UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "Julio de Mesquita Filho" Instituto de Artes – Campus São Paulo VICTORIA LOPES REIS CIANOTIPIA: do pesquisador-artista ao artista pesquisador São Paulo 2023 VICTORIA LOPES REIS CIANOTIPIA: do pesquisador-artista ao artista pesquisador Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP) como requisito para obtenção de grau de Bacharel em Artes Visuais, sob orientação do Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo. São Paulo 2023 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. R375c Reis, Victoria Lopes, 1995- Cianotipia : do pesquisador-artista ao artista-pesquisador / Victoria Lopes Reis. -- São Paulo, 2023. 52 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Fotografia. 2. Cópias heliográficas. 3. Arte e fotografia. I. Romagnolo, Sérgio, 1957- (Sérgio Mauro Romagnolo). II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 770 Bibliotecária responsável: Luciana Corts Mendes - CRB/8 10531 VICTORIA LOPES REIS CIANOTIPIA: do pesquisador-artista ao artista pesquisador Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP) como requisito para obtenção de grau de Bacharel em Artes Visuais, sob orientação do Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo. Trabalho de conclusão aprovado em: 15/12/2023 Banca Examinadora Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – Orientador Fernanda Pantuzzo Ferreira Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" AGRADECIMENTOS Agradeço a todos os funcionários, docentes e colegas do IA-UNESP, ao meu orientador Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo por toda a paciência e orientação, à minha amiga Fernanda Pantuzzo por aceitar fazer parte da banca examinadora, aos meus amigos por todo apoio sempre, e aos meus pais por sempre me incentivarem a estudar arte. “A fotografia é o processo de tornar a observação consciente de si mesma”. (BERGER, p.41) RESUMO A presente pesquisa, de caráter exploratório, busca refletir sobre a cianotipia enquanto fotografia e arte. Apesar de ser classificada como processo alternativo histórico, a pesquisa busca localizá-la como prática artística contemporânea, retirando-a de sua condição arqueológica, mas atendo-se as suas origens, ressaltando sua importância para o pensamento plástico atual. A pesquisa procurou estabelecer suas raízes históricas relacionadas a criação da fotografia ao estabelecimento desta enquanto arte, assim como o percurso da cianotipia enquanto método alternativo e artístico, reunindo visões de artistas, pesquisadores e filósofos da fotografia, consultando livros, artigos, pesquisas, coleções e acervos. Palavras-chave: Arte; Fotografia; Filosofia da Fotografia; Fotografia Alternativa; Cianotipia. ABSTRACT This research, of an exploratory nature, seeks to reflect on cyanotype as photography and art. Despite being classified as an alternative historical process, the research seeks to locate it as a contemporary artistic practice, removing it from its archaeological condition, but paying attention to its origins, highlighting its importance for current plastic thinking. The research sought to establish its historical roots related to the creation of photography and its establishment as an art, as well as the path of cyanotype as an alternative and artistic method, bringing together views of artists, researchers and philosophers of photography, consulting books, articles, research, and collections. Keywords: Art; Photography; Photography Philosophy; Alternative Photography; Cyanotype. LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURAS Figura 1 – “Vista da janela em Le Gras”, primeira fotografia armazenada por Niépce, em 1826. Figura 2 – “Newhaven Fishwives”, David Octavius Hill, Impressão em papel salgado a partir de negativo de papel, 1843-47. Figura 3 – Fotografia de estúdio de Franz Kafka, aproximadamente aos 6 anos de idade, tirada no Atelier Moritz Klempfner, em Praga, 1888. Figura 4 – “Os dois caminhos da vida”, fotomontagem por Oscar Rejlander em papel albuminado, composto com mais de 30 negativos, 1857. Figura 5 – “’Pro eto’ by Vladmir Mayakovsky”, Aleksandr Rodchenko, letterpress, 1923. Figura 6 – “Autorretrato com Christine e Yvonne Lerolle”, Edgar Degas, impressão em gelatina prata,1895-96. Figura 7 – “Sallie Gardner Running from The Attitudes of Animals in Motion”, Eadweard Muybridge, impressão de albumina fosca em papel, 1878. Figura 8 – Capa da 1ª edição do Bauhausbücher 8, escrito por László Moholy-Nagy, 1925. Figura 9 – “Fotogramm”, László Moholy-Nagy, 1925. Figura 10 – “Fotogramm”, László Moholy-Nagy, 1922. Figura 11 – “Rayograph”, Man Ray, 1922. Figura 12 – “Study of lace”, Sir John Herschel, 1839. Figura 13 – Cianotipia feita por um artista não identificado, 1910. Figura 14 – Cianótipo experimental feito por John Herschel, a partir de uma gravura, 1842. Figura 15 – Folha de rosto de um exemplar do livro “Photographs of British Algae: CyanotypeImpressions”, de Anna Atkins, publicado em 1843. Figura 16 – Projeto de um posto de gasolina em Toronto feito em cianotipia, 1936. Figura 17 – “Osaka”, 2020. Cianótipo feito com negativo alterado digitalmente. Figura 18 – Processo de wet cyanotype em tecido durante exposição à luz solar. Figura 19 – Resultado wet cyanotype em tecido após exposição à luz solar, antes da lavagem. Figura 20 – Comparação de resultado do mesmo objeto exposto em tecido sem intervenção (esq.) e utilizando a técnica wet cyanotype (dir.). Figura 21 – “Erupção no Fuji”, 2019. Cianótipo sobre papel colorplus. Intervenção feita com água durante o processo de secagem. Figura 22 – Exemplo de cianótipo após hidrólise feita com carbonato de sódio. Figura 23 – Exemplo de cianótipo tonalizado com chá preto. Figura 24 – “Blueprint PAT” exibido na exposição “Abstraction in Photography”, no MoMA, em 1951. Figura 25 – Website de Susan Weil. Figura 26 – “Sem título”, cianótipo de Robert Rauschenberg e Susan Weil, c.1950. Figura 27 – Foto da exposição “Abstraction in Photography” no MoMA, em 1951. Figura 28 – Robert Rauschenberg e Susan Weil revelando uma planta em seu banheiro compartilhado, em Nova Iorque, 1951. Foto de Wallace Kirkland. Figura 29 – “Odalisk”, combine de Robert Rauschenberg, c.1955-58. Figura 30 – “Winter Weave”, por José Betancourt e Susan Weil, cianotipia, 2011. Figura 31 – Registro fotográfico feito pela profª. Drª Renata Pedrosa durante minha performance em tecido emulsionado com solução de cianotipia, no IA-Unesp, 2022. Figura 32 – Carex (America), impressão em cianotipia, Anna Atkins, 1848. Figura 33 – Retrato de László Moholy Nagy feita Lucia Moholy, c.1925. Figura 34 – Retrato de Lucia Moholy feito por László Moholy-Nagy, c. 1924. Figura 35 – Lucia Moholy. Edifício da oficina Bauhaus visto de baixo. Vista oblíqua.1926 Figura 36 – Print de página do Acervo do Museu Metropolitano de Nova Iorque. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................................. 9 2. FOTOGRAFIA(S).......................................................................................... 11 2.1 A FOTOGRAFIA SEM CÂMERA: A NOVA VISÃO .................................. 18 2.2 PROCESSOS HISTÓRICOS ALTERNATIVOS, FOTOGRAFIA ALTERNATIVA E FOTOGRAFIA EXPANDIDA .............................................. 24 3 CIANOTIPIA................................................................................................... 26 3.1 CIANOTIPIA E ARTE CONTEMPORÂNEA: UM RETRATO..................... 34 4 ADENDO........................................................................................................ 42 4.1 ANNA.......................................................................................................... 42 4.2 LUCIA......................................................................................................... 44 4.3 SUSAN........................................................................................................ 