. Entretanto, Dias relata a ocorrência de perseguições políticas, sofridas desde o período colonial ao pós-colonial, ao ressoar dos tambores e a reverberação das relações sociais que se formavam em torno da comunidade do tambor e pronuncia as contradições existentes no conflito entre senhores e escravos. Noticiados por cronistas e viajantes a partir do século XVI, as festas e rituais dos africanos são quase sempre objeto de descrições levianas e preconceituosas. Sons “monótonos”, danças “lascivas”, ritos “bárbaros” eram alguns dos qualificativos utilizados por estes escritores e moralistas, sem dúvida um tanto assustados com as multidões de negros que essas festas mobilizavam – multidões que sempre podiam rebelar-se contra a minoria branca. Paradoxalmente, a festa negra também constituía uma atraente opção de lazer para muitos brancos proprietários de escravos, como acontecia nas fazendas e engenhos isolados. (DIAS, 1999: 01). Destarte, os períodos de consentimento para os cultos praticados por negros estabeleciam-se dependendo do resultado da negociação entre os negros escravos e libertos junto aos senhores, pois detinham o poder de permitir ou não as festas, favorecidas por concessões. (LIMA, 2005: 113). A relação expositiva do corpo1 1 O corpo constrói-se culturalmente a partir de leis e valores que regem o campo gestual. Regras tradicionalmente vivida pelo corpo, com encadeamentos diversos, expressam inúmeras formas de comunicação que são constantemente (re) elaboradas. (LARA, 2004: 184). sócio-político e de caráter religioso do negro implicou na ocorrência de conflitos de interesses entre os senhores e patrões com a igreja católica ao que se refere à liberação das práticas dos batuques e da dança afro-descendente nas senzalas, terreiros 20 ou cortejos nas ruas. O corpo como objeto de tensão entre o gesto e o profano refletia a tradição do cristianismo em associar a expressividade corporal ao pecado, a atos pagãos ou heréticos. O negro não era considerado senão como um instrumento de trabalho, ele só valia como objeto econômico. Mas mui cedo se devia perceber que a renda dessa máquina humana estava em função dos divertimentos que se lhe permitiam. O trabalho necessitava de outorga das horas de repouso, da fuga do labor cotidiano para a alegria da festa; aliás, como seria possível proibir totalmente ao negro, que tem a dança no sangue, de, em certas horas, se entregar ao potencial do ritmo através da dança? O regime, pois, da escravidão deixava a porta aberta a uma certa possibilidade de folclore. Capelães de engenhos e conselheiros dos senhores recomendavam em suas obras que deixassem os escravos se divertirem nas noites dos dias de feriados, ao redor de fogueiras nos terreiros dos engenhos. (BASTIDE, 1959: 16). Ora consideravam a dança como apelo sexual e à libertinagem contrária à moralidade cristã, ora era encarada como divertimento para os negros e servindo aos desejos da exploração da mão-de-obra escravista e para a reprodução, visto que com abertura dessas exceções pelos fazendeiros haveria a possibilidade de maior produção do trabalho e diminuição dos gastos e prejuízos. Mas aqui os interesses da Igreja se chocavam com os dos senhores. Tinham estes que favorecer a procriação em suas terras, porque era um meio econômico (numa época em que os escravos custavam caro) de multiplicar a mão de obra sem nada precisar desembolsar. A prostituição da senzala, pois, não lhes metia medo e o batuque era, na sua opinião, o melhor convite ao abraço. A Igreja, porém, fiel mantenedora da moralidade, não podia considerar o amor senão sob a forma do casamento cristão, e a dança sensual repugnava-lhe à moralidade ocidental. Faltava-lhe, pois, como para o indígena encontrar uma solução que lhe permitisse conservar o gosto pela dança do africano, mas reparando-a de sua civilização tradicional para integrá-la no seio do cristianismo. Daí a distinção, que aparece com freqüência nos papéis dos governadores, entre o batuque (e sob este termo englobava-se tanto a dança religiosa pagã como a dança sensual) e a congada, isto é, a dança cristianizada, assim como o moçambique, o maracatu, os cacumbis, as taiêras fazem-nos voltar ao folclore artificial de que já falamos a propósito do índio. Trata-se de emprestar das civilizações africanas elementos utilizáveis, mas trocando-lhes a função: por exemplo, a existência dos reinos africanos para sagrar os reis do congo, mas no interior da igreja, a fim de que os reis sirvam de intermediários entre o branco e a massa dos homens de cor na fiscalização dos costumes africanos. (BASTIDE, 1959: 19). Bastide estabelece diferenças comparando o caso entre as tradições africanas e portuguesas vindas para o Brasil. O folclore dos portugueses é transportado juntamente com sua 21 estrutura de organização social institucionalizada e, concomitantemente, a nova sociedade muda para adaptar-se ao que vem de fora trazido pelos colonizadores. Porém, os quadros sociais dos africanos agem de maneira distinta, onde o folclore do africano quando não extinguido integralmente pela escravidão é devido à permissão, concedida, outras vezes não, pela corte portuguesa para uma possível reconstituição de suas práticas voltadas às lembranças da África. (BASTIDE, 05: 1959). Para Bastide, a concentração de força do folclore afro-brasileiro só teria chance de resistir a partir da institucionalização das relações sociais, como os grupos de confrarias religiosas (confrarias do Rosário, de Santa Ifigênia, de São Benedito), formada em sua maioria por negros. Em suma, empenhado em descobrir explicações sobre o folclore afro-brasileiro Bastide ressalta a importância em considerar as condições sociais, regidas pela economia escravagista, determinante para a formação e os caracteres do folclore africano. Quanto o folclore artificial inventado pelo catolicismo com o intuito de cristianizar as danças africanas, não podia subsistir senão na medida em que criava seus próprios grupos de organização. Mas, uma vez triunfante a Igreja, essas danças negras acarretavam prejuízo agora, tanto mais que já não concorriam para a elevação espiritual do negro. Era preciso pois separar a confraria dos homens de cor da congada e do maracatu para dispô-la na procissão cristã das imagens dos santos. No entanto, já se vinha criando um hábito, e a congada, rechaçada da igreja, tentou ainda manter-se. Os negros organizaram sociedades especiais, à maneira de grupos de teatro de amadores, que guardavam ciosamente, quer por via oral, quer escrito num caderno escolar, o texto da peça, que organizavam meses antes da festa, ensaiando os atores etc. A sobrevivência da congada é, pois, função da força de solidariedade desses grupos de jogos, desaparecendo onde quer que a solidariedade se afrouxe, subsistindo (dificilmente) onde mais estreita a solidariedade. No norte, o maracatu e o afochê encontraram no carnaval, que ocupa lugar de importância nas preocupações do povo, um centro fixo e firme que os preserva do desaparecimento; e como o maracatu está ligado ao xangô, e o afochê ao candomblé a solidez da “arqueocivilização” dos negros dá seu apoio a esses elementos do folclore catolizante, fornecendo em lugar da solidariedade e da disciplina da confraria, as dos grupos dos iniciados no culto dos orixá. (BASTIDE, 1959: 21). 22 O projeto colonial português regido sobre a égide do cristianismo interfere diretamente na dinâmica e nos novos arranjos da vida cultural, baseados nos valores catequéticos e da educação religiosa. O confronto entre os grupos identitários étnicos e sociais mostrava muitas vezes possuir um caráter ambíguo, transitando em movimento pendular entre a aceitação, aproximando-se do padrão cultural dominante, ou de resistência. (MONTEIRO; DIAS, 2010: 349-372). A formação e constituição de núcleos solidários de resistência representava o poder de subsistir os traços da terra nativa, bem como aliar forças de enfrentamento dos excluídos frente aos comandos de posse e controle do poder hegemônico dos senhores de engenho. Os efeitos desse processo moroso e gradual reabilitando o negro ao passado levaram a consolidação de espaços autônomos e a realização de práticas a assegurar o patrimônio cultural africano e de seus descendentes. Em Portugal a partir dos séculos XV e XVI irmandades de homens negros reuniam-se em associações religiosas, época em que a religião era o eixo de convivência da sociedade. Segundo Tinhorão (TINHORÃO, 2000: 87) 2 2 Pautada pelos estudos de Tinhorão sobre a coroação de reis congos em Lisboa no século XVI, Monteiro (MONTEIRO, 2011: 59) observa que: “expressava o reconhecimento da importância desse aliado dos portugueses na África, ao qual os negros manifestavam sua adesão, através de um auto festivo, em que os negros escravos reproduziam em Lisboa as embaixadas tribais presentes ao Mbazi a Congo (o terreiro ou o paço residencial dos reis do congo) para a escolha de seu rei suserano”. em Portugal desde 1520 é datada a existência de entidades da Confraria de Nossa Senhora do Rosário, instituídas por escravos africanos, em paralelo às igrejas dos brancos locais, passando a se chamar Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, quando vinda para o Brasil, por volta de 1674 a 1675. A primeira igreja da Nossa Senhora do Rosário em terras brasileiras surgiu em Recife, pautando-se na confraria de Lisboa para a realização das festas de coroação de Rei de Congo. 