LUÍS ERNESTO BARNABÉ LÍVIO E OS REIS ROMANOS: A DEFESA DE UMA IDENTIDADE ROMANA Assis - 2006 2 LUÍS ERNESTO BARNABÉ LÍVIO E OS REIS ROMANOS: A DEFESA DE UMA IDENTIDADE ROMANA Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis UNESP, para a obtenção do título de Mestre em História (Área de Conhecimento História e Sociedade). Orientador Dr. Ivan Esperança Rocha Assis - 2006 3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. Assis UNESP Barnabé, Luís Ernesto B259L Lívio e os Reis Romanos: a Defesa de uma Identidade Ro- mana / Luís Ernesto Barnabé. Assis, 2006 153 f. Dissertação de Mestrado Faculdade de Ciências e Letras de Assis Universidade Estadual Paulista. 1. Roma História Augusto, 30 A.C. 14 D.C. 2. Tito Lívio. 3. Roma História Reis, 753 -510 A.C. 4. História antiga. I. Título. CDD 937 4 LUÍS ERNESTO BARNABÉ LÍVIO E OS REIS ROMANOS: A DEFESA DE UMA IDENTIDADE ROMANA Data da Aprovação: 23/06/2006 BANCA EXAMINADORA Presidente e orientador: Dr. Ivan Esperança Rocha UNESP/Assis Segundo Examinador: Dra. Renata Lopes Biazotto Venturini UEM Terceiro Examinador: Dra. Andrea L. Dorini de Oliveira Carvalho Rossi UNESP/Assis 5 AGRADECIMENTOS Não seria capaz de chegar até aqui sem a colaboração de pessoas especiais que das mais diversas maneiras estiveram presentes nos momentos alegres, difíceis ou dificilmente alegres. Ao escrever esta dissertação percebi que pessoas podem ser tão importantes quanto os documentos. Inicialmente quero agradecer aos meus pais Lineu e Rita, minha irmã Ana, e meus avós Ernesto e Hermelinda, pelo apoio e pela paciência. A todas as amizades colhidas da época de Graduação ou do Mestrado, em especial a Raphael Sebrian pela força e amizade nos momentos mais importantes e sua mãe, a nossa tia Arlete, João Rafael Moraes de Oliveira, amigo e companheiro itatinguense na conquista das terras Assisenses, Fabiana Graciano, aos amigos do NEAM, Fernando Candido, Izabel Brito, Raquel Parmegiani, Tatiana Morya, Vander Soares, Vanessa Ziegler e Vanessa Fantacussi (minha inseparável companheira de Congressos). Ao professor e amigo Konrad Ludwig, pela ajuda com o abstract. Agradeço também aos amigos mestrandos e doutorandos do Projeto Bolsa Mestrado, Eli Petrechen, Marco Aguiar e Soeli Vieira Corrêa, pelas angústias compartilhadas, mas, sobretudo, pelos momentos felizes que convivemos juntos, nos projetos realizados em conjunto, nas Orientações Técnicas de História. Agradeço ainda a todos os funcionários da Diretoria de Ensino de Botucatu que nos apoiaram, e agora se tornaram amigos, Maneco, Renata, Cida, Alessandro, Marli e em especial à nossa Supervisora Dona Cida (In memorian). 6 Quero ainda agradecer de maneira especial a três pessoas que me muito incentivaram e colaboraram para a realização deste trabalho. Andréa L. D. Oliveira Rossi, pela força desde a elaboração do projeto e nos momentos mais caóticos. Juliana Bastos Marques que desde nosso primeiro encontro se mostrou muito receptiva, dando mostras de uma amizade duradoura. Por também ser iniciada em Lívio, disponibilizou os seus exemplares das obras mais importantes sobre o assunto, indispensáveis e únicos no Brasil. E Sílvia Márcia Siqueira, amiga desde meus primeiros dias de NEAM, pela força mesmo nos momentos em que a distância continental do nosso país foi superada via internet pela amizade, pelos churrascos em Assis e moquecas em Aracaju. Finalmente agradeço ao meu orientador Dr. Ivan Esperança Rocha, pela confiança depositada, pela paciência oriental e pelas ponderações nos momentos de reorganização e fechamento da pesquisa e do texto. Pelo exemplar comportamento ético e humano, espelho aos que se interessam pela relação de ensino-aprendizagem. Certamente, a pessoa a quem mais devo para a conclusão deste trabalho. Agradeço a todos os funcionários do Programa de Pós-Graduação da Unesp de Assis, a CAPES, pela bolsa nos primeiros meses da pesquisa, e a Secretaria de Estado de Educação de São Paulo, pela bolsa do Programa Bolsa Mestrado, sem as quais este trabalho não seria possível. 7 RESUMO No primeiro livro de sua obra, o historiador romano Lívio se dedica ao período lendário da fundação de Roma e ao período monárquico que se sucede. A publicação deste volume ocorre paralelamente aos primeiros anos do principado de Augusto. Ao caracterizar sua época como um período de decadência da sociedade, o historiador incita seus contemporâneos a recuperarem o respeito às antigas tradições através da sua história de Roma. Esta pesquisa visa analisar a construção das personagens históricas dos reis e identificar as influências do presente do historiador na sua composição, principalmente no que tange à defesa de um modelo de identidade romana calcado nas tradições do mos maiorum. PALAVRAS-CHAVE Roma; Tito Lívio; Augusto; Reis Romanos 8 ABSTRACT In his first book, the Roman historian Livy dedicates himself to the legendary period of the foundation of Rome and to the monarchic period that follows on. The publication of this volume takes place in the first years of Augustus principality. In characterizing his age as a period of society decadence, the historian incites his contemporaries to recover the respect for the old traditions through the history of Rome. This research aims to analyze the construction of historical characters of kings and identify the influences of the historian s present in its composition, especially regarding the defense of a model of Roman identity based on the traditions of the mos maiorum. KEY-WORDS Rome, Livy, Augustus, Roman Kings 9 Sumário Listas de abreviaturas.............................................................................................................................. 10 Introdução....................................................................................................................................................... 11 Capítulo I - Ab Urbe Condita: Historiografia Moderna e Historiografia Antiga..................... 19 1.1. Ab Urbe Condita: Historiografia Moderna...................................................................... 20 1.1.1. Ab Urbe Condita: breve história de uma obra de história............................................ 20 1.1.2. As Interpretações Historiográficas Modernas............................................................... 25 1.2. Ab Urbe Condita: Historiografia Antiga ........................................................................ 29 1.2.1. Influências da historiografia helenística....................................................................... 29 1.2.2. Os predecessores romanos: os analistas e Cícero......................................................... 47 1.2.3. Lívio.............................................................................................................................. 55 Capítulo II O desconforto da grandeza: conquistas no Mediterrâneo e concepções de decadência........................................................................................................................... 70 2.1. De Aníbal à morte de César: O enriquecimento romano e os novos arranjos da disputa pelo poder................................................................................................................................................ 71 2.2. Otávio e Antônio: o embate entre Apolo e Dionísio................................................................. 80 2.3. O declínio moral da res publica na literatura greco-latina....................................................... 84 Capítulo III - O relato dos reis e a constituição liviana da identidade romana......................... 95 3.1. Datação da Ab Urbe Condita e a relação da obra com Augusto......................................... 96 3.2. A rusticidade dos primeiros reis: elementos da identidade romana em Lívio.................. 106 3.3. Monarquia e tirania: os reis romanos e o presente de Lívio..................................................... 119 Considerações finais................................................................................................................................... 130 Referências bibliográficas........................................................................................................................ 138 Fontes Impressas.......................................................................................................................................... 139 Obras de Referência................................................................................................................................... 141 Bibliografia.................................................................................................................................................... 