UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP MARLY DE FÁTIMA MONITOR DE OLIVEIRA OS GÊNEROS DO DISCURSO NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA: ESTUDO DE CASO ARARAQUARA – S.P. 2014 MARLY DE FÁTIMA MONITOR DE OLIVEIRA OS GÊNEROS DO DISCURSO NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA: ESTUDO DE CASO Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da UNESP/Araraquara, para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Estrutura, organização e funcionamento discursivos e textuais. Orientador: Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan Bolsa: Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPQ ARARAQUARA – S.P. 2014 Oliveira, Marly de Fátima Monitor de Os gêneros do discurso no livro didático de Língua Portuguesa: estudo de caso / Marly de Fátima Monitor de Oliveira – 2014 188 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara) Orientador: Renata Coelho Marchezan l. Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovich), 1895-1975. 2. Livros didáticos. 3. Língua portuguesa (Ensino fundamental). I. Título. MARLY DE FÁTIMA MONITOR DE OLIVEIRA OS GÊNEROS DO DISCURSO NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA: ESTUDO DE CASO Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da UNESP/Araraquara, para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Estrutura, organização e funcionamento discursivos e textuais. Orientador: Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan Bolsa: Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPQ Data da defesa: 30/06/2014 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: ___________________________________________________________________________ Presidente e Orientadora: Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan (Unesp/Araraquara) ___________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Glória Maria Palma (USC/Bauru) ___________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Simone Ribeiro de Ávila Veloso (Unesp/Araraquara) Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara À Amanda, Maria Alice e Ana Laura, meninas que me inspiram a continuar pelas veredas do conhecimento. À minha querida e lutadora mãe que me faz acreditar sempre. AGRADECIMENTOS A Deus por me permitir desenvolver este trabalho com dignidade. Aos meus pais, principalmente minha mãe, que mesmo sem entender a amplitude desta pesquisa sempre me apoiaram. Ao meu irmão que sempre me apoiou, torceu, incentivou e me acompanhou desde a minha primeira apresentação na graduação. Aos meus pais do coração Lauro e Regina que me acolheram e com muito carinho me incentivam a continuar. À minha orientadora Renata Coelho Marchezan pela confiança, acolhida e troca de experiência e conhecimento. Às professoras Dra. Simone Ribeiro Ávila Veloso e Dra. Marina Mendonça Célia Mendonça pela leitura minuciosa e pelas grandes contribuições no Exame Geral de Qualificação. À professora e amiga Dra. Glória Maria Palma pelo incentivo e generosidade em compartilhar suas experiências e conhecimento desde a época da graduação na Universidade do Sagrado Coração. Aos amigos do SLOVO pelas leituras e reflexões, principalmente às professoras Renata, Marina e Luciane de Paula, e aos companheiros Cezinaldo, Nicole, Jéssica, Eneida entre tantos outros. Aos meus amigos da Escola Guedes de Azevedo, Roberto, Luísa, Silvia, Stella, Rose, Márcia, Andrea, Gilson, Michelle, Luane, Verinha que me apoiaram e incentivaram. Às minhas amigas-irmãs Valéria, Stella e Idalina pelas conversas, desabafos e pelo ombro amigo de sempre. A Lauro Martins Neto, meu companheiro, sou eternamente grata pelas horas de conversa, por entender as ausências, pelo apoio e carinho. Não teria conseguido sem você. Muito obrigada sempre! Ao Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa. Ao CNPq pela bolsa fornecida. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila de nossos olhos. Assumindo a devida posição, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la inteiramente urge fundir-se em um todo único e tornar-se uma só pessoa. (BAKHTIN, 2010a, p. 21) RESUMO Para que o aluno seja realmente capaz de se inserir socialmente, é necessário que ele domine a linguagem. É por meio da linguagem que as pessoas podem se comunicar, se expressar, defender suas ideias, ter acesso à informação, compartilhar pensamentos e construir conhecimento. No entanto, o que se percebe nos livros didáticos estudados é uma vasta variedade de gêneros que muitas vezes são apresentados e explorados de maneira superficial, ou ainda, se afastando dos conceitos bakhtinianos. O excesso, a reprodução e a sistematização consolidam uma visão esquemática dos gêneros, cujo resultado é o enfado dos alunos devido à recorrência de modelos e o enquadramento de qualquer produção textual. Esta pesquisa examina os gêneros discursivos presentes nas propostas didáticas de Língua Portuguesa, do Ensino Fundamental II, e, para isso, analisa as atividades de produção textual sugeridas por duas coleções: Português: Linguagens (2010) e Língua Portuguesa (2012). A análise crítica proposta tem como pressuposto uma preocupação pedagógica quanto ao aprendizado e domínio dos gêneros do discurso. Com a leitura crítica desse corpus, pôde-se observar a sua relação com os conceitos de gêneros do discurso, pensados por Bakhtin, com destaque para as propostas presentes no Manual do Professor e nas atividades sugeridas. Palavras-chave: Bakhtin, gêneros discursivos, produção textual, livro didático. ABSTRACT So that the student is actually able to enter socially, he must control the language. It is through language that people can communicate, express themselves, defend their ideas, access information, share thoughts and build knowledge. However, what is perceived is in the textbooks studied a wide variety of genres that are often presented and explored superficially, or even moving away from the Bakhtinian concepts. Excess, reproduction and systematization consolidating a schematic view of genres, the result is boredom of students due to the recurrence of models and the framework of any textual production. This research examines the discursive genres present in didactic proposals for Portuguese, the Secondary School, and, therefore, examines the activities of textual production suggested by two different collections: Português: Linguagens (2010) e Língua Portuguesa (2012). The proposed critical analysis presupposes a pedagogical concern about the learning and mastery of discourse genres. With the critical reading of this corpus, we could observe their relationship with the concepts of discourse genres, thought by Bakhtin, especially these proposals in the Teacher's Guide and the suggested activities. Key words: Bakhtin, discourse genres, textual production, textbook. LISTA DE ABREVIATURAS LDLP: Livro Didático de Língua Portuguesa LDB: Lei de Diretrizes e Bases MP: Manual do Professor PCN: Parâmetros Curriculares Nacionais PNLD: Plano Nacional do Livro Didático SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12 1 ENTENDENDO O GÊNERO EM BAKHTIN ................................................................. 18 1.1 Primeiras palavras............................................................................................................... 18 1.2 O conceito de gênero do discurso em Bakhtin e no Círculo .............................................. 21 2 OS PARÂMETROS CURRICULARES E AS CONTRUIÇÕES DE M. BAKHTIN 36 2.1 Os Parâmetros Curriculares Nacionais: um encaminhamento ........................................... 36 2.2 O gênero do discurso: objeto de ensino priorizado pelos PCNs ........................................ 38 2.3 As diretrizes dos PCNs para o 3º e 4º ciclos e a proposta de trabalho com os gêneros discursivos na disciplina de Língua Portuguesa ....................................................................... 44 3 O MATERIAL DIDÁTICO E A AVALIAÇÃO DO PNLD ........................................... 50 3.1 O livro didático e o PNLD .................................................................................................. 50 3.2 O livro didático: um gênero em análise .............................................................................. 53 4 O CONCEITO DE GÊNERO EM PORTUGUÊS LINGUAGENS E EM LÍNGUA PORTUGUESA ....................................................................................................................... 57 4.1 A teoria dos gêneros do discurso nos livros em análise: uma mistura de abordagens ....... 57 4.2 O gênero no Manual do Professor de Português Linguagens ............................................ 64 4.3 O gênero no Manual do Professor de Língua Portuguesa ................................................. 69 5 OS GÊNEROS DISCURSIVOS NO LDLP ...................................................................... 75 5.1 Apresentação da coleção Português Linguagens ............................................................... 75 5.1.1 LDPL 1 ............................................................................................................................ 76 5.1.2 LDPL 2 ............................................................................................................................ 78 5.1.3 LDPL 3 ............................................................................................................................ 80 5.1.4 LDPL 4 ............................................................................................................................ 82 5.2 Apresentação da coleção Língua Portuguesa ..................................................................... 89 5.2.1 LDPL 5 ............................................................................................................................ 91 5.2.2 LDPL 6 ............................................................................................................................ 94 5.2.3 LDPL 7 ............................................................................................................................ 97 5.2.4 LDPL 8 .......................................................................................................................... 100 5.3 Do Manual do Professor para o Livro do Aluno .............................................................. 107 5.3.1 Português Linguagens ................................................................................................... 107 5.3.2 Língua Portuguesa ........................................................................................................ 146 CONSIDEERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 172 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 174 ANEXO .................................................................................................................................. 