23 Figura 1: “Coroação de um Rei Negro nos Festejos de Reis” “Cortejo da Rainha Negra na Festa de Reis”.3 3 Aquarelas do Capitão de Mineiros da Artilharia da Corte, Carlos Julião (Turim, 1740 - Rio de Janeiro, 1811), pranchas XXXIX e XXXVI da coleção Riscos Iluminados de Figurinos de Brancos e Negros dos Uzos do Rio de Janeiro, com permissão da Biblioteca Nacional, que conserva o cimélio em sua Seção de Iconografia. Aquarelas originais, coloridas, 38,5 x 28,0 cm, respectivamente. Referência retirada em TINHORÃO, 2000: 126. 24 Os congos, congadas ou reinados de congo sustentavam e mantinham a longevidade da tradição de eleger reis e rainhas negros através das cortes e cortejos religiosos, em devoção aos santos e às nossas senhoras protetoras dos negros. Mário de Andrade define os congos como danças e entrechos dramáticos que desfilam por um cortejo real, derivado do bailado do costume de coroamento de reis, dizendo que o coroamento festivo é uma prática universal chamando-o de “Elementargedanke”, ou seja, ideia espontânea. Invocado pelos estudos do antropólogo James Frazer (1854-1941), Mário de Andrade denota que as primárias manifestações de solenidade aos novos reis estão diretamente associadas às celebrações mágicas dos mitos vegetais, em que a própria natureza elege os motivos comemorativos, como por exemplos, o nascer do sol, o advento da primavera após o inverno. (ANDRADE, 1982: 17). Com a chegada em Recife, as festas e rituais de eleição em homenagem aos reis e rainhas representavam as novas expressões religiosas e artísticas, reflexo das transformações culturais geradas do encontro entre o modelo europeu católico de civilização e o regime político religioso africano. Os autos do Congo em Recife foram reinterpretados e adaptados pelo maracatu, combinando arte-religiosa com música e dança afro-brasileira, aproximando ou fundindo o contato entre sagrado e profano4 (...) Em Recife, por ocasião das festividades da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, dançava-se o maracatu, que demonstra o encontro entre índios e negros da região, e que também causava suspeitas nas autoridades . A eleição de reis e rainhas, era uma prática muito antiga também em Pernambuco, onde eram acontecimentos anuais durante todo o século XVIII. A coroação ocorria no dia da Festa de Nossa Senhora do Rosário. Rei e Rainha do Congo representavam um sistema de governo africano, na medida em que possuíam autoridade sobre seus “súditos” e preservavam aspectos culturais e sociais da África, contribuindo para a integração e solidariedade dos negros no Brasil. 4 Marianna Monteiro fazendo uma análise das palavras de Fernando A. Novais refere-se a esse momento como o período de transição, correspondendo à passagem do sistema feudal para o capitalismo, contemporâneo, burguês, racionalista e de laicização do Estado. (MONTEIRO, 2011:64). 25 eclesiásticas. Na Mesa administrativa desta irmandade predominavam os negros e negras forras, que desenvolviam atividades econômicas e investiam boa parte de seus rendimentos nas cerimônias religiosas, sendo freqüentemente eleitos para rei e rainha do Congo. (QUINTÃO, 1996: 255-272). As congregações dos homens negros organizavam manifestações religiosas, procissões, festas e cortejos. Exerciam também atribuições de caráter social, como destaca Quintão (QUINTÃO, 1996: 255-272), através de auxílio aos necessitados, doentes, prisioneiros, concessão de dotes, proteção contra os maltratos dos senhores, ajuda na compra da carta de alforria e a garantia de enterro para os escravos. A organização econômica das irmandades resultava das contribuições dos seus próprios integrantes, dos oficiais da festa, das taxas de admissão, dos anuais, das doações e dos aluguéis de propriedades e terras. Pertencer às irmandades negras representava reconhecimento social e exigia a afirmação de um posicionamento político em contraponto ao domínio português no período colonial escravocrata, em contraste aos fortes preconceitos sociais e raciais sustentado pelo período. Ainda que a ocorrência de censuras e perseguições à receptividade da cultura afro-brasileira se mantivesse, como as fortes repressões na fase da Primeira República ao Estado Novo, sobretudo com o apoio das teorias racialistas, as atuações de negociação e resistência esteve em disputa, tecendo redes de solidariedade e de afirmação positiva da africanidade. 1.2 - Congadas e maracatu Na medida em que as coroações de Congo foram distanciando-se das tradições africanas ou africanizadas ocorre o processo de aculturação, ou seja, a adoção de novas características culturais que foram sendo incorporadas ao maracatu implicando na (re) formulação e (re) 26 modelação de seus cortejos vindo a compor o estilo característico da cultura popular pernambucana. Na concepção de Câmara Cascudo (CASCUDO, 1973:75) podemos observar que aculturação “é o resultado da influência de padrões estrangeiros na cultura orgânica de um povo”. E de acordo com Ortiz (ORTIZ, 1994:132) “o estudo dos cultos-africanos mostra a existência dos fenômenos de aculturação e sincretismo que indicam precisamente o aspecto das mutações culturais”. O fenômeno das trocas culturais é conceituado por Ortiz como transculturalismo, pois segundo o autor todas as culturas reúnem diversos elementos culturais misturados, que são provenientes de múltiplos traços culturais de diferentes povos. Por esse aspecto, Lima (LIMA, 2005:53) explica a noção de transculturalismo utilizada por Ortiz: Ortiz, ao construir o conceito de transculturalismo, insistiu em afirmar a inexistência de povos ou práticas culturais puras e originárias, ou seja, os atos humanos advindos das práticas e costumes culturais são sempre dotados de influências oriundas de outros povos. O transculturalismo é uma troca de diferentes culturas e que gera transformações em ambas as parte. Tal conceito nos deixa clara a idéia que essa troca não é feita por uma combinação de elementos puros, visto serem também os mesmos transculturais. (LIMA, 2005:53). O historiador e maracatuzeiro Ivaldo Marciano de França Lima em “Maracatus-Nação: ressignificando velhas histórias” respalda-se na teoria do transculturalismo para demonstrar que a perspectiva metodológica em buscar uma “pureza originária” de determinadas práticas e costumes culturais incorre na concepção linear e homogeneizante da história. Para o transculturalismo a construção cultural parte do processo sincrético da junção entre desiguais manifestações culturais e deve ser entendida sem um ponto único de surgimento. Posto isto, Lima ao analisar a produção bibliográfica de importantes estudiosos como Pereira da Costa, Guerra Peixe, Jarbas Maciel, Severino Barbosa, Renato de Almeida, Mario de 27 Andrade, Oneyda Alvarenga, entre outros, que pesquisaram e refletiram acerca do maracatu aponta a concordância que existe nessa literatura fundamentando que o maracatu é “fruto das tradições africanas”. Todavia Lima desconstrói essa visão, pois: Buscar as origens dos maracatus-nação sem entender o processo rico e dinâmico em que os fazedores da cultura agem e interagem na busca de definições e significados para o seu dia a dia, pode nos levar a uma mera catalogação linear, unilateral, longe da vida e do quotidiano de pessoas que construíram as aruendas, os congos, as cambindas e outras tantas manifestações culturais que podem ter tido ou não uma origem comum com os maracatus-nação. Estes últimos também não podem ser uma conseqüência direta dos festejos das coroações dos reis e rainhas do Congo, sem que tenha havido influências dessas outras manifestações culturais já citadas, ou até mesmo reinvenções que interferiram no formato inicial dos antigos maracatus-nação. Aliás, ainda hoje se encontram em meio a um vivo e dinâmico processo de transformações e alterações, que são frutos das intermediações dos seus fazedores com a sociedade contemporânea. As mudanças que ocorrem no seio dos maracatus- nação representam muitas variáveis que devem ser estudadas com maior profundidade pelos estudiosos comprometidos com a busca da compreensão das mais diferentes manifestações culturais. (LIMA, 2005:52). Conforme destaca Lima, as relações sócio-culturais são construídas diariamente a partir das experiências, recriando e ressignifcando complexas expressões culturais. Estabelecer uma correspondência direta que o maracatu constitui-se da reminiscência dos festejos das coroações dos reis e rainhas de Congo pode limitar a discussão, uma vez que o autor observa que: “há uma significativa quantidade de indícios que nos mostram a contemporaneidade dos maracatus aos reinados de Congo principalmente na segunda metade do século XIX.”, como cita o artigo de Leonardo Dantas, bem como refere-se à Oneyda Alvarenga que relata manifestações semelhantes aos maracatus no século XIX com os cambindas. (LIMA, 2005:48). De todo modo, eleger uma