142 10 LISTA DE ABREVIATURAS AJPh American Journal of Philology BAGB Bulletin de l Association Guillaume Budé CB Classical Bulletin CP Classical Philology CQ Classical Quarterly CR Classical Review G&R Greece and Rome HSPh Harvard Studies in Classical Philology JRS Journal of Roman Studies LEC Les Études Classiques REA Revue des Études Anciennes RÉL Revue des Études Latines TAPA Transactions and Proceedings of American Philological Association Introdução 12 Uma obra que trata da fundação de Roma, no momento em que se espera que Roma seja re-fundada. Assim poderíamos sintetizar os objetivos de Lívio, ao apresentar ao público romano a sua história da cidade. Uma obra, que pela pretensa extensão, ocuparia praticamente toda a vida do historiador. Estaria Lívio imprimindo um pessimismo melancólico à história de Roma? Levando em consideração o pessimismo do prefácio ao último livro esta poderia ser uma interpretação válida, caso o último livro tratasse a respeito da morte do famoso orador e do iminente desfecho da instituição republicana, ou caso tratasse de um episódio isolado, ou seja, do fracasso de Druso em 9 d.C. Ab Urbe Condita percorreria a trajetória de uma cidade que se tornou o império mais vasto conhecido até então, mas que, como todos os outros impérios, segundo a visão polibiana, estaria condenado ao declínio e a ser sucedido por outro povo. Esta poderia ser uma maneira de interpretar a obra escrita por Lívio. No entanto, há dificuldades em aceitá-la. Entre os romanos, ou particularmente entre as camadas mais altas da sociedade, havia um sentimento bem difundido de predestinação a administrar o mundo, tal como se observa nos versos de Virgílio Tu regere imperio populos, Romane, memento. Haec tibi erunt artes, pacisque imponere morem. Parcere subiectis et debellare superbos ; ou ainda, segundo Cícero, não apenas a capacidade bélica fundamentaria a supremacia romana sobre os demais povos não vencemos os espanhóis por sermos mais, nem os gauleses pela força, nem os cartagineses pela astúcia, ou os gregos pelas técnicas , mas sobretudo a escrupulosa observância das relações com os deuses (a pietas e a religio). Se assim os romanos se viam, ou gostavam de serem vistos, este deve ser um ponto de partida. Mas deve- se ressaltar que se trata de uma imagem que foi construída ao longo de séculos e que serviu para justificar o imperialismo romano. 13 Assim, outra referência importante é constatar que as conquistas romanas proporcionaram o enriquecimento do setor da sociedade que mantinha os vínculos mais estreitos com a administração do Estado romano, mas que este mesmo enriquecimento suscitava freqüentes comparações que os diferenciava moralmente de seus antepassados. Eles acreditavam que, enquanto seus ancestrais aspiravam à glória por meio de do serviço de Estado, os contemporâneos tinham colocado a sua própria ambição acima do bem público. O declínio da tradicional moralidade era sentido cada vez mais com o aumento da riqueza e poder de Roma. As enormes oportunidades de autopromoções formularam o seguinte dilema: se os interesses particulares prevalecessem, Roma perderia seu Império, pois não teria nem homens nem recursos para controlar o vasto território: o consenso era essencial. Mas se os membros da classe governante se tornassem cada vez mais poderosos que os outros, o sistema oligárquico da república poderia ser substituído por um sistema que não beneficiaria a classe governante como um todo. Não por acaso, o pensamento romano valorizava a dedicação ao coletivo muito mais que ao individual, e não apenas com discursos vazios no fórum romano, mas com legislação restritiva ao comportamento dos cidadãos: as leis suntuárias para limitar os excessos, leis de exibição para verificar a cobiça e abusos relacionados por oficiais romanos, leis eleitorais, para prevenir os homens das compras de votos para os cargos. No entanto, certas mudanças, tal como as que fizeram generais responsáveis pelo butim, ou taxação de cidadãos para que o estado pudesse prover o sustento de veteranos, ou criação de forças policiais que pudessem controlar a política pela violência, não estavam em relação direta com a tradição da independência aristocrática. Era mais fácil para o senado 14 desistir de uma província como o Egito do que fazer com que generais que se comportavam como reis quando voltavam de campanhas, entrassem na linha (GRIFFIN, 1995, p.171). A compreensão de todo este processo em que a assombrosa expansão do imperium romano culminaria com décadas de conflitos entre os detentores dos direitos administrativos depende de um breve retrospecto das conquistas romanas e suas implicações na dinâmica da auto-gestão do estado romano. Para tanto, a reconstrução histórica desde as primeiras conquistas romanas no Mediterrâneo é necessária, pois garantiu aos romanos, além do butim dos povos conquistados, inúmeras vantagens comerciais e o enriquecimento dos cidadãos com acesso ao cursus honorum1. Este período, que se estende da vitória sobre Aníbal até a vitória de Otávio contra Antonio, é também conhecido como o período de decadência da República Romana. As novas configurações que se apresentam, a partir do século II, seriam observadas por autores romanos e estrangeiros como sinais de um processo de decadência dos costumes e da religião o abandono das práticas tradicionais traz como conseqüência a omissão dos deuses na proteção da cidade. O expoente deste processo decadente são os conflitos entre poderosos generais romanos, com exércitos numerosos, que disputam o poder de um império rico em recursos. Estar no comando de Roma significa gozar dos benefícios que a administração de um conjunto territórios, nações, reinos e cidades que se estendem por praticamente toda a bacia do Mediterrâneo. Nestes conflitos, a população da península Itálica é a que mais sofre com os 1 O cursus honorum (curso honorífico ou caminho das honras) designava o percurso seqüencial das magistraturas exercidas pelos políticos da Antiga Roma. Para se aceder a estes cargos era necessário, por exemplo, ter uma certa idade: questura (idade mínima de 31 anos); edilidade (37 anos); pretura (40 anos); consulado (43 anos). Verbete disponível em: . Acesso em 10 maio 2006. http://www.hostgold.com.br/hospedagemgem_sites/ 15 combates. A paz alcançada, no entanto, elimina frentes de oposição e a busca pela unidade ao redor da restauração da res publica conserva Augusto no poder. Quando se lê o prefácio de Lívio, a primeira impressão que se tem é de um pessimismo diante da sociedade romana contemporânea. Lívio lamenta que Roma dobrou-se diante da sua grandeza (Pref.4), que o espetáculo dos males de sua época o estimulam a procurar refúgio nos primeiros tempos da história da cidade (pref.5), que depois de ter crescido o império, paulatinamente desabaram os princípios morais, costumes, e na época atual não é possível suportar os vícios nem seus remédios (pref. 8-9). E, finalmente, afirma que Roma foi invadida pela cobiça e pelo luxo (pref.11-12). Lívio não está sozinho quando tece tais considerações. O clima de pessimismo para o período pode ser notado também em Salústio, Horácio, Virgílio, ou mesmo Augusto. No caso deste último há de se considerar, no entanto, que muito deste painel decadente tinha como propósito valorizar suas reformas2. Lívio agiria diferente? Teria se dedicado a um longo trabalho para comprovar que a história dos romanos estava chegando ao fim? Ou estaria procurando na história personagens exemplares, seja por atitudes positivas ou negativas, para ensinar seus contemporâneos a utilizar a história como ferramenta para o presente; ou então fatos ocorridos e opções tomadas que poderiam explicar o porquê das guerras civis? Outro ponto importante. Ao escrever uma histórica, um padrão deve ser seguido. Qual a forma a ser utilizada? Analítica ou monográfica, ou ainda um relato da fundação das cidades? Quais itens são incluídos, quais evitados, quais são seus valores na política e na 2 Em Res Gestae Augusto se vangloria das inúmeras realizações que promoveu para a melhoria de Roma, inclusive no campo moral e religioso. 16 guerra? A cultura romana colocou considerável pressão sobre os intelectuais em todos os campos para mostrar que seus trabalhos deviam possuir uma justificativa e aplicação prática: pois a literatura era tomada com seriedade e tinha que ter uma utilidade. Qual o uso da história em Roma? Estes historiadores levantaram a questão de definição da própria Roma. A história de Roma era essencialmente a história de uma cidade que tendo um grande crescimento, incluiu em suas fronteiras a maioria do mundo conhecido, o que resultou no influxo de pessoas, idiomas, idéias, e que teria criado problemas de auto-representação. O que significa ser romano? Um tema mais específico, especialmente no que se refere aos historiadores, que eram homens engajados na política e no exército, era a vida publica. Política e guerra continuam a ser o ponto central, sendo comum a emergência de indivíduos que assumem papéis de destaque e posições de liderança. Este é um aspecto emergente não apenas na obra histórica de Lívio, mas também de Salústio e Tácito. Normalmente períodos de profundas mudanças são concebidos como períodos de decadência, e especificamente no caso do final da república se faz necessário neste processo de mudança isolar a falência do sistema republicano da decadência moral proclamada pelos escritores romanos. Atualmente é consenso entre os historiadores o fato de que a instituição republicana não mais se adequava ao novo cenário do mundo romano. Mas isso não quer dizer que a decadência (ou deficiência) da instituição político-administrativa-militar se reflita num processo de decadência da sociedade como um todo. Mais que definir o período como decadente, é necessário relativizar a decadência, procurando se entender quais motivos levaram os escritores da época a deixar sua opinião escrita, levando-se também em consideração o fato de estes mesmos escritores não se perfilarem de maneira homogênea. 