181 INTRODUÇÃO Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (1998) ressaltam a importância do domínio da língua e da linguagem como meio de participação social, pois é por meio da linguagem que as pessoas podem se comunicar, se expressar, defender suas ideias, obter acesso à informação, compartilhar pensamentos e construir conhecimento. Assim, segundo os PCNs é dever da escola ampliar os conhecimentos adquiridos e fazer com que, durante os anos do ensino fundamental, “cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais variadas situações.” (BRASIL, 1998, p.19) Dessa forma, em Língua Portuguesa, os PCNs elegeram o texto como elemento básico de ensino, pois é por meio dele que o aluno realizará o seu projeto discursivo. Ao trabalhar com o texto e este se organizar temática, composicional e estilisticamente, o gênero discursivo foi incluído pelos autores nos Parâmetros Curriculares Nacionais. É por volta de 1980 que as ideias de Bakhtin e seu Círculo ganham espaço na esfera acadêmica. A concepção de ensino de leitura e produção de texto passa a ser vistas como atividades de interação verbal concretizadas por meio de gêneros do discurso. Desta forma, a concepção de gênero, na perspectiva dialógica da linguagem, ganhou espaço na esfera escolar. Por se basear nos PCNs para compor o material, os autores de livros didáticos, então, sugerem, em seus manuais, o trabalho com os diversos gêneros discursivos que circulam socialmente. No entanto, o que se percebe nos livros didáticos estudados é uma vasta variedade de gêneros que muitas vezes são apresentados e explorados de maneira superficial, ou ainda, se afastando do conceito bakhtiniano de gênero, o que não constitui problema para a esfera da autoria em relação à ressignificação, mas propicia uma reflexão sobre em como constituem os manuais didáticos. Para Bakhtin (2010a, p.262), o enunciado é individual, no entanto, cada esfera de comunicação cria “tipos relativamente estáveis de enunciados”, chamados de gênero do discurso. O estudioso ressalta que há uma vasta diversidade de gêneros e as possibilidades de uso são infinitas, visto que as atividades humanas são poliformes e “porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo.” Portanto, a excessiva normatização dos gêneros não corresponde à leitura bakhtiniana. O excesso, a reprodução e a sistematização consolidam uma visão esquemática dos gêneros, cujo resultado é o enfado dos alunos devido à recorrência de determinados gêneros e de propostas de produção que fornecem dicas estruturais a serem seguidas no momento da escrita pelo aluno. O exercício sistemático da produção textual conforme os gêneros propostos consolida uma visão esquemática dos gêneros, baseado em elementos estruturais a serem seguidos. Talvez a questão mais importante nesta discussão seja a metodologia usada para os estudos do gênero, que se formata limites do gênero livro didático, ao contrário da concepção de Bakhtin que tem origem na vivência real dos gêneros. Segundo Fiorin (2010, p.60) depois que os Parâmetros Curriculares Nacionais estabeleceram que o ensino de Português fosse feito com base nos gêneros, apareceram muito livros didáticos que vêem o gênero como um conjunto de propriedades formais a que o texto deve obedecer. O gênero é, assim, um produto, e seu ensino torna-se, então, normativo. Sob a aparência de uma revolução no ensino do Português está-se dentro da mesma perspectiva normativa com que se ensinava gramática. Não se pode deixar de considerar que o gênero discursivo reflete o processo social envolvido na situação comunicativa nas mais variadas esferas de atividades. No ensino e na aprendizagem de Língua Portuguesa, os gêneros são considerados como vias de acesso ao letramento, e, para torná-los mais acessíveis, os livros didáticos procuram compor suas coleções com os gêneros que estão presentes em nossa vida cotidiana. Porém, na escola, o gênero se afasta da vida real, torna-se um simulacro. Os estudos do gênero em Bakhtin já contém uma metodologia, e essa parte é pouco explorada. Os autores dos livros didáticos deveriam sugerir propostas viáveis a situações reais. No entanto, muitas vezes as atividades propostas pelos livros didáticos impedem que o aluno perceba o gênero como um recurso do dizer, e que esse dizer e o como dizer estão atrelados não a uma forma fixa e engessada, mas a uma situação comunicativa que “seleciona” a forma, o conteúdo e o estilo. Há um vasto repertório de gêneros discursivos. Muitas vezes são empregados com segurança e habilidade, “mas em termos teóricos podemos desconhecer inteiramente a sua existência (...) falamos por gêneros diversos sem suspeitar da sua existência.” (BAKHTIN, 2010, p.282) Partindo, então, do estudo do texto, os PCNs propõem os objetivos a serem contemplados pela escola: tornar os alunos capazes de ler, interpretar e produzir diferentes textos nas mais diversas situações comunicativas; por isso os autores dos livros didáticos, respondendo ao material oficial, trouxeram para suas coleções os gêneros discursivos. No entanto, a repetição exaustiva dos mais diversos gêneros, da maneira como são propostos pelos livros didáticos em atividades de leitura e produção garantirá tais objetivos? Como tudo que inquieta merece uma resposta, este trabalho busca refletir acerca dos gêneros propostos em duas coleções didáticas destinadas ao Ensino Fundamental II. São elas: a coleção Português Linguagens (2010), de autoria de Willian Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, e a coleção da Rede Pitágoras Língua Portuguesa (2012), dos autores Juliana Villas-Bôas, Maria Lucia de Oliveira, Pedro Faria Borges e Sofia Araújo de Oliveira. A primeira é composta por quatro livros, sendo um para cada ano; e a segunda, por oito volumes, um para cada semestre, totalizando oito livros. A escolha pela coleção Português Linguagens se justifica pela aprovação do material pelo PNLD/2011 (Programa Nacional do Livro Didático). Segundo o PNLD (2011, p. 114) as atividades sugeridas pela coleção Português Linguagens são direcionadas para a produção de texto e evidenciam o uso social do gênero. Além disso, é uma das coleções mais escolhidas pelos professores para serem trabalhadas nas escolas públicas, segundo informação contida no site do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Já a coleção da Rede Pitágoras não passa pelo processo de avaliação que a coleção Português Linguagens. A escolha se justifica por ser o material didático adotado pela escola em que leciono e, assim como Português Linguagens, também propõe o trabalho com o gênero em sua coleção. Esta pesquisa tem como pressuposto uma preocupação pedagógica quanto ao modo como os autores dos livros didáticos em estudo têm considerado a indicação da necessidade de ensinar os gêneros do discurso e a relação com o conceito de gênero do discurso, pensado por Bakhtin e o Círculo. Desta forma este trabalho tem como objetivo examinar as propostas didáticas para o ensino de Língua Portuguesa no que se refere à introdução e ao tratamento dos gêneros do discurso; analisar as atividades de produção textual encaminhadas pelos livros didáticos em estudo; destacar as contribuições que uma abordagem dialógica dos textos poderia trazer às atividades do professor e examinar as metodologias propostas para o ensino dos gêneros com base em Bakhtin (1926, 2010a, 2010b, 2010c, 2010d). Para tanto, será analisado o tratamento dos gêneros propostos nos livros didáticos Português: Linguagens (2010) e Língua Portuguesa (2012), tendo como fundamento teórico o pensamento bakhtiniano; em especial, seu conceito de gêneros do discurso, bem como a concepção dialógica da linguagem, que o sustenta. A análise proposta se constitui como uma pesquisa quantitativa, qualitativa de caráter interpretativo. A investigação é composta por etapas de descrição, análise e interpretação, que partem do livro didático, ele próprio também considerado como um gênero do discurso. Desta forma, buscou-se evidenciar como os gêneros do discurso são metodologicamente tratados e trabalhados nos livros didáticos selecionados, analisar as atividades de produção textual sugeridas pelos livros didáticos objeto de estudo; demonstrar quais gêneros aparecem nas atividades, principalmente, de produção textual; fazer um levantamento de quais gêneros são revisitados e propostos, em anos diferentes, para a produção textual; analisar como se dá a transposição dos conceitos de gênero do Manual do professor para as atividades de produção textual; e, destacar as contribuições que uma abordagem dialógica dos textos poderia trazer às atividades do professor. Mesmo consciente de que os gêneros do discurso nos mais variados livros didáticos seja um tema recorrente em muitos estudos, o interesse, desta pesquisa, está centrado em analisar o como os gêneros discursivos são tratados ao longo das duas coleções, destinadas ao Ensino Fundamental II. Grande parte das pesquisas nessa área, geralmente, analisa gêneros específicos, como por exemplo, artigo de opinião. Dessa forma, esta pesquisa contribuirá para um melhor entendimento do ensino dos mais diversos gêneros ao longo dos anos do Ensino Fundamental II. Como professora de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental II, trabalho, na escola em que ministro aulas, com o material da Rede Pitágoras Língua Portuguesa. Esse colégio adotou o material da Rede, já há sete anos, por julgá-lo mais “adequado”. Anteriormente, o norteamento do estudo de Língua Portuguesa era proposto pelo Português Linguagens, coleção de autoria de Willian Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães. Ao iniciar meu trabalho com a coleção da Rede Pitágoras várias indagações surgiram: onde estão os gêneros literários?; por que trabalhar com uma vasta quantidade de gêneros?; quais eu, como professora, devo trabalhar?; como posso trabalhar tais gêneros?; quais são mais propícios para a leitura e quais para a produção? Por outro lado, recebia dos alunos, outros questionamentos: por que temos que escrever uma notícia se eu não sou jornalista?; vamos ter que entrevistar novamente alguém, se já fizemos isso no ano passado?; etc. De início a proposta, como está nos livros didáticos, forma leitores de textos utilitários, mas não forma o leitor crítico, pelo contrário, ela faz um enquadramento por meio da leitura e da construção de textos, ou seja, primeiramente propõem um gênero para a leitura, trabalha questões de interpretação e voltadas para a estrutura do texto e, em seguida, pede a produção do gênero estudado. É importante ressaltar para os alunos que o gênero reflete uma atividade concreta de interação discursiva, por isso a necessidade de adequar o melhor gênero do dizer em determina situação comunicativa. Colocar o gênero como uma receita a ser seguida, faz com que o aluno não perceba a dinamicidade da língua expressa por meio do gênero. Assim, ele não refletirá sobre a adequação dos elementos constituintes da língua à situação de produção (oral ou escrita), nem sobre o processo enunciativo que determinou o gênero utilizado ou o surgimento de uma nova maneira de enunciar. No processo de leitura e produção é importante interpretar aquilo que está explícito e implícito, o dito e o “não-dito”. Esse efeito que o texto produz somente será dado na interação social. Portanto o uso dos gêneros discursivos no ensino de Língua Portuguesa deve contemplar o contexto de produção textual, as condições de enunciação, o caráter dialógico e histórico da língua. Assim o aluno perceberá todo o dinamismo da língua e dos gêneros discursivos. Bakhtin (2010a, p. 285) evidencia Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso. Desta forma, é possível afirmar, baseado no pensamento de Bakhtin, que somente quando o aluno dominar os gêneros discursivos conseguirá produzir e ler textos de forma mais eficiente. Ao compreender como utilizar um texto de um gênero específico, o aluno recorrerá ao seu conhecimento de mundo e a seu saber linguístico para interagir por meio da linguagem. Para responder às questões suscitadas, esta dissertação está estruturada