única origem para o maracatu no tempo e espaço torna-se improvável, uma vez que a cultura é um processo dinâmico e mutável. Por conseguinte, Lima questiona a recorrente associação feita da “origem” do maracatu ser de “procedência essencialmente africana”. O debatedor elucida que os símbolos, personagens e instrumentos do maracatu são compostos e permeados por outras localidades, embora a 28 presença dos bantos seja bem expressiva. Examina o autor que: “Em meio aos maracatus-nação existem costumes e heranças africanas, mas afirmar que os mesmos são uma tradição legitimamente africana é querer insistir na idéia de que os maracatuzeiros não viveram em uma sociedade diversa (...).” (LIMA, 2005: 137). Por exemplo, a “alfaia”, tambor utilizado no maracatu, também chamado de “afalhas”, “afaias”, “zabumbas”, ou “bombos”, aos que possuem a etimologia “faia”, advêm do árabe. A expressão “afalhas” estabelece uma ligação com os barris de vinhos produzidos no Rio Grande do Sul, região com população de descendentes europeus. O “bombo” é palavra de origem itálica, pertencente à família indo-européia. Assim, a junção da origem diversificada dessas palavras presume, conforme supõe Lima, o hibridismo cultural entre os povos presentes no processo de formação dos maracatus-nação. Ao que parece, temos diferentes contribuições culturais em meio a uma tremenda complexidade que resulta nos bombos, afaias, zabumbas ou alfaias dos maracatus. Entretanto, não teria Guerra Peixe cometido mais um equívoco ao afirmar que os barris constituíam o material utilizado para fazer os grandes instrumentos percussivos dos maracatus? Estamos formulando esta questão considerando o argumento utilizado por alguns maracatuzeiros na contemporaneidade de que as afaias “tradicionais” devem ser confeccionadas em troncos escavados de macaíbas, pois assim teriam sido construídas no passado, hipótese não comprovada documentalmente. Da mesma forma, fala-se entre os maracatuzeiros que esse tambor seria de origem africana, no entanto, precisamos antes de tudo, considerar que este modelo ainda hoje utilizado pelos maracatuzeiros se assemelha muito aos instrumentos usados pelos militares europeus, principalmente alemães, franceses, portugueses e ingleses. (LIMA, 2005: 59). O tambor descrito segue o formato europeu de amarração das cordas para o afinamento do instrumento, reproduzido, portanto, pelo maracatu. Contudo, Câmara Cascudo (CASCUDO, 1973: 315) expressa que a princípio os tambores surgiram de tronco oco e que depois variaram para tipos inteiriços de madeira, chamados de tambores xilofônicos manuseados, sobretudo, na África e Cuba. 29 O modelo vitorioso é o tambor com uma pele na extremidade, ou uma em cada base. Não me parece crível uma área inicial e única da invenção e sim alguns centros irradiantes sempre que coincidissem ecologia propícia e tendência pessoal criadora. Os mais antigos tambores foram encontrados no Egito e, curiosamente, nos finais do Império Médio, 1700 anos A.C., quando já existia o arco-musical que, pelo acabamento, devia ser posterior. A idéia de tapar a extremidade do tronco com uma pele certamente passou por muitos estágios experimentais nas raças e momentos culturais. Os australianos batiam as peles estendidas entre as coxas entreabertas. Ninguém pode provar que haja sido inicial. (CASCUDO, 1973: 315). Lima argumenta que em decorrência dos períodos colonialistas e neocolonialistas favoreceu o contato entre europeus e africanos e isso poderia ter contribuído para que os africanos se apropriassem do modelo de tambor tocado pelos militares europeus. Ou ainda, menciona que através do registro dos instrumentos ilustrado por Rugendas5 5 Lima (LIMA, 2005: 61) ao citar a ilustração “Congada” referencia que a obra pertence ao pintor e desenhista Jean- Baptiste Debret, entretanto há um equívoco, pois o quadro foi feito por Johann Moritz Rugendas. , representando a coroação de rei e rainha na festa de Nossa Senhora do Rosário, assinala o uso dos instrumentos pelos soldados portugueses no século XIX. Em “Congada” pintada por Rugendas em 1835 e na aquarela de Debret “Nossa Senhora do Rosário“ de 1828 ambos ilustram aspectos da manifestação cultural e religiosa africana ao reproduzirem pelo viés das artes plásticas a cerimônia do coroamento dos reis negros. Podemos conferir através da imagem a presença do tambor na cerimônia. 30 Figura 2: Congada (1835). Pintura de Johann Moritz Rugendas (1802-1858). A gravura ilustra a festa de congada no Brasil. Acesso em 08/06/2011 Disponível: http://www.paratiando.com/reinegro.html 31 Figura 3: Nossa Senhora do Rosário (1828). Pintura de Jean-Baptiste Debret (1768-1848). Membros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário recolhem donativos dos escravos. Acesso em 08/06/2011 Disponível: http://jorge-didi.blogspot.com/2011/04/vai-dar-samba-com-bira-do-ko-e-edson.html 32 No Brasil, com a chegada da Missão Artística Francesa em 1816, o Neoclássico é adaptado às especificidades climáticas dos trópicos e utilizado como referência pelos artistas Jean-Baptiste Debret (1768- 1848) e Johann Moritz Rugendas (1802-1858), entre outros, para retratarem através de desenhos e pinturas a vida social brasileira. As produções artísticas realizadas pelos viajantes buscavam demonstrar a representação real dos hábitos e costumes da vivência do povo brasileiro no século XIX. Neste sentido, Debret e Rugendas respaldados pela perspectiva Neoclassicista inovam os parâmetros estéticos ao romperem com o modelo de transmissão de imagens voltadas apenas às questões morais e religiosas difundido pela corrente Renascentista e Barroca e constroem um repertório visual descritivo do país através do registro da cultura afro e ameríndia. Tomando seus trabalhos não apenas como produção artística, mas, sobretudo considerando suas obras fontes iconográficas de importância documental para estudos e pesquisas científicas das relações escravistas no período colonial, Debret e Rugendas através da narrativa estética exploram o tema africanidades e realizam uma etimologia visual. Sob este aspecto suas obras contribuíram para a criação de um novo repertório visual para os artistas europeus que até então não tiveram contato com o Novo Mundo. Debret e Rugendas utilizam a fusão da cultura afro-brasileira como mote de abordagem para suas criações artísticas. A partir do sincretismo religioso que ocorre com a catequização dos povos africanos pelos colonizadores, como por exemplo, a ida de missionários portugueses ao Reino do Congo, a Nossa Senhora do Rosário passa a representar a santa padroeira dos negros e é incorporada no Brasil Colonial como tema de enredo das Congadas. A devoção cultuada e aclamada à Nossa Senhora do Rosário nos autos populares pelos escravos teria o apelo de livrarem-os dos sofrimentos causados pelos seus senhores. 33 Na perspectiva de Lima a elite branca beneficiava-se com as “festas de negros” da coroação dos reis de Congo, pois legitimava a sua superioridade do poder cultural e social e ainda contribuía para evitar rebeliões e fugas dos escravos: “Tal relação de subordinação dos escravos para com um rei e uma rainha negros, passível de controle por parte dos senhores, facilitavam o controle social”. (LIMA, 2005: 115). Apesar da intenção em eleger reis e rainhas negros de determinado distrito ou comarca estar imbuído por um interesse estratégico de manter o controle da massa escrava, as festas dos negros e os seus ritos favorecia a reconstrução da identidade e o enriquecimento da sociabilidade, recriando tradições provenientes da África. Mesmo considerando a intrínseca relação entre os reinados de congo com os cortejos de maracatu, tendo em vista a expressiva proximidade entre os seus símbolos e sentidos, faz-se necessário comentar, à guisa do debate levantado por Lima, que o “aparecimento” do maracatu dimanar da “reminiscência” de um passado ancestral distante, representar a “sobrevivência” da “tradição africana”, ser o “herdeiro” dos coroamentos das festas cristianizadas, não desvela a sua “origem” e das demais manifestações culturais nordestinas como os congos, taieiras, pretinhas do congo, aruendas, cambindas. Essas expressões culturais possuem semelhanças entre si por suas práticas compartilhadas, que historicamente ressignificam e atualizam as formas “permanentes” da tradição, conforme o contexto e as novas circunstâncias vivenciadas: A meu ver, é perfeitamente possível considerar a idéia de que os maracatuzeiros tenham feito uso das inúmeras heranças legadas pelas festas de coroação dos reis do congo, mas isso não implica em uma ligação direta entre um e outro, ou numa perspectiva de continuidade ininterrupta. A idéia de origem é absurdamente engessadora da criação e construção que estão presentes não só nos maracatus, mas em praticamente todas as manifestações culturais que conheci até os dias atuais. (LIMA, 2008: 159). 