UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MARISA SEIKO ENDO SUCESSÃO LEGÍTIMA: POLÊMICA DA EQUIPARAÇÃO ENTRE CÔNJUGE E COMPANHEIRO FRANCA 2021 MARISA SEIKO ENDO SUCESSÃO LEGÍTIMA: POLÊMICA DA EQUIPARAÇÃO ENTRE CÔNJUGE E COMPANHEIRO Trabalho de Conclusão de curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientadora: Profa. Dra. Kelly Cristina Canela FRANCA 2021 E56v Endo, Marisa Seiko UMA VISÃO SINCRÔNICA DO CASAMENTO E DA UNIÃO ESTÁVEL PARA FINS DE SUCESSÃO LEGÍTIMA À LUZ DO DEBATE DOUTRINÁRIO E JURISPRUDENCIAL / Marisa Seiko Endo. -- Franca, 2021 100 p. : il. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado - Direito) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientadora: Kelly Cristina Canela 1. Sucessão Legítima. 2. concorrência entre cônjuge e companheiro. 3. herdeiro legítimo e herdeiro necessário. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. MARISA SEIKO ENDO SUCESSÃO LEGÍTIMA: POLÊMICA DA EQUIPARAÇÃO ENTRE CÔNJUGE E COMPANHEIRO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” para obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Civil. Franca, 12 de novembro de 2021. BANCA EXAMINADORA Presidenta: ___________________________________________________ Profa. Dra. Kelly Cristina Canela, UNESP 1.º Examinador: ________________________________________________ Rosana Medeiros Veluci Gajardoni, UNESP 2.º Examinador: ________________________________________________ Daniella Salvador Trigueiro Mendes, UNESP Franca, ___ de _________ de 2021. Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” Campus de Franca A T E S T A D O Atesto, para os devidos fins, que Marisa Seiko Endo aluno(a) regular do Curso de Graduação em Direito desta Faculdade, submeteu-se ao Exame de Banca Examinadora da Monografia intitulada: “SUCESSÃO LEGÍTIMA: POLÊMICA DA EQUIPARAÇÃO ENTRE CÔNJUGE E COMPANHEIRO ”, sob a orientação do(a) Prof(a). Dr(a) Kelly Cristina Canela e realizado nesta data. A Comissão Examinadora foi composta pelos seguintes docentes: Prof(a). Ms. Rosana Medeiros Veluci Gajardoni e Prof(a). Ms. Daniella Salvador Trigueiro Mendes, tendo sido aprovado(a) com nota _____ (__________________). Franca, 9 de dezembro de 2021. Prof. Dr. Daniel Damásio Borges Coordenador do Conselho de Curso de Graduação em Direito SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………....2 2 PROGRESSÃO DO DIREITO DAS FAMÍLIAS: CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL…………………………………………………………………………………....3 2.1 Uma visão diacrônica do conceito de família…………………………………………….5 2.2 Família matrimonializada: Casamento…………………………………………………. 10 2.3 União estável…………………………………………………………………………….15 2.4 Comparação do casamento e da união estável…………………………………………..18 3 DISPOSIÇÕES GERAIS DO REGIME DE BENS…………………………………....23 3.1 Casamento: Pacto Antenupcial…………………………………………………………. 23 3.1.1 Comunhão parcial……………………………………………………………………..29 3.1.2 Comunhão universal………………………………………………………………….. 33 3.1.3 Participação final nos aquestos……………………………………………………….. 34 3.1.4 Regime da separação de bens……………………………………………………….... 36 3.1.5 Regime híbrido……………………………………………………………………….. 39 3.2 União estável: Regime de bens………………………………………………………….40 4. SUCESSÃO NO CASAMENTO E NA UNIÃO CONJUGAL………………………. 42 4.1 Noções gerais acerca da sucessão……………………………………………………….43 4.1.1 Ordem de vocação hereditária………………………………………………………... 46 Herdeiros Legítimos (art. 1.829 do CC/02)............................................................................ 49 Herdeiros Facultativos…………………………………………………………………….... 51 Herdeiros necessários (art. 1.845 do CC/02).......................................................................... 51 4.2 Sucessão Legítima…………………………………………………………………….... 53 4.2.1. Usufruto vidual………………………………………………………………………. 54 4.2.2 Sucessão do Cônjuge…………………………………………………………………. 55 4.2.3 Sucessão da União Estável………………………………………………………….... 57 5. DEBATE DOUTRINÁRIO E JURISPRUDENCIAL ACERCA DE EVENTUAL SEMELHANÇA ENTRE A SUCESSÃO DO CASAMENTO E DA UNIÃO ESTÁVEL…………………………………………………………………………………..60 5.1 Declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/02 e o reconhecimento do companheiro como herdeiro legítimo, de acordo com o art. 1.829 do CC/02……………... 61 5.2 Possível reconhecimento do companheiro como herdeiro necessário, de acordo com o art. 1.845 do CC/02………………………………………………………………………….64 5.2.1 Consequências caso o companheiro seja reconhecido como herdeiro necessário…….69 5.3 Divergência de correntes doutrinárias no reconhecimento do usufruto vidual e no direito real de habitação……………………………………………………………………………. 71 CONCLUSÃO……………………………………………………………………………...73 REFERÊNCIAS…………………………………………………………………………....77 RESUMO O presente trabalho tem como objetivo analisar as alterações no Direito da Sucessão legítima referente a tanto cônjuge quanto a companheiro sobrevivente. Assim, serão analisadas as legislações, as doutrinas e as jurisprudências, a fim de realizar uma comparação entre a sucessão do cônjuge e do companheiro em consonância com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dessa forma, trata-se de uma pesquisa que se utiliza do método bibliográfico dedutivo. Salienta-se que faremos a delimitação de um lapso temporal de pesquisas jurisprudenciais entre 2010 a 2021 nos sites oficiais do Supremo Tribunal de Justiça e o do Supremo Tribunal Federal com o intuito de compreender a adequada hermenêutica dos dispositivos, bem como sua evolução no decurso do tempo. Ademais, serão consideradas as disposições como a arguição de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002 e a Repercussão Geral 809/2017 do STF, com as quais procuramos equiparar o regime sucessório entre cônjuge e companheiro. Nesse sentido, tal igualdade tem ocasionado polêmicas no que tange ao companheiro, implicando na alteração da redação do art. 1.845 do CC/2002, o qual trata dos herdeiros necessários sem a previsão expressa dessa equiparação. PALAVRAS-CHAVE: DIREITO DE FAMÍLIA. REGIME SUCESSÓRIO. EQUIPARAÇÃO ENTRE CÔNJUGE E COMPANHEIRO. REPERCUSSÃO GERAL. POLÊMICA ENTRE DOUTRINAS. ABSTRACT The present work aims to analyze the changes in the Law of Legitimate Succession regarding to both the spouse and surviving companion. Thus, the legislation, the doctrines and the jurisprudence will be analyzed in order to make a comparative chart between the succession of the spouse and the partner in accordance to the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988. Uses the deductive bibliographic method. It should be noted that we will make the delimitation of a time lapse of jurisprudence research will be delimited between 2010 and 2021 on the official websites of the Supreme Court of Justice and the Federal Supreme Court in order to understand the proper hermeneutics of the devices and its evolution over time. Furthermore, will be considered the provisions such as the claim of inconstitutionality of art. 1.790 of the Civil Code of 2002, and the General Repercussion 809/2017 of the STF with which we will try to equate the succession regime between spouse and partner. Such equality causes certain controversies in relation to the partner, as it implies the alteration of art. 1.845 of CC/2002 which portrays the necessary heirs without the provision of this equivalence. KEYWORDS: FAMILY LAW. SUCCESSION REGIME. MARCHING SPOUSE AND PARTNER. GENERAL REPERCUSSION. CONTROVERSY BETWEEN DOCTRINES. 2 1 INTRODUÇÃO A vida em sociedade produz efeitos jurídicos, os quais, às vezes, são impensáveis e bastante complexos para as pessoas, de modo que, tais consequências podem ser engendradas v.g. a partir de um casal que decida manter um relacionamento ao longo de um tempo. Nesse contexto, apesar de este evento fazer parte da vida humana, surgem desdobramentos, os quais, necessariamente, decorrerão da incidência de normas legislativas, a depender do estágio em que se encontre o convívio e, portanto, haverá a transcendência do aspecto afetivo para a seara patrimonial tanto entre vivos quanto pós-morte. Após a contextualização, cumpre trazermos à baila a justificativa, de forma sucinta, que orientou a escolha pelo tema da sucessão, pois ele nos permite a organização e a divisão de bens iniciada com a ocorrência do fator morte e a vinculação ao conceito de regime de bens, o qual trata dos assuntos corriqueiros inerentes da convivência mútua entre pessoas e da possibilidade de prever os possíveis desdobramentos patrimoniais em vida e pós-morte. Dito de outra maneira, este ordenamento possibilita a escolha volitiva e a disposição dos bens materiais, de maneira que cada indivíduo possa optar por um regime que mais bem lhe atender. Entretanto, há uma discussão que impacta significativamente a sociedade no âmbito das relações, a saber: a equiparação do casamento e da união estável, questionada desde o advento do Código Civil de 2002 cujo entendimento adotado, majoritariamente, pelas doutrinas e pelos tribunais é oriundo de 2017, conferindo ao companheiro os mesmos efeitos patrimoniais atribuídos ao cônjuge anteriormente. Destarte, procuraremos compreender tal temática com fulcro em nossa Carta Magna (1988), na arguição de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/02 e delimitar temporalmente (2010 a 2021) um estudo jurisprudencial do STF e do STJ, a fim de verificar os possíveis entendimentos e modificações diacronicamente. Nesse contexto, as análises de julgados, como os recursos extraordinários n.º 646.721-RS e n.º 878.694- MG, são alguns dos documentos importantes para o desenvolvimento da presente pesquisa. Por outro lado, o art. 1.845 do Código Civil de 2002 não estabelece plenamente a existência de equiparação entre ambos regimes. Com efeito, o método adotado será a análise dos textos legislativos e dos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito, com a dedução da possível tendência de equiparação entre cônjuge e companheiro com suas implicações para o regime das sucessões e para as novas configurações de famílias. 3 O objetivo é o de compreender a hermenêutica das transformações oriundas do tema das sucessões do cônjuge e do companheiro, trazidas pelas legislações, artigos científicos, doutrinas e jurisprudências, para confrontar tais categorias, com ênfase nos impactos causados na divisão dos bens e nestas modalidades de famílias. Nesse contexto, será utilizado o método bibliográfico dedutivo e no tocante à coleta de julgados consistirá em pesquisas tanto nos sites do Supremo Tribunal Federal, quanto do Supremo Tribunal de Justiça com as seguintes palavras chaves: equiparação sucessória entre companheiro e cônjuge , companheiro considerado herdeiro necessário entre outros termos similares. No que tange à divisão deste trabalho, ficou disposta da seguinte maneira: na seção primária, procurou-se contextualizar os aspectos gerais da principiologia subjacente à formação da família, com observância da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (CRFB/88). Na seção secundária, apontou-se um “estado da arte” do Direito das Sucessões; posteriormente, na seção terciária, foram especificados os tipos de regimes de bens que afetam tanto a formalização do casamento quanto a união estável, para compreendermos a sucessão conjugal. Finalmente, na seção quaternária, retrataram-se debates jurídicos das semelhanças do Direito sucessório da união estável e do casamento de acordo com os artigos supracitados apresentados. 