em cinco capítulos, sendo que o primeiro se refere à fundamentação teórica sobre os gêneros discursivos de acordo com a teoria bakhtiniana. O segundo é reservado à investigação do conceito e do trabalho com os gêneros proposto pelos PCNs do Ensino Fundamental e Médio. O terceiro recupera a trajetória do livro didático no Brasil e avalição do Plano Nacional do Livro Didático; o quarto capítulo, à análise do material didático, assim como do manual do professor, a fim de investigar a relação entre o pensamento bakhtiniano de gênero do discurso e o tratamento nos PCNs e nos livros didáticos que servem como corpus deste trabalho; o quinto apresenta a descrição analítica dos gêneros sugeridos para a produção textual e análise da transposição da teoria apresentada no Manual do Professor para as propostas de produção de texto no livro do aluno. Capítulo 1 – Entendendo o gênero em Bakhtin 1.1 Primeiras palavras Desde que os documentos oficiais voltados para o ensino e para a aprendizagem de Língua Portuguesa, mais especificamente os Parâmetros Curriculares Nacionais, introduziram o conceito de gênero discursivo, refletido por Bakhtin e o Círculo, em seus manuais, o estudo dos gêneros tem sido objeto de muitas discussões e sua presença cada vez mais é notável nos materiais didáticos voltados para o estudo da língua. O conceito de gênero apresentado no Manual do Professor de ambas coleções em análise levam em consideração o entendimento do gênero constituído por três elementos: tema, estrutura composicional e estilo de linguagem. Cereja e Magalhães (2010, p. 11), apresentam a ideia de que os textos tanto orais como escritos possuem características relativamente estáveis, seja de modo consciente ou não. Para os autores, “Essas características configuram diferentes textos ou gêneros do discurso, que podem ser três aspectos básicos coexistentes: o tema, o modo composicional (estrutura) e o estilo (usos específicos da língua).” (grifo dos autores) Já os autores da coleção da Rede Pitágoras, Juliana Villas-Bôas... [et al.] (2012, p.5), trazem a voz dos PCNs (1997) para contextualizar e fundamentar o estudo do gênero em seu material. O gênero, de acordo, com esse documento caracteriza-se pelo conteúdo temático (o que é ou pode tornar-se dizível por meio do gênero); pela construção composicional (estrutura particular dos textos pertencentes ao gênero) e pelo estilo (configurações específicas das unidades de linguagem derivadas, sobretudo, da posição enunciativa do locutor; conjuntos particulares de sequências que compõem o texto, etc). (grifo dos autores) Para as estudiosas do pensamento bakhtiniano Beth Brait e Maria Helena Cruz Pistori (2012, p. 372), “a concepção de gênero implica dimensões teóricas e metodológicas diferenciadas, cujas consequências para a compreensão de textos e discursos não podem ser ignoradas.” Portanto propor o estudo do gênero do discurso contemplando somente os três elementos acima, não contribui, efetivamente, para o entendimento de toda a dinamicidade do gênero na vida. Segundo Rodrigues (2005, p. 156) “a língua vista como discurso não pode ser dissociada de seus falantes e de seus atos, das esferas sociais, dos valores ideológicos”, sendo assim, ao introduzir os gêneros na esfera escolar deve-se levar em consideração toda a complexidade que envolve a produção do enunciado. Rojo (2005, p.154) salienta, também, a importância de relacionar “noções de interação verbal, comunicação discursiva, língua, discurso, texto, enunciado e atividade humana” para que a noção de gêneros seja aprendida sem ser reduzida. No ambiente escolar, não pode ser esquecido que é por meio da linguagem que os sujeitos se expressam, é por meio dela que o mundo é representado e com ela sentidos são produzidos. Desta forma, faz-se necessário entender que não é, somente, através do domínio do léxico, de regras gramaticais ou de como elaborar um texto sobre determinado tema que revela de fato que o aluno sabe utilizar a linguagem. Segundo Geraldi (2013, p. 58) é importante colocar a linguagem como ponto de partida, pois é por meio dela que os sujeitos realizam o seu projeto de dizer em determinado contexto. A escola é uma das primeiras esferas de interação verbal em que o aluno coloca em prática a linguagem e aprende regras para ampliá-la. A pergunta é: como se dá o trabalho com a linguagem na esfera escolar? Obviamente não se pode se esquecer de que esta esfera sofre interferências de uma esfera maior: a social. Logo, como a esfera social interfere na escolar? Como afirma o professor Geraldi (2013, p. 85) “As diferentes iniciativas educacionais (...) respondem a concepções de mundo, a concepções de homem e aos interesses específicos de determinadas formação social.” Se antes o acesso à educação era privilégio somente de uma seleta elite e de pequenos grupos orientados por mestres, os quais eram produtores de conhecimento, já em meados do século XIV e XV inicia-se o processo de profissionalização do ensino. De acordo com Geraldi (2013, p. 87) é logo nos primeiros passos do mercantilismo que se encontra “uma divisão do trabalho responsável pelo surgimento de uma nova identidade: o mestre já não se constitui pelo saber que produz, mas por saber um saber produzido que ele transmite.” É neste momento também que há a universalização do ensino; agora o acesso ao saber é aberto a todos e não somente a uma elite. Diante daquela realidade, era urgente a formação, nas palavras de Geraldi, de instrutores. Dessa forma o mestre deixa de produzir conhecimento para transmitir um conhecimento pensado e refletido por outro. Agora é papel do professor, segundo Geraldi (2010, p. 85), 1. ser hábil para ensinar mesmo não sendo muito dotado; 2. sua função é comunicar (e infundir) na juventude uma erudição já preparada, e não retirada da própria mente (isto é, não precisa ser produzida por ele próprio ); 3. para exercer sua função, tudo se lhe dá nas mãos: o quê e o como ensinar (uma partitura já composta). Se agora o professor é aquele que instrui, o aluno é aquele que recebe o conteúdo sem participar ativamente da construção dele. Em meados do século XX, logo após a revolução industrial e, atualmente, com a chegada das novas tecnologias da informação, o professor não é mais aquele que, de acordo com Geraldi (2010, p. 86), “se define por saber o saber produzido pelos outros, que organiza e transmite didaticamente a seus alunos, mas se define como aquele que aplica um conjunto de técnicas de controle na sala de aula.” Ou seja, o professor está ancorado no material didático que direciona qual conteúdo será aprendido, quantas aulas devem ser usadas para ministrar tal conteúdo, quais exercícios, quais textos, quais e quantas produções de texto devem ser elaboradas pelos alunos. Assim a relação com o conhecimento se dá via professor-material didático-aluno e, em alguns casos, via material didático-professor-aluno. Nesse processo de construção do conhecimento, nem o professor e nem o aluno são colocados como atores em busca da aprendizagem. Para Geraldi (2010, p. 96) o papel do professor não é tornar o aluno um depósito de respostas já respondidas, prontas para serem respondidas novamente, como por exemplo, em uma avaliação escolar ou no vestibular. “Saber é ser capaz de aprender com os problemas, formular perguntas e saber caminhos para construir respostas.” Obviamente que não se pode excruciar o livro didático, pois este cumpre um papel social, visto que é um gênero e como tal sofre interferências do meio social. Segundo Bakhtin/Volochínov (2010e, p. 126 e 127) o livro, tido aqui de forma geral, seja didático ou não, é um o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento de comunicação verbal (...). Além disso, o ato de fala sob a forma livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do próprio autor como as de outros autores: ele decorre portanto da situação particular de um problema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc. Sendo assim, é concebível afirmar que o livro didático, como gênero discursivo, se dá no processo da interação verbal entre as exigências colocadas pelos documentos oficiais, pelas linhas editoriais, pelos seus autores, pelos seus interlocutores e pelas necessidades históricas- sociais. Ao considerar o livro didático como gênero do discurso, faz-se necessário então considerar que este tem sua existência como enunciado concreto, principalmente, nas editoras. Bunzen (2013, p. 75), ressalta o papel das editoras como produtoras de mercadoria. Sendo o livro didático uma mercadoria, envolve para a sua produção alguns setores da sociedade para “produção, distribuição, difusão e uso deste objeto cultural.” De acordo com o estudioso, a concorrência, o marketing e as estratégias de divulgação do material didático influenciam também na seleção dos objetos a serem ensinados e na construção dos currículos. “Por esse motivo, as editoras são atualmente esferas de produção onde se produzem/negociam os saberes escolares legítimos que são apresentados aos professores e alunos.” (BUNZEN, 2013, p. 76) Voltando o olhar para as propostas de produção de texto, foco desta dissertação, e recuperando a fala de Rojo (2005, p.154) sobre a importância de se considerar e relacionar no momento de produção textual noções de interação verbal, comunicação discursiva, língua, discurso, texto, enunciado e atividade humana para que a noção de gêneros seja aprendida sem ser reduzida à estrutura, este estudo tem como direção o entendimento de como as propostas de produção textual se dão nos livros em análise. 1.2 O conceito de gênero em Bakhtin e no Círculo Machado (2010) lembra que a definição das formas poéticas se manifestava em termos de classificação para a teoria dos gêneros clássicos. Platão é o primeiro a pensar em gênero. Para ele, existiam o gênero sério ao qual pertenciam a tragédia e a epopeia, além do burlesco, ao qual pertenciam a sátira e a comédia. Em A República, Platão divide a representação mimética em lírica, épica e dramática – tríade elaborada com base nas relações entre realidade e representação. Aristóteles iniciou a sistematização do gênero classificando-os em retóricos e literários. Ele foi o primeiro a sistematizá-los, no entanto, somente considerou a estrutura e não o gênero envolvido em um processo comunicativo. Assim os gêneros foram vistos como propriedades fixas e inflexíveis, ou seja, tipos de textos que possuíam traços comuns. Com o advento da prosa comunicativa, surgiu, então, a necessidade de outros parâmetros para analisar as formas de interação que se realizam pelo discurso. Segundo Machado (2010), os estudos de Bakhtin sobre os gêneros discursivos não consideraram classificações, mas sim as relações dialógicas inseridas no processo comunicativo. “Qualquer confronto puramente linguístico ou agrupamento de quaisquer textos abstrai forçosamente todas as relações dialógicas entre eles enquanto enunciados integrais.” (BAKHTIN, 2010b, p. 209). Mikhail Bakhtin parece não ter se descuidado dos gêneros clássicos, mas o seu pensamento evoluiu de forma renovada com o estudo do romance. É com o romance de Dostoiévski que ele vai estudar e aprofundar suas principais contribuições para a Filosofia da Linguagem como a carnavalização, a polifonia e o dialogismo. Dessa análise do texto literário, Bakhtin amplia a visão de gênero. Segundo Machado (2010, p.153), Bakhtin valorizou o romance em seus estudos porque nele “[...] encontrou a representação da voz dos homens que falam, discutem