34 De acordo com Isabel Guillen (LIMA; GUILLEN, 2007: 20-22) as práticas e costumes dos rituais da cultura afro-descendente são ressemantizadas. Não que as tradições sejam desconsideradas, mas os próprios maracatuzeiros, xangozeiros e catimbozeiros atribuem novos significados e valores que emergem em suas relações, reinventando e reificando as coroações das rainhas do maracatu, a partir das constantes negociações e tensões com os diferentes segmentos sociais, em resposta ao período histórico inserido. Proferindo em despeito à tônica do maracatu ter originado-se do séquito de acompanhamento dos reis congos Martha Rosa (QUEIROZ, 2010: 87) considera o tema alçar por um longo debate. Ao trazer Lima para suas reflexões compreende que o historiador quando escreve sobre as práticas culturais do maracatu não as associam estritamente a uma ideia de manutenção ou permanência, ausente de rupturas e regidas, portanto, exclusivamente sobre as influências advindas da África: A advertência de Lima, que se situa em torno dos debates sobre origens, autenticidade, e tradição nos maracatus-nação, é dirigida às representações que colocam os maracatus-nação como reminiscências africanas, significando práticas culturais inalteradas. Tais representações negam historicidade às manifestações populares, ao tempo que colocam seus protagonistas como enclausurados em seu mundo, exercendo suas práticas culturais de forma idêntica aos seus mais remotos antepassados e sendo alheio aos diálogos com outros segmentos sociais e com o seu tempo. A documentação sobre a trajetória dos maracatus revela outro quadro. Foi o que o historiador Ivaldo Lima, em obra aqui citada, constatou ao descortinar a historiografia sobre o tema, a história de vida de alguns maracatuzeiros e a relação dos maracatus-nação com a sociedade recifense a partir dos últimos anos do século XIX. O autor nos revela uma trajetória dinâmica fruto das constantes ressignificações pelos seus protagonistas e pelo seu envolvimento em múltiplos movimentos de circularidade cultural. (QUEIROZ, 2010: 23). Esta visão evidencia sobremaneira o ponto de vista de Lima que atenta para homens e mulheres sujeitos de suas histórias que constroem e recriam suas participações nesses eventos, transformando hábitos, usos, feitos, crença, música, dança, estética, aderindo diariamente novos significados ao maracatu. 35 A “origem” do maracatu ressignificada por seus agentes é essencial para a elaboração das identidades dentro do campo de disputas que se adaptam às dificuldades e às novas necessidades, tanto no passado quanto na atualidade. Lima utiliza o termo bricolagem para designar a possibilidade de confluências entre uma manifestação cultural em outra, sucedendo “empréstimos tácitos” ou a existência de um “complexo trânsito de informações que eram suficientes para responder às vicissitudes do quotidiano que teimavam em aparecer”, desmitificando os conceitos e certezas científicas que imprimem uma origem linear para o maracatu a partir das festas de coroação dos reis e rainhas do congo. (LIMA, 2008: 329). É necessário reafirmar que as congadas e maracatu constituem-se por complexos arranjos políticos-culturais representando artisticamente através dos cortejos a trajetória histórica afro-descendente, que recompõe e refaz seus costumes. Com o apoio do referencial teórico consultado, discorremos sobre a importância em criticar as referências dos intelectuais, folcloristas e memorialistas que estabelecem uma “origem” para o maracatu, estabilizando suas expressões artísticas e culturais, onde oculta as transformações simbólicas reinventadas e negociadas constantemente pelos maracatuzeiros, protagonistas e criadores de suas escolhas mediados pelos meandros de seus contextos e conjunturas. 1.3 - Maracatus e suas definições Do contato do afro-brasileiro com a estrutura cultural européia resultaram diversas manifestações culturais e artísticas que, a despeito das buscas teóricas pela “verdadeira” origem 36 de cada uma delas, não é exagero algum afirmar que elas transformaram-se e reinventaram-se no tempo e espaço. Não será estabelecida uma espécie de desafio teórico para aferir qual das correntes interpretativas, que tentam desnudar as razões e/ou motivações que fizeram surgir os maracatus, está com a verdade. Todavia, é salutar trazer à baila a problemática colocada em discussão por algumas das marcações teóricas. Neste sentido, cumpre apresentar algumas questões como: (mas que não serão resolvidas neste estudo, dada a complexidade e inesgostabilidade do tema) o que são e como podemos caracterizar os maracatus? Quais as suas influências, tradições, costumes, símbolos? Como as suas representações são desenroladas e apresentadas? Em geral não é simples definir o que é folclore, pois há muitas interpretações em jogo. Podemos afirmar, todavia, com alguma segurança, que o termo não se traduz como sendo apenas a tradição de um povo, mas ele incorporou a noção própria de cultura. Mas, de qual cultura estamos falando? Conforme Câmara Cascudo mistura uma coisa com a outra e define folclore como “a cultura do popular tornada normativa pela tradição”. (BRANDÃO, 1982: 24). E ainda segue Brandão: Pouco a pouco, mas não em todos os lugares, a ideia de folclore como apenas tradição popular, as sobrevivências populares, estendeu-se a outras dimensões. Dimensões mais atuais, mais associadas à vida do povo, à sua capacidade de criar e recriar. Tudo aquilo que, existindo como forma peculiar de sentir e pensar o mundo, existe também como costume e regras de relações sociais. Mais ainda, como expressões materiais do saber, do agir, do fazer popular. Não apenas a legenda do herói ancestral, o mito (aquilo que muitas vezes explica, tanto a camponeses quanto a índios, a origem do mundo e de todas as coisas), mas também o rito, a celebração coletiva que revive o mito como festa, com suas procissões, danças, cantos e comilanças cerimoniais. Não apenas a celebração, o rito, o ritual, mas a própria vida cotidiana e os seus produtos: a casa, a vestimenta, a comida, os artefatos do trabalho, os instrumentos da fiadeira que vimos em Olhos d’Água algumas páginas atrás. (BRANDÃO, 1982: 30). Entre as várias definições do termo folclore, os estudiosos brasileiros irão destacar dois aspectos que compõem a complexidade do termo e sobre os quais surgiram sérias polêmicas. 37 Primeiro, aquele que relaciona o folclore à noção de cultura primitiva, aos mitos, lendas e cantos, por exemplo, das sociedades tribais dos índios do Brasil. Segundo, o qual considera o folclore como uma disciplina diferenciada de uma ciência, a Antropologia, e não como ciência autônoma. Arthur Ramos, um dos pioneiros do estudo sistemático do folclore brasileiro, compreendia-o como “uma divisão da Antropologia Cultural que estuda os aspectos da cultura de qualquer povo, que dizem respeito à literatura tradicional: mitos, contos, fábulas, adivinhas, música e poesia, provérbios, sabedoria tradicional e anônima”. (BRANDÃO, 1982: 26). A criação do folclore pode até ser inicialmente expressada por uma pessoa, mas ela torna- se uma manifestação folclórica na medida em que é coletivizada, comungada, recriada e presente na memória oral da comunidade, tornando-se domínio público. Trata-se, portanto, do resultado da coletivização que é reproduzida e aceita ao longo do tempo; da coletivização dependem a sua renovação e dinamismo. Dado seu caráter marcadamente coletivista e dinâmico, como analisar as manifestações culturais populares ou folclóricas sem circunscrevê-las ao terreno do purismo originário? Isto é, deixando de considerar as fusões e transformações das tradições populares? Neste sentido, Ivaldo Marciano de França Lima considera que muitos autores ao partilharem certa “obsessão” em estabelecer a origem africana do maracatu, por exemplo, como verdade, teriam relegado aos maracatuzeiros o lugar social de exilado, estrangeiro na própria pátria. E, explica: Praticamente todos os que escreveram sobre os maracatus participaram do debate em torno das origens, ora afirmando serem estes sobrevivências totêmicas, ora reminiscências do passado escravista, ou apenas folclore, restos de uma memória que se esvai no tempo e no espaço. Em raros momentos encontrará o leitor uma discussão dos maracatus como construção de homens e mulheres inseridos em uma sociedade, na qual buscavam espaços e poder. (LIMA, 2008: 28). Portanto, para Ivaldo, o entendimento do maracatu deve abarcar toda a complexidade histórica e social que o envolve, revelando a complexidade das práticas e costumes para não 38 incorrermos na cristalização dessa manifestação cultural, que secundariza os próprios sujeitos envolvidos, bem como a sua capacidade criadora e suas escolhas, em favor da tradição e filiação. Os maracatus eram construções culturais contemporâneas e dotadas de significados diversos, dos quais com certeza a diversão era um deles. Mas também não tenho como resumi-los a esse único sentido, uma vez que, em meio aos anseios e festejos, as identidades se constituíam, auferindo-lhes a criação de um mundo em que eram sujeitos e partícipies. (LIMA, 2008: 51). O maracatu de baque virado em Recife, Estado do Pernambuco, é um exemplo de manifestação popular que existe sobre as influências dos elementos da cultura africana. A cultura popular, no sentido amplo, é identificada com o folclore6 6 Para Cavalcanti (CAVALCANTI, 1980:1) a palavra