17 Seria possível estabelecer relações entre as intenções de Lívio de uma história total de Roma com o presente desconfortante para os romanos, repletos de guerras civis, proscrições, e tudo mais relacionado com a frenética busca pela permanência no poder? O capítulo III tem por intenção analisar os motivos de Lívio para esta guinada ao passado mais remoto possível da história romana, procurando entender como passado e presente se articulam. Nesse sentido, não é demais lembrar que no prefácio de sua obra Lívio menciona a discrepância que pode haver entre ele e seu público, uma vez que este último está mais interessado no presente, enquanto que o historiador busca no passado um refúgio . O que une os capítulos II e III, e conseqüentemente toda a argumentação desta pesquisa, é o parágrafo 9 do prefácio do livro I de Lívio. O historiador de Pádua não quer apenas lamentar-se diante da decadência de Roma e as transformações ocorridas com a sua expansão; mas ao contrário deseja que a sua história seja considerada como exemplo para a restauração dos valores romanos. O pessimismo impresso no prefácio, e seu tom de posso pela história oferecer os melhores exemplos a serem imitados demarcam claramente uma posição tradicionalista de Lívio. Esta é uma questão que ainda fica por se resolver, dado que Lívio não é um membro das famílias tradicionais romanas: por que se propõe a defender a tradição? Tentaremos propor algumas possibilidades de entendimento desta questão.. Enfim, o que se percebe da obra liviana é que, o lamento acerca da decadência romana, não evoca simplesmente a disputa corrente entre dois modelos de civilização o itálico e o oriental mas a maneira como se estabelecia na sociedade da época de Lívio a preocupação por parte de segmentos da elite romana em se valer das diferenças culturais a fim de se estabelecer fronteiras. O maior exemplo disso, como se pretende demonstrar neste trabalho 18 pode ser encontrado na caracterização ambígua, às vezes contraditória, presente na representação da figura dos reis e toda a sua carga mitológica. Capítulo I Ab Urbe Condita: Historiografia Moderna e Historiografia Antiga 20 1.1. Ab Urbe Condita: Historiografia Moderna 1.1.1. Ab Urbe Condita: breve história de uma obra de história Segundo a tradição, a História de Roma de Lívio é composta por 142 livros, dos quais apenas 35 chegaram até os dias de hoje. O objetivo de Lívio era recontar a história de Roma, desde a sua fundação por Rômulo (datada pela historiografia moderna em 753 a.C.) até os seus dias atuais. Além dos 35 livros, existem Sumários de toda a obra (Periochae Omnium Librorum) copiados de um epítome3 composto no século I d.C. que chegaram quase inteiramente, excluindo-se os dos livros 136 e 137. Ao que parece Lívio chamou sua obra simplesmente de Ab Urbe Condita, Desde a Fundação da Cidade tal como Tácito havia chamado seus Anais de Ab Excessu Divi Augusti A partir da Morte do Divino Augusto. Além do fato de ter dedicado grande parte de sua vida na composição desta obra monumental, são poucas as informações que indicam com maior precisão aspectos da vida do historiador. Seguindo a tradição, encontrada em Jerônimo, supõe-se que Lívio tenha nascido em 59 a.C. em Pádua, cidade localizada na região norte da Itália. Nesta época, o domínio de César sobre o Estado romano estava em pleno curso, e o território da Gália Cisalpina era considerado como estratégico para assentamentos de veteranos do exército, tal como ocorreria com a propriedade de Virgílio décadas depois, em Mântua, não muito distante de Pádua. Em 49 a.C. Pádua torna-se municipalidade romana, e seus habitantes são incorporados à gens Fábia. Era um lugar de grande comércio, especialmente têxtil e durante o governo de Augusto 3 Devido a extensão e interesse pela Ab Urbe Condita, a partir do século II d.C. surgiram epítomes (resumos). Entre os mais famosos destacamos a obra de Floro, que, contudo, utiliza outras obras além da Ab Urbe Condita; epítome de Granio Liciniano (séc. II ou III d.C.), descoberto num papiro no British Museum e os fornecidos pelo papiro de Oxirrinco. Destes epítomes é que surgiram os periochae que conhecemos hoje. 21 talvez tenha sido uma das cidades mais ricas na Itália, e que contrastava com Roma pelas simples maneiras de seus habitantes e a sua estrita moralidade diante da capital cosmopolita. Plínio (Epist. 1.14.6) ao escrever sobre uma certa Sarrana Procula, de Pádua: Você sabe as maneiras do lugar; Sarrana é modelo de rigidez até para os paduanos. O motivo que levou Lívio a deixar Pádua é incerto, mas é provável que seus gostos e caráter tenham sempre sido influenciados pelas tradições de sua cidade natal. Ao que parece, nunca exerceu cargo público, e se dedicou inteiramente à literatura. Sêneca diz que ele escreveu diálogos que alguém poderia classificar entre o gênero histórico ou filosófico. Quintiliano cita uma carta de Lívio ao seu filho, recomendando-o a praticar oratória e ler Cícero e Demóstenes. (Quint. 10, 1. 39). Da vida social, sabe-se apenas que gozava da amizade de Augusto e provavelmente desde que chegou a Roma. Mas entre as certezas há somente o fato de que fora preceptor do futuro imperador Cláudio (nascido em 9 a.C). Lívio morreu três anos após Augusto, aos 76 anos de idade. Jerônimo diz que ele morreu em Pádua, mas não se sabe estava lá apenas de passagem ou se havia voltado para sua terra natal. Sua obra pode ser dividida em grandes blocos de cinco ou dez livros. Há prefácios no início de determinados livros, considerados como um artifício para definir a transição entre um tema e outro de sua obra. No livro 2, que inicia com um breve prefácio exaltando a liberdade conquistada com a expulsão dos reis. O prefácio do livro 5 valoriza a pietas enquanto que o prefácio do livro VI, assim como o prefácio do livro 31, fala em renascimento dos romanos. 22 Este e outros artifícios são considerados como estratégias mnemônicas (KRAUS & WOODMAN, 1997, p. 59) 4. O fato de os livros se constituírem em conjuntos temáticos acena para a idéia que Lívio, ao menos para os primeiros livros, tencionava realizar uma divisão estruturada. É o que se observa, por exemplo, no Livro I que cobre o período monárquico (753-509) e nos livros 2- 5 (509-390) que cobrem o período da constituição da república até os conflitos com os gauleses, que incendiaram e saquearam Roma. O intervalo entre os livros 6 - 10 (389-292) narra a expansão romana sobre a Itália central e sul, subjugando militarmente etruscos, latinos e samnitas, além dos primeiros conflitos entre patrícios e plebeus. As informações sobre o assunto tratado no intervalo dos livros 11-20 (290-220) provêm dos Periochae, uma vez que estes livros estão perdidos. Neles se retratam conflitos com os gregos do sul da Itália e a I Guerra Púnica. Os livros 21 25 e 26 30 percorrem a II Guerra Púnica (218-201). Nos cinco livros iniciais descrevem-se reveses sofridos por Roma e, a partir do livro 26, inicia a recuperação militar sob o comando de Cipião; a vitória sobre Aníbal é descrita no livro 30. Os livros 31 35 descrevem a II Guerra Macedônica, os livros 36 40 as operações militares na Grécia, consolidando a influência romana na região; e finalmente os livros 41 45 tratam especialmente da III Guerra Macedônica (MELLOR, 1999, p.53-54). Estes últimos conjuntos de livros enfocam os impactos negativos do movimento expansionista sobre a sociedade romana. Aqui Lívio enfoca o tema da luxúria e ferocidade (MELLOR, 1999, p. 59). 4 Essa discussão será melhor apresentada adiante, na segunda parte deste capítulo, quando formos tratar da influência da retórica em Lívio. 23 Quanto mais perto a narrativa chega do presente de Lívio, mais detalhada e cronológica se torna sua obra. Enquanto o Livro I, por exemplo, cobre cerca de 300 anos, os livros a partir da terceira e quarta décadas passam a trazer relatos quase que anuais, seguindo a características dos analistas romanos. O próprio Lívio afirma em 31, 1, que para tratar dos sessenta e três anos de duração das duas Guerras Púnicas, foram necessários o mesmo número de livros, quinze, para os 488 anos que compreendem o período desde a fundação da cidade até o consulado de Ápio Cláudio. Isso pode ser justificável pela maior disponibilidade de fontes para o período posterior ao saque e incêndio gaulês em 390 a.C., como é apresentado no prefácio do livro VI, quando Lívio acena para a possibilidade de se apoiar em documentos e monumentos públicos ou privados, fato que o deixa mais seguro. A questão do ponto final da obra de Lívio é controversa. A pretensão inicial de Lívio era concluí-la com a morte de Cícero, em 43 a.C., e assim totalizar 120 livros, mas segundo Kraus & Woodman (1997, p.54) e Mellor (1999, p.55) esta idéia teria sido modificada para incluir o triunfo e o reinado de Augusto até a sua morte (livros 121-142)5. Canfora (1993, p.177) defende que há uma possibilidade de que a obra tenha ido além do próprio livro 142. O que se sabe com certeza é que o sucesso da obra foi imediato e duradouro. Lívio compartilhava com Virgílio a honra de ser o mais lido dos escritores latinos. O único comentário que destoa do coro de admiração é o de Asinio Polião, que reprovava Lívio pela sua Patavinitas6. Plínio cita um jovem de Cádiz que fez questão de conhecer Lívio pessoalmente. Para Sêneca, o Velho, Lívio foi o mais puro de todos os grandes talentos 5 Embora este livro esteja perdido, os elogios que Lívio proferiu a Cícero são mencionados por Sêneca, o Velho (MELLOR, 1999, p.61) 6 Para mais detalhes, ver artigo de Kurt Latte Livy´s Patavinitas de 1940. 