2 PROGRESSÃO DO DIREITO DAS FAMÍLIAS: CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL No mundo jurídico, o conceito de família não se restringe a apenas questões concernentes aos aspectos afetivos oriundos das relações matrimoniais, mas também às questões da alçada econômica, como, por exemplo, o dever de prestação de alimentos (DISTRITO FEDERAL, 2020), caso em que uma das partes seja hipossuficiente, de acordo com o art. 1.694 do CC/02 (BRASIL, [2021]a). Aliás, cabe ressaltar que a hipossuficiência é um dos pontos a serem observados para a reivindicação dos alimentos junto ao Judiciário. Nesse diapasão, o ordenamento brasileiro tem o escopo não só de manter a harmonia social, mas ainda de evitar as possíveis discussões familiares, relacionadas ao patrimônio seja de antes em vida, seja pós-vida. Assim, a adoção do regime de bens, o qual ocorre antes da formalização da família de fato, viabiliza o pacto antenupcial tanto no casamento quanto na união estável, em que é uma das formas de organizar e atenuar futuros litígios entre os integrantes da família quando decorrido o evento morte o qual implicará na divisão dos bens. 4 Nesse sentido, o falecimento de uma pessoa ocasiona a imediata abertura da sucessão de quem os herdeiros automaticamente receberão a herança a partir do princípio da “droit de saisine (PEREIRA, 2020, p. 15)”, o qual será mais bem detalhado na seção três deste trabalho, em consonância com o art. 1.784 do CC/02. Por consequência, a transferência dos bens é imediata (INVENTÁRIO [201-?]), pois os bens não podem ficar sem titulares, isto é, não há interstício temporal entre a morte e a transmissão das propriedades aos herdeiros. Em vista disso, se a transmissão não fosse de forma imediata, ocasionaria problemas tanto jurídicos de responsabilidade civil, quanto sucessórios para recebimento de benefícios deixados pelo ente falecido, como exemplificado a seguir, respectivamente: Neste caso, a primeira hipótese seria o caso em que um falecido possuísse um automóvel. Sem a imediata transmissão para os herdeiros, um terceiro poderia utilizar tal veículo e se envolver em um acidente de trânsito, tendo como resultado, a dificuldade de um processo de responsabilização civil do possível culpado, já que não haveria um titular definido para o bem móvel e para a atribuição das devidas implicações legais. Dessa forma, o defunto continuaria a responder por deter o registro do bem ou o indivíduo, envolvido no acidente, arcaria com todas as consequências, mesmo não sendo o dono da “coisa” ou tendo a simples posse (PEREIRA, 2020, p. 12). Ainda como desdobramento, haveria a necessidade de acionar a máquina estatal, demandando uma enorme burocratização e perda de tempo, para apurar a quem pertence a responsabilidade de fato (PEREIRA, 2020, p. 12). Já a segunda hipótese consistiria na percepção de benefícios, como no caso da obtenção de frutos (DANTAS, 2008). Se considerar um imóvel decorrente de herança, o qual produz uma renda, ou aluguel, como fruto, caso o titular não seja definido, acarretaria dúvidas a quem pertenceria tais rendimentos. Consequentemente, seria necessária a intervenção do sistema judiciário novamente. Entretanto, com a adoção da “ droit de saisine (FARIAS; NETTO; ROSENVALD, 2018, p. 1985)”, tal procedimento foi automaticamente simplificado a fim de que os novos titulares sejam os herdeiros do “de cujus”, evidenciando-se a importância deste antigo dispositivo oriundo do direito gaulês (CARVALHO, 2004) período anterior à formação da França. Cabe destacar que tal conceito da sucessão não se confunde com o inventário e a posterior partilha dos bens, os quais são etapas relacionadas ao Processo Civil, cuja previsão de ambos ocorre no prazo de dois meses, em consonância com o art. 611 do Código de 5 Processo Civil de 2015 (OLIVEIRA, 2007). Logo, o inventário pode ser considerado uma parte administrativa para arrolar os bens dos herdeiros e, inclusive, possibilita que os credores do morto se habilitem para receber seus créditos. Consequentemente, o inventário não transmite a propriedade, mas apenas lista, elenca, os bens do falecido para separar a parte dos herdeiros e também permitir aos credores do falecido que consigam cobrar do montante do espólio; este configurado como polo passivo (PACHECO, 2018, p.15). Nessa esteira, o Direito de Família está intimamente vinculado ao regime de bens e ao Direito da Sucessão na busca pela proteção do patrimônio quanto do núcleo familiar, como indicado pelo doutrinador Álvaro Villaça Azevedo: Se é verdade que há também um direito patrimonial, no Direito de Família, ele se apresenta com um interesse coletivo, sempre a resguardar a família. O exemplo típico é o do proprietário que, sendo solteiro, pode alienar seu bem imóvel, livremente. Mas, sendo casado, dependerá da outorga do outro cônjuge, marital ou uxório, seja qual for o regime matrimonial, pois o propriedade de pessoa casada existe como infraestrutura da família, visando a protegê-la, por exemplo ante alienação que pode prejudicar a célula familiar ou alguns de seus membros. Por isso, o Direito de Família é mais sensível às mutações sociais (AZEVEDO, 2019, p. 26). Nesse contexto, o planejamento é uma situação considerada muito significativa para o ordenamento brasileiro, uma vez que a sociedade é dinâmica e, por conseguinte, o legislador reconhece a diversidade de formas de famílias, havendo implicações patrimoniais diversas em que o ordenamento jurídico procura regular para facilitar a posterior partilha de bens. Dessa forma, existem alguns institutos que procuram descrever as possíveis modalidades de núcleos familiares e a escolha do regime de bens, o qual vai viger em cada família, sem prejuízo às novas modalidades de famílias reconhecidas por intermédio dos julgados e jurisprudências (ZARIAS, 2010). Contudo, no presente trabalho será aprofundado apenas em relação ao casamento e à união estável, visto que são os conceitos basilares para o posterior confronto de ambos institutos a fim de melhor compreender a polêmica da equiparação do cônjuge ao companheiro. 2.1 Uma visão diacrônica do conceito de família Inicialmente, a definição de casamento, por muito tempo, foi debatida e questionada, pois se encontrava vinculada à união do homem e da mulher para a formação de sua prole. Tratava-se de estreita ligação com princípios religiosos de base judaico-cristã na égide da formação da sociedade ocidental. Entretanto, os operadores do Direito foram lapidando a ideia do casamento no 6 decorrer dos séculos devido às demandas sociais, visto que no Brasil nem todas as pessoas adotavam a mesma religião cristã, de maneira que parcela da sociedade ficavam impedidas de formalizarem tal matrimônio (SANTOS, 2018, p. 08). Porém, com o advento da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, houve um importante momento histórico, qual seja: a ruptura entre a igreja e o Estado, de maneira que posteriormente foi necessário regulamentar o casamento, concretizado pelo Decreto 181 (Decreto n.° 181), de 24 de janeiro de 1890 (COSTA, 2006). Ademais, o casamento civil foi incorporado pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, o qual considerou válidos os casamentos celebrados no Brasil, se realizados de acordo com as normas legais estabelecidas (PEREIRA, 2004). Tal situação demonstra o claro propósito de desraizar a imposição religiosa vigente ao tempo do império com a implantação do conceito de Estado Laico (LOREA, 2006) de acordo com o art. 72 da Constituição Federal de 1891, que pode ser analisado a seguir: Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 3º Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum. § 4º A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita. § 7º Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados. A representação diplomática do Brasil junto à Santa Sé não implica violação deste princípio (CRFB, 1988). Nesse contexto, destaca-se o início do Estado laico, conceito mantido até mesmo na atual Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), que pode ser verificado no art. 19 (CRFB, 1988).Assim, a vigente Constituição promulgada em 1988, além de manter a ausência de interferência da igreja com respeito à pluralidade de religiões, também cresceu uma grande evolução à dignidade da pessoa humana com o reconhecimento de outras modalidades de famílias (VECCHIATTI, 2008). Posteriormente, houve demandas sociais a fim de legalizar algumas analogias entre a heteroafetividade e a homoafetividade, em que iniciou-se com o reconhecimento, primeiramente, da união estável homoafetiva no período de 2011 (RIO DE JANEIRO, 2011) e, posteriormente, do casamento em 2013 (BARBOSA, 2013). Essas alterações demonstram que os ordenamentos legais tentam acompanhar as transformações sofridas pelas relações sociais, mesmo que sejam de domínio privado, como ressaltado pelo desembargador Luciano Silva Barreto: “Vale aquilatar que o Direito de Família é o que mais avançou nos últimos tempos, levando-se em consideração que seu foco 7 são as relações interpessoais e que estas acompanham os passos da evolução social” (BARRETO, 2013). O matrimônio era a única modalidade de formação da chamada família legítima e, como resultado, toda e qualquer outra forma familiar era designada ilegítima, mesmo que baseada em afeto. No Brasil, um dos marcos históricos, no que diz respeito à legislação, foi a promulgação da Lei nº 3.071, de 1.º de Janeiro de 1916 (BRASIL, 1916). Este diploma, projeto de Clóvis Beviláqua, era uma obra constituída no contexto de sua época, e que vigorou no ano subsequente. Nele, discutia-se a natureza jurídica do casamento e suas responsabilidades (GONÇALVES, 2020, p. 38). Este conceito vigeu por um longo período e se classificou como a única modalidade de família legítima protegida com a garantia dos efeitos patrimoniais previstos no ordenamento. Porém, mais tarde, outras formas de entidades familiares foram expressamente reconhecidas pela Carta Magna de 1988, tais como: a união estável e a monoparental. Assim, o casamento, ou também denominado matrimônio, perdeu a exclusividade de ser a única modalidade legítima de família, prevista formalmente na legislação, mas tal circunstância não acarretou a perda da proteção assegurada pelo Estado (CARVALHO, 2019, p. 501), de acordo com o art. 226 da CRFB/88. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. [...] § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. [...] § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações (CRFB, 1988). Destarte, o conceito de família sofreu flexibilização, superando o aspecto taxativo para moldar-se a um conceito mais plural, democrático e inclusivo como demonstrado no desenho animado “Os Simpsons” (ROSA, 2018, p. 69) os quais procuram retratar uma família contemporânea. Sendo assim, o art. 226 da CRFB/88 representa mais que uma complementação no aspecto da constituição legislativa, pois, ao reconhecer outras formações 8 familiares, ocorrem implicações diretas ou indiretas patrimoniais. Para o ex- desembargador José Carlos Teixeira Giorgis “a Carta Federal não é um sistema fechado, hermético; ao contrário, se abebera das novidades da vida social e admite a atualização de seus princípios e regras, para não engessar suas conquistas”. Nesse contexto, a CRFB/88 reconheceu implicitamente outras modalidades de famílias, a saber: eudemonista (MINAS GERAIS, 2012), unipessoais (ROSA, 2018, p. 147), solidária (ROSA, 2018, p. 151), parental (DIAS, 2016, p. 245), extensa (DIAS, 2016, p. 245), mosaico (DIAS, 2016, p. 238), homossexual (DIAS, 2016, p. 238), entre outras modalidades (ROSA, 2018, p. 198). De maneira que foi superada a barreira formal prevista expressamente pela Constituição de 1988, visto que está descreve apenas a família matrimonial, a convivencial (união estável) e a monoparental. Entretanto, foi abarcado outras entidades familiares de forma tácita de maneira a atender à necessidade e à realidade de cada casal, inclusive, no que se refere às questões econômicas, como descrito a seguir: Historicamente, o direito de família, ao lado do direito das sucessões, teve como função principal regular a transmissão dos bens e do patrimônio das famílias daqueles que se uniam por meio do casamento civil. Atendia, pois, a uma minoria economicamente privilegiada da população. Nos países ocidentais, ainda no século XX, a lei de família foi se estendendo e