folclore surge do neologismo inglês folk-lore utilizado, em 1846, pelo inglês William Thoms, que significa “saber do povo”, ou seja, formas de conhecimento expressas pelas criações culturais por diferentes grupos em sociedade. , como sendo conjunto de práticas e concepções transmitidas pela tradição. Dinâmica e em constante transformação, todavia, a cultura popular possui uma vitalidade que permite absorver e reelaborar inúmeras influências advindas do contato com outros costumes. O maracatu de baque-virado é uma manifestação cultural expressa através dos cortejos reais de coroamento dos reis negros. Em referência à eleição do rei e rainha de Congo o maracatu pode ser considerado como representante da tradição das Congadas Coloniais. O Congo recorda costumes e elementos da vida africana figurada nos desfiles dramáticos de entronização dos novos reis, exprimindo através das danças cantadas uma referência às práticas religiosas, trabalhos, guerras e festas da coletividade. O maracatu de baque virado sai pelas ruas recifenses no carnaval ou nos meses que antecedem as festas, organizadas em nações ou cordões de maracatu, divididos geralmente pela origem religiosa ou geográfica, que caracteriza a formação de identidade de cada nação. Conforme percebe Ortiz: 39 A cultura popular é heterogênea, as diferentes manifestações folclóricas – reisados, congadas, folia de reis – não partilham um mesmo traço em comum, tampouco se inserem no interior de um sistema único (...) a cultura popular é plural, e seria talvez mais adequado falarmos em culturas populares. No entanto, se tomarmos como ponto de partida cada evento folclórico em particular (um reisado, uma congada), a comparação com os cultos afro-brasileiros é legítima. É através das sucessivas apresentações teatrais que ela é realimentada. Isto significa que os grupos folclóricos encenam uma peça de enredo único que constitui sua memória coletiva: a tradição é mantida pelo esforço de celebrações sucessivas, como no caso dos ritos afro-brasileiros. (ORTIZ, 1994:134). Para Peixe no Recife: “as nações eram constituídas por gente de várias procedências, nas quais havia predominância banto – especialmente angolana, a julgar pesquisas sobre a entrada de negros realizadas em Pernambuco, referentes, pelo menos, ao século XVII”. (PEIXE, 1980:19). Assim, a união em nação7 Ou seja, os maracatus-nação praticados em Recife conforme explicação acima, não pode ser entendidos apartado das relações e práticas sociais cotidianas. Antes, o maracatu estava impregnado por representações simbólicas e de poder baseadas nas tramas da vida social que se desenvolvia naquele contexto histórico. remete ao modo como os negros escravos sobreviventes formavam núcleos solidários que, em muitas ocasiões, lideravam rebeliões e levantes visando assegurar o patrimônio cultural africano. Peixe ressalta que: Agrupamentos semelhantes apareciam no Recife e recebiam designativos próprios, como “nação Ardas”, “nação Rebolo”, etc. Estudos posteriores à época, vieram esclarecer que tais grupos não passavam de meros ajuntamentos de escravos, uma vez que a monarquia branca procurava mantê-los misturados, a fim de que não se organizassem para a exclusão de desordens e não promovessem insurreições. (PEIXE, 1980:17). 7 Identificamos através da citação de Lima que: a formulação “grupo de procedência” é uma importante construção intelectual que permite entender melhor o que era denominado por “nação” no Brasil escravista. Nesse sentido, a “nação mina” é um “grupo de procedência” e não um grupo étnico, assim como as demais nações que durante muito tempo foram consideradas por alguns intelectuais como etnias efetivamente existentes no continente africano. Essa questão está ainda presente nos debates antropológicos acerca das religiões de divindades, bem como, ou principalmente, entre seus praticantes, que afirmam, por uma questão identitária, a origem africana de sua nação. Evidentemente que os membros dessas nações de candomblé não constituem grupos étnicos, e ao longo do século XIX foram reunindo diversos outros grupos. Devo destacar que existe ainda hoje nos estudos das religiões de divindades e entidades a ideia recorrente de pureza e de superioridade de um “grupo étnico” (os nagôs) em relação a outro (os bantos). (LIMA, 2007: 73-74). 40 As nações representavam um meio dos escravos se relacionarem, uma vez que existia uma política que impedia a concentração de africanos originários de semelhantes etnias em espaços comuns para que se evitasse sua manifestação cultural e articulação de fugas durante o tráfico de escravos ou com a chegada destes nas propriedades. Enfrentando a diversidade linguística-cultural o negro escravo encontrava na formação das nações as mínimas condições de conservar seus hábitos, costumes, práticas, feitos, crenças e, ainda, aliar forças de resistência aos desígnios dos senhores de engenho. Desse modo, os maracatus-nação reproduziam a estrutura organizativa dos escravos negros em nações, sendo as principais em Recife, a partir de 1800, a Nação Elefante, já extinta, Nação do Leão Coroado (1863), Nação Estrela Brilhante (1910), Nação do Porto Rico (1916) e a Nação Cambinda Estrela (1935). 41 Capítulo 2 - Grupos de maracatu na cidade de São Paulo Nos dias atuais possivelmente identificamos na capital paulista a presença de diversos grupos de maracatu que se apresentam no formato de cortejo e batuque ou mesmo em apresentações de palco, tais como: Arrastão do Beco, Balé Popular Cordão da Terra, Banda Maracatu Vigna Vulgaris, Babado de Chita, Baque Sinhá, Baque Cidade, Cangarussu, Cia Brasílica, Cia Caracaxá, Cia de Artes do Baque Bolado, Cia de Cultura Popular Lelê de Oyá, Cia Porto de Luanda, Companhia Brasílica, Coro de Carcarás, Ederbatuque, Grupo Batuntã, Grupo Cultural Baque das Ondas, Grupo de Maracatu Ilê Aláfia, Grupo Maracatu Bloco de Pedra, Maracatu Nação São Miguel, Maracatu Ouro do Congo, Mucambos de Raiz Nagô, Sucatas Ambulantes e Umoja Brasil. Podemos atribuir que com o surgimento de grupos em Recife como Maracatu Nação Pernambuco, fundada em 1989, pela classe média recifense e olindense; o movimento musical chamado mangue beat, idealizado pelo músico Chico Science, que une as batidas do maracatu aos arranjos eletrônicos (KOSLINSKI; SANTOS, 2011: 4); a chegada de músicos e artistas nordestinos à São Paulo, sobretudo de Pernambuco, alguns pertencentes aos maracatus-nação, como o caso de Eder “O Rocha”, passando a ministrar oficinas de percussão do ritmo do maracatu de baque-virado na cidade, difundem e popularizam largamente o maracatu, contribuindo esse processo para a formação de grupos pela capital e região de São Paulo. Contudo, Lima (LIMA, 2007: 12) contesta que para explicar o sucesso dos maracatus- nação e, por conseguinte sua disseminação por lugares externos à Recife, deve-se considerar outras variáveis, como o processo de mercantilização da cultura popular, com o surgimento da indústria cultura na década de 1970, aparecendo nesse contexto o termo “cultura de massa”, ou 42 seja, a cultura produzida com fins para o mercado e para o seu consumo, o momento favorável da exploração do turismo e a preferência pelo gosto exótico das culturas populares, e o crescimento mundial do consumo da “word music”, reunindo indicativos que vão de encontro e soam em consonância para o surgimento de grupos de maracatu. Lima cita a participação de maracatuzuzeiros e maracatuzeiras que compartilharam e ainda estão presentes nos maracatus- nação realizando seus baques e fazendo parte da história constitutiva da memória e pertencimento ao maracatu que influenciam para formação de outras agremiações e grupos. (...) o fato de que não se pode entender o sucesso atual dos maracatus sem levar em conta a atuação obstinada de alguns maracatuzeiros e maracatuzeiras. Maria Madalena – falecida rainha do Maracatu Nação Elefante - Rosinete, Luiz de França, Zé Gomes, Tercílio e outros tantos que mantiveram seus maracatus à custa de uma combativa e inequívoca disposição em entregar para a posterioridade as suas nações, ainda hoje em funcionamento, diga-se de passagem. Estes são apenas alguns dos muitos exemplos louváveis a serem citados. Mas não posso deixar de comentar que os militantes negros também construíram estratégias e discursos sobre os maracatus. (LIMA, 2007: 12). Em meio ao período entre final dos anos de 1980 e início da década de 1990, a participação dos Movimentos Negros (MNU) nos maracatus trazendo a valorização da cultura afro-descendente e a busca da afirmação da negritude, juntamente aos investimentos dos órgãos públicos mantenedores do carnaval com fomento voltado para a cultura pernambucana, o auxílio da Comissão Pernambucana de Folclore, com premiação em dinheiro estimulando a indústria turística, são também responsáveis do alcance do maracatu ir de encontro à classe média e a sociedade em geral tornando-se cada vez mais conhecido e praticado através do surgimento de novos grupos. Os grupos percussivos constituídos majoritariamente por jovens brancos de classe média são, sobretudo, na perspectiva de Lima, interessados em fazer música e em sua maioria o cortejo não compõe em suas apresentações. Assim, esses grupos são denominados como grupos “estilizados” ou “pará-folclórico”, em que a mistura é a marca registrada e característica. 