24 latinos. Tácito também admirava Lívio, considerando-o o mais eloqüente dos antigos historiadores. Quintiliano comparou-o com Heródoto, e mencionou a brilhante fascinação de sua narrativa, sua clareza, e sua expressiva eloqüência de seus discursos. Também destacou sua representação das emoções, particularmente, a de nobreza, na qual ele afirma que Lívio não possuía concorrentes. A extensão da obra de Lívio certamente foi uma das causas que impediram sua completa conservação. Segundo a tradição, Marcial havia afirmado que seria necessária toda uma biblioteca para armazená-la. Apesar do exagero, quer-se dar uma idéia da dimensão da obra de Lívio. Além do problema físico, Ab Urbe Condita sofreu problemas de ordem ideológica. Calígula ordenara sua exclusão de todas as bibliotecas públicas (Suetônio Calígula, 34), enquanto Domiciano encomendara o assassinato de Metius Pomposianus, que em seus discursos utilizava as idéias do historiador paduano (Suetônio Domiciano 10.3, apud OLGIVIE, 1971, p.xi). A Obra de Lívio tornou-se a principal fonte secundária para os escritores posteriores comporem seus materiais. Entre os autores que se apoiaram em Lívio estão Luciano, Silius Italicus, Asconius, Valerius Maximus, Floro, e os gregos Dião Cássio e Plutarco. Durante o papado de Gregório I (590-604), muitos exemplares da Ab Urbe Condita foram destruídos por conterem e propagarem superstições e prodígios pagãos (CIRIBELLI, 1978; p.31). Pouco lido na Idade Média, foi novamente admirado no renascimento. Dante, que o usou no segundo livro De Monarchia e na Divina Commedia: Lívio (...) Che non erra (Inferno 28,12). Os italianos do renascimento se interessaram bastante por Lívio. Petrarca 25 esperava encontrar as décadas perdidas de Lívio, assim como o Papa Nicolau V. A partir da edição dos livros 21-26 por Laurentius Valla em 1469, inauguraram-se os estudos críticos do texto. Pouco antes, em Florença, Maquiavel publicou os famosos Discursos sobre a primeira década de Lívio (escritos em 1517 e publicados em 1531). 1.1.2. As Interpretações Historiográficas Modernas. Os estudos acerca de Lívio se intensificaram a partir do século XIX. Os primeiros esforços se detiveram no estabelecimento de um texto a partir da comparação dos manuscritos sobreviventes e recolhidos pelas mais diversas universidades européias. Um segundo passo no estudo da obra de Lívio se deu no campo filológico, visando principalmente estabelecer os aspectos de sua latinidade e de seu estilo. A Alemanha se consagrou como o grande centro das pesquisas, principalmente a escola da Quellenforschung, cujos estudos se dedicavam sistematicamente em estabelecer quais fontes literárias foram utilizadas por Lívio em sua narrativa. As referências aos diversos analistas romanos foram apontadas, e em alguns casos até se estabeleceu comparações entre os textos destes autores e Lívio. Outro enfoque dado pela escola era a leitura crítica do texto de Lívio, procurando apontar suas inconsistências ou anomalias, e isso acabou por constituir um senso comum de que Lívio era indiferente em alguns pontos, falho em outros e isso fazia com que seu texto fosse caracterizado como uma cópia mecânica de outras fontes escritas. Considera-se Lívio como extremamente dependente de suas fontes, a ponto de confiar e seguir apenas uma de cada vez, e quando se via forçado a alternar entre muitas ocorriam confusões cronológicas, contradições, repetição da mesma história, referências cruzadas. Tal 26 consideração tinha gerado um consenso de que não haveria um critério de organização da obra liviana. No estudo introdutório da edição da Loeb Classical, assinado por Foster, escrito em 1919 Lívio é caracterizado como deficiente em algumas das mais essenciais qualificações para a produção de uma história de Roma como a que satisfaz os critérios de nossa época. Nem bem informado nem especialmente interessado em política ou na arte da guerra, e faltando até conhecimento prático de questões constitucionais como os ganhos de seus contemporâneos por participarem nos negócios do Estado (p.xxvi). E as críticas de Foster ao historiador paduano continuam. Reproduzindo as críticas correntes na época, acusa-o de ter a mente fundamentalmente a-crítica, e sem habilidade o suficiente para submeter suas fontes a um juízo como escolher as mais seguras e descartar as menos confiáveis. Acusa-o ainda de indiferença incrível diante de documentos originais (p.xxvii). Assim, recomenda que o estudante de história deva usar Lívio com cuidado. Em sua análise sobre a trajetória das pesquisas de Lívio, Miles (1998, p.1-2) aponta um segundo grupo de estudiosos que ele designa por Escola de Interpretação Retórico-Temática, cujo mais eminente representante foi Erich Burck, com uma outra percepção do teor da obra de Lívio. Esta Escola defende a excelência literária da obra, considerando-a um compêndio de 27 histórias tradicionais, valores e atitudes, mas não se dá conta dos paradoxos e contradições que caracterizam o período de transição da Republica para o Império romano (MILES, 1997, p.3). Colingwood (1946) também foi uma importante referência para os estudiosos de Lívio. Em seu trabalho A Idéia de História se ocupou em apontar as deficiências de Lívio enquanto historiador. O trabalho de Lívio consistiu em reunir os documentos tradicionais e em fundi-los numa única narrativa contínua a história de Roma. Colingwwod entende que a obra de Lívio representa uma, não diversas histórias, uma história cuja heroína é Roma. A geração seguinte de estudiosos britânicos, encabeçada pelos estudiosos Walsh7, McDonald8, Briscoe9, Ogilvie10, tendeu a tomar duas direções: consolidação e compreensão do texto de Lívio e a compreensão de particularidades (LUCE, 1977, p. xvi). Nas palavras de Walsh: depois de mais de cem anos de pesquisa sistemática (encabeçada pelos pesquisadores alemães), as fronteiras entre certezas razoáveis e especulações ingênuas estão agora bem definidas (1961, p.114). Mas o estudo mais revolucionário, considerado o divisor de águas pela historiografia atual deve-se a T. J. Luce, Livy, The Composition of His History, de 1977. A partir de um artigo publicado anteriormente, em 1965, o estudioso inglês iniciou um cuidadoso estudo com o mérito de dialogar com a tradição dos estudos anteriores e, tal como seus contemporâneos já esboçavam, passa a elaborar novos procedimentos na análise da relação de Lívio com suas fontes. Luce considerava que Lívio não seria apenas como estilista, narrador ou retórico, como 7 Seus trabalhos começaram a ser publicados com um artigo em 1955, Livy's Preface and the Distortion of History; outro artigo de 1958, Livy and Stoicism e com a publicação do livro em 1961, Livy: Historical Aims and Methods. E finalmente Livy, de 1974, um encarte especial do periódico Greece and Rome. Há também a tradução comentada de 1990, Livy, Book XXXVI-Book XL. 8 Publicou os artigos The Style of Livy em 1957, e Theme and Style in Roman Historiography em 1975. 9 Publicou traduções críticas: A Commentary on Livy Books XXXI-XXXIII em 1973; e em 1981 A Commentary on Livy Books XXXIV-XXXVII 10 Também publicou tradução crítica A Commentary on Livy Books 1-5, de 1965. 28 pregavam os estudiosos alemães. Mais que isso, Lívio deveria ser visto como um escritor preocupado com a produção de uma história digna e estimulante sobre seu povo, que poderia rivalizar com os grandes historiadores gregos (1977, p. xix). Ao longo dos sete capítulos Luce desmistifica a estrutura da Ab Urbe Condita enfatizando que a contribuição pessoal do historiador para a sua história tem sido julgada sempre inteiramente em termos de cenas e episódios individuais. Mas ao contrário, quando (Lívio) avança sobre suas fontes, as conduz para uma boa escrita e excitante leitura; ele remodela e recolore o material de acordo com seus interesses e predileções. Eu acredito que ele tinha o controle das fontes, mais que uma mera vítima delas (p. xxv). Luce enfatiza que o caráter romano para Lívio é historicamente determinado, ao contrário do que sustentava a longa tradição de pesquisadores, principalmente por meio das afirmações de Colingwood, para quem Lívio considerava Roma como uma substância, imutável e eterna, dada como completa desde o seu início" (1946, 43-44). A obra de Lívio não seria mais encarada como um aglomerado de fontes de segunda mão e reprodutora inocente da tradição recorrente. Passa-se então a levar em consideração que a tradição romana ao ser manuseada por Lívio adquire um perfil original, que dialoga com a tradição estabelecida, mas que também ao se referir a esta tradição imputa-lhe questões específicas de sua época. Novos elementos que comprovaram a especificidade e complexidade na obra de Lívio surgiram ao longo da década de 90. Com relação à religião, por exemplo, Levene demonstra que a abordagem da religião não pode ser vista como homogênea ao longo das décadas sobreviventes da obra, possuindo sim um aspecto religioso distinto que não pode ser 29 determinado pelo assunto em questão. Exemplifica pela comparação entre as décadas. Na quarta década Lívio demonstra espontaneidade para alterar radicalmente seu tratamento normal do divino quando o completo objetivo da sua narrativa faz isso apropriado para fazer então. Ao se examinar a religião romana no começo ou no fim da república no contexto dos eventos políticos e militares, deve-se tomar cuidado ao lançar conclusões de justaposições significantes entre o posterior e, relatos do sobrenatural ou atos de piedade. Ou mais genericamente, o fato de a religião ser relacionada a um grande papel de narrativas na terceira e quinta décadas do que usualmente na quarta década poderia ser assumido para refletir o relativo significado da religião nos eventos políticos e militares dos respectivos períodos. A religião em Lívio não é uma entidade singular e monolítica. (1991, p.141-148). Segundo Miles, Lívio foi um produto de sua própria época e circunstâncias pessoais. Sua obra é uma combinação de elementos da tradição romana, do pensamento helenístico e da ideologia de Augusto. Unidos elas contribuem para construir uma narrativa geralmente original, composta por muitas camadas complexas e sutis (1998, p.99). 