ideias, procuram posicionar-se no mundo”. É no romance que Bakhtin enxerga um mundo de possibilidades combinatórias tanto de discursos como também de gêneros, é nele que os discursos dialogam e se intercruzam, desde o discurso mais formalizado até aqueles que fazem parte das ações cotidianas. No romance é possível se encontrar gêneros variados “[...] tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas, poemas, sainetes dramáticos, etc.), como extraliterários (de costumes, retóricos, científicos, religiosos e outros)”. (BAKHTIN, 2010c, p. 124). Além disso, é no romance que o estudioso encontra Uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais. [...] E é graças a este plurilinguismo social e ao crescimento em seu solo de vozes diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo o mundo objetal, semântico, figurativo e expressivo. (BAKHTIN, 2010c, p. 74) Mikhail Bakhtin veio contribuir com os estudos da linguagem, observando-os não como um sistema gramatical abstrato e invariável apenas. Para Bakhtin e seu Círculo, a língua é vista “como uma língua ideologicamente saturada como uma concepção de mundo, e até como opinião concreta que garante um maximum de compreensão mútua, em todas as esferas da vida ideológica.” (BAKHTIN, 2010c, p. 81) De acordo com o pensamento do estudioso, é por meio da língua, ou seja, do discurso, que a língua se torna concreta e viva. [...] o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva, e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela linguística, os que têm importância para os nossos fins. (BAKHTIN, 2010b, p. 207) Ele vai considerar aquilo que a língua-discurso tem de individual, variável, criativo, por isso a observa “em uso, na combinatória dessas duas dimensões, como uma forma de conhecer o ser humano, suas atividades, sua condição de sujeito múltiplo, sua inserção na história, no social, no cultural pela linguagem, pelas linguagens.” (BRAIT, 2010, p. 23). Para ele e o seu Círculo, é por meio da língua que o homem revela a sua concepção de mundo. Dessa forma, os estudiosos propõem o estudo da língua por meio da Metalinguística, pois esta, ao contrário da Linguística, considera a língua como organismo vivo, ou seja, o discurso em contato com outros discursos, em constante relação dialógica. Por isso é preciso considerar o contexto de produção no qual o discurso se realiza. De acordo com o pensamento bakhtiniano, a língua para o usuário linguístico serve como instrumento para a enunciação, mas é o contexto que vai direcionar a maneira do dizer. “Para ele (usuário linguístico), o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no contexto.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010e, p. 96). E continua: “A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação”. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010e, p. 96) Para o estudioso da linguagem, toda atividade de comunicação humana utiliza a linguagem para se comunicar nas várias esferas de atividade e essa comunicação acontece em forma de enunciados. É no ato concreto do dizer, ou seja, na enunciação que o enunciado toma existência e consistência. Emerge em um momento sócio-histórico determinado e “não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social.” (BAKHTIN, 2010c, p. 86) É no enunciado que refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo temático e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas acima de tudo por sua construção composicional. O conteúdo temático, o estilo e a construção composicional são constituintes do enunciado e são determinados de acordo com o campo da comunicação. Para Bakhtin (2010a, p. 262), “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.” De acordo com o estudo de Brait e Pistori (2012, p. 383), para Medviédev o gênero nasce da “totalidade concluída e solucionada do enunciado que é o ato realizado por sujeitos organizados socialmente de uma determinada maneira. Trata-se de uma totalidade temática, orientada pela realidade circundante, marcada por um tempo e um espaço.” Como são muitas as possibilidades de atividade humana, os gêneros do discurso são infinitos. À medida que as atividades humanas se tornam mais complexas e se desenvolvem, o repertório dos gêneros do discurso também se amplia e modifica. Sempre os sujeitos se comunicam por meio de gêneros dentro de uma dada esfera de atividade. Bakhtin (2010a, p.265) evidencia a importância de se considerar a natureza do enunciado e suas relações com o gênero, caso contrário, tal desconhecimento “redundam em formalismo e em uma abstração exagerada, deformam a historicidade da investigação, debilitam as relações da língua com a vida”, pois é através de enunciados concretos que a língua entra na vida. Ressalta, também, a existência da heterogeneidade dos gêneros do discurso e a importância de seu estudo. Para ele, tanto os gêneros orais e escritos (réplicas do diálogo do cotidiano, o relato do dia-a-dia, a carta, o comando militar lacônico padronizado, a ordem desdobrada e detalhada, o repertório bastante vário, documentos oficiais, manifestações publicísticas, as várias formas de manifestações científicas e todos os gêneros literários) devem ser analisados, estudados e considerados. De acordo com Bakhtin (2010a, p. 263) “Não se deve, de modo algum, minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros discursivos e a dificuldade daí advinda de definir a natureza geral do enunciado”. Não se pode desconsiderar a constante modificação em que o gênero se encontra, pois à medida que a língua se transforma, novos gêneros surgem ou são renovados. “Qualquer gênero novo nada mais faz que completar os velhos, apenas amplia o círculo de gêneros já existentes. Ora, cada gênero tem seu campo predominante de existência em relação ao qual é insubstituível.” (BAKHTIN, 2010b, p. 340) Bakhtin afirma que ao surgir um novo gênero este não substituirá o já existente, mas “uma vez surgido, influencia todo o círculo de gêneros velhos: o novo gênero torna os velhos, por assim dizer, mais conscientes, fá-los melhor conscientizar os seus recursos e limitações, ou seja, superar sua ingenuidade.” (BAKHTIN, 2010b, p. 340) Medviédev (2012, p. 193-207) discorre sobre a importância de considerar o enunciado como totalidade. Para isso, há de se considerar a dupla orientação do gênero do discurso na realidade. Para o estudioso, a concepção de gênero está atrelada a circunstâncias de tempo, espaço e ideologia, assim como os recursos linguísticos, enunciativos e formais que dão ao gênero do discurso a existência. Assim é importante relevar a orientação exterior e interior do gênero. “A primeira orientação é considerada a partir da exterioridade implicada no gênero, ou seja, relacionada à vida, no que diz respeito ao tempo, espaço, esfera ideológica a que o gênero se filia.” (BRAIT, PISTORI, 2012, p. 383). Para Bakhtin (2010c, p. 99), “Estudar o discurso em si mesmo, ignorar sua orientação externa, é algo tão absurdo como estudar o sofrimento psíquico fora da realidade a que está dirigido e pela qual ele é determinado.” Para Medviédev, a segunda orientação se refere à interioridade do gênero e está voltada para as formas estruturais e ao conteúdo temático, o que coloca o enunciado em contato com a vida cotidiana “unindo-se ou aproximando-se de uma esfera ideológica [...] que envolve e constitui a produção, circulação e recepção de um gênero, pontuando sua relação com a vida, no sentido cultural, social, etc.” (BRAIT, PISTORI, 2012, p. 383) O estudioso da linguagem diferencia a palavra interior da palavra exterior. Entende por palavra interior aquela ligada à subjetividade, ao psiquismo. Quando inserida em um contexto de interação verbal, social, a palavra ganha vivacidade e um caráter refratário. Ao considerar essa dupla orientação da realidade, o estudioso da linguagem afirma que Uma obra entra na vida e está em contato com os diferentes aspectos da realidade circundante mediante o processo de realização efetiva, como executada, ouvida, lida em determinado tempo, lugar e circunstâncias. Ela ocupa certo lugar, que é concedido pela vida, enquanto corpo sonoro real. Esse corpo está disposto entre as pessoas que estão organizadas de determinada forma. Essa orientação imediata da palavra como fato, mais exatamente como feito histórico na realidade circundante, determina toda a variedade de gêneros dramáticos, líricos e épicos. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 195). O gênero é assim entendido como “um conjunto de meios de orientação coletiva da realidade, dirigido para seu acabamento. Essa orientação é capaz de compreender novos aspectos da realidade.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 200) Bakhtin distingue os gêneros em dois grupos: em primários e secundários. Chama de gêneros discursivos primários aqueles que são simples, ou seja, fazem parte do cotidiano; já os secundários, ou complexos, são os romances, dramas, pesquisas científicas, etc., aqueles que surgem “nas condições de convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado”, ou seja, são organizados em sistemas específicos como a ciência, a arte, a política. Embora Bakhtin faça essa distinção e até mesmo os separe, ele também afirma que o gênero secundário não existe sem o primário. Há uma mistura e uma internalização um do outro, se modificam e se complementam. Ou seja, os gêneros secundários, no processo de formação, incorporam e reelaboram os mais variados gêneros da esfera primária. Estes, por sua vez, se modificam e perdem o vínculo com a realidade concreta. Bakhtin (2010a, p. 263) cita como exemplo a réplica do diálogo cotidiano ou mesmo da carta no romance “ao manterem a sua forma e o significado cotidiano apenas no plano do conteúdo romanesco, integram a realidade concreta [...] como acontecimento artístico-literário e não da vida cotidiana”. Por isso Bakhtin afirma que não se deve minimizar a heterogeneidade dos gêneros discursivos, e é por isso que dificulta a definição da natureza geral do enunciado. É preciso que se entenda que os gêneros discursivos não são formas fixas, mas que são formas que estão sempre sujeitas a modificações. Assim, língua e vida interagem e se integram através de enunciados concretos manifestados por meio de gêneros discursivos. Os enunciados, por sua vez, refletem e refratam as características de cada esfera de comunicação. Bakhtin (2010) reforça a importância do estilo para a composição do enunciado. É por meio do estilo que se torna possível compreender a linguagem como social, histórica, cultural e as singularidades e particularidades que se mostram nas relações dialógicas. Em Discurso na vida, discurso na arte (s/d, p. 17), Bakhtin afirma que o estilo é constituído de “pelo menos duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social na forma do seu representando autorizado, o ouvinte – o participante constante na fala interior e exterior de uma pessoa”, ou seja, para ele o autor (quem fala), o herói (o que ou o quem da fala) e o ouvinte (interlocutor, leitor) são os fatores importantes para a determinação da forma e do estilo. Pode-se dizer, dessa forma, que o autor, o herói e o ouvinte são elementos substanciais, são eles que constituem “a força viva que determina a forma e o estilo.” (BRAIT, 2010, p. 84) Além da atitude avaliativa do autor, para a construção do estilo há também de se considerar o ouvinte, o destinatário do discurso proferido via texto escrito ou oral. É na relação autor-herói (objeto do enunciado) que estilo se constitui. Bakhtin (2010a, p. 186) reitera a concepção de estilo segundo a sua visão e de seu Círculo, eles chamaram “estilo à unidade de procedimentos de informação e acabamento da personagem e do seu mundo e dos procedimentos, por estes determinados, de elaboração e adaptação (superação imanente) do material”. Sendo assim, o estilo não deve ser associado somente à subjetividade, àquilo que há de individual e pessoal, mas sim na relação eu-outro, outro-para-mim, eu-para-mim. É necessária que seja considerada a relação entre uma pessoa e seu grupo social. Bakhtin (2010a, p. 13) discute a importância do outro para construção do enunciado. O autor deve colocar-se à margem de si, vivenciar a si mesmo não no plano em que efetivamente vivenciamos a nossa vida; só sob essa condição ele pode completar a si mesmo, até atingir o todo, com valores que a partir da própria vida são transgredientes a ela e lhe dão acabamento; ele deve tornar- se outro em relação a si mesmo, olhar para si mesmo com os olhos dos outros (...). Para o estudioso da linguagem, o acontecimento estético não se dá somente com um participante, pois assim não haverá acabamento. “Um acontecimento estético pode realizar-se apenas na presença de dois participantes, pressupõem duas consciências que não coincidem.” (BAKHTIN, 2010a, p. 20). É por meio das relações entre sujeitos que se dá a enunciação. Esta se realiza por meio dos gêneros do discurso em determinada esfera de comunicação discursiva. Para Bakhtin qualquer esfera da comunicação discursiva é individual e refletirá a individualidade dos envolvidos no processo discursivo. No entanto, Bakhtin faz uma ressalva e diz que alguns gêneros permitem a exposição da individualidade de seu autor, pois possuem uma “forma fixa” de dizer, ou seja, são padronizados. Com exceção dos gêneros artístico- literários, a grande maioria dos gêneros discursivos não manifesta o estilo individual, ou seja, “o estilo individual não faz parte do plano do enunciado, não serve como um objetivo seu mas é, por assim dizer um epifenômeno do enunciado, seu produto complementar.” (BAKHTIN, 2010a, p.266) Para Mikhail Bakhtin todo estilo está conectado ao enunciado e aos gêneros do discurso. Sendo assim, ao dizer, o falante (ou escritor) enuncia por meio de um gênero, o qual traz marcas de estilo individual de seu enunciador. Ou seja, todo enunciado, independente de ser oral ou escrito, pertencer ao gênero primário ou secundário e a um ou outro campo da comunicação discursiva, é individual, portanto pode refletir a individualidade do envolvido no processo comunicativo, isto é, pode ter estilo individual. E aponta os gêneros artístico-literários os mais aptos e livres para a manifestação do estilo individual. Outros, no entanto, como os enunciados mais padronizados têm a individualidade como seu produto complementar, ou seja, o estilo individual não faz parte do enunciado. Mas Bakhtin (2010a, p. 266) completa “em diferentes gêneros podem revelar-se diferentes camadas e aspectos de uma personalidade individual, o estilo individual pode encontrar-se em diversas relações de reciprocidade com a língua nacional.” Dessa maneira é possível afirmar que para o estudioso da linguagem, o estilo depende do grau de proximidade existente entre o locutor e os parceiros envolvidos no processo de comunicação verbal. De acordo com a esfera de atividade humana há sempre maneiras e meios de dizer, ou seja, há gêneros “específicos” que carregam a individualidade, o estilo de quem diz. Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determina função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, especificas de cada campo geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis. (BAKHTIN, 2010a, p.266) O estilo interfere diretamente no tema daquilo que é dito, em sua composição, em sua construção como um todo. O estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas - o que é de especial importância - de determinadas unidades composicionais: de determinados tipos de construção do conjunto, de tipos de acabamento, de tipos de relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro, etc. O estilo integra a unidade de gênero do enunciado como seu elemento. (BAKHTIN, 2010a, p. 266) Os gêneros do discurso não podem ser estabilizados, tidos como modelos fixos a serem seguidos, pois refletem a língua e esta está em constante modificação histórica, “As mudanças históricas dos estilos de linguagem estão indissoluvelmente ligadas às mudanças dos gêneros do discurso.” (BAKHTIN, 2010a, p. 267). Assim, a mudança dos gêneros do discurso está atrelada, caminha junto com a mudança histórica do modo de dizer. Bakhtin (2010a, p. 268) afirma que os gêneros do discurso “são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem.” Conforme a linguagem evolui, essa evolução também é marcada nos gêneros não só primários, mas nos secundários também. Toda ampliação da linguagem literária à custa das diversas camadas extraliterárias na língua nacional está intimamente ligada à penetração da linguagem literária em todos os gêneros (literários, científicos, publicísticos, de conversação, etc.) em maior ou menor grau, também novos procedimentos de gênero de construção do todo discursivo, do seu acabamento, da inclusão do ouvinte ou parceiro, etc, o que acarreta uma reconstrução e uma renovação mais ou menos substancial dos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2010a, p. 268) Bakhtin/Volochínov (2010e, p. 127), afirmam que “A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psico-fisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal [...]”, ou seja, a língua se torna material concreto no ato, na enunciação. Eles, de certa forma, se colocam contrários ao pensamento da escola de Saussure, dos behavioristas americanos e dos seguidores de Vossler que contemplavam a existência de um falante e de um ouvinte no processo de interação verbal, apenas dois parceiros envolvidos na comunicação discursiva. Bakhtin (2010a, p.271) afirma que “toda compreensão é prenhe de resposta”, ou seja, o ouvinte se torna falante ocupando agora uma voz ativa e não somente passiva. Em sua posição ativa de resposta, ele pode concordar ou discordar de seu interlocutor. Para ele, o diálogo é vivo, pois o discurso nasce para ser respondido, nasce para entrar na arena dialógica da língua. “Ao se construir na atmosfera do “já dito”, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado.” (BAKHTIN, 2010c, p.89) A palavra/discurso é Indissociável do convívio dialógico, por sua própria natureza, quer ser ouvida e respondida. Por sua natureza dialógica ela pressupõe também a última instância dialógica. Receber a palavra, ser ouvido. É inadmissível a solução à revelia. Minha palavra permanece no diálogo contínuo, no qual ela será ouvida, respondida e reapreciada. (BAKHTIN, 2010b, p.337). Muitas vezes essa resposta ativa não é imediata, mas ela acontece seja por meio da ação, ou mesmo uma resposta internalizada, mas a resposta é dada “cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequente ou no comportamento do ouvinte”, diz Bakhtin. Todo enunciado está diretamente ligado a outros enunciados. Assim, ao enunciar, um indivíduo recupera já ditos para dizer a sua responsiva ativa, ou até mesmo, formular o seu enunciado “primeiro”. Todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou aquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). (BAKHTIN, 2010a, p. 272) Bakhtin (2010) critica o uso inadequado dos termos “fala” e “fluxo da fala” utilizados por alguns linguistas. Também critica a “falta de elaboração do problema do enunciado e dos gêneros do discurso e, consequentemente, da comunicação discursiva”. E ainda afirma o desconhecimento do “enunciado”, a real unidade da comunicação discursiva. Para ele só o discurso “pode existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeito do discurso. O discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir.” (BAKHTIN, 2010a, p. 274) O discurso adentra a arena e entra em contato com o discurso de outro. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se com outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tonar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico. (BAKHTIN, 2010c, p. 86) Todo enunciado possui um limite, uma fronteira, que é marcada pela alternância dos sujeitos do discurso, ou seja, todo enunciado tem “um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados dos outros; depois do seu término, os enunciados responsivos dos outros.” (BAKHTIN, 2010a, p. 275) Essa fronteira que “separa” um discurso de outro é percebida através da marca de individualidade no estilo, em sua visão de mundo e em todos os elementos da ideia de sua obra. Tanto a obra como a réplica do diálogo são possíveis de resposta do outro e para a ativa compreensão responsiva nas complexas condições de comunicação discursiva de uma esfera de atividade comunicativa. Bakhtin discute também o conceito de oração e enunciado, para ele são dois conceitos bem distintos. Para ele o enunciado se distancia da concepção de oração porque somente o enunciado é possível de suscitar uma atitude responsiva ativa por parte do indivíduo envolvido no processo comunicativo. Essa resposta é determinada por três fatores que estão ligados ao enunciado: “1- exauribilidade do objeto e do sentido; 2 – projeto de discurso ou vontade de discurso do falante; 3- formas típicas composicionais e de gênero de acabamento.” (BAKHTIN, 2010a, 281) Somente depois de tornar-se um enunciado pleno, uma oração adquire a capacidade de determinar a posição responsiva do falante. No entanto só o enunciado é capaz de expressar a intenção discursiva de seu autor, e é isso que determina o todo do enunciado, o seu volume e as suas fronteiras. Imaginamos que o falante quer dizer, e com essa idéia verbalizada, essa vontade verbalizada (como a entendemos) é que medimos a conclusibilidade do enunciado. Essa idéia determina tanto a própria escolha do objeto (em certas condições de comunicação discursiva, na relação necessária com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semântico-objetal. Ele determina, evidentemente, também a escolha da forma do gênero na qual será construído o enunciado. (BAKHTIN, 2010a, p.281) Para Bakhtin, antes de um indivíduo manifestar a sua vontade discursiva, primeiramente ele escolhe um certo gênero discursivo para enunciar-se por meio dele. A escolha de determinado gênero não é aleatória, mas sim leva em consideração a especificidade do campo da comunicação discursiva, por considerações temáticas, pela situação da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos participantes envolvidos na situação comunicativa. A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero do discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico- objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal de seus participantes, etc. a intenção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade, é em seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido, constitui-se e desenvolve-se em uma determinada forma de gênero. Tais gêneros existem antes de tudo em todos os gêneros mais multiformes da comunicação oral cotidiana, inclusive do gênero mais familiar e do mais íntimo. (BAKHTIN, 2010a, p. 282) Ele enfatiza que todos os sujeitos falam por meio de gêneros, através dos quais os enunciados se delineiam. Enfatiza também que há um vasto repertório de gêneros discursivos