49 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 51 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 52 9 1 INTRODUÇÃO Essa pesquisa nasceu da vontade de compreender melhor a história, tanto da fotografia quanto da cianotipia, e dos usos contemporâneos destas, pontuando suas conexões com a arte e os artistas, criando uma narrativa de uma para outra. Na obsessão desenvolvimentista que engloba a tecnologia, um processo como a cianotipia, por ser analógico químico e delicado, seria descartado, pois não há mais necessidade de uma impressão manual e química quando pode-se fotografar instantaneamente a qualquer momento na posse de um aparelho celular – este que virou uma extensão do ser humano na sociedade capitalista ocidental atual. No entanto, existe um resgate – ou melhor, uma permanência – desta e outras práticas analógicas fotográficas. Obviamente, muitas delas, como o ressurgimento de máquinas instantâneas, se dão ao oportunismo mercadológico de reviver e revender objetos com o fetiche vintage de uma mercadoria quase decorativa ao invés de proporcionar ao público e ao artista como objeto de experimentação. A cianotipia, no entanto, não necessita de nenhuma máquina. Apesar de poder servir-se do hibridismo e usar negativos feitos inclusive digitalmente, estes não são necessários e nem inerentes à técnica. O impulso da manutenção da cianotipia, arrisco-me a dizer, é puramente artístico e mais ainda, completamente investigativo. Existe uma vontade de criar, de tingir o olhar com essa técnica, e uma plasticidade do meio propícia que permite a criação de experimentações variadas e a construção de um próprio processo artístico para esta técnica. John Berger, em seu livro “Para entender uma fotografia”, que reúne ensaios de várias datas, se questiona, ao responder Susan Sontag, se existe uma prática fotográfica alternativa, e, na época de publicação deste livro, 1978, ele responde que não, justificando que no âmbito profissional, isto não era possível. Porém, há de se questionar: o que é profissional para um artista? Aquele que aceita encomendas? Ou aquele tocado pelo privilégio e pela sorte de poder monetizar seu trabalho? A sobrevivência é vital na sociedade capitalista enquanto trabalhadores, mas por que as práticas alternativas não podem ser consideradas fora desse âmbito? Por que enquanto artistas temos que nos prender as amarras mercadológicas para produzir arte? Mais relevante do que discutir se fotografia é Arte – o que já foi feito a exaustão em diversas publicações –, deveríamos perguntar: é Arte se a obra só serve aos 10 interesses do capital? O trabalho artístico não é trabalho se ele não pode ser explorado? Berger, que, em seu livro, não considera fotografia arte, também só considera a prática fotográfica aquela que é profissional, sem discutir o que qualifica o rótulo “profissional”. E o retorno para ele, antes, durante e após o período em que ele escreveu esse ensaio para Sontag é simples: a prática fotográfica alternativa é possível e existe devido ao esforço de artistas, pesquisadores e professores. Não é um clamor por um ideal, mas um fato como iremos ver ao longo desta pesquisa. Mesmo enquanto trabalho, a fotografia alternativa existe, assim como experimentação artística. Ele manifesta o desejo de vê-la no futuro, mas ela já existia contemporaneamente a ele. A condição experimental de qualquer meio artístico é essencial para a construção de um raciocínio plástico e uma estética própria de cada artista ou coletivo, e não deve ser ignorante somente por não se encaixar a moldes mercadológicos. Seguir uma lógica utilitarista é obedecer ao capital, a uma força que nos esmaga e retira a nossa essência de artista. Não é romântico considerar o existente, se entendermos nosso lugar de luta na sociedade. A cianotipia teve usos comerciais, como veremos no percurso desta pesquisa, e este levou a subversão do mesmo, para a arte, guiada pela vontade de criar, e por métodos estabelecidos por outros artistas, partindo de decisões estéticas, porém, para uma arte autêntica. Nesta pesquisa, o intuito é retirar a cianotipia dessa condição arqueológica e engessada e revelar um dos caminhos traçados por ela até hoje, ainda viva. Direcionarmos nosso olhar para o passado para construirmos uma narrativa reunindo suas origens, influências e visões, para assim podermos enxergar o futuro do processo artístico. 11 2 FOTOGRAFIA(S) A história da fotografia se ramifica em um axioma originado na busca pela fixação das imagens obtidas pela Câmara Obscura. Sendo um advento de sua época, a sociedade industrial, as pesquisas foram múltiplas, assim como os métodos resultantes desses esforços. A fixação usando os sais de prata, desenvolvido por Joseph Niépce, em 1816 – ou 1826, se considerarmos a primeira cópia salva deste processo –, o heliógrafo, deu origem à fotografia que hoje chamamos de fotografia analógica (em contraponto à fotografia digital), que foi amplamente usada e desenvolvida nos séculos XIX e XX. Figura 1 – “Vista da janela em Le Gras”, primeira fotografia armazenada por Niépce, em 1826. Fonte: Gernsheim Collection, Universidade do Texas em Austin, EUA. A pesquisa do uso de sais de prata para fixação continuou com Louis Daguerre, com quem Niepce estabeleceu parceria em 1829. Niepce faleceu em 1834, e Daguerre seguiu pesquisando para, em 1839, apresentar seu próprio método, mais sofisticado e complexo, o daguerreótipo. Simultaneamente, outros métodos foram 12 desenvolvidos, como o positivo direto de Hyppolyte Bayard, o Calótipo, também sensibilizado com sais de prata, de Henry Fox Talbot; a Antotipia, emulsão fotossensível criada a partir de plantas, frutas e vegetais com essas propriedades, descoberta por Mary Sommervile, que apresentou o método à John Herschel em 1842; e, foco principal desta pesquisa, a Cianotipia, criada pelo mesmo John Herschel, também no mesmo ano. Além de muitos outros, criados posteriormente. Numa organização cronológica, passa-se a impressão de que um evento ocorre após o outro, numa linha do tempo unidirecional. Os eventos nessa narrativa histórica estão interligados; se encontram, se fundem e dialogam entre si. John Herschel, de certa forma, está envolvido anteriormente, posteriormente e etimologicamente com o processo fotográfico. Considerado um polímata pela pesquisa e atuação em vários campos da ciência, Herschel descobriu e publicou, em 1819, seus experimentos com sais de prata, que foram cruciais nas descobertas e inventos anteriormente mencionados de Niepce, Daguerre e Talbot, e os resultados destes inspiraram Herschel a criar sua própria técnica – a cianotipia. Em 1839, ele publicou o artigo “Notas sobre a arte da fotografia, ou a aplicação de raios químicos de luz para o propósito de representação pictórica” (tradução nossa), que cunhou – apesar de não ter sido o primeiro a utilizá- lo – o termo “fotografia” como o usamos até hoje. Ao compartilhar livremente esta informação com os primeiros pioneiros, o Herschel forneceu o elo que faltava em todos os processos deles, de como tornar as imagens permanentes. Herschel, com uma imaginação volátil e crescente, é um ideal de aprendizagem: ele deixou de lado o nacionalismo; compartilhando seu conhecimento abertamente; não patenteou suas descobertas; e não as explorou comercialmente. (HIRSCH, R., 2017, tradução nossa) Quando Walter Benjamin escreveu “A pequena história da fotografia”, em 1931 – apenas quatro anos antes de publicar “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” –, a prática fotográfica em si tinha um pouco mais de cem anos de história, partindo da disponibilização do daguerreótipo em domínio público pelo governo francês, que ele enfatiza ter possibilitado “um desenvolvimento contínuo e acelerado” (BENJAMIN, 1931). Neste ensaio, Benjamin já critica o fato de a fotografia ser constantemente comparada com a pintura – inclusive por parte de seus defensores. Essa constante comparação evitou que a fotografia fosse olhada como objeto em si, com suas 13 próprias particularidades e materialidade, tratando-a apenas pela sua função de reprodutibilidade, como produto da sociedade industrial, e ameaça à grande Arte da pintura e à genialidade divina do artista. “As tentativas de teorização são rudimentares (...) E, no entanto, foi com esse conceito fetichista de arte, fundamentalmente anti-técnico, que se debateram os teóricos da fotografia por quase cem anos, naturalmente sem chegar a qualquer resultado. Porque tentaram justificar a fotografia diante do mesmo tribunal que ela havia derrubado.” (BENJAMIN, 1931, pág. 92) Apesar de sua posição crítica quanto a alguns usos da fotografia em seu ensaio posterior “A obra de arte em sua reprodutibilidade técnica”, de 1936, aqui Benjamin distingue a fotografia-reprodução da fotografia como obra em si, exaltando sua singularidade, analisando obras de fotógrafos como David Octavius Hill, Berenice Abbott e Eugène Atget. Também reconhece o que separa a fotografia das demais técnicas artísticas – seu intermédio físico entre o real e a psique humana, tanto do espectador quanto do fotógrafo. Percebendo, então, essa inerência da fotografia em ser o produto do olhar com o subjetivo. “(...) percebemos que também aqui os extremos se tocam: a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós.” (BENJAMIN, 1931, pág. 94) Figura 2 – “Newhaven Fishwives”, David Octavius Hill, Impressão em papel salgado a partir de negativo de papel, 1843-47 Fonte: Acervo do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, EUA. 14 “A natureza que fala a câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente (...). A fotografia mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares: câmera lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional.” (BENJAMIN, 1931, pág. 94) Benjamin, partindo dessa fundamental distinção entre as funções de reprodução e existência enquanto objeto da fotografia, percorre a história de seu uso até então, repassando por suas particularidades técnicas ligadas às etapas de sua evolução, como os longos tempos de exposição e as ferramentas auxiliares para manter os modelos paralisados, atendo-se também a questão da sobrevivência na sociedade capitalista, principalmente ao ressaltar o momento em que a fotografia passou a substituir o retrato em miniatura – e o impacto dessa troca na própria fotografia, que mais uma vez, forçadamente, prendeu-se a padrões estéticos próprios da pintura para se valorizar. Benjamin cita uma fotografia de infância de Franz Kafka para exemplificar a fabricação da composição pictórica, para enobrecer a fotografia. “No início, os fotógrafos se contentavam com dispositivos para fixar a cabeça ou o joelho. Depois vieram outros acessórios, como nos quadros célebres, e, portanto, tinham que ser “artísticos”. Foi nessa época que apareceram aqueles ateliês com seus cortinados e palmeiras, tapeçarias e cavaletes, mescla ambígua de execução e representação” (BENJAMIN, 1931, pág. 98) Figura 3 – Fotografia de estúdio de Franz Kafka, aproximadamente aos 6 anos de idade, tirada no Atelier Moritz Klempfner, em Praga, 1888. Fonte: Wikimedia Commons (Coleção Particular). 15 Para Benjamin, esta tentativa de aproximar a fotografia da pintura também fabricava uma “ilusão da aura” imageticamente, através dos retoques nos retratos. Essa vertente da arte fotográfica, denominada “pictorialismo”, foi a tentativa de alguns fotógrafos para “elevá-la ao status de arte”, como explica Annateresa Fabris, tentando afastá-la da condição de “arte mecânica” (FABRIS, 2008). Fotógrafos como Oscar Rejlander e Henry Peach Robinson utilizam efeitos manuais como a fotomontagem em suas séries, buscando aproximá-las da condição de “arte”, tanto na composição, como nas técnicas de edição. Figura 4 – “Os dois caminhos da vida”, fotomontagem por Oscar Rejlander em papel albuminado, composto com mais de 30 negativos, 1857. Fonte: Victoria and Albert Museum, Londres. “Para salvar a fotografia da visão corrente de “arte mecânica”, a crítica incentiva os fotógrafos a representarem temas históricos, literários, anedóticos, ricos de imaginação(...) Na realidade a fotografia pictórica é mais acadêmica do que a pintura em que se inspira, não só pelo apego ao modelo que a prática moderna ia deixando de lado, mas sobretudo por não levar em consideração aquilo que Max Kozloff denomina o “território do meio” ou seja, sua relação com a realidade, com o “fluxo dos acontecimentos”. (FABRIS, 2008 pág.186) Esse esforço mimético cria uma redundância que causa certo desconforto estético, e revela-se, na verdade, um paradoxo ao reconhecermos que a fotografia, enquanto espectro projetado na tela dos pintores, já estava presente como a aplicação da câmera obscura na pintura, pelo menos desde o século XVI. 16 Entretanto, não é a composição espelhada na pintura ou a escolha dos temas que atribui um caráter artístico à fotografia e sim as operações plásticas para alteração de seu resultado. Essas técnicas, que começaram a ser feitas para padronizar os retratos e eliminar imperfeições, foram as variações materiais na fotografia tradicional que deram vazão a experimentações posteriores, a exploração do potencial plástico da fotografia. “Com os pictorialistas, o retoque não é mais a última e única ação não fotográfica aplicável às provas puras. A intervenção confere ao retoque uma acepção ampla e generaliza-se em todos os estágios do processo fotográfico, não para melhorá-lo ou para atenuar os excessos e os defeitos, mas para invertê-lo radicalmente”. (ROUILLÉ, 2009 pág.260) No século XX, outros movimentos e usos da fotografia foram se desenvolvendo, aproveitando-se da aprimoração das técnicas fotoquímicas, do caráter reprodutível do médium e da portabilidade das câmeras leves, como foi. As vanguardas europeias, mesmo rejeitando as fotografias pictóricas que, nesse resgate neorromântico, não se encaixavam na iconoclastia modernista, usufruíram de suas técnicas, principalmente a fotomontagem, em suas próprias obras, algo visível nas colagens construtivistas, dadaístas e surrealistas. Figura 5 – “’Pro eto’ by Vladmir Mayakovsky”, Aleksandr Rodchenko, letterpress, 1923. Fonte: MoMA, Nova Iorque, EUA. 17 Nessa virada de século a fotografia ramifica-se mais amplamente, acompanhando não só as vanguardas, mas também a evolução tecnológica da máquina fotográfica, penetrando a sociedade em todos os seus reflexos. Usada como ferramenta auxiliar do artista (como para as pinturas de Edgar Degas e Marcel Duchamp); como objeto de experimentação e pesquisa (como o experimento “Cavalo em Movimento” de Eadweard Muybridge); e como meio principal de produção artística (como a “Fotografia Pura” de Alfred Stieglitz); a fotografia segue no meio artístico, independente de um veredicto final. Figura 6 – “Autorretrato com Christine e Yvonne Lerolle”, Edgar Degas, impressão em gelatina prata,1895-96. Fonte: Acervo do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, EUA. Figura 7 – “Sallie Gardner Running from The Attitudes of Animals in Motion”, Eadweard Muybridge, impressão de albumina fosca em papel, 1878. 18 Fonte: Center for Visual Arts at Stanford University, Stanford, EUA. 2.1 A FOTOGRAFIA SEM CÂMERA: A NOVA VISÃO Antagônica ao pictorialismo, que se servia do hibridismo entre a mecânica da câmera a intervenção da mão, a Nova Visão, vertente do modernismo alemão, volta- se a um certo purismo conceitual da fotografia– que já vinha sendo explorado por outras vertentes, como a Fotografia Pura e a Nova Objetividade–, fazendo prevalecer as características técnicas e específicas da fotografia, fixando-se nessa singularidade, no que era oposto à arte até então. “Em suma, o modernismo alemão estimula a chegada inesperada de uma arte fotográfica radicalmente antipictorialista (...). Propõe uma versão da arte fotográfica inversa da versão até então predominante, mais próxima da máquina e da ciência do que da mão e da arte”. (ROUILLÉ, 2009 pág.262) Experimental, a fotografia da Nova Visão prezava por explorar as materialidades próprias dentro do meio, sem a interferência de outras técnicas, considerando o campo fotográfico amplo o suficiente para uma exploração aplicada. László Moholy-Nagy, artista húngaro e professor da Bauhaus, publicou em 1925, “Pintura, Fotografia, Filme”, como volume 8 da Bauhausbücher, obras componentes dos cursos da Bauhaus. O cerne desta publicação, mesmo abrangendo outros tópicos, é a fotografia e o papel criativo dela na extensão de seus limites no que ele define como “criações ópticas” (MOHOLY-NAGY, 1969). 19 Figura 8 – Capa da 1ª edição do Bauhausbücher 8, escrito por László Moholy- Nagy, 1925. Fonte: MOHOLY-NAGY, L. Painting, Photography, Film. Lund Humprhries, 1969. No capítulo sobre fotografia, Moholy-Nagy frisa que a “reprodução sem o enriquecimento de outros pontos de vista, principalmente o criativo da arte, pode ser considerado, na melhor das hipóteses, apenas uma questão de virtuosismo”. (MOHOLY-NAGY, 1969) Assim, deixa claro que, apesar de privilegiar o caráter físico, mecânico e químico da fotografia, por ser, em suas palavras, “o mais próximo de uma visão objetiva” (MOHOLY-NAGY, 1969), em detrimento das artes manuais, o ponto defendido por Moholy-Nagy nada está relacionado com a reprodução técnica da obra, ou um purismo mecânico, e sim com o que o médium pode oferecer em relação a exploração artística do mesmo. “Visto que a produção (criatividade produtiva) está principalmente a serviço do desenvolvimento humano, devemos nos esforçar para expandir o aparato (meios) que até agora tem sido usado apenas para fins de reprodução, para uma reprodução produtiva. Se desejamos uma revalorização no campo da fotografia para que ela possa ser usada produtivamente, devemos explorar a sensibilidade à luz da placa fotográfica (brometo de prata): fixando nela fenômenos luminosos (momentos de displays de luz) que nós mesmos compusemos (com artifícios de espelhos ou lentes, cristais transparentes, líquidos, etc.).” (MOHOLY-NAGY, 1969 pág. 31, tradução nossa) 20 Nesse contexto de exploração do médium fotossensível, Moholy-Nagy experimentou a exposição de suporte sensibilizado sem o uso de negativos, substituindo-os por objetos variados, buscando a exploração do chiaroscuro, da incidência de luz sobre os objetos, e diferentes tempos de exposição. Ele nomeou esta técnica “fotograma”. Moholy-Nagy também cita a possibilidade de pesquisa de outras técnicas para obtenção de negativos, como os obtidos através de raios eletromagnéticos, deixando em aberto as possibilidades visuais futuras. Este curso conduz a possibilidades de composição de luz, nas quais a luz deve ser soberanamente tratada como um novo meio criativo, como a cor na pintura e o som na música. Eu chamo esse modo de composição da luz de fotograma. Oferece espaço para compor em um material recém- masterizado.Outra forma de avançar em direção à produtividade poderia ser investigar e utilizar várias composições químicas que podem fixar fenômenos luminosos (vibrações eletromagnéticas) invisíveis ao olho (como, por exemplo, fotografia de raios X).” (MOHOLY-NAGY, 1969 pág. 32) A relação da ciência com a arte, citada por Rouillé ao falar do modernismo alemão, neste contexto da Bauhaus e o proposto por Moholy-Nagy, não era a substituição da mão pela máquina, e sim o domínio e entendimento desse dispositivo (a máquina fotográfica) enquanto instrumento do artista, evitando assim uma alienação do artista para com o meio, propondo a possibilidade de se construir câmeras novas para obter resultados diferentes. “Outra forma ainda é construir novas câmeras, em primeiro lugar usando a câmera obscura e, em segundo lugar, eliminando a representação em perspectiva. Câmeras com sistemas de lentes e espelhos que podem abranger o objeto de todos os lados ao mesmo tempo e câmeras construídas com base em leis ópticas diferentes daquelas dos nossos olhos.”. (MOHOLY- NAGY, L. 1969 pág. 32) Figura 9 – “Fotograma”, László Moholy-Nagy, 1925. 21 Fonte: MOHOLY-NAGY, L. Painting, Photography, Film. Lund Humphries, 1969. Fica claro em “Pintura, Fotografia, Filme” o caráter investigativo do processo artístico de Moholy-Nagy. Sua visão sobre a arte fotográfica não era extinguir-se na máquina e sim explorar as inúmeras possibilidades plásticas oferecidas por esse meio que, historicamente, ainda era recente. O proposto por ele é um exercício da visão que desafia o comum, a quebra do paradigma da imagem fotográfica como documento e representação até então. O uso criativo deste conhecimento e destes princípios irá silenciar aqueles que afirmam que a fotografia não é uma “arte”. A mente humana encontra em toda parte campos nos quais pode trabalhar criativamente. Assim, muito em breve teremos de registar grandes progressos também no campo da fotografia. (MOHOLY-NAGY, 1969 pág. 33) Moholy-Nagy também estabelece a fotografia como complementar à pintura e vice-versa, dispersando a disputa por status que, enquanto artista e professor, não era importante fomentar. Se uma subversão da fotografia pode gerar novas visualidades, as mesmas podem ser aplicadas em outras áreas da produção artística. “Eu próprio aprendi com o meu trabalho fotográfico muitas coisas úteis na minha pintura e, inversamente, os problemas colocados pelas minhas pinturas forneceram muitas vezes dicas para as minhas experiências fotográficas”. (MOHOLY-NAGY, L. 1969 pág. 35) Figura 10 – “Fotogramm”, László Moholy-Nagy, 1922. 22 Fonte: Acervo do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, EUA. Moholy-Nagy e demais artistas da Bauhaus não foram os únicos modernistas a experimentar as possibilidades plásticas do suporte fotossensibilizado. Talvez as obras mais conhecidas sejam os rayographs do artista surrealista americano Man Ray, compostas anos antes da teorização de Moholy-Nagy. Figura 11 – “Rayograph”, Man Ray, 1922. Fonte: MoMA, Nova Iorque, EUA. 23 Contudo, a “fotografia sem câmera” não era uma técnica nova, estando presente desde os primórdios da fotografia no século anterior. As obras de Man Ray e Moholy-Nagy não são invenções, mas sim um resgate dessa prática explorada desde os primórdios da fixação fotográfica no século XIX, buscando esgotar os limites do meio, gerando novas perspectivas e estabelecendo relações com a arte de sua época. Figura 12 – “Study of lace”, sir John Herschel, 1839. Fonte: Museum of the History of Science, Broad Street, Oxford, Inglaterra. O legado destas obras evidencia a autofagia da arte e o lugar do raciocínio plástico para atingir novas visualidades mesmo servindo-se de técnicas passadas. A pesquisa e experimentação devem fazer parte do processo artístico, não só pelo enriquecimento do mesmo, mas pela conscientização das técnicas em uso pelos artistas. Localizar historicamente as práticas é essencial contra a alienação, e não deve ser visto como amarra e sim como expansão. A fotografia não é intrinsecamente moderna. De imediato, ela é plural; e nunca deixa de sê-lo Seu dispositivo sempre vai dar pretexto a práticas tanto modernas quanto antimodernas. (ROUILLÉ, A. 2009 pág. 30). Figura 13 – Cianotipia feita por um artista não identificado, 1910. 24 Fonte: MoMA, Nova Iorque, EUA. 2.2 PROCESSOS HISTÓRICOS ALTERNATIVOS, FOTOGRAFIA ALTERNATIVA E FOTOGRAFIA EXPANDIDA O conjunto de práticas fotográficas que se diferem da fotografia convencional – papel ou filme emulsionado com sais de prata fotossensíveis – que nesta pesquisa chamamos de processos alternativos históricos, recebem muitas outras nomenclaturas: fotografia alternativa, fotografia artesanal, fotografia química (fotoquímica), processos fotográficos históricos, etc. A nomenclatura é de certa forma, um obstáculo, não somente ao nomear este conjunto das técnicas, mas também na catalogação, legenda e arquivamento das obras produzidas utilizando-as, pois, alguns processos tem mais de uma nomenclatura, ou recebem o nome popular, ou simplesmente são arquivados só como fotografia, sem evidenciar qual processo foi usado. São, de fato, todas “fotografias”, porém, colocar em evidência a técnica é evitar que essa informação e a técnica em si se perca e que demais pesquisadores, artistas e público em geral tenham acesso a uma informação crucial sobre a obra a sua frente. Variadas são as técnicas alternativas desenvolvidas que seguem sendo utilizadas, principalmente para fins artísticos, até hoje. Existe um esforço de artistas, técnicos e professores em conservá-las, seja por meio da educação, de pesquisa, publicações, etc. Uma das minhas principais fontes de pesquisa foi o livro “Fotografia Pensante” de Luiz Guimarães Monforte, artista e professor do IA-UNESP. Em sua 25 obra ele as chama de fotografia alternativa – para colocá-las no eixo contemporâneo – e as cataloga, explicando cada processo, ilustrando com obras contemporâneas. “Tais procedimentos, hoje apelidados de fotografia alternativa, referem-se a uma prática mais do que centenária, histórica, a qual, nos dias de hoje, permite ao fotógrafo desprender-se dos estatutos usuais de registro de uma imagem através da luz para estabelecer um outro, mais adequado às suas necessidades expressivas. Ele imprime de acordo com as próprias regras, cria novos seres, gera experiências visuais, constrói”. (MONFORTE, L. 1997 pág. 12) Dentro da produção artística contemporânea, o uso que engloba esses processos manuais e alternativos – para além, inclusive, dos processos alternativos históricos – é também denominado “Fotografia Expandida” por Rubens Fernandes Junior, que cunha o termo justamente ao reconhecer a dificuldade de catalogar a infinitude de obras que se encaixam no mesmo conceito de fazer fotográfico. Denominamos essa produção contemporânea mais arrojada, livre das amarras da fotografia convencional, de fotografia expandida, onde a ênfase está na importância do processo de criação e nos procedimentos utilizados pelo artista (...) A fotografia expandida existe graças ao arrojo dos artistas mais inquietos, que desde as vanguardas históricas, deram início a esse percurso de superação dos paradigmas fortemente impostos pelos fabricantes de equipamentos e materiais, para, aos poucos, fazer surgir exuberante uma outra fotografia, que não só questionava os padrões impostos pelos sistemas de produção fotográficos, como também transgredia a gramática desse fazer fotográfico. (FERNANDES JUNIOR, R., 2006 pág. 11) Os processos alternativos históricos sobreviveram e sobrevivem devido ao esforço da comunidade artística e científica em conservá-los não só como história, mas como prática. Como visto na seção anterior, a retroalimentação das técnicas artísticas é essencial para o desenvolvimento intelectual e plástico dos artistas em formação – o surgimento de uma determinada técnica pode estar localizado no passado histórico, mas a prática não necessariamente precisa estar presa a ele. Portanto, os processos alternativos históricos agora ocupam um espaço de hibridismo – não são substitutos para o digital e o convencional, mas extensões plásticas possíveis. 