1.2. Ab Urbe Condita: Historiografia Antiga 1.2.1. Influências da historiografia helenística A prática de se escrever obras de História em Roma, notadamente a partir de Fábio Píctor se apresentam como influência do processo de helenização da cultura romana a partir do século III a.C. E as primeiras composições romanas, tal como no caso das obras de 30 Fábio Píctor e Névio se deram em grego. Havia entre os romanos a preocupação em interagir com os territórios influenciados pelo helenismo11, de tal modo que como os romanos sempre fizeram muito bem a integração cultural acabou por revelar um fascínio romano pela cultura literária grega abrangeu desde a poesia, ao teatro, as artes oratórias, a filosofia e a história. Como diria Horácio, A Grécia vencida submeteu o vencedor e introduziu artes no Lácio agreste (Ep. 2, 1, 156). Em decorrência da influência da historiografia grega em Roma, dois temas que se salientarão no momento de contato com a obra de Lívio podem ser apontados e por isso devem ser melhor explorados a partir de agora; estes dois temas acabam por se entrelaçar e definem bem as preocupações dos historiadores gregos a partir de Heródoto e Tucídides: o primeiro remete à preocupação em deixar em evidência a oposição entre os mitos, o fantástico e o racional, apoiado em evidências12; e o segundo ao interesse e à preocupação pela ordenação 11 Para mais detalhes sobre o posicionamento romano diante do influxo cultural grego, ver o capítulo The Appeal for Hellas de E. S. Gruen, que discute as ambigüidades na relação que os romanos estabeleceram com o helenismo a partir do século III a.C. Para o autor, entre as classes altas desde o século II havia uma imagem positiva acerca do Helenismo, mas que não deve ser vista de maneira simplificada, pois a aceitabilidade do helenismo estaria subordinada aos objetivos nacionais romanos. Isso pode ser demonstrado pela imposição do latim nas relações oficiais e no aparecimento de legislações estrangeiras diante do senado. Epistolas, decretos e outros documentos senatoriais dessa ordem demonstram a familiaridade dos romanos com as convenções helênicas. Além disso, muitos romanos com destaque social se tornaram abertamente devotos do helenismo, e a formação dos jovens em grego servia como base para projeção social. Por outro lado, a ostensiva resistência ao helenismo, mencionadas principalmente nos episódios de repressão a Bacanália e na destruição dos livros de Pitágoras devem ser entendidas como medida de controle da religião pelas autoridades romanas, bem como a subordinação de elementos do helenismo aos valores romanos, tal como a expulsão dos filósofos de Roma não objetivava controlar seus discípulos, mas assegurar à comunidade romana o papel de custódia das tradições romanas. Do mesmo modo, o estereotipo dos gregos atuam no mesmo sentido, ou seja, de acentuar as qualidades romanas e o mos maiorum. Assim o helenismo servia aos romanos de duas maneiras: enriqueciam sua herança cultural e sobre-valorizava seus méritos; tornavam-se herdeiros de uma cultura que apesar de suas qualidades, foi conquistada e submetida (p.269-271). 12 Deve-se dar atenção às sugestões de M. Foucault, em O que é um autor? (1992), debate que desde a época desta sua fala, 1969, e até os dias de hoje, fornece parâmetros aos historiadores para a compreensão da mobilidade de tradições discursivas. Foucault enfoca o papel do autor: a) Em sua relação com as práticas discursivas, com os propósitos de dessacralização do autor (p.34); b) Que o nome de um autor traz consigo um peso nos discursos, pois assegura a caracterização de um certo modo de ser do discurso e não pode ser relacionado com um indivíduo real e exterior que o produziu (p.45). Tal processo é designado função autor; 31 cronológica, como demonstração de rigor científico do relato histórico a ser trabalhado (no caso a história romana desde sua fundação). É certo que Heródoto e Tucídides inauguraram métodos historiográficos, mas não se deve omitir a relação que havia entre suas escolhas e a tradição racional da polis grega, e a tradição homérica. No campo da história, os gregos foram os primeiros a desenvolver alguma noção de métodos de ordenação de eventos do passado. Assim, o principal e inovador critério de que se valiam era a distinção entre fato e fantasia. Estes procedimentos devem ser situados entre os séculos VI e V a.C., quando a sociedade grega, sob a aparição da cidade isonômica, suscitou em alguns, principalmente médicos, artistas e filósofos da natureza, questionamentos a respeito da ordem do mundo; algo que se opunha à prática comum de compreensão do mundo com a finalidade de manutenção. Como afirma Hartog: a audácia de perguntar, de discutir, e de confrontar pontos de vista, encontram-na eles nessa experiência política inédita que faz comunidades estritas afirmarem a legitimidade de se auto-instruírem, sem que o céu desabasse sobre suas cabeças (2001, p.17). Segundo Momigliano, um ponto de referência que deve ser tomado quando se trata da crítica ao mito encontra-se na figura de Xenófanes de Cófolon (aproximadamente 560-470 a.C.), que ousando não acreditar nos deuses tradicionais c) No interior desse processo da função autor, há aqueles cuja produção não se restringiu somente a livros, mas a possibilidade e a regra de formação de outros textos , os quais são designados de fundadores de discursividade (p.58). E concluindo sua exposição: Talvez seja tempo de estudar os discursos não somente pelo seu valor expressivo pelas transformações formais, mas nas modalidades de sua existência. Os modos de circulação, e a apropriação dos discursos variam com a cultura e se modificam no interior de cada uma (p.68-69). É importante tomar como um pressuposto teórico-metodológico que a delimitação proposta na figura destes dois historiadores deve ser entendida pela recorrência constante da tradição ocidental às suas obras. É atribuído a Cícero o reconhecimento de Heródoto como o pai da História, e nesta perspectiva de leituras e releituras dos textos de Heródoto e Tucídides se dará a constituição dos modelos de composição das obras de História não apenas do objeto desta pesquisa, a historiografia romana representada aqui por Lívio mas também, significativamente da produção historiográfica ocidental. 32 enfatizava a incerteza do conhecimento humano e a relatividade das concepções humanas, transpondo as opiniões mais tradicionais acerca da relação entre deuses e homens (2004, p.56- 7). Entre suas afirmações, é celebre sua crítica aos mitos como base explicativa do mundo. Os deuses não seriam nada além do que a própria invenção humana; e para demonstrar este ponto de vista afirma que se fossem pintados ou descritos por burros e cavalos, andariam sobre quatro patas e profetizariam como as bestas. Assim, segundo Vernant este processo que tem duração entre o século VIII e o IV, implicou no distanciamento entre mythos e logos, que originalmente não se contrastavam, tal como se observa nos compostos mythologein, mythologia, e cujos valores semânticos são vizinhos e que se relacionam às diversas formas do que é dito (1999, p.172). E a principal característica da oposição entre mythos e logos se dará pela transição da tradição oral para a escrita, principalmente presente na prosa. Afinal, a redação em prosa de tratados médicos, narrativas históricas, discursos de oradores, dissertações de filósofos não se diferenciam em relação à tradição oral somente como um novo modo de expressão. Mais que isso, implicam em uma nova forma de pensamento. Desse modo, o logos adquire um novo sentido se contrastado com novamente com mythos. Não é mais por meio da palavra, mas a racionalidade demonstrativa, argumentativa é que se estabelece um abismo entre as entidades abstratas dos filósofos e as potências divinas, presentes nas narrativas mitológicas. Além disso, outro aspecto a ser destacado se remete à perspectiva da relação do receptor da mensagem, pois a partir do texto escrito o leitor pode voltar infinitamente ao texto, e posicionar-se de maneira crítica. Além do mais, a leitura supõe uma outra atitude de espírito, mais distanciada e ao mesmo tempo mais exigente, que a escuta de discursos pronunciados. Entre os gregos já havia esta consciência: à sedução da palavra que deveria encantar a platéia 33 era contraposto o valor durável de um texto, no seu sentido de utilidade. A oposição entre prazer e utilidade acaba por se firmar na oposição entre mythos e logos. Deste ponto de vista, tudo que dava à palavra falada seu poder de impacto, sua eficácia sobre outrem, se achava, dali em diante rebaixado à classe de mythos, do fabuloso, do maravilhoso, como se o discurso só pudesse ganhar na ordem do verdadeiro e do inteligível, perdendo ao mesmo tempo na ordem do agradável, do emocionante e do dramático (VERNANT, 1999, p.175). Antes da consolidação deste processo, o mito servia como base explicativa para toda a realidade, inclusive para questões de moral e conduta. A partir das narrativas mitológicas e épicas, eram descritos guerras e viagens marítimas, banquetes, funerais e sacrifícios, todos muito reais e vividos. O épico poderia conter inclusive algumas sementes do fato histórico mas não era a história. Como todo mito era atemporal (FINLEY,1989, p.7). A perspectiva atemporal refletia a concepção de mundo daquelas