incluindo em seu âmbito os grupos sociais que eram exclusivamente objeto de atenção da lei penal: os pobres. No Brasil, o marco dessa transformação é a Constituição Federal de 1988. Nosso Código Civil de 2002 adequou as antigas normas do direito de família, que estavam em vigência desde 1917, às atuais disposições constitucionais. Dessa maneira, a noção oficial de família, que antes dizia respeito tão somente à "família legítima", constituída pelo casamento civil, também passou a abranger as unidades familiares formadas pela união estável, heterossexual e pelos grupos monoparentais (ZARIAS, 2010). Dessa forma, observa-se que o mundo fático possui uma complexa dinamicidade, a qual passa pelo processo de melhoria das condições de vida de acordo com as demandas sociais e que refletem a atualização da norma. Cabe destacar que embora exista o movimento de atualização da norma, as legislações não acompanham tais mudanças com a mesma velocidade, ou dinamicidade, isto é, a regulamentação passa por um procedimento paulatino, para garantir direitos no cotidiano social. Haja vista, por exemplo, o caso da união homoafetiva cuja intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF) foi crucial para o reconhecimento de uma circunstância fática antiga, mas, que até então, era socialmente velada (VECCHIATTI, 2008) em face da discriminação e vedada por lei. Assim, no ano de 2011 houve duas importantes decisões julgadas em conjunto (CONTARINI, 2021) a respeito do tema, quais sejam, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de número 132 e Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 4.277 DF, em que este último https://ibdfam.org.br/artigos/autor/Gabriel%20Gomes%20Contarini 9 julgado expõe uma relevante passagem de parte da Ementa: 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. (...) 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO FAMÍLIA NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO- CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão família, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa (DISTRITO FEDERAL, 2011). (grifo nosso) Nesse contexto, observa-se a intervenção do poder estatal, representado por uma figura pública, atuando em espaço privado, na tentativa de proteger as novas demandas sociais que foram reconhecidas em nosso ordenamento jurídico. Desse modo, a união entre pessoas do mesmo sexo representou a necessidade do auxílio e da intervenção do Poder Judiciário, visto que inexistia norma legal com a finalidade de proteger tal situação fática (MADALENO, 2020, p.40). Essas alterações na definição de família são importantes não apenas por modificar e reconhecer diretamente a formação dos diversos tipos de famílias, mas também por terem implicações patrimoniais no Direito da Sucessão. Nesse sentido, anteriormente, as uniões homoafetivas não eram reconhecidas para fins da sucessão, de maneira que se aplicava, na maioria dos casos, o direito empresarial, o qual trata necessariamente da ideia de lucro financeiro se comparado às questões de relações familiares e de afetividade. Como pode ser observado na continuação do mesmo julgado de Inconstitucionalidade 4.277 relatado pelo Ministro Carlos Ayres Britto: Relegar as uniões homoafetivas à disciplina da sociedade de fato é não reconhecer essa modificação paradigmática no Direito Civil levada a cabo pela Constituição da República. A categoria da sociedade de fato reflete a realização de um empreendimento conjunto, mas de nota patrimonial, e não afetiva ou emocional. Sociedade de fato é sociedade irregular, regida pelo artigo 987 e 10 seguintes do Código Civil, de vocação empresarial. Sobre o tema, Carvalho de Mendonça afirmava que as sociedades de fato são aquelas afetadas por vícios que as inquinam de nulidade, e são fulminadas por isso com o decreto de morte (Tratado de direito comercial brasileiro, 2001, p. 152 e 153). Para Rubens Requião, “convém esclarecer que essas entidades – sociedades de fato e sociedades irregulares – não perdem a sua condição de sociedades empresárias” (Curso de direito comercial, 2010, p. 444). Tanto assim que as dissoluções de sociedades de fato são geralmente submetidas à competência dos Juízos cíveis, e não dos Juízos de família. Nada mais descompassado com a essência da união homoafetiva, a revelar o propósito de compartilhamento de vida, e não de obtenção de lucro ou de qualquer outra atividade negocial. A homoafetividade é um fenômeno que se encontra fortemente visível na sociedade. (DISTRITO FEDERAL, 2011) Nesse diapasão, apesar de não haver menção expressa de uniões homoafetivas na CRFB/88, foi necessário realizar uma aplicação análoga do regime da união estável às uniões homoafetivas, já que existe o ânimo (vontade) de constituir família. Logo, tal reconhecimento é um importante avanço tanto para o Direito das Famílias (DIAS, 2016, p. 229) quanto para o Direito das Sucessões com a observância das regras constitucionais da igualdade e da liberdade de escolha. Assim, há uma tentativa de reconhecer, de um lado, e de garantir direitos, de outro, a todas as modalidades familiares, com a finalidade de trazer segurança jurídica e planejamento na futura partilha de bens, consequentemente, o texto constitucional é meramente exemplificativo, ou seja, numerus apertus. Atualmente, o Direito Civil tem uma perspectiva diferenciada, visto que há uma maior atenção às questões éticas e humanitárias, as quais transcendem a mera formalidade descrita no papel. Nesse contexto, há o reconhecimento do pluralismo social no qual o Direito procura proteger a individualidade de cada pessoa na tentativa de auxiliar e de tutelar o desenvolvimento da personalidade individual. 2.2 Família matrimonializada: Casamento Nesta subseção, procura-se traçar algumas linhas de um ponto de vista histórico do casamento para a constituição de uma família matrimonializada e a destacar a importância tanto da formalidade quanto da solenidade envolvidas para a validação e produção de efeitos deste ato na sociedade e no mundo jurídico. O casamento abarca tendências filosóficas, de maneira que se torna difícil atribuir um significado único. Nesse contexto, o Direito Romano será uma das formas de delinear tal conceito. 11 A primeira fase, pois, está inserida no período Modestino do século III (PEREIRA, 2020, p. 81), cuja referência é de uma forma de casamento como uma circunstância perene com a ideia de proteção divina. Entretanto, a ideia da divindade foi superada na segunda etapa, quando Ulpiano promove as Institutas de Justiniano com a posterior adoção do Direito Canônico. Nesse período, o casamento passa a ser compreendido como uma relação jurídica considerada uma manifestação de vontade das partes. Posteriormente, surge o Cristianismo, que atribuiu ao casamento o conceito de dignidade e de sacramento por intermédio da união entre pessoas de sexo opostos sob a “bênção do Céu”, de maneira a configurar uma única entidade fisica, espiritual e indissolúvel (PEREIRA, 2020, p. 81). O conceito de família iniciou-se com a queda do Império Romano e a expansão portuguesa no Brasil Colônia, o arcabouço legislativo Corpus Juris Civilis foi introduzido em diversos ordenamentos jurídicos e passou a vigorar as Ordenações Filipinas até 1916, quando nasce então o primeiro Código Civil brasileiro. Como o Brasil, historicamente, foi colônia de Portugal, o casamento brasileiro herdou os costumes portugueses, inclusive, adotando a religião católica. E esta era responsável não só pela educação pública confessional (EMMERICK, 2010), mas também pelas etapas do casamento e da morte até o período do Brasil Império. Destarte, o casamento era definido da seguinte maneira: Considerando-o em termos confessionais, a Igreja Católica define-o como “sacramento” instituído por Jesus Cristo, e nesta dignidade o trata. Como tal, dotado de indissolubilidade, passou o matrimônio por fases diversas na doutrina canônica, de que ressalta a regulamentação provinda do Concílio de Trento (1563), adotada e seguida no Brasil em virtude e por força das Constituições do Arcebispado da Bahia (PEREIRA, 2020, p.87). Entretanto, a partir de 1980, o Estado se apropria do casamento, de maneira que passou a regulamentar e registrar tal celebração no lugar da Igreja. Salienta-se que esta separação vem de longa data, sendo assinalada pela implantação da República em território nacional. Dessa forma, a medida de separação, entre Igreja e Estado, foi efetivada pelo decreto 181/1980, permitindo a aquisição de uma série de direitos aos indivíduos não católicos, passando a serem reconhecidos como cidadãos, independentemente, da crença religiosa. Posteriormente, a apropriação do casamento pelo Estado é ratificada na Constituição da República de 1988. Logo, uma das principais características do casamento é a regulamentação 12 realizada pelo Estado, decorrente da celebração e do registro por órgão público, sendo um ato estatal brasileiro. Assim, o matrimônio foi uma das primeiras modalidades de família a ser reconhecida pelo ordenamento e contemplada com a proteção jurídica. Nesse contexto, o casamento é caracterizado, majoritariamente, como um contrato em sua formação, já que é proveniente da vontade de ambos os cônjuges com a possibilidade da escolha dos regimes de bens por intermédio do pacto antenupcial. Porém, é uma instituição com normas imperativas a que aderem os nubentes em relação à eficácia, visto que não há o elemento volitivo nos termos da manifestação dos efeitos. Assim, não há possibilidade de propor uma condição, termo ou encargo no plano da eficácia, pois os efeitos já estão pré-estabelecidos pela legislação. Observa-se, então, que o casamento possui uma natureza complexa ou também denominada de eclética (XAVIER, 2015), pois nesse caso há uma mistura de conceitos entre natureza jurídica institucional (DIAS, 2016, p. 261) e a contratual (DIAS, 2016, p. 261), em que tal polêmica da natureza jurídica do casamento é discutida pelos doutrinadores, até os dias de hoje. O casamento é constituído por intermédio de alguns requisitos formais já estabelecidos em lei, em que tais etapas precisam ser preenchidas para, posteriormente, tornar-se um documento público reconhecido de solenidade (TARTUCE, 2017, p. 378). Inicialmente, há necessidade de verificar o processo de habilitação previsto na Lei dos Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), a fim de verificar a aptidão dos noivos para assumirem-se reciprocamente como cônjuges. Nesse contexto, o doutrinador Caio Mário da Silva Pereira (PEREIRA, 2020, p. 131) destaca que a habilitação pode ser subdividida em quatro fases, quais sejam, documentação, proclamas, certidão e registro. Na documentação, os nubentes deverão apresentar ao Oficial do Registro os documentos descritos no art. 1.525 do CC/02 (BRASIL, [2021]) em consonância com os procedimentos previstos nos arts. 67 a 69 da Lei nº 6.015, de 31.12.1973. Depois de confirmado todos os documentos necessários, o Oficial publicará no edital o proclamas, prática milenar dos católicos (THRONICKE, 2021), o qual prevê o prazo de 15 dias para cientificar publicamente o casamento, como retratado no art. 1.527 do CC/02. Tal documento será afixado na circunscrição do Registro Civil de ambos nubentes e na imprensa local, a fim de que caso alguém da sociedade se oponha a tal ato, tenha a oportunidade de alegar algum tipo de impedimento matrimonial. Decorrido tal prazo e sem a presença de obstáculos, o Oficial do Registro irá expedir a certidão de habilitação para 13 celebrar o casamento, em que os nubentes podem requerer a designação de um juiz competente, de acordo com a legislação estadual, para a escolha do dia, da hora e do local da cerimônia. Cabe destacar que é prerrogativa da autoridade celebrante determiná-los por despacho, em consonância com o art. 1.533 do CC/02, embora normalmente atenda às indicações dos nubentes (PEREIRA, 2020, p.141). Após