26 3. CIANOTIPIA Criada em 1842 por sir John Herschel, a Cianotipia é um processo de impressão fotográfica obtido a partir da reação de uma solução de citrato de ferro amoniacal III e oxalato de amônio férrico em exposição à luz ultravioleta. A revelação e fixação são feitas somente usando água, resultando em um tom de azul da Prússia. Figura 14 – Cianótipo experimental feito por John Herschel, a partir de uma gravura, 1842. Fonte: Museum of the History of Science, Universidade de Oxford, Inglaterra Um ano após a invenção de Herschel ter se tornado conhecida, em 1843, foi publicado, de forma independente, o primeiro livro feito inteiramente em cianotipia, sendo este também o primeiro livro ilustrado com processo fotográfico: “Photographs of British Algae: Cyanotype Impressions” (Fotografias de Algas Britânicas: Impressões em Cianotipia), por Anna Atkins. Uma catalogação de espécimes de algas, feita a partir da impressão delas em papel sensibilizado exposto à luz solar. 27 Figura 15 – Folha de rosto de um exemplar do livro “Photographs of British Algae: CyanotypeImpressions”, de Anna Atkins, publicado em 1843. Fonte: Acervo do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, EUA. Desde sua criação, a fórmula e o processo da cianotipia vem sido aperfeiçoados e expandidos por outros pesquisadores, como John Mercer, que em 1828, já havia notado a cor azul da Prússia como resultante da exposição de pernitrato de ferro a luz solar, e, após a publicação do processo já estabelecido por Herschel, desenvolveu técnicas de viragem tonal para cianotipia em 1856 (WARE, 2014). Um olhar mais aprofundado sobre a história da criação e da evolução química de todos os detalhes do processo de cianotipia é encontrado no trabalho de Mike Ware “Cyanomicon”, de 2014, que compila suas pesquisas sobre cianotipia desde 1999. A cianotipia (ou cianótipo), também é popularmente chamada no exterior de “blueprint”, por ter sido amplamente usada como método de reprodução, desde plantas arquitetônicas, reproduções fotográficas de negativos já obtidos, além do uso artístico moderno, devido a seu baixo custo e simplicidade do processo em comparação a outros métodos fotográficos. 28 “O sucesso comercial do processo de cianotipia deveu-se não ao seu uso pictórico, mas à sua facilidade reprográfica. Estas aplicações dotaram a nossa linguagem de uma nova palavra: blueprint – uma palavra que perdura muito depois de o processo que descreve se ter tornado obsoleto porque agora assumiu o significado expandido e mais abstrato de “projeto arquitetônico”. A era da cianotipia como método de reprodução foi proclamada pela fabricação de papel barato e sensibilizado em grandes quantidades e, no início do século XX, seu uso para copiar planos de engenharia e arquitetura tornou-se universal em escritórios de desenho.”. (WARE, M. 2014. pág. 11, tradução nossa) Figura 16 – Projeto de um posto de gasolina em Toronto feito em cianotipia, 1936. Fonte: Arquivo da Cidade de Toronto, Canadá A simplicidade do processo da cianotipia não é somente um facilitador para iniciantes na fotoquímica, mas também permite que várias etapas de sua produção sejam alteradas, proporcionando uma gama de variantes no processo e inúmeros resultados. “[A cianotipia] Combina as vantagens de custo muito baixo e baixa toxicidade e perigo, simplicidade na manipulação, aplicabilidade a muitos tipos de superfície, em formatos muito grandes, se desejado e, graças à magnanimidade de Herschel, tudo isso sem restrição de patente ou sigilo comercial”. (WARE, M. 2014. pág. 12, tradução nossa) A emulsão da solução pode ser aplicada em qualquer superfície aderente, como papel e tecido, mas também pode ser aplicada em madeira, vidro, cerâmica metal e qualquer outra superfície misturando-a em gelatina. 29 Considerando também um hibridismo com a fotografia digital, é possível transformar qualquer imagem em um negativo, assim como também manipulá-lo digitalmente com softwares de edição de imagem. Figura 17 – “Osaka”, 2020. Cianótipo feito com negativo alterado digitalmente. Fonte: Acervo da artista Dada a baixa fotossensibilidade em comparação aos sais de prata, com o tempo de exposição a um índice de luz UV alto sendo de 10 a 15 minutos, há uma janela de experimentações possíveis com o suporte em exposição até que a emulsão tenha reagido completamente. A técnica wet cyanotype (cianótipo molhado) que consiste em molhar ou respingar o suporte enquanto reage ao UV é um exemplo. Figura 18 – Processo de wet cyanotype em tecido durante exposição à luz solar. Fonte: Acervo da artista 30 Figura 19 – Resultado wet cyanotype em tecido após exposição à luz solar, antes da lavagem. Fonte: Acervo da artista Figura 20 – Comparação de resultado do mesmo objeto exposto em tecido sem intervenção (esq.) e utilizando a técnica wet cyanotype (dir.). Fonte: Acervo da artista Partindo de técnicas como o fotograma de Moholy-Nagy, é possível testar a troca de posições e diferentes objetos em cima do suporte durante a exposição. Caso 31 o artista esteja usando um vidro para prensar o objeto durante a exposição, as alterações também podem ser feitas neste, testando a refração da luz. A intervenção também pode ser feita durante a secagem da obra, sem necessariamente precisar reagir com a luz UV. Figura 21 – “Erupção no Fuji”, 2019. Cianótipo sobre papel colorplus. Intervenção feita com água durante o processo de secagem. Fonte: Acervo da artista A variação do resultado, inclusive da quebra do azul, pode ser feita através da hidrólise do azul da Prússia, com carbonato de sódio ou potássio, que, dependendo do tempo de reação, pode chegar até um tom de amarelo claro. Figura 22 – Exemplo de cianótipo após hidrólise feita com carbonato de sódio. 32 Fonte: Acervo da artista A hidrólise permite que o cianótipo seja tonalizado com outros reagentes, como ácido tânico – técnica desenvolvida por John Mercer, que resulta em um tom marrom- arroxeado (WARE, 2014). Além disso, é possível testar com outras soluções para tonalizar, inclusive de uso doméstico, como água sanitária, ou bebidas como café, vinho, chás, etc. Figura 23 – Exemplo de cianótipo tonalizado com chá preto. Fonte: Acervo da artista 33 Além das possibilidades de intervenção durante a exposição e fixação do cianótipo, também é possível preparar o suporte antes de emulsionar, acidificando-o com ácido cítrico, o que resulta em um azul mais concentrado, o que pode aumentar o contraste, dependendo da cor do suporte, como por exemplo, papéis e tecidos brancos. O banho em peróxido de hidrogênio (água oxigenada), após a lavagem também resulta em um azul mais intenso, como o azul-marinho. Considerando também outras possibilidades de hibridismo, é possível “colorizar” cianótipos com goma-bicromatada. As possibilidades são inúmeras e o artista, nesse contexto de pesquisador, torna-se também cientista, testando e construindo seu próprio processo artístico da cianotipia, contribuindo também para a elaboração de uma base de conhecimento compartilhado com demais artistas-pesquisadores deste médium ao compartilhar suas experiências. O conhecimento que temos dos processos que englobam a cianotipia provém de esforços de artistas, pesquisadores e cientistas que, em um mundo globalizado e conectado, compartilham – assim como Herschel o fez com suas descobertas e publicações –, ensinam e preservam o conhecimento já adquirido em busca de construir novas possibilidades e olhares sobre essa técnica tão rica e plástica. “Atualmente fechamos o círculo ao testemunhar um segundo renascimento do cianótipo processo entre artistas fotográficos contemporâneos que, como os primeiros usuários, são obrigados a revestir manualmente seu próprio papel ou, em alguns casos, superfícies mais incomuns. Há um caso a ser defendido para a reabilitação do cianótipo como meio de Arte (fine art) apesar - ou talvez até por causa de - sua cor poderosa.” (WARE, M. 2014. pág. 12, tradução nossa) 34 3.1 CIANOTIPIA E ARTE CONTEMPORÂNEA: UM RETRATO Ao traçar uma historiografia da arte, algumas divisas são estabelecidas pela comparação a períodos históricos, o