43 Há aproximadamente em torno de cem destes grupos que se apresentam e ensaiam ao longo do ano na cidade do Recife e região metropolitana, disputando espaços com aproximados trinta maracatus-nação. Um encontro semanal congrega muito dos integrantes desses grupos, conhecidos entre os jovens batuqueiros como Traga a Vasilha, e que tem angariado sucesso e legitimidade para quem frequenta o Bairro do Recife toda sexta-feira, dia em que se reúnem. Fora de Pernambuco, há grupos que se reivindicam como maracatus, dotado de força e visibilidade no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Brasília, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Santa Catarina e outros estados brasileiros. No sudeste esses grupos adquirem relativa visibilidade, sobretudo por estarem em “grandes vitrines” culturais por disporem de recursos que lhes permitem ter uma nova chance, gravando Cd’s, realizando apresentações em casa de shows famosas e arrebanhando simpatizantes. (LIMA, 2008: 57). Em busca de um levantamento e mapeamento de grupos percussivos de maracatu de baque virado pelo Brasil (com exceção das próprias nações e outros grupos de Recife que não citamos na legenda desse mapa), e depois o acesso ao mapa que identifica grupos de maracatu em alguns países, podemos identificar os seguintes nomes e os respectivos lugares em que foram criados: 44 Figura 4: Mapa dos grupos percussivos de maracatu de baque virado pelo Brasil. 45 Figura 5: Mapa dos países com grupos maracatu de baque virado. 46 A partir desse “boom do maracatu” 8 8 A expressão “boom do maracatu” refere-se a valorização da cultura popular pernambucana, especificamente, o maracatu, propiciando um momento favorável para as nações, sendo algumas reativadas, nações sendo criadas e fundadas e a criação de grupos de maracatu espraiando-se em diversas regiões do Brasil e internacional. (TSEZANAS, 2010: 87). , optou-se em pesquisar neste capítulo dois grupos de maracatu de São Paulo que elegemos a Cia Porto de Luanda e o Grupo Maracatu Ilê Aláfia, para discutir seus aspectos culturais e artísticos. Elegemos-os por possuírem temporalidades de atuação semelhantes e a característica em desenvolver trabalho sócio-cultural com comunidades de vulnerabilidade e risco social e de baixa renda. Não obstante, a Cia Porto de Luanda desenvolve trabalho voltado para a percussão do maracatu de baque virado e, em contrapartida, o Grupo de Maracatu Ilê Aláfia representa um dos poucos grupos de São Paulo que agrega ao desfile o cortejo real. O cortejo do maracatu encontra-se hoje nas ruas, nos palanques, nas festas carnavalescas e comemorativas, no tempo-espaço sagrado e profano da sociedade. O som de instrumentos musicais como alfaias, gonguês, mineiros e caixas identificam o ritmo do maracatu. Vozes e toadas (músicas) diferenciam o grupo, as suas reivindicações, o seu lamento. Os personagens são assumidos pelos membros da comunidade e vividos ritualisticamente na corte. Rei, rainha, príncipes, princesas, embaixadores, escravos, dama-dopaço, baianas, soldados romanos, batuqueiros, dentre outros, configuram este cenário. O som do batuque vai convidando as pessoas ao cortejo dançante, com gestos solenes e contidos para os membros reais, e mais soltos e despojados para o restante da corte. Uns cumprem função laboral, como os soldados romanos e os lanceiros, que fazem a proteção do rei e da rainha; ou ainda os vassalos que abanam os reis com leques, amparam suas capas e seguram o pálio (espécie de guarda-sol que acoberta os reis). Outros têm uma função festiva, comemorativa, de gestual despojado, como as baianas que integram o cortejo, sejam as chamadas “ricas”, com roupas mais sofisticadas, e as “pobres”, que dançam em cordões e usam chitão. Os gestos lembram os movimentos das danças de orixás: muitos giros, passos curtos, com trejeitos de ombros, gingados de quadril, flexão de braços e balanceados. Há quem tenha função mítico-religiosa, como a dama-do-paço – personagem feminino que dança segurando a boneca calunga. Esta, quase sempre de madeira e cor preta, vestida à moda da realeza (vestido rodado de seda), é certamente um dos fetiches, uma das representações bastante curiosas do maracatu e que reforça a sua função mítico-religiosa. (LARA, 2004: 116). 47 2.1 - Cia Porto de Luanda A história da Cia Porto de Luanda inicia-se a partir de 2003 com oficinas de maracatu de baque virado realizadas por Silvio Ribeiro Viana em bairros da zona leste da cidade de São Paulo e municípios da região como Guarulhos e Mogi das Cruzes. Com convite de Valter Passarinho realizou apresentações junto ao Grupo 16 Toneladas em São Miguel Paulista; atuou em Guaianazes; acompanhou até o ano de 2007 o Grupo Maracatu Boygi (palavra indígena que significa “rio das cobras”), atualmente coordenado por Alessandro Sales. A partir dessas experiências com o maracatu derivaram-se também outros dois grupos Cia de Cultura Popular Lele de Ioá e Sucatas Ambulantes. O nome Cia Porto de Luanda completará 10 anos, entretanto desde 1995 Silvio vem estudando, pesquisando sobre o maracatu, participou em 1999 de aulas na Universidade Livre de Música de São Paulo (ULM), aprimorando as técnicas percussivas do baque virado através de oficinas com os mestres dos maracatus-nação convidados a virem para São Paulo como Valter, que conduz o Maracatu Nação Estrela Brilhante, Chacon Vianna que conduz o Maracatu Nação Porto Rico, Toinho que conduz o Maracatu Nação Encanto da Alegria, vivencias com as nações em Recife, em 1994, sobretudo o Maracatu Nação Estrela Brilhante, bem como aulas com Eder Rocha, músico e percussionista desde 1983, referência musical no leciono do ritmo de maracatu em São Paulo. Com o passar do tempo as práticas do maracatu da Cia Porto de Luanda conduzida por Silvio ficaram concentradas em Itaquera na Escola Estadual Prof. Milton Cruzeiro, através do projeto “Identidade Tambor”, com encontros e ensaios gratuitos e abertos para os interessados, aos sábados, em parceria com o Programa Escola da Família, criado desde 2003 pela secretaria de Estado da Educação. O trabalho junto às escolas tem como objetivo, segundo a Cia Porto de 48 Luanda, fazer com que os alunos desenvolvam um olhar cultural, gerando o acolhimento das diferentes origens. De acordo com o grupo Cia Porto de Luanda a região de Itaquera9 Para a Cia Porto de Luanda o trabalho desenvolvido tem muito a contribuir para a promoção da tolerância e a valorização da cultura afro-descendente e os resultados obtidos tem motivado bastante a continuidade das ações artísticas e culturais. As impressões da Cia Porto de Luanda sobre suas atividades é de benefício à comunidade ao promover conhecimento, cultura, alegria, auto-estima, e a promoção de habilidade na construção de instrumentos, oferecendo um meio alternativo de autonomia financeira com o ofício de luthieria. Neste sentido, a Cia Porto de concentra-se um elevado número de moradores negros, com características sociais de vulnerabilidade, portanto, consideram o lugar com necessidades condizentes para o desenvolvimento de um trabalho de valorização da cultura afro-descendente brasileira. Por isso, a Cia Porto de Luanda baseada nas estatísticas oficiais que afirmam o Brasil como a segunda maior nação de povos de matriz africana, identifica o preconceito em relação à cultura afro-descendente e, diante deste quadro, um dos principais focos do trabalho da companhia é sua prática junto aos professores e alunos de escolas públicas da região de Itaquera, promovendo um intercâmbio cultural com outros grupos locais no ambiente escolar. A Cia Porto de Luanda não verifica um trabalho semelhante ao que realiza na região. Declara que as pessoas que tem afinidade e interesse com o maracatu e outras manifestações da cultura popular brasileira muitas vezes é necessário locomoverem-se para longe a fim de estabelecer esse contato e interação. 7 Segundo censo do IBGE a população total de Itaquera é de 204.471 habitantes. Em 2010, 1,11% dos centros culturais, espaços e casas de cultura do município localizavam-se nesta subprefeitura/distrito. Em 2010, 0,85% dos equipamentos culturais públicos do município localizam-se nesta subprefeitura/distrito. Em 2009, 0,00% pessoas foram beneficiadas por atividades culturais. Em 2010, 0,81 dos pontos de cultura do município localizam-se nesta subprefeitura/distrito. Em 2010, 0,00% das salas de show, concertos e teatros do município localizam-se nesta subprefeitura/distrito. (Fonte MINC – Ministério da Cultura). 