a celebração civil para complementar o ciclo formal (PEREIRA, 2020, p. 145), a lei determina a lavratura do termo circunstanciado de acordo com o art. 1.536 do CC/02, a fim de constituir prova pública solene do novo status civil de casados com efeitos patrimoniais perante terceiros. Assim, há a necessidade da estrita observância das formalidades impostas pela codificação civil, a fim de assegurar a idoneidade dos atos jurídicos, sob pena de anulabilidade ou nulidade (DIAS, 2016, p. 319). Consequentemente, esse processo representa a burocratização e o encarecimento do casamento, de maneira que são adotados por casais que possuem melhores condições financeiras para concretizar o planejamento familiar, a fim de evitar as futuras desavenças relacionadas à divisão dos bens. Historicamente, o direito de família, ao lado do direito das sucessões, teve como função principal regular a transmissão dos bens e do patrimônio das famílias daqueles que se uniam por meio do casamento civil. Atendia, pois, a uma minoria economicamente privilegiada da população. Nos países ocidentais, ainda no século XX, a lei de família foi se estendendo e incluindo em seu âmbito os grupos sociais que eram exclusivamente objeto de atenção da lei penal: os pobres. No Brasil, o marco dessa transformação é a Constituição Federal de 1988. Nosso Código Civil de 2002 adequou as antigas normas do direito de família, que estavam em vigência desde 1917, às atuais disposições constitucionais. Dessa maneira, a noção oficial de família, que antes dizia respeito tão somente à "família legítima", constituída pelo casamento civil, também passou a abranger as unidades familiares formadas pela união estável heterossexual e pelos grupos monoparentais (ZARIAS, 2010). Ademais, é importante destacar que a Lei Feliciano Pena, é uma norma posterior ao direito português, já representava avanços benéficos ao casamento, de modo que garantia ao cônjuge, a estipulação da legítima (Decreto n.º 1.839/1907) em metade da herança, a qual possui vigência até os dias de hoje no ordenamento brasileiro (CARVALHO, 2015, p. 93). Nesse contexto, o Direito pátrio utilizava as “Ordenações Filipinas”, em que teve vigência até a entrada em vigor do primeiro Código Civil Brasileiro, em 1º de janeiro de 1917 (BRASIL, 1916), que já incluía o cônjuge entre os herdeiros do falecido. Entretanto, o cônjuge supérstite (sobrevivo) somente era chamado a suceder após os parentes consanguíneos colaterais até décimo grau, de maneira que o conceito de proteção real do cônjuge na sucessão ficava fragilizada, pois dificilmente o viúvo(a) seria convocado na ordem de vocação hereditária. Porém, um pouco antes do primeiro Código Civil Brasileiro, a Lei Feliciano Pena, em 1907 (Decreto n. 1.839/1907), modificou a ordem de vocação do 14 cônjuge, colocando-o em posição mais benéfica, sucedendo na terceira posição, na frente dos colaterais e após os descendentes e ascendentes. Assim, o primeiro Código Civil, surgido em 1916, manteve a nova ordem de sucessão hereditária estabelecida pela Lei feliciano Pena como descrito a seguir: O Código Civil de 1916 tratou o cônjuge em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária. Consagrou, acolhendo a alteração da Lei Feliciano Pena, um avanço em relação ao direito anterior, que, como vimos, tratava o cônjuge em quarto lugar na ordem de vocação hereditária, após os colaterais, sendo que estes herdavam até o décimo grau. [...] (LEI Nº 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916). Tal regra consagrava, no Brasil, adotando o sistema da Lei Feliciano Pena, uma ordem de vocação hereditária que poderia ser considerada um avanço no regime sucessório brasileiro, sobretudo se comparado ao direito estrangeiro vigente à época (CARVALHO NETO, 2015, p. 94). Apesar de ocorrer inovações na legislação com a garantia da metade da herança e a mudança na ordem de vocação hereditária em favor do cônjuge,ainda havia a dificuldade de reconhecer este como herdeiro necessário. Assim, o de cujus poderia afastar o cônjuge sobrevivente sem qualquer impedimento por meio de um testamento, por conseguinte o regime de bens não cumpriria a sua finalidade, que seria a de garantir a previsão e a segurança jurídica do cônjuge. Dito de outra forma, de acordo com o Código Civil de 1916, a pessoa que escolhia o regime de bens não necessariamente teria garantia dos efeitos pré-estabelecidos pelo ordenamento, visto que poderia ocorrer “imprevistos” no decurso da relação conjugal capazes de interromper e, até mesmo, anular os efeitos do regime de bens escolhido, como previsto na seguinte explicação: O art. 1.611 esclarecia que, à falta de descendentes ou ascendentes, seria deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente, se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal. Exigiu-se, assim, a vigência da sociedade conjugal para que o cônjuge herdasse; a separação judicial, dissolvendo a sociedade conjugal, extinguiria também o direito à herança. Por outro lado, a simples separação de fato não teria este condão; não havia, no Código de 1916, regra que excluísse da herança cônjuge simplesmente separado de fato. Não se fez, contudo, qualquer referência ao regime de bens. O cônjuge herdava em qualquer regime, mesmo no da separação, como deixou claro, certa feita, o então Tribunal de Apelação de Minas Gerais. A propósito, anota Maria Helena Daneluzzi que, durante a vigência do Código de 1916, repetiu-se à exaustão que o regime de bens não tinha ligação com o direito sucessório (CARVALHO NETO, 2015, p. 94). Posteriormente, surge o Código Civil de 2002 (BRASIL, [2021]) em que houve a revisão do Código Civil de 1916, possibilitando o aprimoramento e a melhoria da questão sucessória do cônjuge. Assim, o atual Código Civil passou a garantir ao cônjuge a condição de herdeiro necessário e, portanto, há concorrência tanto com os descendentes quanto aos ascendentes de acordo com o artigo 1.829 do CC/02 cuja abordagem dar-se-á com mais http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%203.071-1916?OpenDocument 15 vagar em seção própria. 2.3 União estável A União Estável é reconhecida como uma maneira de formação familiar informal, derivada do conceito de união concubinária, a qual era segmentada em impura e pura (SIMÃO, 2014). Esta era composta por pessoas que poderiam se casar, mas prefeririam não o fazer, e aquela retratava os indivíduos impedidos de manterem a união estável por já ser integrante de um núcleo familiar constituído pelo registro civil de casamento (impedimento matrimonial). Nesse contexto, o concubinato impuro não produzia efeitos, não sendo reconhecido como família (CARVALHO, 2019, p. 888) e, hodiernamente, tem expressa vedação no art.1.727 do CC/02 (BRASIL, [2021]). Assim, o termo “concubinato” possuía mesma conotação e sentido pejorativo para a sociedade da época, pois ao mesmo tempo em que a palavra concubinato deriva do latim (FERRAZ, 2008) “concubere” cujo significado é “compartilhar leito”, também tem a etimologia grega (BRASIL, [2021]), que significa copular, ter relações sexuais. Porém, com o advento do texto Constitucional de 1988, foi reconhecido legalmente apenas o concubinato puro cuja denominação passou a ser União Estável e protegido como entidade familiar; enquanto o concubinato impuro manteve tal denominação de acordo com o art. 1.727 do CC/02 sem efeitos de ordem familiar e reconhecido como uma relação de amantes (FARIAS; BRAGA NETTO; Rosenvald, 2018, p. 1807). Nesse contexto, a união estável é formada pelos laços “de fato”, faltando-lhe o cumprimento das solenidades legais e podendo ser reconhecida como um ato-fato jurídico (LÔBO, 2014). Tal flexibilidade permite constituir, mudar e extinguir essa entidade familiar, por intermédio de um simples instrumento particular, sem a necessidade de intervenção estatal. Além disso, o ordenamento jurídico possibilita a conversão em casamento conforme o art. 226, §3º, da CRFB/88. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (CRFB/1988). Nesse contexto, de acordo com o artigo 226 da CRFB/88, a união estável possui 16 proteção legal e, quando interpretada em conjunto com o art. 1.723 do CC/2002, é possível extrair os requisitos que servem de embasamento, quais sejam: a estabilidade, a continuidade, a convivência pública e o objetivo de constituir uma família. A primeira norma a retratar a União Estável, no Brasil, foi a lei n° 8.971 de 29 de dezembro de 1994 (BRASIL, 1994), a qual previa, no art. 1°, o prazo de 5 (cinco) anos para configurar a união estável no caso em que não houvesse filhos decorrentes desta relação. Caso contrário, isto é, havendo filhos, desnecessário seria a observação de tal prazo. Posteriormente, essa lei foi revogada e substituída pela lei 9.278 de 14 de maio de 1996 (BRASIL, 1996), deixando de exigir o prazo de cinco anos para constatação da estabilidade. Dessa forma, a união estável foi definida do seguinte modo: “Art. 1.º É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e de uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família” (BRASIL, 1996). Entretanto, nos dias de hoje, o conceito de estabilidade está vinculado a uma relação de duração prolongada, isto é, não momentânea, não sendo exigido, e nem estabelecido um prazo mínimo para que se configure a estabilidade prevista no art. 226, §3º, da CRFB/1988. Assim, dependerá da análise do caso concreto e, por consequência da estabilidade, tem-se a continuidade, verificando-se a solidez do vínculo afetivo. Nesse contexto, para haver a ruptura do vínculo é necessária a quebra da base tanto objetiva, retratada pela convivência, quanto subjetiva, que seria a intenção de continuar comprometido com a pessoa do relacionamento. O “intuitu familiae” é outro ponto muito relevante para caracterização da união estável, visto que entrelaça as circunstâncias imateriais, como o afeto, e materiais, relacionadas ao patrimônio, assemelhando-se ao casamento. Nesse contexto, o ânimo de constituir uma família, também denominado de “affectio maritalis”, não está presente no noivado e, muito menos, no namoro. Assim, é possível extrair uma cronologia do relacionamento que pode ser assim sintetizada: namoro, noivado e casamento; ademais não existe repercussão patrimonial decorrente das duas primeiras espécies de relacionamento (RIO DE JANEIRO, 2015). Na união estável é necessário constatar a presença da publicidade, de maneira que a sociedade consiga identificar os conviventes com a configuração de um núcleo familiar, 17 isto é, apresentando-se aos “olhos de todos” como se casados fossem. Tal questão pode ser comprovada, hodiernamente, até mesmo por intermédio das redes sociais, exemplificando, “Facebook” e “Instagram”, o qual pode ser constatado no seguinte processo de número: 0130653-07.2013.8.20.0001, do Tribunal do Rio Grande do Norte, Desde que submetidas ao contraditório, provas obtidas por meio das redes sociais e sites de relacionamento (Facebook, Whatsapp e Instagram, por exemplo) são aptas a demonstrar relações jurídicas como a dos autos – alegada união estável entre Autora/Recorrida e falecido. No caso, tanto a Autora/Recorrida quanto o seu falecido companheiro demonstravam no site do Facebook que mantinham uma relação afetiva e pública: ambos se tratavam como "casados" no mencionado site de relacionamentos (RIO GRANDE DO NORTE, 2015). No presente caso, o rapaz, vítima de acidente de moto, mantinha uma união estável com a autora, porém a mãe do falecido alegou que não havia o “intuitu familiae” ou o intuito, ânimo, de formar uma família. Nesse contexto, a recorrida comprovou tal fato por meio do “Facebook” em que constava o “status de relacionamento” como casados e apresentavam fotos, demonstrando ao público a relação consoante ao casamento. Ademais, foi comprovado documentalmente a estabilidade da relação, visto que foram três anos de namoro e cinco anos de convivência sob o