que, muitas vezes, são empregados com segurança e habilidade, “mas em termos teóricos podemos desconhecer inteiramente a sua existência (...) falamos por gêneros diversos sem suspeitar da sua existência.” (BAKHTIN, 2010a, p.282) Os gêneros discursivos são aprendidos quase que da mesma forma que se aprende a língua. Primeiro enunciações concretas são ouvidas e em seguida são reproduzidas na comunicação com o outro. Bakhtin afirma que se não existissem os gêneros discursivos e “nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível.” (BAKHTIN, 2010a, p. 283) Para ele, a existência da pluralidade de gêneros discursivos é determinada pelas diferentes funções que eles assumem de acordo com a posição social e as marcas individuais de cada participante do processo comunicativo. Assim como existem os gêneros mais rígidos e padronizados, nos quais a individualidade quase não aparece, existem também os gêneros mais livres e criativos e que permitem mais o uso do estilo individual. Como, por exemplo, as conversas íntimo-familiares, sobre temas do cotidiano. No entanto, o uso livre e criativo de um gênero não cria um novo gênero. É necessário que o indivíduo os domine bem para poder usá-los com mais liberdade. Quando um sujeito não possui habilidade para dominar um determinado gênero de uma determinada esfera comunicativa, ele terá dificuldades para se expressar e mostrar a sua individualidade. Quanto melhor dominarmos os gêneros tanto mais livremente os empregarmos, tanto mais plena e nitidamente descobriremos neles a nossa individualidade (onde é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado e nosso livre projeto de discurso. (BAKHTIN, 2010a, p. 285) Machado (2010) destaca a importância do contexto comunicativo para que haja a assimilação do vasto repertório de gêneros discursivos existentes. “Isso porque os gêneros discursivos são formas comunicativas que não são adquiridas em manuais, mas sim nos processos interativos”. Bakhtin diz que os gêneros discursivos são apreendidos da mesma maneira que se aprende a estrutura de nossa língua, ou seja, “não os conhecemos por meio de dicionários ou manuais de gramática, mas sim graças aos enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos na comunicação discursiva efetiva com as pessoas que nos rodeiam.” (BAKHTIN, 2010a, p.282) Não se pode se esquecer de que os gêneros correspondem a situações da comunicação discursiva, a temas típicos, sedo assim, o autor do discurso escolherá palavras que “Costumamos tirá-las de outros enunciados e antes de tudo de enunciados congêneres com o nosso, isto é, pelo tema, pela composição, pelo estilo; conseqüentemente, selecionamos as palavras segundo a sua especificação de gênero.” (BAKHTIN, 2010a, p. 292) Ou seja, nosso discurso é pleno de palavras dos outros. “Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos” (BAKHTIN, 2010a, p. 294) e são respondidas. Por mais monológico que seja um enunciado ele continuará sendo uma resposta àquilo que já foi dito sobre determinado assunto e estará retomando palavras de outros já ditos para constituir o seu dizer. Por isso Bakhtin (2010a) diz que o autor do discurso não é um Adão bíblico, sendo assim, “o próprio objeto do seu discurso se torna inevitavelmente um palco de encontro com opiniões de interlocutores imediatos (...) ou com pontos de vista, visões de mundo, correntes, teorias, etc.” (BAKHTIN, 2010a, p. 300) Bakhtin (2010a, p. 301) discorre sobre a importância de se considerar o destinatário do enunciado, como o falante (ou que escreve) percebe e representa para si os seus destinatários, qual é a força e a influência deles no enunciado – disto dependem tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado. Cada gênero do discurso em cada campo da comunicação discursiva tem sua concepção típica de destinatário que o determina como gênero. Todo enunciado tem seu endereço certo, ou seja, é sempre construído considerando quem será o seu destinatário, fato que possibilita a escolha do gênero “adequado” para dizer. E claro “Ao construir o meu enunciado, procuro defini-lo de maneira ativa; por outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta antecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado.” (BAKHTIN, 2010a, p. 302) Bakhtin afirma que Ao falar, sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação; levo em conta as suas concepções e convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de vista), as suas simpatias e antipatias – tudo isso irá determinar a ativa compreensão responsiva do meu enunciado por ele. Essa consideração irá determinar também a escolha do gênero do enunciado e a escolha dos procedimentos composicionais e, por último, dos meios lingüísticos, isto é, o estilo do enunciado. (BAKHTIN, 2010a, p. 302) É via interação que a linguagem se materializa. É por meio da palavra, enquanto fenômeno ideológico, que se dá a relação eu-outro e o outro-para-mim. É neste movimento de refração e reflexão da realidade materializada que a palavra assume seu caráter ideológico enquanto enunciado. Bakhtin afirma que a palavra não se refere a um objeto como entidade pronta, mas é por meio dela que se é possível expressar, por sua entonação, o tom valorativo em relação ao objeto, “em relação àquilo que é desejável ou indesejável nele, e, desse modo, movimenta-o em direção do que ainda está por ser determinado nele, transforma-o num momento constituinte do evento vivo, em processo”. (FIORIN, 2009, apud BAKHTIN, 1993) Fica evidente que a proposta de Bakhtin não era catalogar os gêneros, separando-os de acordo com a descrição de cada estilo, de cada estrutura composicional, de cada conteúdo temático, pois, como já foi dito, a riqueza e a variedade dos gêneros são imensuráveis, visto que as possibilidades da ação humana nas esferas de atividade são inesgotáveis e cada esfera comporta um repertório significativo de gêneros do discurso. Vale ressaltar que cada gênero está em constante alteração, pois à medida que cada esfera de atividade se desenvolve e ficam mais complexas, gêneros desaparecem ou aparecem, gêneros se diferenciam, gêneros ganham um novo sentido. O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero nasce e se renova em cada etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero. Nisso consiste a vida do gênero. Por isso não é morta e nem a archaica que se conserva o gênero; ela é eternamente viva, ou seja, é uma archaica com capacidade de renovar-se. O gênero vive do presente, mas sempre recorda o seu passado, o seu começo. É o representante da memória criativa no processo de desenvolvimento literário. É precisamente por isso que tema a capacidade de assegurar a unidade e a continuidade desse desenvolvimento. (BAKHTIN, 2010b, p.121) É na esfera de atividade que o gênero ganha nova roupagem, pois são na esfera de comunicação discursiva que se constituem as produções ideológicas. Segundo Bakhtin/Volochínov (2010e, p. 33) cada esfera de atividade discursiva “tem seu modo de orientação da realidade e refrata a realidade à sua maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social”. É no momento da materialização da língua, ou seja, na interação verbal que os gêneros do discurso se ressignificam. Grillo (2010, p. 145) afirma que “as esferas são determinantes para a compreensão da presença e do tratamento dado à palavra alheia”. São elas, as esferas, que “dão conta da realidade plural da atividade humana ao mesmo tempo que se assentam sobre o terreno comum da linguagem verbal humana”. É a vasta diversidade das esferas que regulam o modo como é assimilado e transmitido o discurso, e consequentemente definem o estilo e os gêneros. Isto posto, cabe a pergunta: como então a esfera escolar regula e define o estilo e os gêneros? Para responder a esta pergunta faz-se necessário percorrer algumas veredas como, por exemplo, os encaminhamentos sugeridos pelos PCNs no tratamento dado aos gêneros nas atividades de produção de texto; a construção do material didático e a avaliação pelo Plano Nacional do Livro Didático. Capítulo 2 - Os parâmetros curriculares e as contribuições de M. Bakhtin 2.1 Os Parâmetros Curriculares Nacionais: um encaminhamento Os Parâmetros Curriculares Nacionais são provenientes da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei Federal nº. 9.394, em 20 de dezembro de 1996. Esta lei delega ao poder público a responsabilidade para com a educação básica, ou seja, educação infantil, educação fundamental e ensino médio. Esses documentos são orientações norteadoras, de abrangência nacional, elaborados pelo Governo Federal, com o objetivo de guiar os envolvidos no processo escolar na execução e desenvolvimento dos conteúdos disciplinares, primando pela construção da cidadania. Para isso o documento busca construir “referências nacionais que possam dizer quais os pontos comuns que caracterizam o fenômeno educativo em todas as regiões brasileiras” (PCNs, 1997a, p. 49). O artigo 22 da LDB menciona os objetivos gerais da educação básica que “tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (PCNs, 2000, p. 14). Dessa forma é possível afirmar que o ensino fundamental tem um papel importante uma vez que é nele em que o aluno aprenderá não só conteúdos necessários para a conclusão de uma etapa, mas também importantes para dar continuidade em estudos seguintes como o ensino médio e posteriormente um curso de graduação. Buscando atingir os propósitos expressos pela referida lei, os PCNs do Ensino Fundamental, do 1º ao 4º ciclo, objetivam que ao final do período fundamental os alunos sejam capazes de: • compreender a cidadania como participação social e politica, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a- dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito; • posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas; • conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao país; • conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais e outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais; • perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente, identificando seus elementos e as interações entre eles, contribuindo ativamente para a melhoria do meio ambiente; • desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o sentimento de confiança em suas capacidades afetiva, física, cognitiva, ética, estética, de inter-relação pessoal e de inserção social, para agir com perseverança na busca de conhecimento no exercício da cidadania; • conhecer o próprio corpo e dele cuidar, valorizando e adotando hábitos saudáveis como um dos aspectos básicos da qualidade de vida e agindo com responsabilidade em relação à sua saúde e à saúde coletiva; • utilizar diferentes linguagens – verbal, musical, matemática, gráfica, plástica e corporal – como meio para produzir, expressar e comunicar idéias, interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação; • saber utilizar diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos para adquirir e construir conhecimentos; • questionar a realidade formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação. (PCNs, 1997b, p. 7 e 8) Com esses objetivos, os PCNs elucidam que é dever da escola formar crianças e jovens capazes de exercer de forma consciente e com dignidade seu papel de cidadão. Primam por conteúdos e instrumentos de ensino que envolvam questões sociais, permitindo, assim, que o aluno seja inserido no contexto social do qual faz parte e possa aprender e exercer seus direitos e deveres. Esse pensamento permeia Os Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio que, obedecendo à Lei n. 9.394/96, foi reformulado. Antes esta etapa da educação, o ensino médio, buscava a formação profissionalizante e a preparação do aluno para a universidade. Com o advento do PCN + Ensino Médio: Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais, o Ensino Médio passa a ser considerado parte conclusiva da educação do Ensino Fundamental. Ou seja, o Ensino Médio também passa a objetivar a preparação do educando para vida, para o exercício da cidadania e para a capacitação do aprendizado tanto para o trabalho quanto para a continuação em um curso superior. Buscando interligar as disciplinas componentes do currículo do Ensino Médio, este passou a ser organizado em três áreas: Ciência da Natureza e Matemática, Ciências Humanas, Linguagens e Códigos. É nesse entrelaçamento que a aprendizagem se constrói e ganha significado. Percebe-se que os documentos que contém as diretrizes para o ensino básico se relacionam e se complementam buscando garantir, ao final dos doze anos de formação, que os alunos sejam capazes de, por meio dos conteúdos aprendidos e apreendidos, participar efetivamente da sociedade. Analisando especificamente os PCNs é possível identificar o ponto de diálogo que interessa primeiramente a esta pesquisa: o tratamento dado aos gêneros do discurso, tido como objeto de ensino no nível básico. 