49 Luanda observa que representa um movimento de preservação e continuidade da matriz cultural africana em Itaquera e compreende a atuação como “uma necessidade de viver e sobreviver dentro de um mundo que se orgulha de sua herança cultural”. Nos anos de 2008 e 2009 a Cia Porto de Luanda foi contemplada com o Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), que possibilitou melhorar a estrutura do grupo construindo-se mais instrumentos musicais, como alfaias e abgês (que são patrimônios do grupo), implantar oficinas de percussão e dança, elaborar a confecção de figurinos, atuar na comunicação e divulgação do projeto, resultando no melhor desempenho quantitativo e qualitativo das atividades. Assim, pode-se alcançar uma adesão de integrantes nunca antes atingida, ampliando a participação e o desenvolvimento cultural e artístico da comunidade sobre melhores condições de infra-estrutura. A escolha do nome do grupo deve-se a uma conversa entre Silvio e o mestre de dança Maurício da Nação Maracatu Estrela Brilhante que contou uma história sobre Luanda ser no período da escravidão um porto de Angola referência na comercialização dos negros e os africanos eram atraídos a irem para esse local a convite de um passeio seguido de apresentações musicais para receber os portugueses, ingleses, holandeses, entre outros, que lá estavam esperando. Entretanto, quando chegavam ao porto de Luanda eram embarcados nos porões do navio negreiro e jamais houve o retorno dessas pessoas. No momento em que Silvio fez a proposta do grupo chamar-se Porto de Luanda houve a inquietação por parte de alguns integrantes batuqueiros alegando que São Paulo não havia porto, água, tão pouco mar, mas com o tempo a aceitação do nome foi consensual. O Porto de Luanda é uma companhia de arte que realiza pesquisas e desenvolve vários ritmos além do maracatu de baque virado, como jongo, coco, ciranda, frevo, batuque de umbigada, samba de bumbo, ritmos 50 do norte com o carimbo, ciriá, lundu, pretinha de angola, dança do boto, retumbão, xote bragantino, boi tatá. Atua em parceria com outros grupos e companhias, realiza apresentações de música e dança, desfiles, cortejos, contação de história e manipulação de fantoches. Atualmente a Cia Porto de Luanda está com o projeto cênico “A Menina e o Vento” com contação de história e a presença musical no espetáculo com os ritmos do coco, samba paulista, batuque de umbigada e jongo. A Cia Porto de Luanda está sobre a coordenação do idealizador do projeto Silvio, Camarão, Gelsão e Mariana que é responsável pelas aulas de dança. As regras e valores do grupo são conduzidas e resolvidas pela coordenação e durante a semana reúnem-se para planejar as atividades e elaborar o roteiro das apresentações. No ano corrente, a Cia Porto de Luanda objetiva com as oficinas de maracatu aprimorar o conhecimento e técnicas específicas dos instrumentos utilizados no maracatu e desenvolver a médio/longo prazo outras manifestações como o jongo, congo, coco, sambados e o boi, que são pretensões e vontades que o grupo possui. Para a companhia o papel das oficinas não é criar dançarinos, mas sim permitir a vivência de possibilidades no universo das expressões do maracatu, estimulando a experiência, criação/produção e análise/apreciação artística. A dança para a Cia Porto de Luanda é uma das mais poderosas formas de comunicação e expressão, uma forma de linguagem universal e faz parte da cultura corporal da humanidade. No maracatu, ela se apresenta como uma manifestação eminentemente social, de identificação de um grupo, integração e forma de lazer, como um elemento de resistência e sobrevivência da identidade afro-brasileira. Os movimentos da dança no maracatu conversam com o toque do baque virado e se relacionam com o tipo específico de cada sonoridade produzida pelos maracatus-nação, pois as nações possuem uma especificidade de expressão, um sotaque próprio 51 rítmico e de dança. O trabalho da dançarina Mariana da Cia Porto de Luanda é reproduzir os diferentes passos referentes de cada maracatu-nação e demonstrar como interpretar esses passos dentro do baque. A dança no maracatu é passada de geração para geração através das nações e os passos de dança executados pela Cia Porto de Luanda procura seguir, dar continuidade a marcação dos passos característicos de cada maracatu-nação. A finalidade ético-estética do corpo que dança maracatu não é uma “finalidade sem fim”. Há vários interesses que cercam o grupo e que envolvem necessidades hedônicas de preservação e divulgação das tradições populares, de luta, de reconhecimento da comunidade, de ganho financeiro, de prestígio e ascensão social. Não é um fazer desinteressado, nem tampouco é independente da experiência. Pelo contrário, trata-se de um saber construído, sobretudo, pelas experiências individuais/coletivas de cada um dos membros da comunidade. (...) O corpo que dança no maracatu segue normatizações instauradas pela transmissão da gestualidade ao longo dos anos. O ingresso no maracatu, muitas vezes, já na infância, a convivência constante com sua música, batuque e dança, o envolvimento da família com as tradições populares, contribuem para disseminar e preservar características gestuais essenciais, próprias dessa manifestação. Estas podem ser definidas, de modo geral, pelo caminhar gingado para várias direções, pelos giros e balanceio alternado de braços flexionados ao longo do corpo. O próprio ritmo dos batuques parece conduzir a esta movimentação. Trata-se de um gestual mítico, ritualístico, que ora se renova. (LARA, 2004: 185). A Cia Porto de Luanda compreende que é de responsabilidade do grupo conseguir levar a manifestação do maracatu da forma mais coerente e de respeito com os maracatus-nações para que não seja perdido o seu fundamento e a memória ancestral. Atualmente a Cia Porto de Luanda está empolgada com a ala mirim de catirinas (dançarinas do maracatu) e tiveram uma participação ativa de pessoas da terceira idade, concretizando o entendimento do grupo em cumprir o papel social, de inclusão, do maracatu para a comunidade. Assim, o maracatu não possui uma coreografia, mas passos bases e dentro desses passos acontecem as “brincadeiras”, como chama Mariana, por exemplo, a girada final que rodopia a saia quando ocorre a “viração”, expressão utilizada quando ocorre a mudança de ritmo por parte dos batuqueiros. Mariana relata que há a necessidade em “ter um ouvido aguçado pra entender o 52 que os batuqueiros estão tocando” para que assim possa marcar os passos da dança de acordo com a nação que está sendo tocada. Na dança da Cia Porto de Luanda há o uso das saias que são emprestadas para os ensaios e para as apresentações cada integrante providencia a sua. As catirinas dos maracatus-nação utilizam o tecido de algodão chita para a confecção das saias, entretanto na Cia Porto de Luanda é utilizado outras variações de materiais, como o cetim, e todo o ano há a alteração do figurino do grupo para as apresentações. A camiseta do grupo também é de responsabilidade de cada integrante adquiri-la, para a identificação do grupo nos cortejos. O porta-estandarte da Cia Porto de Luanda foi pensado pelo grupo partir das cores do manto da Nossa Senhora do Rosário, vinho e azul, que segundo os integrantes é difícil precisar uma cor certa. A Nossa Senhora do Rosário é a padroeira da Cia Porto de Luanda e tem sua imagem estampada no porta-estandarte. Nos cortejos da Cia Porto de Luanda o porta-estandarte está sempre presente. Ao analisarmos Tsezanas comentar sobre uma entrevista de Dona Elda, rainha do Maracatu Porto Rico, parte de entrevista realizada por Carmem Lélis e Paula Lira, em Recife, em 1995, o estandarte e o papel que o embaixador representa para a o maracatu-nação durante os cortejos verificamos a semelhança da simbologia que a Cia Porto de Luanda possui com relação ao seu próprio estandarte, tanto nos detalhes estéticos da confecção quanto na sua presença nos desfiles. O estandarte é um símbolo forte da identidade do grupo, cuidadosamente confeccionado em veludo, que contém o nome e data de fundação do grupo bordados geralmente com linhas douradas ou prateadas. No desfile ele é carregado pelo embaixador, figura importante do cortejo, que costuma ser assumida sempre pela mesma pessoa. O embaixador, porta estandarte dos cortejos de maracatu, também dança, não pode levar o estandarte andando naturalmente, e está sempre virando o objeto para todas as direções. Dona Elda comenta em entrevista concedida à Carmem Lélis, que os maracatus usam 53 estandarte devido às regras da competição carnavalesca. O certo, segundo ela, seria uma bandeira como nos tempos da África. (TSEZANAS, 2010: 99). Figura 6: Porta- estandarte da Cia Porto de Luanda Acesso em 08/06/2011 Disponível: http://portodeluanda.maracatu.org.br 54 As apresentações da Cia Porto de Luanda contam com um repertório fechado de aproximadamente 15 toadas de cada maracatu-nação, especialmente o Maracatu Estrela Brilhante, e 15 toadas com composição do próprio grupo, como por exemplo esse refrão que refere-se ao tema do projeto: Meu baque é ligeiro Ele vem rasteiro Identidade Tambor É assim a nação batuqueiro. 