que acaba cerceando a localização de uma técnica a uma determinada janela histórica. Entretanto, enquanto a história passa a sua própria maneira cíclica e trágica, e embora haja uma perda do momentum ou ápice de certas técnicas ou estéticas artísticas, elas permanecem em prática contínua, mesmo que espaçada, ressignificada ou até esvaziada. A pintura, mesmo em uma era digital, persiste enquanto médium artístico, e o mesmo vale para outros, e isso inclui a fotografia e a cianotipia. A cianotipia, sobreviveu como técnica de reprodução na virada de século, em contramão das fotografias em preto e branco e sépia mais visualmente aceitas e protagonistas de sua própria história da fotografia e da arte. Durante o período das vanguardas e do pós guerra, a ressignificação de materiais e a desconstrução do conceito de arte permitiu uma liberdade de exploração por parte dos artistas, cujos resultados, discussões, reivindicações e contestações foram inúmeros e, sem entrar no mérito da discussão sufocante e aprisionador sobre a qualificação ao status de arte, que persiste nos dias de hoje, elas indiscutivelmente existiram e ainda reverberam, mesmo que em consciente negação. É neste cenário pós-modernista e exploratório que a cianotipia aparece na exposição “Abstraction in Photography” no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA), nos EUA, em 1951, na obra de Robert Rauschenberg e Susan Weil. Figura 24 – “Blueprint PAT” exibido na exposição “Abstraction in Photography”, no MoMA, em 1951. 35 Fonte: Robert Rauschenberg Foundation/Acervo de Susan Weil Como dito anteriormente nesta pesquisa, a cianotipia foi usada comercialmente devido ao baixo custo e a possibilidade de aplicação em larga escala, principalmente para plantas arquitetônicas. Foi essa condição de existência do médium em forma comercial que proporcionou a exploração plástica desses dois artistas. Weil, em seu website, explica que a cianotipia já era presente em sua vida, mencionando uma reprodução fotográfica feita por sua avó, expondo um retrato em vidro dela mesma sobre um blueprint (material fotossensível em cianotipia para planta arquitetônica), e comenta como a cianotipia já fazia parte do pensamento plástico da artista desde a infância. A história de Weil exemplifica o que traçamos até aqui nesta pesquisa, em relação a sobrevivência do médium, sua ressignificação e papel na construção estética do pensamento artístico e a conservação da técnica por parte dos artistas. Figura 25 – Website de Susan Weil. 36 Fonte: https://susanweil.com/blueprints/ - Acesso em 27 de out. de 2023 Weil e Rauschenberg estudaram juntos no Black Mountain College, na Carolina do Norte, EUA, em 1948 e foram alunos de Josef Albers, ex-professor da Bauhaus, radicado nos EUA. Weil afirma ter apresentado a cianotipia Rauschenberg, que proporcionou vários de seus experimentos que resultaram na sua série conjunta de “Blueprints”. “Nas férias de verão, Bob [Rauschenberg] ficou com minha família na pequena ilha deles. Em Connecticut pintamos muito e exploramos outras atividades criativas. Bob e eu conversamos sobre a diversão do meu projeto de infância. Fomos juntos a uma loja de materiais de arquitetura e compramos um rolo inteiro de papel para planta arquitetônica (blueprints) não exposto. Meu irmão mais novo, Jim, era a pessoa mais baixa de lá, então fizemos com que ele se deitasse no papel, cercado por algas, conchas e pedras, e fizemos uma planta. Consertamos com água e água oxigenada. Os azuis eram profundos e variados. Naquele verão fizemos muito mais.”(WEIL, S. 2019, tradução nossa). Figura 26 – “Sem título”, cianótipo de Robert Rauschenberg e Susan Weil, c.1950. https://susanweil.com/blueprints/ 37 Fonte: MoMA, Nova Iorque, EUA. Considerando o contato com Albers, o histórico da metodologia de ensino da Bauhaus, e o exemplo as obras desenvolvidas pelos ex-professores da escola alemã, como os fotogramas de Moholy-Nagy, que foram aplicadas por Albers no Black Mountain College,é notável a influência destes na série de “Blueprints” de Rauschenberg e Weil. “Albers incentivou os alunos a produzir trabalhos não com a intenção de criar arte, mas sim “para compartilhar experiências adquiridas através de experiências”, e foi essa a abordagem que levou Rauschenberg e Weil à criação de seus projetos.”(TROIANO, V. 2019, Pág. 102. tradução nossa). Rauschenberg e Weil, já casados, mudaram-se para Nova Iorque, onde continuaram explorando a cianotipia em seu atelier-apartamento. Segundo Weil, Rauschenberg “queria compartilhar a experiência da cianotipia” (WEIL, 2019) e entrou em contato com um representante do MoMA para expor uma de suas obras conjuntas na exposição de fotografia contemporânea. A exposição “Abstraction in Photography” 38 montou um mural com a obra de Weil e Rauschenberg, e contava com obras de Moholy-Nagy, Man Ray, Cartier-Bresson, Atget e vários outros. Figura 27 – Foto da exposição “Abstraction in Photography” no MoMA, em 1951. Fonte: MoMA, Nova Iorque, EUA. O processo artístico com cianotipia de Rauschenberg e Weil também foi registrado e publicado na revista americana Life em 1951. Figura 28 – Robert Rauschenberg e Susan Weil revelando uma planta em seu banheiro comunitário, em Nova Iorque, 1951. Foto de Wallace Kirkland. 39 Fonte: Wallace Kirkland/LIFE MAGAZINE. Rauschenberg continuou suas explorações artísticas com fotografia, porém em outros meios, como suas obras mais conhecidas em serigrafia, embora a cianotipia esteja presente como parte integrante de outras obras suas, como por exemplo uma réplica em miniatura do “Blueprint PAT” (o mesmo exposto no MoMA em 1951), em seu combine “Odalisk” (c.1955-58). Figura 29 – “Odalisk”, combine de Robert Rauschenberg, c.1955-58. 40 Fonte: Museu Ludwig, Colônia, Alemanha/Robert Rauschenberg Foundation Weil por sua vez continuou explorando a cianotipia, inclusive de forma híbrida,em colaboração com o artista José Betancourt, e suas obras constam tanto em seu website pessoal quanto em acervo de museus e galerias. Figura 30 – “Winter Weave”, por José Betancourt e Susan Weil, cianotipia, 2011. Fonte: The Blue Sky Gallery Collection;Portland Art Museum, Portland, EUA. 41 As obras de Rauschenberg e Weil são apenas um exemplo contemporâneo da cianotipia presente na arte, entretanto há vários outros coletivos ao redor do mundo que se dedicam a preservação, compartilhamento e ensino da cianotipia. O World Cyanotype Day é um exemplo desta comunidade: um evento anual, que ocorre sempre no último domingo de setembro, reúne e divulga obras feitas durante esse dia, fazendo uso do alcance da tecnologia para conectar artistas adeptos à cianotipia em todo mundo, também colaborando em exposições coletivas em centros de cultura e galeria para a exposição destas obras. No Brasil existem vários artistas que pesquisam e criam trabalhos em cianotipia, assim como grupos de pesquisa de fotografia alternativa em universidades públicas, como o grupo de extensão de processos fotográficos alternativos da UFMA; e grupos de pesquisa e ensino independentes, como o Lab Clube, no Rio de Janeiro. Somados também aos pesquisadores e artistas da fotografia expandida, que faz uso da cianotipia e outros processos alternativos históricos. A presença da cianotipia como médium contemporâneo depende da preservação de sua prática, não como uma arqueologia da fotografia, mas como objeto de pesquisa e experimentação que dá ao artista espaço, tempo, flexibilidade e plasticidade suficiente para agregar ao seu processo de formação artística. Figura 31 – Registro fotográfico feito pela profª. Drª Renata Pedrosa durante minha performance em tecido emulsionado com solução de cianotipia, no IA-Unesp, 2022. Fonte: Acervo da artista. 42 4 ADENDO: ANNA, LUCIA E SUSAN Na história e em todas as suas ramificações categóricas nesta pesquisa – história da arte e história da fotografia – existem muitas mulheres ocultas, cuidadosamente e arbitrariamente apagadas dos registros, arquivos, pesquisas e livros, como, por exemplo, a cientista escocesa Mary Sommerville, aqui citada como a inventora da antotipia, cujo crédito geralmente é atribuído a John Herschel, que também pesquisou sobre esta técnica. A cada uma delas caberia uma pesquisa inteira dedicada aos seus inventos, descobertas, artes e lutas, pois quanto mais escavamos, mais as encontramos e mais sentimos que há ainda muito o que descobrir. Portanto escrevo esse capítulo sobre aquelas que são pertinentes a minha pesquisa – ou seja, sem as quais essa pesquisa (dentre muitas outras) não existiria. Acredito, enquanto pesquisadora, artista e mulher, que este reconhecimento é necessário e suas narrativas também fazem parte da minha e da nossa como comunidade, se desejamos incentivar artistas e pesquisadores justos, sensivelmente atentos às histórias não contadas, as pessoas apagadas. Restaurar a devida atenção às essas mulheres e as suas obras, no nosso papel de preservação da história, pois é notável que certos apagamentos são orquestrados já em sua escrita. A preservação da arte e das técnicas também deve ser a preservação destas histórias para além da nota de rodapé. 