mesmo teto, de maneira que foi reconhecida a união estável com auxílio das redes sociais (REBOUÇAS, 2016). Assim, cabe ressaltar uma significativa passagem textual do jurista brasileiro Caio Mário da Silva Pereira (PEREIRA, 2020): Vale dizer: os que vivem em união estável devem ser tidos como tais perante os amigos e a sociedade, embora a utilização do nome do companheiro, pela mulher, não seja requisito fundamental. Igualmente não nos preocupamos com o “tempo de duração”, que pode ser mais ou menos longo. O que importa é serem as uniões duradouras, inspiradas no elemento anímico, a gerar a convicção de que podem marchar para a relação matrimonial (PEREIRA, 2020. p. 701). Ademais, uma outra forma de constatar a união estável é quando a relação entre os envolvidos é passível de ser convertida em casamento, em consonância com o art. 226, §3° da CRFB/88. No mesmo artigo foi retratada a questão do gênero, por meio do seguinte fragmento “união estável entre homem e a mulher,” (CRFB, 1988) a qual foi superada com a extensão deste direito às relações homoafetivas de acordo com o pronunciamento da decisão do STF, na Adin 4.277 e na ADPF 132. Assim, houve a pacificação do entendimento quanto à união estável, estendendo-se aos casais formados por pessoas do mesmo sexo, já que a Corte julgou inconstitucional a parte que retrata a questão do gênero de homem e da mulher. Tal 18 controle de constitucionalidade concentrado, com efeitos vinculantes, garantiu que a ausência de filhos não seria um requisito primordial para desconstituir o conceito de família, até mesmo as uniões homoafetivas poderiam recorrer às técnicas de reprodução assistida para vivenciar a experiência da paternidade ou da maternidade. Logo, a união estável homoafetiva produz todos os efeitos da união estável heteroafetiva e, inclusive, com a possibilidade da conversão em casamento (RIO GRANDE DO SUL, 2012). 2.4 Comparação do casamento e da união estável O Código Civil de 2002 não atribuiu os mesmos efeitos para a União Estável e o Casamento, visto que este é caracterizado como um contrato “sui generis”, solene (TARTUCE, Flávio, 2017, p. 378), formal com o processo de habilitação das partes no cartório de registro civil para o estabelecimento de direitos e de obrigações como a presunção de paternidade. Enquanto aquele é ato-fato-jurídico em que não há necessidade da existência de um contrato ou qualquer formalidade de maneira que não implicará na criação de um novo estado civil, ou seja, na união estável, os companheiros permanecem como “solteiros” e não há presunção de paternidade (PEREIRA, 2020, p. 228). Por conseguinte, o Direito Civil estabeleceu peculiaridades para cada tipo de constituição de família com as suas respectivas características, entretanto não é incomum encontrar alguns pontos congruentes. Muitos aspectos da união estável se assemelham ao casamento, a saber: o respeito, a consideração recíproca, a mútua assistência, o sustento, a guarda da educação dos filhos e a necessidade de não haver impedimentos matrimoniais. Esses impedimentos são retratados no art. 1.521 do CC/02 e devem também estar contidos em ambos regimes, com exceção do inciso VI. Art. 1.521. Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o adotado com o filho do adotante; 19 VI - as pessoas casadas; VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte (BRASIL, [2021]). O inciso VI, supracitado, retrata a questão da bigamia, a qual está prevista no Código Penal, sob o art. 235, prevendo pena de reclusão de dois a seis anos para o indivíduo que, já sendo casado, contrair novo registro de casamento. Nesse sentido, seria necessário ingressar com a separação de direito, isto é, o pedido de divórcio, para desconstituir o primeiro registro de casamento e haver novo matrimônio, sem infringir no crime de bigamia. Além disso, o artigo 235 do CP/40 é taxativo, em que não poderá ser aplicado à união estável, dito de outra forma, há uma interligação entre diferentes áreas do direito, quais sejam, penal e civil, visto que o inciso VI, do art. 1.521 do CC/02 prevê a seguinte modalidade de impedimento: “Não podem casar: (...)VI - as pessoas casadas”. Tal liame entre distintas esferas do Direito merece atenção, pois apesar do art. 1.521 do CC/02 ser aplicado tanto ao casamento quanto à união estável, deve-se considerar especificamente o inc. VI. Porquanto, este está interligado com o Direito Penal, o qual é taxativo e reflete no Direito Civil tornando-se inaplicável a extensão da analogia entre o casamento e a união estável no que se refere às hipóteses de impedimentos. De modo que o inciso supracitado será o único do art. 1.521 do CC/02 restritivo ao casamento. Ademais, no processo de formação da união estável é importante destacar duas hipóteses, visto que mesmo existindo o casamento registrado e formalizado no cartório é possível ocorrer o surgimento de uma união estável. Nesse contexto, será necessário analisar o matrimônio somado à questão da separação de fato, em que na separação de fato (DIAS, 2016, p. 365), existe o registro civil, que comprova o casamento, porém não há mais o convívio físico entre os cônjuges, de maneira que o marido e a esposa residem ou dormem em locais apartados. E, por isso, a separação de fato também pode ser denominada de “separação de corpos”, pois apesar de não haver uma formalização de tal separação para finalizar a conjugalidade, houve uma separação no plano real (fático). Assim, a separação de corpos a qual é uma circunstância corriqueira da sociedade será objeto relevante para o Direito, porque será capaz de definir as seguinte possibilidades da constituição ou não da união estável: Primeira hipótese: um indivíduo casado formalmente, mas separado de fato em que saiu de casa, deixando o cônjuge e foi morar em outro lugar por um longo período. Caso 20 essa pessoa queira, poderá manter uma futura união estável, a fim de constituir outro núcleo familiar, ainda que não tenha concretizado a separação de direito. Entretanto, caso queira se casar e transformar a união estável em casamento, será necessário desconstituir o primeiro casamento por intermédio do divórcio, visto que dois registros civis configurar-se-iam em bigamia, sob pena de sanção penal (RIO GRANDE DO SUL, 2013), como elucidado acima. Segunda hipótese: se a pessoa for casada, e não for separada de fato, será impedida de manter união estável simultaneamente ao casamento, pois configura numa relação concubinária (concubinato impuro) de acordo com o art. 1.727 do CC/02. Em semelhante sentido, também não é possível manter, simultaneamente, duas uniões estáveis em respeito ao dever de lealdade de acordo com o art. 1.724 do CC/02. Tal circunstância pode ser observada no julgado da Apelação Cível n. 70.001.494.236, da Sétima Câmara Cível, relatada pelo Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, no seguinte fragmento: União estável. Relacionamento paralelo a outro judicialmente reconhecido. Sociedade de fato. A união estável é entidade familiar e o nosso ordenamento jurídico se sujeita ao princípio da monogamia, não sendo possível juridicamente reconhecer uniões estáveis paralelas, até porque a própria recorrente reconheceu em outra ação que o varão mantinha com outra mulher uma união estável, que foi judicialmente declarada. Diante disso, o seu relacionamento com o de cujus teve um cunho meramente concubinário, capaz de agasalhar uma sociedade de fato, protegida pela Súmula n. 380 do STF. Essa questão patrimonial esvaziou-se em razão do acordo entabulado entre a autora e a sucessão. Recurso desprovido, por maioria (RIO GRANDE DO SUL, 2013). Nessa esteira, há uma semelhança entre o casamento e a união estável, até porque, em regra, somente poderá ser constituída a união estável se a relação puder ser convertida em casamento; porém há duas principais distinções em relação ao matrimônio e à união estável que são: a coabitação e a fidelidade. Assim, o dever de coabitação presente no casamento foi afastado na união estável de acordo com a Súmula 382 do STF e, portanto, a “convivência more uxório (RIO GRANDE DO SUL, 2010)” tornou-se prescindível; já o dever de “fidelidade” que consta no casamento, não está previsto na união estável, porém é utilizado outro termo, qual seja, “lealdade” de acordo com o art. 1.724 do CC/02, no entanto ambos termos (fidelidade e lealdade) possuem o mesmo significado no sentido jurídico, conforme as palavras do professor Villaça: A lealdade é gênero de que a fidelidade é espécie; aquela figura no âmbito genérico da conduta dos casais, tanto que, muitas vezes, entre cônjuges, não se 21 configurando o adultério, de difícil prova, o mau comportamento de um deles, ainda que faça presumir, às vezes, adultério, já, por si, caracteriza-se como injurioso, apto a autorizar a dissolução da sociedade matrimonial, quando, por esse ato, torna-se, ao inocente, insuportável a vida no lar conjugal (AZEVEDO, 2019, p. 168.). Assim, é possível compreender que existe a lealdade e que ela pode ser subdividida em fidelidade e em lealdade propriamente dita. a primeira, em sentido “lato”, se vincula ao casamento; a segunda possui um sentido mais “stricto”, remetendo-se à união estável, conforme demonstrado no esquema abaixo: FONTE: elaboração nossa Além disso, boa parte da doutrina e da jurisprudência entende que para a união estável não se admite a pluralidade de consórcios sexuais e, portanto, o companheiro(a) também deve atender ao critério de monogamia. Assim, como demonstrado no julgado do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no qual a Ministra Nancy Andrighi atuou no REsp 1.157.273 e descreveu a seguinte passagem: O dever de lealdade implica franqueza, consideração, sinceridade, informação e, sem dúvida, fidelidade. Numa relação afetiva entre homem e mulher, necessariamente monogâmica, constitutiva de família, além de um dever jurídico, a fidelidade é requisito natural (PONZONI, 2008). Ademais, cabe destacar que as causas impeditivas do art. 1.521 do CC/02, já abordadas acima, não se confundem com as causas suspensivas do casamento, previstas no art.1.523, as quais não são aplicáveis às uniões estáveis em consonância ao art. 1.723, §2°, ambos dispositivos extraídos do CC/02. Assim, a jurista Maria Berenice Dias leciona uma importante passagem: A lei elenca causas suspensivas para o casamento (CC 1.523). São causas meramente penalizadoras na esfera patrimonial dos contraentes, sem invalidar o ato matrimonial. Essas restrições, entretanto, não são invocáveis na união estável. Não se pode falar sequer em analogia, pois descabe limitar direitos https://d.docs.live.net/d4e00f6493daf347/%C3%81rea%20de%20Trabalho/TCC%20andamento.docx#_ftn5 22 quando a lei expressamente não o faz. Assim, não existe idade mínima para a constituição de união estável (CC 1.550 I), até porque não há como exigir o consentimento dos pais ou responsáveis (Dias, 2010, p. 422). Outro ponto relevante consiste na formalidade para se alterar o regime de bens até então pré-estabelecido, visto que no casamento é necessária uma ação judicial na qual o juiz proferirá a sentença e permitir-se-á, ou não, a mudança do regime de bens; aspecto previsto no art 1.639, § 2° do CC/02 (BRASIL, [2021]). Já a união estável não necessita de contrato escrito de escritura pública, tampouco, de celebração para a sua constituição, visto que é um ato-fato jurídico, por conseguinte a mudança de regime dos bens também passa por um processo mais flexível. Com efeito, a alteração poderá ser realizada por simples instrumento particular para torna-se válida. Abaixo é exposto um quadro comparativo para facilitar o entendimento do leitor quanto às diferenças do matrimônio e da União Estável atualmente: Casamento União Estável Formação Procedimento Estatal (instrumento público) Plano fático de duas pessoas se comportarem como se casadas fossem. (instrumento particular) Comprovação Documentação de Certidão de Casamento (cria estado civil) Não há documentação, porém pode-se utilizar redes sociais, tais como fotos para comprovação da união estável (não cria estado civil) Extinção Divórcio, morte ou algum tipo de invalidade/impedimento Separação Fática dos companheiros Deveres “convivência more uxório” (residir na mesma casa) não há convivência more uxório (súmula 382 do STF) Paternidade Presumida Não Presumida Lealdade em sentido amplo Fidelidade Lealdade em sentido estrito(art. 1.724 do CC/02) Mudança do regime de bens ação própria para que o juiz permita ou não a mudança de regime de bens não há necessidade do procedimento judicial Manter simultaneamente dois ou mais relacionamentos (impedimento do art. 1.521 do CC/02). Crime de bigamia (art. 235 do CP) não incide crime de bigamia FONTE: autoria nossa 23 3 DISPOSIÇÕES GERAIS DO REGIME DE BENS O regime de bens tem por atribuição observar o estatuto patrimonial dos cônjuges ou companheiros, prevendo regras gerais, as quais serão aplicadas a todos os regimes e regras singulares de acordo com cada especificidade. A hodierna sistemática do Código Civil brasileiro admite quatro modelos de regimes de bens, a saber: a comunhão universal de bens (arts. 1.667 a 1.671), a comunhão parcial de bens (arts. 1.658 a 1.666), a participação final nos aquestos (arts. 1.672 a 1.686) e a separação de bens (arts. 1.641 e 1.687 a 1.688) (LEITE, 2018, p.04). Diversamente, serão retratados os regimes vinculados à união estável, os quais serão discutidos com vagar no interior desta seção. 