sociedades, uma vez que ela não gerava inquietações, nem conflitos, mas o oposto: a constituição de uma identidade comum. Como enfatiza Finley: as gerações anteriores (à invenção da história) sabiam muito menos acerca de seu passado do que nós, mas talvez sentissem em relação a ele uma noção de identidade muito maior (1989, p.27). É certo que os contos de Homero ou Hesíodo influenciaram a narrativa histórica, e as freqüentes menções genealógicas se fizeram presentes em muitas obras de historiadores gregos. O célebre exemplo de Hecateu pode ser citado para comprovar a continuidade na recorrência à genealogia. Segundo Heródoto (II,143), Hecateu se vangloria diante dos sacerdotes egípcios por contar dezesseis ancestrais, sendo o décimo sexto um deus, mas que 34 para o espanto do historiador de Mileto, era ínfima perto das 345 gerações sacerdotais sem qualquer traço de deus ou herói no início da lista. O que este exemplo fornece de mais significativo está na gradual ruptura do método histórico com a tradição homérica. Diante da tradicional proximidade com o divino da genealogia grega, Hecateu se pronunciará da seguinte maneira: Eu Hecateu direi o que acredito ser verdade, pois os logoi dos gregos são, para mim, muitos e dignos de riso . E tal pronunciamento, segundo Momigliano, deve ser entendido como uma ruptura com a tradição de Hesíodo, que inspirado pelas musas, reconhecia que elas nem sempre falavam a verdade. Hecateu, apoiado em uma referência estrangeira, se voltaria para a tradição lendária grega como diversa e fantasiosa. Sua busca, a partir de então, por referências racionais encontra um forte apoio na comparação com uma cultura externa. Se os deuses poderiam ser encontrados a partir da décima sexta geração isso não significaria mais que os deuses estiveram até há pouco dentre os gregos, mas sim que o contato entre dois povos, em que um apresentava um calendário que remontava a longínquos ancestrais sem qualquer presença do divino, obrigava Hecateu a rever aspectos cronológicos estruturados a partir da tradição grega. A dicotomia entre gregos e bárbaros encontra na geração de Hecateu um ponto de referência que será seguido pelos demais gregos das gerações posteriores. A consolidação do modo de vida da pólis, e o uso da razão servirão como parâmetros para o julgamento depreciativo de Heráclito: o idioma dos que não são gregos é assemelhado ao balir das cabras, ou seja, é considerado um idioma de animais, incapazes de agir racionalmente. Por outro lado, Hecateu e sua admiração e reconhecimento da longevidade dos egípcios, demarcam uma 35 corrente filo-barbara, nas palavras de Momigliano (2004, p.59). Heródoto, no rastro de seu antecessor, também se deslumbraria com os egípcios, particularmente em Euterpes, o segundo capítulo de sua História. E o caráter etnográfico destes dois autores evidencia o interesse deles no estabelecimento da verdade por meio do outro também. Heródoto inicia sua obra demonstrando sua preocupação em preservar os acontecimentos provocados pelo homem, para que não sejam apagados, quer tenham sido evidenciadas pelos gregos ou pelos bárbaros. Semelhante a Hecateu, Heródoto se lançara em viagens pelo território do outro . Do contato com o outro, da observação da diferença, surge a oposição do outro ao grego. A observação dos dois lados ainda que segundo Hartog o outro apenas seja visto a partir de uma perspectiva do grego (1999) oferece ao historiador de Halicarnasso um método de se alcançar alguma conclusão através da comparação. Esta é a exposição de Heródoto de Túrio, para que nem os acontecimentos provocados pelos homens, com o tempo sejam apagados, nem as obras grandes e admiráveis, trazidas à luz tanto pelos gregos quanto pelos bárbaros, se tornem sem fama e no mais, investigação também da causa pela qual fizeram guerra uns contra os outros. A inovação de Heródoto consiste em trabalhar a História no sentido de inquérito por meio da associação de três eixos a análise etnográfica, a pesquisa constitucional e a história bélica que geralmente eram arranjados dois a dois. É por isso que seu procedimento para a descrição analítica da guerra se constitui em utilizar estudos etnográficos e constitucionais a fim de explicar a guerra em si e relatar suas conseqüências (MOMIGLIANO, 1998, p.184). Ao 36 manter a prática de mediador, preocupando-se em estabelecer que os dois lados da guerra sejam ouvidos os gregos e os bárbaros , recordará o gesto do aedo, inspirado pela musa, cantando os feitos dos aqueus e dos troianos. Porém, sua iniciativa não se prende em relatar tudo que fizeram, mas somente naquilo que é grande e suscita espanto (thôma), aplicando o princípio de seleção (HARTOG, 2001, p.53). Com efeito, a seleção caracteriza-se como mais um elemento da estrutura narrativa que se funda na idéia de história. O estilo de se escrever História se limitava a uma finalidade: preservar registros seguros de eventos do passado, precisando assim se estabelecer critérios confiáveis. Nesse sentido, a intervenção dos deuses em assuntos humanos não é concebida como constante ou muito óbvia (MOMIGLIANO, 1998, p.189). Lutar contra o esquecimento. Esta é a missão a que Heródoto se propõe: permitir que os fatos, sejam eles produzidos pelos bárbaros ou pelos gregos, possam ser eternizados em um texto. No esforço por registrar estes fatos, há a implícita oposição entre o oral e o escrito. Na pesquisa a ser empreendida por Heródoto, o esquecimento provocado pelo tempo, pelo lapso de memória dos contemporâneos aos acontecimentos deve ser combatido pelo esforço do historiador em pesquisar, exige do historiador o deslocamento, o ir ao encontro do que deve ser registrado. Nessa busca pelo o que registrar, é de interesse do historiador as obras grandes e admiráveis, expressas em grego por thôma. Distanciando-se de Hecateu, que se preocupou com as genealogias dos gregos, já conhecidas, Heródoto se lançará na busca do desconhecido, preocupando-se mais em registrar do que em criticar. Ao longo de toda a sua investigação, prefere se ater em contar aquilo que lhe é dito, anda que não se sinta obrigado a acreditar (8,152). 37 Ele também se desprende do seu antecessor quando estabelece os critérios para a avaliação dos testemunhos sobre os fatos. A investigação sistemática, que Hartog13 designa como o desenvolvimento do hístor, resulta na narrativa histórica, que determina a ruptura com o emprego da poesia. Se os poetas recorriam às musas, Heródoto recorria à sua observação pessoal: o historiador seria aquele que não economiza nem seu tempo, nem sua pena, nem seu dinheiro para percorrer espaços e ver com seus próprios olhos (HARTOG, 2001: p.36). Surge assim a famosa distinção, que será constantemente evocada pelos historiadores quando da justificativa do método de avaliação dos testemunhos históricos: a oposição estabelecida por Heródoto entre opsis e akoê. Opsis pode ser entendida neste contexto como o fato de ver em pessoa . Assim, a investigação apóia-se primeiro no olho, a opsis, e em seguida no ouvido (akoê), isto é, na oralidade. A historíe14 designaria etimologicamente testemunho, aquele que viu . Na tradição grega, no entanto o sentido deste termo poderia apresentar variações. Isso pode ser demonstrado através de duas referências da Ilíada: no momento em que Agamêmnon, mesmo não estando presente, é designado como hístor para decidir quem estava à frente na corrida entre Ájax e Idomeneu; e no impasse acerca da imagem do escudo forjado por Hefesto para Aquiles, em que dois homens em desacordo decidem apelar para um hístor. (apud HARTOG,2001; p.34-35). Em Heródoto, o sentido de hístor se modifica. Não mais serve como o árbitro que julga, tal como Hecateu fizera. É o descobridor de novos fatos e por isso 13 Discussão presente em suas obras: O Espelho de Heródoto; a História de Homero a Santo Agostinho; e nos verbetes Heródoto e Tucídides, do Dicionário das Ciências Sociais, de A. Burgière. 14 Os diversos termos que vêm identificar as narrativas do passado se baseiam na assertiva crítica de evidência, historia, se deriva da raiz Indo-européia wied, ou ver. 38 precisa de um novo método para que seja possível apontar com confiabilidade as novas descobertas, o que não implica necessariamente em julgá-las. Tucídides implantaria com maior rigor os critérios de confiabilidade de suas fontes. Sua percepção do objeto histórico delimita-se a uma guerra. De participante a testemunha ocular dos fatos, esta será sua maior justificativa para comprovar a confiabilidade de seu relato. No entanto, esta prerrogativa, aliada às características pessoais, determinaria que sua obra se opusesse em relação à obra de Heródoto, determinando um novo estilo de se escrever História: a partir de agora, o eixo da narrativa seria a História Política. O passado era para ele apenas o início da situação política que existia no presente; e o presente a base para a compreensão do passado. Como enfatiza Finley, o esforço sistemático apreendido por Tucídides reflete o estilo racionalista do período em que viveu, e demonstra que a História deveria ter utilidade (1991, p.63). Em Tucídides, a História é colocada como discurso de verdade, tendo como razão de ser e como exigência dizer como as coisas realmente aconteceram; e deveria enfocar principalmente as guerras e as revoluções políticas, pois são estas que produziam mudanças (MOMIGLIANO, 1998, p. 189). O objetivo de Tucídides pode ser definido em compreender a lógica da política dos acontecimentos ou, em outras palavras, tornar o discurso político tão racional quanto possível, seja através da coleta de informações orais e de documentos escritos (os tratados, tal como o reproduzido por ele no livro VIII), seja a interpretação de textos transmitidos pela tradição, como os poemas homéricos, ou os oráculos (VIDAL-NAQUET, 2002, p.102). 