4.1 ANNA Anna Atkins é, talvez – considerando esse dado entre os artistas e pesquisadores de arte e fotografia – o nome mais comum entre os três que nomeiam este adendo. Botânica que fez uso da cianotipia para catalogar algas britânicas, cujos exemplares, feitos inteiramente com essa técnica, hoje agregam acervos de grandes museus do norte global. Sendo próxima de John Herschel e de Henry Fox Talbot, foi uma das primeiras mulheres fotógrafas do que se tem registro no ocidente. “Photographs of British Algae: Cyanotype Impressions”, publicado independentemente por Anna Atkins em 1843 – um ano após a invenção da cianotipia por John Herschel – foi o primeiro livro fotograficamente ilustrado, porém muitas vezes não é um fato reconhecido pelo cunho científico da publicação e por não ter sido 43 comercializado, cedendo este título a obra de Henry Fox Talbot, “Pencil of Nature”, publicado um ano depois, em 1844. Embora ainda questionem o caráter artístico do livro de Anna Atkins, antes de publicá-lo Atkins já era ilustradora científica e gravurista reconhecida (WILLIAMS, E., 2014), e seu legado, a partir principalmente do livro em cianotipia, é inegável para artistas e fotógrafos, assim como para o conceito de livro de artista. Figura 32 – Carex (America), impressão em cianotipia, Anna Atkins, 1848. Fonte: George Eastman Museum, Rochester, EUA. Como Evan Williams coloca e como consta nesta pesquisa, Moholy-Nagy, em sua publicação sobre fotografia durante o período em que esteve na Bauhaus, frisa a importância da autonomia do meio fotográfico como objeto em si e tema primário da investigação fotográfica, sendo o uso principal da fotografia até então uma forma híbrida com a câmera obscura, e não como meio independente (WILLIAMS, E., 2014). “Devemos, no mínimo, considerar “Photographs of British Algæ: Cyanotype Impressions” como um vislumbre nascente da promessa que a fotografia 44 mantinha como uma forma autônoma de expressão tanto na escala da imagem única quanto no livro completo. (WILLIAMS, E., 2014, tradução nossa) 4.2 LUCIA Natural de Praga, Lucia Moholy (nascida Lucia Schulz) foi uma artista, fotógrafa, escritora e editora. Casada por um breve período com o húngaro László Moholy-Nagy, professor da Bauhaus na época e, posteriormente, diretor do Instituto de Design de Chicago (apelidado de “Nova Bauhaus”), sua parceria foi muito além dos laços conjugais, que na conservação de sua memória, restringem toda a identidade e trabalho de Lucia ao seu lado. Nas traduções dos diários pessoais de Lucia, feitos pela pesquisadora PhD do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, Meghan Forbes, é explicita a sua importância para a carreira artística e acadêmica de Moholy-Nagy. Lucia, por ser fluente em alemão, era co-autora e editora de todas as suas publicações na época - inclusive a citada aqui nesta pesquisa, que foi escrita durante seus anos na Bauhaus -, e, além disso, revelava os fotogramas e fotografias de Moholy no laboratório, inclusive criando os negativos, trabalho que hoje está sendo reconhecido aos poucos em artigos e pesquisas dedicados, legendas de acervos de museus onde obra suas e de Moholy-Nagy se encontram. “Numa introdução a um livro de fotografias de Lucia publicado em alemão, Rolf Sachsse descreve como ela “garantiu não só a execução prática do seu trabalho, mas também a formulação teórica das suas ideias”. Tal comentário representa Lúcia mais como a escritora fantasma de László do que como uma editora ou uma esposa obediente que datilografa os manuscritos do marido: a mulher que foi capaz de articular os seus pensamentos e transformá-los no tratado ao qual só ele está agora associado. Durante a sua vida, e também desde então, Lúcia raramente recebeu o devido crédito como colaboradora nas impressões fotográficas de László e nos famosos ensaios escritos durante os anos que passaram juntos na Bauhaus.” (FORBES, M. 2016, tradução nossa) Figura 33 e 34 – Retrato de László Moholy Nagy feita Lucia Moholy, c.1925, e Retrato de Lucia Moholy feita por László Moholy-Nagy, c. 1924. 45 . Fonte: Acervo do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, EUA. Quando a Bauhaus mudou sua sede para Dessau, em 1925, Lucia e László partiram para residir em seu campus. Lucia registrou em fotografias a construção dos prédios, assim como eles já finalizados, também fotografou várias obras de outros artistas residentes da Bauhaus, e retratou outras artistas mulheres, como Anni Albers e Florence Henri, além, claro, das fotografias que tirou de László. Não há registro de que ela foi contratada ou paga pelas fotos de divulgação que tirou dos prédios e das obras na Bauhaus, mas manteve os negativos, cobrando apenas pelo uso pontual. Figura 35 – Lucia Moholy. Edifício da oficina Bauhaus visto de baixo. Vista oblíqua.1926 46 Fonte: Acervo do MoMA, Nova Iorque, EUA. Após Lucia e László deixarem a Bauhaus em 1928, Lucia levou consigo seus negativos em vidro para Berlim. Porém, por conta da perseguição nazista, ela foi obrigada a buscar exílio em Londres em 1934, deixando seus 500 negativos e todos os seus outros pertences com seu então ex-marido, Moholy-Nagy. Schuldenfrei relata “Ao contrário de muitos dos seus colegas da Bauhaus, cujos papéis na escola se tornariam a base para suas carreiras pós-Bauhaus na Inglaterra, nos Estados Unidos e em outros lugares, Lucia Moholy foi forçada a começar mais ou menos do zero no exílio” (SCHULDENFREI, 2013). Foi graças ao seu desenvolvimento técnico e artístico com fotografia pré e pós Bauhaus que Lucia conseguiu se reerguer como fotógrafa independente, com muita dificuldade, considerando seu status de imigrante no Reino Unido. Foi nesse período de exílio que ela publicou o livro “Cem anos de Fotografia: 1839 – 1939”, cuja pesquisa e compilação ela já havia iniciado antes mesmo de entrar na Bauhaus. Lucia, em troca de cartas com seus ex-colegas da Bauhaus, foi informada que seus negativos estavam na casa de Gropius que havia sido bombardeada e destruída 47 na Alemanha. Porém, tanto as fotografias da Bauhaus, quanto os retratos de Moholy- Nagy, foram usados indiscriminadamente sem atribuição de crédito à Lucia. Nos anos 1950, após a confirmação da sobrevivência de seus negativos, ela tentou reavê-los, pedindo inúmeras vezes a Walter Gropius, que se recusava a enviá-los, afirmando que eles lhe eram “extremamente úteis” e que ele tinha direito sobre os negativos por tê-los conservado. “Esta usurpação de sua propriedade colocou uma pressão significativa sobre Moholy, uma mulher solteira tentando se sustentar; comentando mais tarde sobre o caso, ela escreve sobre ela “pobreza extrema” nestes anos. Recomeçando a sua busca pelos negativos ela lembrou que durante a guerra a sua “mente estava ocupada com outras preocupações mais agudas”. ‘Eu comecei a sentir a perda mais tarde, aumentando com a procura por palestras e artigos que precisavam de ilustração’”. (SCHULDENFREI, 2013, tradução nossa) Lucia Moholy conseguiu reaver apenas uma parte deles, cerca de 300 dos 500 negativos, em 1957, após negociações legais intermediadas por advogados, um longo desgaste financeiro e emocional, sentindo-se alienada de seus companheiros da Bauhaus e de seu legado. Schuldenfrei afirma a importância desses negativos na conservação da memória da Bauhaus “Além sua função como documentação dos produtos da Bauhaus, [as fotografias] ajudaram a definir o cenário artístico e padrões visuais para produtos modernos de sua época e posteriormente, e para o legado contínuo da própria Bauhaus” (SCHULDENFREI, 2013). Mesmo após ela recuperar seus negativos, muitos continuaram a ser usados sem o devido crédito, inclusive pelo próprio Walter Gropius. Um dos usos mais notáveis de suas fotos, levantado por Schuldenfrei, foi em uma exposição sobre a Bauhaus em 1938, no MoMA, que foi feita com auxílio de Gropius. Ela tentou obter retorno financeiro pelo uso das imagens, porém muitos se recusaram a compensá-la, entre eles o artista Marcel Breuer. As fotografias também foram reproduzidas e distribuídas em outros países, inclusive por Gropius, sem a