3.1 Casamento: Pacto Antenupcial O casamento possui natureza complexa, como explicado na primeira seção deste trabalho. Nesse sentido, sua formação é concretizada por duas pessoas, as quais ajustam um acordo de vontade entre si, isto é, um acordo bilateral, no qual fica evidenciado quando analisado o pacto antenupcial. Este pacto é um contrato anterior às núpcias, com prévias disposições e com a organização dos bens patrimoniais dos nubentes a partir do elemento volitivo. Essa possibilidade de disposição geral dos bens está prevista no art. 1.639 do CC/02, no qual o pacto antenupcial será estabelecido na fase pré-contratual ou durante o processo de habilitação para o casamento civil, haja vista não haver um prazo especificado pela legislação, mas apenas a necessidade de anteceder ao casamento. Depois de escolhido o regime de bens, que será constituído no cartório de notas (COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL, 2016, p.06) (tabelionato), efetivando, assim, a produção do pacto antenupcial, posteriormente, o documento terá de ser levado ao registro do cartório civil das pessoas naturais (BRAGANHOLO, 2006), local em que será realizado o casamento. Em seguida, será direcionado ao Cartório de Registro de Imóveis do primeiro domicílio do casal. Essa averbação de matrícula dos bens imóveis do casal tem por finalidade promover os efeitos perante terceiros, iniciando-se com o Registro de Imóveis, contudo o regime de bens começará a vigorar para os cônjuges desde a data do casamento, de acordo com o § 1° do art. 1.639 do CC/02. Nesse contexto, o pacto antenupcial é considerado um ato solene no qual deverá observar diversos aspectos como descrito a seguir: 24 Como o próprio nome já diz, os pactos antenupciais devem anteceder o casamento, não existindo um prazo específico para sua pactuação, o que geralmente ocorre durante o processo de habilitação para o casamento, podendo inclusive ser firmado ou modificado até o dia da cerimônia, sendo obrigatório apenas antecedê-la. “Para sua validade, os pactos antenupciais devem revestir-se de algumas formalidades legais e sua ausência acarretará a nulidade do instrumento; considerando sua natureza contratual deverá atender a alguns requisitos considerados essenciais neste cenário jurídico, quais sejam, ser o agente capaz, ter um objeto lícito, possível e determinável ou determinado, forma prescrita e não defesa em lei (BLASIUS, 2018)”. Consequentemente, tanto o casamento quanto o pacto antenupcial são reconhecidos como processos formais pelo fato de estes observarem diversas exigências estabelecidas em lei e solenes, visto que há a necessidade de ser um ato público. De maneira sintética, pode-se realizar o seguinte esquema a fim de constituir o pacto antenupcial: FONTE: elaboração nossa O pacto antenupcial está previsto entre os arts. 1.653 a 1.657 do CC/02 e o custo financeiro para realizar tal procedimento é pouco dispendioso (PACTO ANTENUPCIAL, [201-?]). Seu preço é tabelado por lei estadual, ou seja, independentemente, do valor do patrimônio do casal. Ademais, a formação do pacto antenupcial deve seguir a forma pública, sob pena de nulidade (art. 1.640 do CC/02) e, após a formalização deste documento, será necessária a ocorrência da celebração do casamento no cartório de Registro Civil, pois, caso contrário, o ato será considerado ineficaz (SÃO PAULO, 2016) sem os devidos efeitos patrimoniais escolhidos pelos nubentes, ainda que a documentação (pacto antenupcial) possua validade por ter cumprido as formalidades públicas exigidas em lei (TARTUCE, 2020, p. 189). Conforme o art. 1.640 do CC/02, o qual prevê: “Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial”. Por meio deste excerto é possível destacar dois pontos importantes decorrentes da não celebração do registro civil, em que um deles possui controvérsia, vejamos: No primeiro caso, se não ocorrer o casamento civil, depois de concretizado o pacto 25 antenupcial de acordo com o art. 1.640 do CC/02, tal documento (pacto antenupcial) perderá a sua eficácia e, automaticamente, será aplicado o regime da comunhão parcial de bens. No entanto, há doutrinadores, tais como: Flávio Tartuce, (TARTUCE, 2018.), Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e, até mesmo, julgados de tribunais, que compreendem em sentido contrário, com a possibilidade de transformar o pacto antenupcial em um contrato de convivência de união estável. Assim, observa-se um abandono do formalismo, já que o regime parcial de bens, previsto no art. 1.640 do CC/02, será afastado para considerar o regime estipulado no pacto antenupcial dos nubentes. Esse “aproveitamento” do pacto à conversão em união estável pode ser analisado no Recurso Especial de número 1.483.863/SP, no qual a Relatora Min. Maria Isabel Gallotti (SÃO PAULO, 2016) reconheceu tal possibilidade e obteve voto majoritário com a seguinte ementa: O contrato pode ser celebrado a qualquer momento da união estável, tendo como único requisito a forma escrita. Assim, o pacto antenupcial prévio ao segundo casamento, adotando o regime da separação total de bens ainda durante a convivência em união estável, possui o efeito imediato de regular os atos a ele posteriores havidos na relação patrimonial entre os conviventes, uma vez que não houve estipulação diversa ( SÃO PAULO, 2016). A presente situação retrata um litígio entre cônjuges, que, inicialmente, adotaram o regime da comunhão universal de bens; primeiro registro de casamento, tendo a duração de 21 anos. Posteriormente, o casal decidiu mudar o regime de bens para a separação total de bens, de maneira que se divorciaram e realizaram um novo pacto antenupcial, entretanto, não ocorreu a celebração do registro civil. Ademais, houve conflitos entre as partes nesse interstício temporal, o qual ocasionou um curto tempo de separação de fato, mas com o retorno da vida em comum, característico de uma união estável. Entretanto, o resultado final foi o encerramento do companheirismo. Diante de tal situação, discutiu-se qual seria o regime de bens que estaria vigente no período da união estável, a saber: a separação total de bens, como previsto no pacto antenupcial, ou a regra geral da união estável da comunhão parcial de bens (SÃO PAULO, 2016). De acordo com o julgado, validou-se a possibilidade do aproveitamento do pacto antenupcial, o qual demonstrou a superação do excesso de formalismo em respeito à autonomia privada da vontade manifestada pelas partes (TARTUCE, 2018). No segundo caso, trata-se da aplicação expressa prevista na lei, isto é, se não for observada a forma pública para constituição do pacto antenupcial, tal ato será considerado nulo e será aplicado, automaticamente, o regime da comunhão parcial de bens. Por 26 conseguinte, cabe destacar que tanto a nulidade quanto a inexistência do pacto antenupcial, em que neste os cônjuges deixaram de escolher o regime de bens, acarretará na aplicação da comunhão parcial de bens de forma subsidiária ou também denominado de regime supletivo. Constata-se que o pacto antenupcial é facultativo, de maneira que este procedimento será adotado em caso de os nubentes optarem por algum regime diverso do legal, que é a comunhão parcial de bens (LEITE, 2018). Assim, os que preferirem o regime da comunhão parcial de bens não precisarão estipulá-lo, pois na falta do pacto antenupcial já revela que, implicitamente, os nubentes aceitaram o regime da comunhão parcial de bens. Salienta-se que são vários os tipos de regimes patrimoniais existentes no direito brasileiro para serem adotados no pacto antenupcial, tais como: a comunhão universal, a separação de bens, a participação final dos aquestos e o regime híbrido, em que a concretização do pacto antenupcial é condição sine qua non. Mas, também, há uma modalidade que não exige o pacto antenupcial, qual seja: o regime da comunhão parcial de bens, cuja maioria dos brasileiros adota por ser um meio mais fácil e prático de constituir, já que a comunhão parcial não necessita da constituição de mais uma etapa documental (dispensa-se pacto antenupcial). Além disso, existe a possibilidade do casamento de menor de idade, ou seja, as pessoas entre 16 a 18 anos também poderão contrair matrimônio, mas será necessária a aprovação dos representantes legais para a celebração do pacto antenupcial, de acordo com o art. 1.517 do CC/02 (BLASIUS, 2018). Entretanto, caso um dos pais negue essa autorização, os nubentes poderão requerer ao juiz o suprimento judicial, o qual analisará a possibilidade ou não da viabilização do matrimônio de acordo com o art. 1.553 do CC/02. Caso seja concedida tal demanda será obrigatório a adoção do regime de separação obrigatória (legal) de bens. Outro ponto relevante é a possibilidade de os cônjuges poderem trocar de regime de bens, se assim desejarem, por intermédio do crivo do poder judiciário, o qual irá analisar o risco de prejuízos tanto ao casal, quanto aos credores, de acordo com o art. 1.639, § 2°, do CC/02.Tal procedimento não era permitido anteriormente. Dessa forma, no início do século XX (na vigência do Código Civil de 1916) não era possível tal modificação (MADALENO, 2020, p.785), pois, normalmente, a mulher estaria sujeita à pressão do 27 marido para que mudasse o regime de bens do casamento de acordo com a vontade deste (PASSARELLI, 2008). Além de que a mudança do regime de bens também poderia facilitar o processo de fraude contra credores e, portanto, para barrar essas situações pactuou-se a imutabilidade de regimes, como descrito a seguir: A imutabilidade do regime de bens, anterior a 2002, foi estabelecida visando evitar que pressões, influências e solicitações na constância do casamento pudessem conduzir um dos consortes a alterar o regime econômico do matrimônio com grave risco para seus próprios haveres e possível prejuízo para os credores e herdeiros (PEREIRA, 2020, p. 218). Nessa toada, as pessoas que eram casadas antes de 11 de janeiro de 2003, caso quisessem mudar de regime, era preciso realizar o divórcio e casar-se novamente para, assim, conseguir trocar o regime de bens do pacto antenupcial. Outro ponto relevante do Código Civil de 1916 consiste no conceito de patriarcalismo no qual a esposa era considerada relativamente incapaz (ROQUE, 2015) com a necessidade da autorização do marido para concretizar determinadas atividades, como por exemplo, exercer