39 Se Heródoto queria preservar por igual a memória que tinha se realizado ou dito , Tucídides entendia que o verdadeiro historiador é aquele que se empenha em reduzir o distanciamento entre o que efetivamente aconteceu e o que se diz depois (HARTOG,2001, p.99). Sua obra se inicia da seguinte maneira: [1] Tucídides de Atenas escreveu a guerra dos peloponésios e atenienses, como guerrearam uns contra os outros, tendo começado logo que ela se desencadeou e tendo previsto que viria a ser grande e mais digna de nota que as acontecidas antes tomando como indício o fato de ambos os lados se encontrarem no ápice de todos os seus recursos, e de resto, vendo que outros gregos a eles se aliavam, uns logo, outros pelo menos em projeto [2]. Pois este abalo foi o maior para os gregos e para certa parte dos bárbaros e pode-se mesmo dizer, estendeu-se à maior parte da humanidade.Ora, as coisas anteriores e mesmo as que eram ainda mais antigas era impossível descobrir com clareza, em vista da grande distância temporal, mas a partir do que sou levado a crer, examinando os indícios de um longuíssimo período, não considero que foram grandes nem com relação à guerras, nem com relação a mais nada. (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso) É por este caminho argumentativo que Tucídides desenvolve sua concepção de história, baseada muito mais na autópsia, ou seja, na própria visão do que na audição, que podemos compreender como a tradição oral, suscetível à memória e à linguagem, facilmente 40 corrompida ou alterada com o decorrer do tempo15. Só há, portanto, história científica do presente. Mas a partir dos referidos indícios (da tradição referente ao período anterior à guerra a ser narrada), não erraria quem considerasse que essas coisas acontecem como expus, não acreditando em como os poetas as cantaram, adornando-as para torná-las maiores, nem em como os logógrafos16 as compuseram, para serem mais atraentes para o auditório, em vez de mais verdadeiras, já que é impossível comprova-las e a maior parte delas, sob a ação do tempo, acabou por se tornar fábula que não merece fé. (I, 21,1). A opção pela narrativa de uma guerra contemporânea justifica-se por critérios etnocêntricos, a ponto de considerá-la como a maior de todas. Entre as dificuldades de coleta de relatos, Tucídides se veria obrigado a dar preferência à sua própria versão dos fatos, quando os havia presenciado, checando-os em seguida com outros. Assim se revelaria algo como uma linha narrativa verdadeira, em que os verdadeiros fatos prevaleceriam diante do confronto dos relatos de acordo com o que cada um lembraria ou gostaria de lembrar (1.22.1-3). Tucídides, munido do rigor que unifica a qualificação das fontes com um recorte temporal preciso teceria inúmeras críticas ao trabalho de seu antecessor. O cerne das críticas 15 Esta dualidade visão/audição também é encontrada em Políbio 12,27,1: Pois nós temos, por natureza, como que dois instrumentos com os quais tudo aprendemos e investigamos, a audição e a vista, sendo mais verdadeira a vista, conforme Heráclito, pois os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos". 16 Os logógrafos eram aqueles que transcreviam os logoi 41 se basearia no que ele designa como philomythia. Adepto de um caráter utilitarista do relato histórico, evidenciado principalmente pelo seu enfoque sobre a política, Tucídides optaria por relegar para segundo plano outros objetos de estudo e outras maneiras de abordagem destes mesmos objetos. Assim, até mesmo a peste, é examinada pelas suas conseqüências políticas (MOMIGLIANO, 2004, p.68). Para o auditório, também a ausência do fabuloso nos fatos relatados parecerá desagradável; mas se todos os que quiserem examinar com clareza o que aconteceu (e o que porventura, conforme o humano, será igual ou semelhante ao acontecido) os julgarem úteis, será o suficiente. Trata-se aqui de aquisição, para sempre, mais que de uma peça para um concurso, a ser ouvida de momento. (2.22.4) Pela oposição entre o que deve ficar registrado por escrito e o que é proferido para encantar momentaneamente a platéia, o relato de Heródoto acaba por ser desqualificado. Ocorre então, segundo Hartog, que mythos passa a ser olhado como objeto de derrisão, sendo utilizado para a valorização de um discurso diante do discurso de outrem, ou para tratar o objeto científico e pô-lo em questão. Assim, designar uma história como mítica é precisamente considerar que ela não faz mais crer. Desde Tucídides, não se crê mais em Heródoto, que se torna mitólogo, ou seja, crédulo e mentiroso: ele creu quando não tinha necessidade disso (foi mentiroso sem saber); ele fingiu crer quando não devia (foi simplesmente mentiroso). O discurso mítico tem como princípio a organização do prazer, seja do ouvinte, seja do narrador, de forma que o mythos surge como o outro do discurso historiográfico (1999, p.310). 42 Inaugurada por Tucídides, esta linha argumentativa seria retomada por Luciano, para quem a utilidade é o fim da história e o fabuloso não deve ser acolhido. Revisitada por inúmeros outros escritores a partir da antiguidade, esta oposição entre Heródoto e Tucídides acabou por relegar ao primeiro simultaneamente os epítetos de Pai da História e Mentiroso. Considerando apenas a história do presente como a mais segura, Tucídides não questionava o pressuposto de que a tradição oral era mais importante do que a escrita. Tal como Heródoto, confiava em primeiro lugar nos próprios olhos e ouvidos, em seguida nos olhos e ouvidos de testemunhas confiáveis. Mas há uma diferença em relação a Heródoto: Tucídides assumia a própria responsabilidade pelo que registrava. O primeiro iria afirmar: atenho-me a contar o que me é dito, não é meu dever acreditar, e isto vale para toda minha narrativa (8.152); ao passo que o segundo, tendo imposto limites geográficos e cronológicos bastante severos à sua obra, raramente indicava com detalhes as fontes de suas informações. Queria ser digno de confiança (MOMIGLIANO, 2004, p.70). A análise teórica de Políbio organizava os modos como o procedimento diante das evidências se davam em uma clara hierarquia: com os olhos de um, por meio do testemunho de eventos, com a orelha de um, através da entrevista de testemunhas, e novamente com a ouvido de alguém, pela leitura de relatos (27.1.4), tal como já fixara Tucídides (1.22.2-3). Atento à observação de Tucídides de que havia o risco dos testemunhos serem tendenciosos, Políbio mostra como solução a experiência na guerra e na política como necessárias ao historiador. Permanecia em sua obra a preocupação de não somente relatar fatos, mas acima disso, discuti-los de modo a estabelecer as causas e relações entre os acontecimentos. Um historiador 43 deveria apresentar: a) experiência política para entender a prática dos políticos atuais para avaliar as fontes; b) conhecimento geográfico in loco; c) conhecimento não somente de historiadores, mas o exame pessoal de arquivos e inscrições (MELLOR, 1999, p. 9; e também MARINCOLA, 2001, p.138). Este parâmetro definitivo para o criticismo histórico é diretamente ligado à própria compreensão de Políbio da função da história, para educar generais e homens de Estado, mas também intimamente relacionada com a idéia de observação direta, uma vez que a falta de tal experiência levaria à arbitrária inclusão/omissão de detalhes. Políbio concordaria que a direta observação tem suas limitações, mas permanece como o tipo superior de testemunho histórico. A evidência oral, os rumores, e o que alguém ouve de documentos escritos aparece como a menos confiável fonte de informação sobre o passado (12.25i, 27a, e 28a). Antes da expansão romana, realizada a partir de 220 a.C., nenhum império havia se estendido tanto. Políbio reconhece nos avanços territoriais romanos a centralização do que era considerado como mundo até então sob o cetro de Roma. Anteriormente a essa realidade, tudo que os historiadores relatavam não transpassava a esfera regional. A narrativa histórica a partir de então se compatibiliza com esta unidade. E aqui há uma ruptura em um aspecto da concepção de história de Heródoto e Tucídides, pois já não há a necessidade de se ver a história por mais de um ponto de vista, pois o mundo agora é visto a partir de Roma. Mas a partir dessa ocasião, aconteceu que a história se tornou como que um só corpo, enlaçaram-se os fatos da Itália e da Líbia com os da Ásia e do mundo helênico e todos se dirigiram para um único fim (Políbio 1,3,4). 