2.2 O gênero do discurso: objeto de ensino priorizado nos PCNs Os Parâmetros Curriculares destinados ao ensino do 1º ao 4º ciclo, ou seja, da 1º ao 9º ano, designam à escola tornar o aluno capaz de “interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes na mais variadas situações.” (BRASIL, 1997b, p. 21). Este objetivo permeia tanto o documento direcionado ao Ensino Fundamental como também o Ensino Médio. Para que este propósito seja cumprido, autores dos PCNs elegeram a linguagem (entendida como atividade discursiva e cognitiva) e a língua (entendida como sistema simbólico) como meios pelos quais, ao dominá-las, o aluno será capaz de participar socialmente de seu meio. Ou seja, o domínio da língua e da linguagem são meios essenciais para que o indivíduo se integre, participe socialmente e exerça, de fato, o seu papel de cidadão. Por isso é dever da escola promover a ampliação dos diferentes níveis de conhecimento de forma progressiva, fazendo com que cada aluno seja capaz de interpretar textos que fazem parte de seu cotidiano, produzir distintos escritos nas mais diversas situações de comunicação. Para contemplar os objetivos dirigidos à escola, os três documentos elegem o texto como unidade de ensino. É via texto que o aluno terá contato com o universo letrado e poderá se inserir socialmente e exercer o seu papel de agente na sociedade. Assim é dever da escola “viabilizar o acesso do aluno ao universo de textos que circulam socialmente, ensinar a produzi-los e a interpretá-los.” (BRASIL, 1997b, p. 26) Como o texto é colocado na pauta da aula de Língua Portuguesa como unidade de estudo, inevitavelmente os gêneros do discurso também são colocados como objeto de estudo. Segundo Bakhtin, antes mesmo de enunciar já se elege o gênero de discurso por meio do qual o enunciado se materializará. “A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso” (BAKHTIN, 2010a, p. 282). Notoriamente que esta escolha não se dá de forma aleatória, mas de acordo com a esfera discursiva em que o falante/ouvinte se encontra, com a situação real de comunicação discursiva, com o projeto de dizer de cada autor discursivo etc. Ao privilegiar o texto como partida para a aprendizagem, os Parâmetros Curriculares do Ensino Fundamental e Médio selecionam os gêneros que deverão ser estudados nas atividades de prática de leitura e de produção textual. Para os anos iniciais do Ensino Fundamental, são sugeridos os seguintes gêneros para o trabalho de leitura: contos (de fadas, assombração, etc.), mitos e lendas populares; poemas, canções, quadrinhas, parlendas, adivinhas, trava-línguas, piadas, provérbios; saudações, instruções, relatos; entrevistas, debates, notícias, anúncios (via rádio e televisão), seminários, palestras. Para o trabalho de produção textual são indicados: receitas, instruções de uso, listas; textos impressos em embalagens, rótulos, calendários; cartas (formais e informais), bilhetes, postais, cartões (de aniversário, de Natal, etc), convites, diários (pessoais, da classe, de viagem, etc); quadrinhos, textos de jornais, revistas e suplementos infantis (títulos, lides, notícias, classificados, etc); anúncios, slogans, cartazes, folhetos; parlendas, canções, poemas, quadrinhas, adivinhas, trava-línguas, piadas; conto (de fadas, de assombração, etc.), mitos e lendas populares, folhetos de cordel, fábulas; textos teatrais; relatos históricos, textos de enciclopédia, verbetes de dicionário, textos expositivos de diferentes fontes (fascículos, revistas, livros de consulta, didáticos, etc.), textos expositivos de outras áreas e textos normativos (estatutos, declarações de direitos, etc.) Percebe-se que há a preocupação de trazer uma vasta variedade de gêneros para a sala de aula, no entanto é perceptível que há mais gêneros privilegiados na atividade de produção de texto do que na atividade de leitura. Considerando que muitas vezes o livro didático é um dos poucos instrumentos de leitura que o aluno tem à disposição em casa, por que então não conter mais gêneros para a leitura do que para a produção? Será que por meio da leitura os alunos, orientados pelo professor, não seriam capazes, depois de ler, relacionar e comparar textos de um mesmo gênero, por exemplo, assimilar proximidades e diferenças quanto o gênero sem precisar que o professor sistematize ou dê dicas estruturais? Ora, se segundo Bakhtin os gêneros são aprendidos na dinamicidade da vida cotidiana, como um aluno pode escrever um texto se não tem contato com ele? Como um aluno pode produzir determinado gênero se este não faz parte de sua vida prática? Para a prática de produção de texto, os PCNs para os anos iniciais orientam que o processo de escrita deve considerar o destinatário, a finalidade do texto e as características do gênero. Obviamente que por se tratar de um documento com caráter de orientação, o documento não apresenta práticas didáticas de como deva acontecer o encaminhamento das atividades em sala, este trabalho “cabe” ao livro didático selecionado pelo professor. Para os anos finais do Ensino Fundamental, os PCNs (1998) apresentam uma tabela contendo alguns gêneros que poderão ser trabalhados em sala de aula na prática da escuta e da leitura de textos. Para o trabalho com a linguagem oral, o documento sugere os seguintes gêneros: literários – cordel, causos e similares, texto dramático, canção; de imprensa – comentário radiofônico, entrevista, debate, depoimento; de divulgação científica – exposição, debate, seminário, palestra; publicidade – propaganda. Para a leitura de textos escritos: literários – conto, novela, romance, crônica, poema, texto dramático; de imprensa – notícia, editorial, artigo, reportagem, carta ao leitor, entrevista, charge e tira; de divulgação científica – verbete enciclopédico (nota/artigo), relatório de experiências, didático (texto, enunciados de questões), artigo; publicidade – propaganda. Para o trabalho de leitura do texto escrito, o documento oficial propõe vários caminhos a serem percorridos, e o primeiro a ser apontado é sobre o gênero. Nesse item os PCNs ressaltam a importância da “explicitação de expectativas quanto à forma e ao conteúdo do texto em função das características do gênero, do suporte, do autor etc;”. (BRASIL, 1998, p.55) Para a prática de produção de textos orais e escritos os PCNs trazem outra tabela contendo os gêneros que poderão ser privilegiados no trabalho com os alunos. São eles os sugeridos para a linguagem oral: gêneros: literários – texto dramático, canção; de imprensa – notícia, entrevista, debate, depoimento; de divulgação científica – exposição, debate, seminário. Para a linguagem escrita: literários – conto, crônica, poema; de imprensa – notícia, artigo, carta ao leitor, entrevista; de divulgação científica –relatório de experiências, esquema e resumos ou verbete de enciclopédia. Ao contrário do que se pode notar nos anos iniciais do Ensino Fundamental, o trabalho com o texto, nos anos finais do Ensino Fundamental, se constrói com um maior número de gêneros sugeridos para a atividade de leitura do que para a atividade escrita. Para que esse trabalho seja efetivo, os PCNs trazem uma vasta relação de itens a serem observados e aprofundados durante as atividades de escuta e de leitura. Nas atividades de escuta de textos orais, é necessário, segundo o documento, que o professor conduza o aluno a compreender os gêneros estudados; identificar as marcas discursivas que permitem reconhecer a intenção, a ideologia veiculada pelo texto; e também traçar as diferenças entre um determinado gênero e outro. Em seguida, elencam vários tópicos que devem ser observados durante o trabalho com os gêneros acima apontados. Na produção de textos orais, os PCNs destacam a importância de se fazer uma seleção de textos que privilegiem o gênero oral, os recursos discursivos, semânticos e gramaticais, prosódicos e gestuais. Quanto à produção de textos escritos, os PCNs trazem três tópicos relevantes no que diz respeito aos gêneros discursivos. Um refere-se à especificidade do gênero, considerando as condições de produção (finalidade, especificidade do gênero, esfera de circulação e interlocutor); o outro traz os procedimentos a serem contemplados no processo de escrita; o terceiro aponta a importância de utilizarem “mecanismos discursivos e linguísticos de coerência e coesão textuais, conforme o gênero e os propósitos do texto”; o quarto elenca as marcas de segmentação; o quinto, está voltado para a estética do texto; e o último ressalta a “utilização dos padrões de escrita em função do projeto textual e das condições de produção.” (BRASIL, 1998, p. 58-9) Para a prática de análise linguística, os PCNs (BRASIL, 1998, p.58-60) elencam os principais tópicos a serem explorados durante o trabalho com o texto • Reconhecimento das características dos diferentes gêneros de texto, quanto ao conteúdo temático, construção composicional e ao estilo: ∗ reconhecimento do universo discursivo dentro do qual cada texto e gêneros de texto se inserem, considerando as intenções do enunciador, os interlocutores, os procedimentos narrativos, descritivos, expositivos, argumentativos e conversacionais que privilegiam, e a intertextualidade (explícita ou não); ∗ levantamento das restrições que diferentes suportes e espaços de circulação impõem à estruturação de textos; ∗ análise das seqüências discursivas predominantes (narrativa, descritiva, expositiva, argumentativa e conversacional) e dos recursos expressivos recorrentes no interior de cada gênero; (...) • Observação da língua em uso de maneira a dar conta da variação intrínseca ao processo lingüístico, no que diz respeito: ∗ aos fatores geográficos (variedades regionais, variedades urbanas e rurais), históricos (linguagem do passado e do presente), sociológicos (gênero, gerações, classe social), técnicos (diferentes domínios da ciência e da tecnologia); (...) • Comparação dos fenômenos lingüísticos observados na fala e na escrita nas diferentes variedades, privilegiando os seguintes domínios: ∗ sistema pronominal (diferentes quadros pronominais em função