algum tipo de profissão. Tal autorização era extremamente frágil, visto que poderia ser suprimido pelo marido a qualquer tempo (MARQUES; MELO, 2008), situação que evidencia a submissão da mulher ao homem durante a vigência do Código Civil de 1916. Mais tarde, em 1962 surge a Lei 4.121 denominada de Estatuto da Mulher Casada, a qual contribuiu com a emancipação do gênero feminino e, inclusive, à época, os juristas discutiam sobre uma possível mudança no regime supletivo o qual era da comunhão universal de bens (MARQUES; MELO, 2008). Assim, observa-se que o Código Civil de 1916 já não atendia às demandas sociais tanto das mulheres quanto dos homens, em que os últimos se mostravam bastante descontentes com a impossibilidade de mudança do regime de bens constituídos no pacto antenupcial, como descrito pelo mestre Orlando Gomes: Não há razão para mantê-lo. O Direito de Família aplicado, isto é, o que disciplina as relações patrimoniais entre os cônjuges, não tem o cunho institucional do Direito de Família puro. Tais relações se estabelecem mediante pacto pelo qual têm os nubentes a liberdade de estipular o que lhes aprouver. A própria lei põe à sua escolha diversos regimes matrimoniais e não impede que combinem disposições próprias de cada qual. Por que proibir que modifiquem cláusulas do contrato que celebraram, mesmo quando o acordo de vontades é presumido pela lei? Que mal há na decisão de cônjuges casados pelo regime da separação de substituírem-no pelo da comunhão? Necessário, apenas, que o exercício desse direito seja controlado a fim de impedir a prática de abusos, subordinando-o a certas exigências. Assim é que a mudança somente deve ser autorizada se requerida por ambos os cônjuges, justificadamente. Seu acolhimento deverá depender de decisão judicial, verificando o juiz se o pedido foi manifestado livremente e se motivos plausíveis aconselham seu deferimento. Finalmente, só é de ser acolhido se não for feito com o propósito de prejudicar terceiros, cujos interesses, em qualquer 28 hipótese, se ressalvam - para o que se deve exigir a publicidade necessária através da obrigação de transcrever a sentença no registro próprio. Protege-se, desse modo, o interesse de quem quer que tenha contra qualquer dos cônjuges um direito cujo título seja anterior ao regime da mudança do regime (PASSARELLI, 2008). Entretanto, com o advento do Código Civil de 2002 foi alterado o regime legal (supletivo) para comunhão parcial de bens e foi solucionado o problema da fraude contra credores por intermédio do art.1.639, § 2° do CC/02. Nesse contexto, admitiu-se, então, a mudança de regime de bens mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, de forma que o juiz poderia controlar o procedimento de mudança para observar se haveria prejuízo tanto à esposa quanto aos terceiros. Assim, é necessário ajuizar uma ação de alteração do regime de bens, com as devidas justificativas do motivo pelo interesse de tal modificação, em que o juiz apenas concederá no caso de nenhum dos cônjuges serem prejudicados (SÃO PAULO, 2015), ressalvado o direito de terceiros (PARANÁ, 2003).Caso, a alteração do regime de bens implique em danos, tal procedimento será considerado ineficaz perante terceiros, de modo que prevalecerá o antigo regime. A título de exemplo, tem-se: Maria e João são casados com adoção do regime da comunhão universal de bens por três anos, com a constituição do pacto antenupcial, mas, posteriormente, decidem modificar para separação total de bens (CAMARGO NETO, 2011), com a ação de mudança do regime de bens peticionada no dia 14 de outubro de 2021.A justificativa apresentada ao juiz para tal alteração consiste no seguinte: Maria é servidora pública, a qual auferia renda fixa, e João um empresário comerciante, que apresenta um risco financeiro considerável à esposa. Diante dessa hipótese considere-se ainda que há dois credores, quais sejam: Ciclano que alienou um carro ao casal no dia 12/10/2021, que seria pago em duas parcelas iguais de vinte mil reais, com a entrega do veículo no dia 13/10/2021 mediante ao pagamento da primeira parcela e Butano que vendeu 5 botijões de gás no dia 15/10/2021 quitados na mesma data. Nesta hipótese, o juiz constata que nenhum dos cônjuges seriam prejudicados e nem mesmo o vendedor de gás, de maneira que para esses aplicar-se-ia o novo regime da separação total de bens. No entanto, Ciclano o qual ainda receberia a outra parcela será prejudicado, pois o regime anterior da comunhão universal de bens poderia haver a cobrança de ambos os cônjuges por representar uma única “massa” (acervo) patrimonial, por isso, no caso de Ciclano, seria mantido o antigo regime da comunhão universal a fim de não prejudicá-lo. https://ibdfam.org.br/artigos/autor/Luciano%20Lopes%20Passarelli 29 Depois, cabe destacar que dependendo do regime escolhido pelos nubentes haverá necessidade, ou não, da autorização do outro cônjuge (outorga conjugal) para administrar os bens. Diante dessa situação é necessário analisar as disposições gerais do regime de bens previstas entre os arts. 1.642 a 1.652, os quais retratam os casos da não necessidade de autorização do outro cônjuge (LÔBO, 2019, p. 340). Dessa maneira, as ações que independem do consentimento do outro cônjuge, podem estar relacionadas com o regime da separação de bens tanto obrigatoriamente (legal) quanto convencionalmente, envolvendo atos de disposição e de administração da profissão. Nessa modalidade, deve-se considerar os bens particulares do cônjuge, sendo permitido administrar os bens próprios, desobrigar ou reivindicar imóveis gravados ou alienados sem o consentimento do outro cônjuge ou sem o suprimento judicial. Assim, podem os bens comuns, móveis ou imóveis, serem doados ou transferidos pelo outro cônjuge ao concubino, desde que provado que os bens não foram adquiridos pelo esforço comum destes é possível tal doação (LÔBO, 2019, p. 342). Ainda assim, há atos que dependem do consentimento do cônjuge, tais como: a comunhão parcial, universal e participação final nos aquestos, visto que há um patrimônio comum constituído durante a vigência do matrimônio. Diante de tal situação, é necessária a autorização do outro cônjuge para alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; pleitear como autor ou réu acerca desses bens ou direitos; prestar fiança ou aval; entre outros fatores. Em caso de não haver concordância, o juiz pode suprir (MADALENO, 2020. p. 915), não existindo justo motivo para recusa por parte do outro cônjuge. Se o Cônjuge conseguir realizar o ato sem o consentimento do outro, será considerada uma ação anulável cujo prazo será de dois anos após o término da sociedade conjugal, podendo ser alegado pelo próprio cônjuge ou pelos herdeiros. Por conseguinte, o prazo não começa a contar a partir da prática do ato, mas da dissolução da sociedade conjugal. A título de exemplo: se o cônjuge a vinte anos atrás conseguiu vender um imóvel sem autorização do outro, mas a sociedade conjugal não foi dissolvida, teoricamente não se iniciou a contagem do prazo de dois anos. Porém, caso tenha ocorrido o falecimento do cônjuge negociador, o divórcio (separação judicial) ou a separação de fato, o prazo de dois anos começará a transcorrer. 30 3.1.1 Comunhão parcial Como visto anteriormente, a comunhão parcial de bens passou a ser adotada como regime supletivo (BRAGANHOLO, 2006, p. 02) , mais especificamente em 1977, com advento da Lei n. 6.515, de 15 de dezembro de 1977, denominada de Lei do Divórcio, visto que anteriormente, aplicava-se o regime da comunhão universal de bens. Assim, houve a modificação do art. 258 do Código Civil de 1916, descrito a seguir: Com efeito, na vigência do Código Civil de 1916, o legislador nacional optou, sem vacilar, pelo regime da comunhão universal de bens, como regime legal. Ou seja, o Brasil, contrariamente ao modelo português que lhe serviu de paradigma, seguiu a orientação germânica. Tal tendência durou até o advento da Lei do Divórcio que, em 1977, substitui o regime legal da comunhão universal pelo regime da comunhão parcial. O modelo a ser seguido pela sociedade brasileira e desejado pelo legislador pátrio, resgate-se, permaneceu com nítida preferência pela comunicabilidade dos bens durante o casamento. A opção pelo regime da comunhão parcial de bens, embora parcial, determina uma tendência que sempre se impôs no modelo brasileiro, a saber, a comunicabilidade patrimonial (LEITE, 2018, p.02). Tal alteração de regime de bens entrou em vigor em 27 de dezembro de 1977, em que apesar de haver críticas pela ausência “de vacatio legis” ( ASSUMPÇÃO, 2016, p. 01), era um tema discutido desde o Estatuto da Mulher Casada de 1962. A nova previsão do regime supletivo (legal) da comunhão parcial de bens consta no art. 1.658 do CC/02, que pode ser definido da seguinte forma: “Caracteriza-se por estabelecer a separação quanto ao passado (bens que cada cônjuge possuía antes do casamento) em comunhão e no futuro (bens adquiridos na constância do casamento), gerando três “massas” de bens: os do marido, os da mulher e os comuns” (GONÇALVES, 2021, p. 187). Por intermédio de tal descrição é possível realizar o seguinte esquema de forma simplificada: 31 FONTE: elaboração nossa Esta lógica procura segmentar em dois tipos de bens, quais sejam: as propriedades particulares que, eventualmente, os nubentes trazem consigo antes do casamento; dos que serão constituídos na vigência do matrimônio. Estes se comunicarão entre os cônjuges em que o patrimônio será amealhado, visto que há presunção (DIAS, 2008, p. 01) de mútua colaboração para aquisição dos bens; já aqueles não existirá a comunicação de bens de maneira que será preservado a titularidade dos bens de quem adquiriu anteriormente. Por tabela, o regime de comunhão parcial de bens formam três “massas” (ou acervos) de bens, os particulares do marido, os particulares da mulher e os comuns de ambos casal, também denominado de aquestos (LEITE, 2018, p. 04). Nessa conjuntura, será arrolada uma lista dos bens, os quais serão particulares e os que serão em comum. Bens em comum na comunhão parcial de bens Os bens adquiridos por fato eventual, tais como: ganhar na loteria, ou escrever um livro que ficou famoso, ainda que exista ou não o apoio familiar e o concurso no trabalho, serão considerados bens da família com a devida partilha para ambos os cônjuges, consoante ao art. 1.658 do CC/02. As benfeitorias realizadas na propriedade particular de um dos cônjuges v.g. um apartamento que pertence à mulher e, depois de se casarem, os cônjuges decidem fazer uma reforma, de maneira que no processo de partilha, a reforma será considerada “nosso”, o que torna dificultosa a futura realização da divisão e posterior partilha. Os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão, serão considerados de ambos os cônjuges. A título de exemplo, se o cônjuge tem imóvel antes de contrair casamento e, mais tarde, decide alugá-lo com aferição de valores e deposita-os em conta bancária e, eventualmente, haja separação, o acúmulo desta renda entrará para a meação dos cônjuges (MADALENO, 2019). Bens particulares de um dos cônjuges na comunhão parcial de bens Os bens que cada cônjuge possuir antes do casamento, e os que lhe sobrevierem na constância do matrimônio seja por doação, seja por sucessão, serão patrimônios de 32 titularidade exclusiva do respectivo cônjuge, de acordo com o art. 1.659 do CC/02. Inclusive os sub-rogados em seu lugar, isto é, quando há uma substituição de um bem por outro de mesmo valor, como, por exemplo: se houver uma doação de um carro no valor de quarenta mil reais para Beta, e posteriormente, esse veículo for vendido para ser adquirida uma motocicleta cujo valor seja de quarenta mil, há incidência da sub-rogação. de modo que a moto é exclusivamente de Beta. As obrigações assumidas antes do casamento, tais como: as dívidas, não se comunicarão durante a vigência