autorização de Lucia. “Como não lhe foi creditado o seu papel essencial no trabalho colaborativo com László Moholy-Nagy, estas fotografias representam a única contribuição durante os anos da Bauhaus que pode ser atribuída apenas a Lucia Moholy. Essa falta de reconhecimento foi dolorosa. No meio do esforço para recuperá- los, ela escreveu: ‘Todos, exceto eu, usaram e admitem ter usado minhas fotografias [. . .] e muitas vezes também sem citar meu nome. Todos – exceto eu – obtiveram vantagens ao usar minhas fotografias, direta ou indiretamente, de diversas maneiras, seja em dinheiro ou prestígio, ou ambos’”. (SCHULDENFREI, 2013, tradução nossa) 48 Quando olhamos para a história de Lucia Moholy, é possível notar, com o peso dos relatos e de sua luta, o apagamento deliberado de uma artista da história de um instituto que ela ajudou a construir intelectualmente, enquanto co-autora e editora, artística e documentalmente, enquanto fotógrafa não creditada. Também podemos observar o esquecimento da existência do fotógrafo, enquanto o criador da imagem que olhamos, a aceitação passiva do anonimato do autor, sem ponderar sobre a quem pertence aquele olhar que penetramos ao observar aquela imagem. Mesmo ao encarar fotografias como documento, não se pode esquecer que esse pedaço de evidência histórica foi criado e vivido por outrem que achou necessário registrar, com sua própria estética, a imagem que reside nesse objeto. Atualmente, ao acessar acervos e artigos de museus que possuem obras de Lucia Moholy, podemos notar que existe um esforço, recente, de reparação e instauração dos devidos créditos, assim como o registro do copyright – lembrando que a maioria dos países têm leis de direito autoral, sendo a prática mais comum a proteção destes até 70 anos completos após a morte do autor. Embora o ideal seja que a atribuição e reconhecimento sejam feitos em vida, respeitando a existência, identidade e propriedade intelectual de artistas mesmo que ainda em formação. Figura 36 – Print de página do Acervo do Museu Metropolitano de Nova Iorque. Fonte: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/265279 Acesso em 25 de nov. de 2023 https://www.metmuseum.org/art/collection/search/265279 49 A obra apresentada no print acima, é um retrato de Lucia, tirado por László Moholy-Nagy.Na legenda da foto, lê-se: “Fotógrafa profissional, Lucia Moholy ensinou seu ofício ao marido e trabalhou de perto com ele, revelando e imprimindo suas fotos. Provavelmente ela imprimiu esta fotografia e certamente esteve envolvida no processo mais complexo de criação de uma versão negativa da mesma, permitindo uma maior exploração das qualidades gráficas e abstratas da imagem.” (Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, tradução nossa) 4.3 SUSAN Susan Weil e Robert Rauschenberg se conheceram na academia Julien em Paris e entraram juntos no Black Mountain College, na Carolina do Norte, nos EUA, para seguir estudando arte. Susan afirma ter apresentado a cianotipia para Rauschenberg, em 1949, durante as férias de verão da faculdade, embora haja uma insistência em atrelar os “Blueprints” da dupla somente à técnica do fotograma desenvolvida durante o período Bauhaus e repassada por Josef Albers, que foi seu professor na universidade. A cianotipia faz parte da história de Susan Weil, como ela conta em seu próprio website, ela os apresentou a Rauschenberg, e Rauschenberg, em suas palavras, os compartilhou com o mundo artístico, no MoMA e na revista Life. Após a separação do casal, Weil continuou pesquisando e criando obras utilizando a cianotipia, seguiu sua própria carreira artística e é possível ver o carinho com o qual ela guarda essa experiência com Rauschenberg. Em um artigo da revista norte-americana Artforum, o autor e crítico Michael Lobel, expõe a disparidade entre o retrato de Robert Rauschenberg e a presença de Susan Weil nas fotos da reportagem da revista Life. Lobel conversou diretamente com Weil sobre a experiência da reportagem em 1951 e a vida de jovens artistas no início da carreira. No entanto, Lobel revela que alguns dos negativos das fotos tiradas no dia da reportagem por Wallace Kirkland foram perdidos por terem sido rotulados como somente como “nus” e separados dos demais. “Se estas fotografias pretendiam documentar uma única série, também oferecem uma visão substancial sobre circunstâncias mais amplas, incluindo a abordagem de Weil e Rauschenberg à fotografia, à experimentação colaborativa e às pinturas que ambos estavam então a fazer. (LOBEL, M., 2016, tradução nossa) 50 É a partir dessas fotos recuperadas que Lobel narra e critica a reportagem da Life. Ele observa a presença de outras obras dos dois artistas, sem ser o cianótipo em processo de exposição retratado em primeiro plano e tenta reconstruir a partir das fotos a experiência, juntando com os relatos de Weil. Porém ele também observa o protagonismo de Rauschenberg em detrimento da presença de Weil, nos olhos de Kirkland, inclusive substituindo-a por suas obras. (LOBEL, 2016). “O posicionamento potencialmente deliberado das obras de Weil nas fotografias de Kirkland contrasta fortemente com a sua ausência física dela. Embora o texto que acompanha o artigo da Life descreva os projetos como um esforço colaborativo, e ambos os artistas tenham insistido neste ponto em anos posteriores, a maioria das fotografias de Kirkland apresentam Rauschenberg como o criador principal (...) Quando Weil aparece, ela é literalmente marginalizada: ela faz o papel de assistente, pronta com um balde enquanto Rauschenberg faz o trabalho de revelar um blueprint na parede do banheiro; ou ela aparece fora do quadro, uma mão desencarnada segurando uma lâmpada ou um par de pés calçados com mocassins. Isto pode ter sido em parte (ou em grande parte) obra de Kirkland, mas também reflete a cultura da época. As fotografias documentam, assim, de forma mais restrita a prática artística da dupla, ao mesmo tempo que atestam padrões mais amplos de marginalização das mulheres no mundo da arte, especialmente mulheres (...) casadas com artistas homens.”(LOBEL, M., 2016, tradução nossa) Lobel explicita nessa reportagem e usa-a de exemplo para a constante marginalização e deliberado apagamento das mulheres artistas e sua reportagem – que rendeu um agradecimento da própria Susan Weil publicado pela Artforum apenas dois volumes depois do artigo de Lobel – escancara, através do olhar do fotógrafo, essa ausência planejada. É possível notar nas palavras de Weil, tanto em sua resposta na Artforum quanto em seu website, que não há ressentimento – no lugar de apenas uma acusação, Lobel também procurou ouvir diretamente de Weil sobre a experiência com Rauschenberg, além de ressaltar a continuidade de seu trabalho com a cianotipia. É um momento de reparação que felizmente chega a ser feito em vida (diferente do caso de Lucia Moholy acima), e fica como exemplo, para nós, pesquisadores, que também criamos narrativas em nossas pesquisas, um recorte necessário sobre gênero e também a possibilidade de contribuirmos para a reparação nós mesmos, enquanto pesquisadores, narradores e artistas. 51 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A preservação e manutenção dos processos alternativos históricos é de suma importância não apenas por conservação da memória, feita por parte de museus, acervos, coleções e outras instituições, mas também por parte de artistas a permanência da prática e da pesquisa dessas técnicas sendo essencial para uma reflexão da própria subjetividade, do repertório de artista, da construção contínua de seu processo mental e plástico. As técnicas alternativas devolvem a plasticidade a fotografia, proporcionam a permanência da prática fotográfica como exploração, (re)descobrindo a desventura de explorar os mais variados possibilidades e resultados. Fotografia alternativa e sem câmera não se prende aos tecnicismos e atualizações de maquinários constantes, mas do mesmo desejo citado por Moholy-Nagy de criar e experimentar um meio que ainda está longe de seu esgotamento. O resgate, a releitura e a ressignificação, não somente do meio, mas também das histórias da arte e dos artistas, buscando desenterrar obras e pessoas apagadas também torna-se pilar para uma construção da arte no futuro. Continuar pesquisando, produzindo e conservando a arte e a memória daqueles que já contribuíram e ainda contribuem para nossa formação enquanto artistas é o caminho para uma prática artística mais livre e justa. 52 REFERÊNCIAS BARTHES, R. A Câmara Clara. Nova Fronteira, 2017. BENJAMIN, W. 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