do gênero): preenchimento da posição de sujeito, extensão do emprego dos pronomes tônicos na posição de objeto, desaparecimento dos clíticos, emprego dos reflexivos etc.; (...) Em seguida, os PCNs trazem tópicos que discorrem sobre os valores e atitudes que estão vinculados às práticas da linguagem, evidenciando a importância da leitura e da escrita como meio de participação ativa na sociedade. Observando os gêneros que são sugeridos para o trabalho com a leitura e com a produção de texto, percebe-se que o número de gêneros indicados para o trabalho com a leitura é maior em relação aos apontados para o trabalho com a escrita, diferentemente do que foi mostrado no documento referente ao ensino dos anos iniciais. Além disso, os gêneros tanto na atividade de leitura como na atividade de escrita foram segmentados de acordo com a função de sua circulação social. Isto posto, é possível afirmar que para os anos iniciais a preocupação das diretrizes é ambientar os alunos no mundo dos textos, é trazer os textos para a sala de aula, não se preocupando tanto com a esfera de circulação desses gêneros, por isso que os gêneros sugeridos para o trabalho estão apresentados sem se atentar para a esfera de circulação como é mostrado no PCNs para os anos finais do Ensino Fundamental. Os PCN + Ensino Médio (2000), assim como os do Ensino Fundamental, elegem o texto como unidade de ensino. Neste documento também é possível reconhecer ecos da voz de Bakhtin. Ao introduzir o trabalho com o texto, os autores recorrem aos três elementos essenciais do gênero: tema, conteúdo composicional e estilo, desta forma destacando que o trabalho de produção de texto será pautado no estudo do gênero. Os autores, ainda, reconhecem que ao se priorizar o trabalho com os gêneros “alguns temas podem ser mais bem desenvolvidos a partir de determinados gêneros; gêneros consagrados pela tradição costumam ter a estrutura composicional mais definida; as escolhas que o autor opera na língua determinam o estilo do texto.” (PCN, 2000b, p. 77) Novamente são perceptíveis as ressonâncias da teoria bakhtiniana dos gêneros do discurso. Bakhtin afirma que o estilo está diretamente ligado ao enunciado, ou seja, aos gêneros do discurso. Ao adotar o trabalho com o gênero, os autores reconhecem que esta metodologia possibilita o trabalho em sala de aula de gêneros vários, uma vez que o estudo não está fundamentado, somente, na tipologia narração, descrição e dissertação, mas na abertura para os gêneros que circulam socialmente como: literatura: o poema, o conto, o romance, o texto dramático, entre outros; no jornalismo: a nota, a notícia, a reportagem, o artigo de opinião, o editorial, a carta do leitor; nas ciências: o texto expositivo, o verbete, o ensaio; na publicidade, a propaganda institucional, o anúncio; no direito, as leis, os estatutos, as declarações de direitos, entre outros. (PCN, 2000b, p. 77) Desta forma, é legítimo dizer que os autores do referido documento acreditam que por meio do estudo dos gêneros discursivos o aluno terá acesso a textos que circulam fora da escola, como por exemplo, os gêneros presentes em jornais, revistas, anúncios etc. Em contato com gênero que circulam socialmente, segundo os autores do referido documento, os alunos poderão relacionar o conteúdo de sala de aula com sua vivência em sociedade, tornando, assim, a aprendizagem mais significativa. “Somente como leitores de múltiplos textos os alunos desenvolverão a contento a sua competência textual”. (PCN, 2000b, p. 78) Para o trabalho com a leitura, o documento não sugere gêneros específicos para serem explorados, mas sim propostas que o interlocutor (professor, autores de material didático, coordenador de escola etc) deve desenvolver para/com os alunos. Consideram, também, a importância de os alunos do Ensino Médio conhecerem características de gêneros específicos, como reconhecer as características da narrativa; os recursos prosódicos de um texto poético; a estrutura dissertativa e a importância do argumento; e as características de um texto informativo. Os autores destacam, ainda, a importância de o aluno ter conhecimento de procedimento que possibilitem a identificação das características do suporte ou do enunciador na construção de valores e sentido. Percebe-se que os autores dos Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio estão mais centrados em orientar seus interlocutores para o trabalho com a leitura do que sugerir gêneros específicos para o desenvolvimento em sala de aula. Para o trabalho com a produção textual, os primeiros direcionamentos apontados são os que se referem à percepção do aluno frente às condições de produção de sentido. Diante de uma dada proposta de produção, o aluno deve ter clareza sobre: • o que tem a dizer sobre o tema proposto, de acordo com suas intencionalidades; • o lugar social de que fala; • para quem seu texto se dirige; • de quais mecanismos composicionais lançará mão; • de que forma esse texto se tornará público. (PCN, 2000b, p. 80) Tendo claros esses elementos, de acordo com os autores, o aluno terá um ponto de partida para desenvolver suas habilidades como produtor de texto. É ressaltado, também, a importância de o aluno mobilizar competência interativa e gramatical no momento da produção. É perceptível que os autores do documento destinado ao Ensino Médio apontam mais possibilidade de trabalho do que elencar gêneros possíveis de serem explorados durante os três anos finais do ensino. Analisando os três documentos oficiais: o PCN dos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e o do Ensino Médio, percebe-se que a preocupação central dos autores dos anos do 1º ciclo está centrada na apresentação de sugestão de gêneros que podem ser explorados do que em uma metodologia de trabalho, enquanto o documento para o Ensino Médio, aponta caminhos e objetivos de como o seu interlocutor pode desenvolver um trabalho menos prescritivo, mas mais reflexivo. 2.3 As diretrizes dos PCNs para o 3º e 4º ciclos e a proposta de trabalho com os gêneros discursivos na disciplina de Língua Portuguesa Como o foco principal desta dissertação é analisar livros voltados para o Ensino fundamental II, faz-se importante trazer à reflexão os dizeres do documento no que se refere ao gênero do discurso. Discurso e suas condições de produção, gênero e texto é o título da “seção” que aborda conceitos bakhtinianos de forma implícita. A seção inicia-se explicando como acontece a interação por meio da linguagem. Para que essa atividade discursiva seja realizada é necessário que se tenha o desejo de dizer, a forma de dizer, o contexto histórico em que se está e as circunstâncias presentes no tempo do dizer. São esses fatores que permitem que o discurso se realize. Ou seja, quando um sujeito interage verbalmente com outro, o discurso se organiza a partir das finalidades e intenções do locutor, dos conhecimentos que acredita que o interlocutor possua sobre o assunto, do que supõe serem suas opiniões e convicções, simpatias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de familiaridade que têm, da posição social e hierárquica que ocupam. Isso tudo determina as escolhas do gênero no qual o discurso se realizará, dos procedimentos de estruturação e da seleção de recursos lingüísticos. É evidente que, num processo de interlocução, isso nem sempre ocorre de forma deliberada ou de maneira a antecipar-se à elocução. Em geral, é durante o processo de produção que as escolhas são feitas, nem sempre (e nem todas) de maneira consciente. (BRASIL, 1998, p. 20) Em seguida, o texto aborda a produção de discursos, ressaltando que ao dizer o indivíduo retoma ou se baseia em discursos já ditos para produzir o seu discurso. “Nesse sentido, os textos, como resultantes da atividade discursiva, estão em constante e contínua relação uns com os outros, ainda que, em sua linearidade, isso não se explicite”. (BRASIL, 1998, p. 21) Na sequência, os PCNs reconhecem que qualquer texto se estrutura a partir de um determinado gênero do discurso. “Todo texto se organiza dentro de determinado gênero em função das intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, as quais geram usos sociais que os determinam.” (BRASIL, 1998, p. 21) Percebe-se que esse pensamento está bem próximo do que afirma Bakhtin em Os Gêneros do Discurso Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determina função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, especificas de cada campo geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis. (BAKHTIN, 2010a, p.266) Em seguida, os PCNs apresentam o conceito de gênero discursivo: “Os gêneros são, portanto, determinados historicamente, constituindo formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura.” (BRASIL, 1998, p. 21) E também elencam os elementos que compõem os gêneros discursivos. • conteúdo temático: o que é ou pode tornar-se dizível por meio do gênero; • construção composicional: estrutura particular dos textos pertencentes ao gênero; • estilo: configurações específicas das unidades de linguagem derivadas, sobretudo, da posição enunciativa do locutor; conjuntos particulares de seqüências que compõem o texto etc. Mais uma vez nota-se que Bakhtin fala por meio dos PCNs. Ao iniciar o seu texto em Os gêneros do discurso (2010, p. 261) ele claramente define gêneros do discurso como sendo tipos relativamente estáveis de enunciados. Antes mesmo de defini-los, primeiramente diz O emprego da língua efetua-se em formas de enunciados (orais ou escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas acima de tudo, por sua construção composicional. A seção se encerra destacando que os gêneros se organizam de acordo com traços comuns, embora não possa ser descartada a sua heterogeneidade. Embora nos PCNs não apareça uma citação direta de Bakhtin, fica perceptível o uso dos conceitos bakhtinianos de enunciado, ou seja, as partes que o constituem: conteúdo temático, estilo da linguagem e construção composicional; observa-se que os PCNs, nesse sentido, estão mergulhados nesses conceitos para elaboração de um projeto de ensino de Língua Portuguesa. Outro tema também discutido por Bakhtin é a heterogeneidade discursiva. Para ele os gêneros se organizam por meio de traços comuns; no entanto, esses traços podem sofrer alterações à medida que o gênero se amplia e modifica. Por isso Bakhtin afirma a existência de um número infinito de gêneros do discurso, pois conforme as esferas de comunicação se ampliam, novos gêneros são criados. Esse pensamento bakhtiniano também é ressaltado pelos PCNs. Na seção de título Condições para o tratamento do objeto de ensino: o texto como unidade e a diversidade de gêneros, os PCNs (BRASIL, 1998) abordam a importância de se desenvolver a competência discursiva, para que assim, o aluno tenha condições de usar a língua e adequá-la para produzir variados textos em diferentes situações comunicativas, tanto oral como escrita. A importância e o valor dos usos da linguagem são determinados historicamente segundo as demandas sociais de cada momento. Atualmente, exigem-se níveis de leitura e de escrita diferentes dos que satisfizeram as demandas sociais até há bem pouco tempo - e tudo indica que essa exigência tende a ser crescente. A necessidade de atender a essa demanda, obriga à revisão substantiva dos métodos de ensino e à constituição de práticas que possibilitem ao aluno ampliar sua competência discursiva na interlocução. (BRASIL, 1998, p. 23) Desse modo o texto foi como o elem