2.3 - Grupo de Maracatu Ilê Aláfia O Grupo de Maracatu Ilê Aláfia surgiu em 8 de dezembro de 1999 como parte do projeto de extensão social e cultural do Centro de Desenvolvimento da Criança (CDC) integrado à Associação Cristã de Moços (ACM) Casa Leide, uma organização não governamental (ONG), estabelecida no bairro do Jabaquara, na cidade de São Paulo. Os beneficiários do projeto são crianças e adolescentes, de ambos os sexos, em situação de vulnerabilidade e risco social provenientes da população de baixa renda. Conveniada com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMAS) a ACM possui áreas programáticas com as principais atividades como expressão artística em teatro, danças populares brasileiras, capoeira, artes plásticas e percussão a partir do eixo temático da cultura popular brasileira. Conta ainda com atividades de recreação e lazer; de saúde com oficinas preventivas sobre primeiros socorros e sexualidade; apoio e desenvolvimento da escolaridade; e de integração com a família. Assim, o Grupo Maracatu Ilê Aláfia, que na língua em iorubá significa "casa da felicidade", foi criado com base nas manifestações da cultura popular brasileira dos maracatus- nação com intuito do resgate, fortalecimento e valorização étnico-racial das raízes afro- 55 brasileiras a partir da musicalidade e dança, proporcionando à população a inclusão social, conhecimento e informação. Na época, final dos anos de 1999, a proposta de projeto em trabalhar com o tema do maracatu e os seus aspectos culturais e artísticos partiu da sugestão de um percussionista voluntário que integrava a Casa Leide. Desse modo, foram estabelecidas parcerias da ACM com outros grupos e associações de São Paulo que tinham uma proximidade com o maracatu de baque virado como, por exemplo, a Associação Cultural Cachuera10, o Instituto Brincante11, por meio de seus idealizadores os artistas Antonio Carlos Nóbrega e Rosane Almeida, a Cia de Artes do Baque Bolado12 e o contato com Toninho Macedo13 O Grupo Maracatu Ilê Aláfia estreitou ainda relações com o Maracatu Nação Erê de Recife recebendo materiais videográficos e fotográficos dos cortejos do maracatu-nação e tiveram oficinas de percussão, dança e construção de instrumentos, com o mestre do Maracatu Nação Erê convidado a vir para São Paulo e conhecer o trabalho do Grupo Maracatu Ilê Aláfia, que anteriormente sem a referência desse processo de descoberta e conhecimento das práticas dos maracatus-nação o grupo identificava-se com uma “nação” de maracatu de baque virado , ganhando o Grupo Maracatu Ilê Aláfia cada vez mais forças. 10 A Associação Cultural Cachuera é um espaço que objetiva contribuir para a valorização da cultura popular tradicional brasileira e de suas comunidades produtoras em todos os setores da sociedade, com ênfase no meio educacional. A base do trabalho é a relação com estas comunidades pesquisando, registrando, divulgando e refletindo sobre suas tradições culturais. Fonte disponível em: www.cachuera.org.br 11 Instituto Brincante é um espaço de conhecimento, assimilação e recriação das inúmeras manifestações artísticas do país, promovendo o enriquecimento humano por meio do estudo e da pesquisa da arte e da cultura brasileira, formando e capacitando jovens, crianças, artistas e educadores e contribuindo para ampliação de sua consciência cultural e social. Fonte disponível em: www.institutobrincante.org.br 12 A Cia de Artes do Baque Bolado é um grupo criado em 1996 iniciou-se com base nas apresentações de maracatu de baque virado do Recife. Fonte disponível em: www.baquebolado.com 13 Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, criador e diretor artístico da Abaçaí Cultura e Arte, criador e diretor artístico do Revelando São Paulo, programa que contempla a cultura paulista tradicional, foi um dos precursores a trabalhar e desenvolver artisticamente cortejos de maracatu na cidade de São Paulo. 56 tendo no início da sua formação o nome Nação Maracatu Ilê Aláfia e depois sofreu alteração para a denominação de Grupo Maracatu Ilê Aláfia ao observarem o equívoco que havia, uma vez que é chamada “nação” apenas as agremiações que vivenciam o maracatu de baque virado inserido no contexto cultural e geográfico de Recife. Aas demais práticas do maracatu de baque virado executadas fora dessas características são consideradas realizadas por “grupos” percussivos ou de corte real que (re)produzem uma (re)adaptação dos maracatu-nação através dos baques e cortejos. No artigo “As nações de maracatu e os grupos percussivos: as fronteiras identitárias” Lima escreve que: (...) a ideia de nação é conferida não pela ligação de um maracatu com um ou vários terreiros, mas pelo compartilhamento de práticas, hábitos e costumes de maracatuzeiros e maracatuzeiras que moram em uma mesma comunidade e carregam consigo particularidades e especificidades que lhes fazem ser diferentes até mesmo daqueles e daquelas que integram os outros maracatus- nação. Ressalta-se que nenhum historiador ou historiadora poderá entender os maracatus-nação sem fazer uso dos conceitos e instrumentais de análise da Antropologia, Etnomusicologia e outras ciências humanas que existem. (...) O que define a fronteira entre o grupo percussivo (não-nação) e o maracatu- nação são os laços comunitários presentes neste último, sobretudo no que tange aos modos de fazer e seus sentidos. Não é no pertencimento exclusivo a uma determinada religião que se define a identidade de um maracatu-nação. Por outro lado, mesmo que um grupo percussivo constitua laços com um terreiro, isto não é suficiente para caracterizá-lo como uma nação, pois não irá propiciar sentidos em comum e práticas compartilhadas, dotadas de um ethos comunitário. (LIMA, 2007: 55). Outro ponto de diferenciação levantado pelo Grupo de Maracatu Ilê Aláfia em relação aos maracatus-nação de Recife é a questão da religiosidade, pois não se segue as orientações religiosas dos terreiros do candomblé, mesmo porque o grupo é integrado a uma instituição cristã. Todavia, o Grupo Maracatu Ilê Aláfia possui alguns rituais que refere-se aos elementos religiosos do terreiro, como antes de sair com o cortejo canta-se para a calunga, em sinal de respeito a simbologia que a imagem possui de representar a ancestralidade africana. A calunga é guardada em uma espécie de altar e há todo um cuidado em transportá-la que, segundo o grupo, advém desse caráter religioso que a calunga possui para os maracatus-nação, mas cada integrante 57 do Grupo Maracatu Ilê Aláfia carrega consigo e atribui um significado próprio para as ações podendo ou não estar imbuída explicitamente ou implicitamente de conexões com a religiosidade. Através da pesquisa realizada por Larissa Lara com a Nação Cambinda Estrela de Recife podemos acessar a relação religiosa da calunga com o maracatu-nação, cuja qual o Grupo Maracatu Ilê Aláfia possui algumas referências. Vejamos a seguir um fragmento do texto de Lara que narra o significado religioso que a calunga possui no contexto sagrado do candomblé: Entendendo o maracatu como expressão cultural e mítico-religiosa, lembro de uma das normatizações a ser rigorosamente cumprida. Trata-se da ausência de relações sexuais durante alguns dias que antecedem o carnaval e durante toda a festa carnavalesca. A boneca calunga deve ser purificada, assim como a dama- do-paço que a leva em uma das mãos. A dama-do-paço passa por despacho e ebó – sacrifícios e oferendas aos orixás. As calungas recebem obrigação (um ritual de purificação), iniciada sete dias antes do carnaval; ficam no peji (altar) e não podem ser vistas por ninguém. As pessoas que necessariamente precisam fazer as obrigações são as que ocupam as funções de rei, rainha, dama-do-paço, babalorixá e presidente do maracatu. Somente a dama-do-paço deve segurar a calunga, após cumprir com os rituais necessários a esta função, não devendo passar a boneca a ninguém. Como afirma a dama-do-paço do Cambinda Estrela, “ela tem que tá no movimento do ritmo da música, e não posso entregar ela a outra pessoa; tenho que tá sempre com ela”. Mas, nem sempre se lembra de alguns cuidados. “Às vezes eu passo, esqueço. Aí ele vem, outra pessoa vem e me alerta assim. Eu tenho que tá sempre com ela”. Os batuqueiros não realizam as obrigações porque, segundo um dos informantes, seriam muito novos e namoradores, não conseguindo resguardar-se. Um fato curioso é que a literatura aponta que a dama-do-paço deve ser “feita no santo”, ou seja, ser iniciada no candomblé. Contudo, o que observei através dos depoimentos é que isso não é regra geral. Nem todos os maracatus fazem questão de preservar essa tradição, até mesmo por dificuldades de encontrar pessoas para assumir este posto e que sejam envolvidas com a religiosidade afro. Uma das damas-do-paço do Cambinda Estrela não é filha-de-santo e não possui nenhum vínculo com a religião africana. Tal fato é interessante, pois uma pessoa que não integra a religião passa a ter acesso a alguns de seus segredos e rituais, inconcebível em terreiros de candomblé que pesquisei em São Paulo e Bahia. Isso não indica que um seja melhor ou mais tradicional que o outro, mas que há diferenças culturais e religiosas que ditam formas diversificadas de olhar um único objeto. (LARA, 2004: 165). Formado inicialmente por crianças e adolescentes de 07 a 17 anos da ACM, o Grupo Maracatu Ilê Aláfia conquistou os frequentadores e moradores em torno da sede e hoje está aberto para a comunidade em geral, tomando uma grande proporção, saindo dos muros da 58 unidade, possui aproximadamente o número de cinquenta componentes, entre eles com a participaçã