do casamento, de tal maneira que cada um responde por sua dívida isoladamente. Salvo se essa obrigação seja proveniente de atos ilícitos com reversão de proveito para ambos os cônjuges. A título de exemplo, considere que João é um empresário, que pagava todos os tributos, no entanto, após o casamento com Maria, as despesas familiares aumentaram, de maneira que este deixa de contribuir com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), almejando o aumento de recursos financeiros para construção de sua casa com a esposa. Tal situação evidencia que o ato ilícito de sonegação de imposto reverteu-se em benefício a ambos os cônjuges e, assim, tanto João quanto Maria responderão pela dívida de sonegação de impostos (RIO GRANDE DO SUL, 2017). Os bens de uso pessoal, tais como roupas, e até instrumentos profissionais, são considerados, na teoria, patrimônio não passíveis de divisão entre cônjuges (incomunicáveis). Ainda que ocorra a união financeira para comprar um equipamento de alto custo ou um dos cônjuges pague a totalidade do produto. Por conseguinte, se considerarmos as aparelhagens odontológicas, que representam um valor expressivo, independe de qual seja a contribuição pecuniária dos cônjuges, visto que a posse de utilização garantirá a aquisição exclusiva (DIAS, 2008, p. 02). Além do mais, os seguintes incisos VI e VII do art. 1.659 do CC/02 preveem que os rendimentos auferidos por cada cônjuge pertencem ao respectivo trabalhador, assim como o recebimento de pensões e outras rendas semelhantes. Entretanto, são pontos questionáveis, porque se considerar um homem, o qual labuta para auferir renda e a mulher labora com os serviços de casa, por vezes cuidando dos próprios filhos do casal, constata-se que há uma economia com os afazeres domésticos e seria, dessa forma, injusto o esposo guardar os rendimentos financeiros, investindo o mínimo com sua família apenas para subsistência, e entesourar o restante do rendimento para si, além da esposa não obter pecúnia nenhuma 33 apesar de trabalhar tanto quanto o marido (DIAS, 2008, p. 03). 3.1.2 Comunhão universal A comunhão universal de bens está prevista entre os arts. 1.667 a 1.671 do CC/02 e uma das principais características deste regime está no fato de tanto os bens móveis quanto imóveis, que cada um dos cônjuges trouxer para a sociedade matrimonial, serão de ambos o casal. Inclusive, os adquiridos na constância do casamento, de maneira que estes bens comuns e aqueles patrimônios particulares formaram uma única “massa” (acervo) patrimonial, tornando-se os cônjuges meeiros (MADALENO, 2019) em todos os aspectos materiais pecuniários, ainda que apenas um deles tenha trazido e adquirido o bem. Salvo quando a lei especificamente mencionar o art. 1.668 do CC/02 ou quando houver pacto antenupcial excluindo expressamente a não comunicação (MOREIRA, 2020. p. 259) de bens, de acordo com a vontade das partes, como demonstrado a seguir: Art. 1.668. São excluídos da comunhão: I - os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar; II - os bens gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva; III - as dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em proveito comum; IV - as doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade; V - Os bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659. Além disso, apesar do caput do art. 1.667 do CC/02 prevê expressamente a comunicação inclusive das dívidas pretéritas, tal fragmento contraria o art. 1.668 do CC/02, que descreve a exclusão de comunicação de dívidas anteriores ao casamento. Nesse contexto, a prática jurídica considera a não comunicação por não haver aproveitamento em benefício da família, isto é, se um dos cônjuges antes de se casar, trouxer consigo dívidas do período de solteiro, este responderá por suas obrigações sem prejuízo ao outro cônjuge. Na forma do inciso III do art. 1.668, não entram no acervo comum as dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em proveito comum. Cite-se como exemplo: dívidas contraídas para a aquisição do imóvel de residência do casal, bem como os bens destinados a guarnecê-la (enxoval, móveis, eletrodomésticos), e ainda que tenham sido destinadas às despesas para a realização do casamento ou em benefício dos cônjuges. Pelas dívidas que não se comunicam será demandado o devedor e, se na sua liquidação forem alcançados os bens comuns, o valor deverá imputar-se na meação do responsável, e excluído da do outro (PEREIRA, 2020, p. 261). Por meio deste fragmento, é possível constatar a não comunicação das dívidas em relação à família, a menos que tais despesas tenham sido revertidas em benefício de ambos 34 os cônjuges. Como exemplo, pode-se citar os aprestos, os quais consistem na preparação do casamento, que gera custos financeiros em proveito do casal, de maneira que serão partilhadas tais dívidas. Apesar da semelhança com o regime da comunhão parcial de bens, tal como exposto acima, em que as dívidas em proveito do casal implica na responsabilização de ambas as partes, os frutos decorrentes de bens particulares, também serão de ambos os cônjuges de acordo com o art. 1.669 do CC/02. Porém, uma das principais diferenças quando analisado o período da vigência do matrimônio, está relacionada à modalidade de sucessão, visto que havendo herança ou doação, na comunhão universal o cônjuge será meeiro (FARIAS; NETTO; ROSENVALD, 2018, p. 1972) e na comunhão parcial este será herdeiro necessário (FARIAS; NETTO; ROSENVALD, 2018, p. 1968). 3.1.3 Participação final nos aquestos Os aquestos são bens onerosamente adquiridos na constância do casamento, tal regime é uma inovação do código civil de 2002 sem qualquer experiência anterior e com origem controversa, visto que muitos países adotam essa legislação, inclusive, como regime supletivo. Entretanto, no Brasil, a participação final dos aquestos é um tema de difícil aplicabilidade, como justificado pelo mestre Paulo Lôbo: “dotado de certa complexidade, por agregar elementos da comunhão parcial, separação absoluta e apuração contábil de passivo e ativo (LÔBO, 2019. p. 372) ”. Por tabela, nos casos práticos processuais não é incomum os magistrados julgarem a participação final dos aquestos de maneira equivalente ao regime da comunhão parcial de bens, devido à dificuldade de comprovar os gastos que cada cônjuge teve nas despesas de casa a fim de apurar o que um deve para o outro. A título de exemplo, considere que Ciclano é solteiro e o regime atual é o da separação de bens, mas posteriormente decide se casar com Fulano; ambos adotam o regime da participação final nos aquestos. Durante o casamento, cada cônjuge administra isoladamente (LÔBO, 2019. p. 375) o seu patrimônio como bem entender, prevalecendo a ideia da separação total de bens. Nessa situação, Ciclano paga com seu próprio dinheiro a pintura do imóvel de Fulano, visto que este estava viajando a negócios em outro país e aquele ficou no Brasil onde trabalha regularmente. Porém, pouco tempo depois ocorre o fim do casamento sendo necessário concretizar a partilha dos bens onerosamente adquiridos na constância do casamento e em relação à pintura quitada por Ciclano será 35 descontada dos bens Fulano no processo de divisão patrimonial. Para solucionar tal questão o professor Rodrigo da Cunha Pereira ressalta uma significativa passagem: Em alguns aspectos o regime da participação final dos aquestos, assemelha-se ao da comunhão parcial de bens. Mas sua maior destinação está no tratamento sobre as dívidas. Na participação final dos aquestos, as dívidas não se comunicam, exceto se reverterem em favor do outro (art. 1.677 do CCB/2002). Além disto, o cônjuge que pagou a dívida do outro, terá direito à restituição do valor atualizado, a ser descontado da meação que couber ao outro na dissolução da sociedade conjugal. Em outras palavras, há um acerto de contas entre os cônjuges em relação à dívida, quando do divórcio, quando elas foram pagas com recurso do outro cônjuge (art. 1.678 do CCB/2002) (PEREIRA, 2020, p. 157). Em outras palavras, na constância do casamento, cada um tem o seu patrimônio cuja gestão é isolada e cada um administra o seu patrimônio de acordo com o art. 1.672 do CC/02. Contudo, no momento do divórcio ou de falecimento, será calculada a soma dos bens adquiridos na constância do casamento com a posterior subtração, desconsiderando os bens anteriores ao casamento, os sub-rogados e os recebidos por sucessão hereditária (herança ou legado) e/ou doação. Desse modo, depois de efetuado o cálculo, a sobra será o denominado aquestos, a título de exemplificação é retratado um caso extraído da obra do escritor Paulo Lôbo, a seguir: O regime de participação final nos aquestos associa os cônjuges nos ganhos e não nas perdas. Veja-se o seguinte exemplo de cálculo formulado por Oliveira e Muniz (1990, p. 364) e que adaptamos aos requisitos do Código Civil, supondo inexistirem dívidas relativas aos bens excluídos e doações feitas a terceiros (art. 1.675): a) Patrimônio final do marido: 1.700 Menos bens excluídos:1.000 Ganho ou aquestos:700 b) Patrimônio final da mulher:800 Menos bens excluídos:500 Ganhos ou aquestos:300 c) Crédito de participação devido pelo marido à mulher: 700 − 300 (÷ 2) = 200 O crédito de ganho da mulher contra o marido é de 350 (metade de 700). O crédito de ganho do marido contra a mulher é de 150 (metade de 300). Esses créditos são compensados e obtém-se o crédito de participação devido pelo marido à mulher: 350 − 150 = 200. Realizado o crédito de participação em favor da mulher, o marido conserva como ganhos ou aquestos: 700 − 200 = 500. E a mulher terá 300 + 200 = 500. O resultado a que se chega é de igualdade (LÔBO, 2019, p. 378). Tal procedimento de cálculo é de difícil aplicação, visto que a maioria das famílias não possuem o costume de anotar os gastos de cada cônjuge em forma de planilhamento. Consequentemente, a apuração dos aquestos com a comprovação de cada custo fica prejudicada e confusa nessa modalidade de regime. 36 3.1.4 Regime da separação de bens A separação de bens pode ser subdividida em duas categorias, a primeira decorre da lei (separação obrigatória) e a segunda é proveniente da vontade das partes (separação convencional). Separação obrigatória O art. 1.641 do CC/02 dispõe que a separação obrigatória é imposta aos nubentes que não se atentarem às três possíveis hipóteses transcritas abaixo: Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. O inciso I prevê a questão da inobservância dos nubentes em relação às causas suspensivas do art. 1.523 do CC/02 (BRASIL, [2021]). Estas (causas suspensivas) existem a fim de evitar evitar possíveis confusões patrimoniais, engendrando sanções às partes, como esta que impede os nubentes de escolherem o regime de bens, apesar de não ocasionar qualquer nulidade do casamento. Tais sanções podem ser arguidas por qualquer dos parentes em linha reta de um dos nubentes, sejam consanguíneos ou sejam afins; inclusive pelos colaterais em segundo grau, como por exemplo, os irmãos, conforme o art. 1.524 do CC/02. A segunda hipótese está atrelada aos idosos com mais de 70 anos, os quais estariam sujeitos ao golpe do baú. Dito de outra maneira, acredita-se que as pessoas com mais idade já construíram um vasto patrimônio e este seria alvo de indivíduos mais jovens, os quais possuem o objetivo adquirir alguma quantia financeira (LÔBO, 2019, p. 378). Diante desta possibilidade, o legislador tentou proteger o bem de família de terceiros mal intencionados, que utilizam o relacionamento afetivo para, de alguma forma, se beneficiar, ou até mesmo, enriquecer. Entretanto, se o casamento é precedido de uma união estável entre pessoas com mais de 70 anos, o casal poderá ter o regime de livre escolha, porque a separação obrigatória é para evitar o golpe do baú, o que deixa de fazer sentido, se o casal já vivia em união estável. Assim, o casal pode entrar com uma ação pedi