44 Ao se compatibilizar com o sentimento romano de desígnio divino de zelar pelos outros povos (presente em pref. 7 de Lívio), o universalismo de Políbio ajudou a imprimir no texto de Lívio a idéia de que a história de Roma passaria a ser a História Universal, e escrita unicamente do ponto de vista do conquistador (CANFORA, 1993; p.181). A concepção de História Universal também vem chocar-se com as posições de Aristóteles descritas na Poética 9,1451, que estabeleciam a distinção entre poesia e história. Enquanto a primeira apresentava um caráter generalizante, a segunda apenas pode contemplar o particular, o que fez ou sofreu Alcibíades (9,1451b, 11). E, portanto, a história não poderia ser uma ciência, pois não consiste no geral, mas em especificidades. A inovação de Políbio, que não discutirá se a história é uma ciência (episteme), é deslocar a oposição geral/particular para diferenciação entre as abordagens históricas katà meros, parcial, e kathólou, ou ainda katholiké, global, universal. Outra resposta a Aristóteles se configura na demonstração da superioridade da história sobre a tragédia. Para tanto, o desenvolvimento do termo verossímil se distancia de como é entendido por Aristóteles. Assim, a tragédia se apóia no verossímil, isto é, repousa na apáte (engano), e recorre ao pithanón (o persuasivo), enquanto que a história se encontra inteiramente do lado do verdadeiro. Políbio retoma e maneja, em proveito da história que propõe, a antiga distinção tucidideana entre o discurso de aparato e o prazer do instante (a tragédia), opostos à utilidade da aquisição para sempre, a história (HARTOG, 2001, p.139). Além disso, sua notável presença no círculo dos Cipiões influenciaria os historiadores romanos de que a história deve ser essencialmente política. 45 Tendo em vista o percurso até aqui apresentado, pode-se concluir que o raio de ação do historiador estava limitado à confiabilidade de seus testemunhos. Após Tucídides, o modelo a ser seguido se estabelecia e delimitava as abordagens aos períodos mais próximos do presente. Isso não significa que o passado mais distante foi desprezado pelos gregos e demais povos influenciados pela historiografia grega, mas que o campo do historiador recebia suas primeiras bases metodológicas. De fato, a pesquisa acerca do conhecimento das cidades, das origens dos povos acabou sendo relegada ao campo dos antiquários, como bem enfatiza Momigliano (2004, p.95). Para o historiador italiano, o surgimento da pesquisa erudita coincidiu com a criação do pensamento político de Tucídides, e se assim não o fosse se Heródoto e seu modelo tivessem prevalecido, esta ruptura não teria sentido em ter ocorrido. Assim, etnografia e genealogia passaram para o campo dos estudos antiquários, campo em que se faziam presentes gramatikos, doctus, eruditus, literatus; cujo objeto de estudo era aquilo que em Platão aparece como archaiologos. Nessa divisão, os trabalhos de história local, cronografias, genealogias, dissertações eruditas, obras etnográficas não eram qualificadas como obra de historiadores. No século II, Políbio criticara Timeu pela sua erudição, por não ser considerado elemento essencial, nem qualidade desejável em um historiador. Na lista de historiadores formulada por Quintiliano, aparecem entre os gregos Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Teoponto, Éforo17, Filisto, Clitarco e Timagenes, sem a inclusão de qualquer historiador da Ática, ou antiquário. Filisto é incluído por que sua história sobre a Sicília pela importância que se atribuía aos conflitos entre gregos e cartagineses (MOMIGLIANO, 2004, P.92). 17 Inicia sua narrativa com a lendária invasão do Peloponeso pelos Heráclides. 46 Considera-se que as questões levantadas pelos antiquários, como as origens das cidades (ktiseis), a comparação entre leis e costumes bárbaros e gregos, a lista dos inventores, dos vencedores de jogos olímpicos não deveriam fazer parte do objeto do historiador. Nesta nova demarcação do que o historiador não deveria abordar, não se deve pensar que os estudos antiquários pudessem ser entendidos como um retorno aos poetas e ao mundo de Homero. A herança da pólis em organizar o espaço do universo tanto físico como humano racionalmente incidiria sob os mesmos princípios na elaboração dos trabalhos dos antiquários. Desta maneira, principalmente quando se trata da fundação das cidades (ktísis), há o esforço em distinguir o que é mítico (aqui entendido como herança divina e não no sentido posterior de inverdade) do que é realização humana. Estabelecer a cronologia era uma das principais contribuições destas obras de archaelogia. Foi inclusive estabelecida uma distinção entre três idades, que posteriormente seria utilizada pelo romano Varrão. Das origens dos homens ao primeiro dilúvio encontra-se a primeira idade, denominada obscura; a segunda mitológica, do primeiro dilúvio à primeira olimpíada, caracterizada pelos momentos fabulosos; e a terceira, histórica, desde a primeira olimpíada. A pesquisa histórica em seu formato antiquário também se distinguiria pelo uso extensivo de quadros, inscrições e monumentos. Historiadores como Tucídides, Políbio, Fábio e Tácito se valeram ocasionalmente de arquivos, mas o que deve ficar claro é que não iniciaram o trabalho de escrever história pela busca sistemática de documentos. Distante da prática de Heródoto de examinar com cuidado monumentos que via, Tucídides proclamaria que documentos arqueológicos e epigráficos não deveriam fazer parte das questões do historiador (MOMIGLIANO, 2004, p.101). 47 Momigliano ainda destacaria cinco tendências da tradição helenística: a) edição e comentário dos textos literários; b) coleção de tradições antigas sobre cidades individuais, regiões, santuários, deuses e instituições específicos; c) a descrição sistemática de documentos e a cópia das inscrições; d) a compilação de biografias eruditas e; finalmente e) cronologia. Todas essas atividades lidavam com o documento original a respeito do passado, estudavam as primeiras manifestações de civilização, mantinham-se em contato próximo com a filosofia. Há uma clara distinção aqui entre os dois responsáveis pelo passado helenístico: os historiadores políticos apenas superficialmente entravam em contato com este conhecimento produzido e conseqüentemente foram incapazes de formular a história num plano mais amplo. (MOMIGLIANO, 2004, p.102). 1.2.2. Os predecessores romanos: os analistas e Cícero As origens da historiografia romana remontam à época da II Guerra Púnica, e não por acaso, pois estão intimamente ligadas ao processo de interação cultural de Roma com os demais povos do Mediterrâneo. Fábio foi o primeiro romano a escrever história sobre os romanos e escreveu em grego18. Embora já existissem documentos latinos em prosa como evidenciam o discurso de Ápio Cláudio em 280, o discurso fúnebre de Q. Cecílio Metelo em homenagem a seu pai em 220, textos jurídicos e as crônicas dos pontífices a opção de Fábio sugere que ele estava preocupado com uma audiência que lia grego. Sua principal referência metodológica estaria 18 Segundo Momigliano, as evidências que Fábio escrevera em grego se devem às menções de Cícero (De Div. 1.43) e DH (1.6.2). Há outras citações que informar a existência de uma versão latina Cícero (De Leg 1.6) e Aulo Gélio (Noites Áticas 5.4.3). Nenhuma fonte sugere que Fábio tenha escrito em latim e grego; mas nenhuma sugere que haja outro Fábio.É possível que obra em grego foi traduzida posteriormente em latim 48 em língua grega: Timeu um exilado político da Sicília, que viveu grande parte da vida em Atenas (315-265 a.C.) e escreveu uma história do Ocidente, para uma audiência oriental. Abordava a Sicília, incluindo também fatos ocorridos na Itália, Espanha, Gália e na Líbia e o seu episódio mais famoso foi o conflito entre Pirro e os romanos. Nos mesmos moldes de Heródoto, seu relato estava apoiado em viagens, entrevistas com nativos e consultas de documentos. O interesse por costumes nacionais, cerimônias religiosas, detalhes pitorescos e anedóticos, influenciaria Fábio a incluir de sua narrativa a descrição dos grandes jogos (ludi magni), o fragmento sobre a história do alfabeto, as notas a respeito da integridade dos magistrados romanos (MOMIGLIANO, 2004, p.145). A obra de Fábio deve ser vista como uma ordenação de testemunhos acerca das histórias romanas, principalmente aquelas que remontavam às origens lendárias e aos fatos contemporâneos. Entre estas fontes disponíveis se incluíam os cantos de banquete19 e as crônicas de pontífices. A lacuna temporal entre estes dois períodos se justifica pela ausência de preservação de registros escritos. Havia a tradição oral que se referia aos primeiros tempos, mas, no entanto, pouco se sabia acerca do início da república romana. O próprio Lívio reconheceria isso ao narrar os acontecimentos subseqüentes ao saque gaulês, em 390. Explica que os feitos romanos foram expostos nos primeiros cinco livros, mas que se trata de uma história demasiado obscura, seja pela sua antiguidade que ele compara aos objetos difíceis de enxergar a grande distância, ou seja, reconhece que o tratamento da tradição oral, nos moldes tucidideanos não é plausível. Em parte pela insuficiência de testemunhos fiéis do 19 Para uma melhor compreensão da importância dos cantos de banquete para a historiografia, ver a análise de Momigliano, que remonta a uma tradição de estudo destes cantos para o século XVII. 49 passado, pois os documentos registrados nos comentários dos pontífices e outros monumentos públicos e privados foram na maior parte destruídos pelo incêndio da cidade. Lívio deixa claro que a partir do sexto livro, relatará com maior clareza e segurança os acontecimentos da cidade que renascia (6.1.2). Esse quadro de escassez de informações deve principalmente ao fato de os anais dos pontífices nessa época apenas fornecerem quadros cronológicos anuais, e organizados a partir da nomeação do cônsul. A principal garantia de que Fábio tenha utilizado os anais se baseia na semelhança com a sua obra na formulação da cronologia romana, e sua inovação consistiu em equiparar estes acontecimentos com as datas das olimpíadas, de modo a proporcionar familiaridade cronológica aos seus leitores gregos. Pelo que se sabe, os anais pontífices registravam o que importava aos pontífices em uma tábua pintada de branco, tabula dealbata, que era mudada todos os anos e que tinha a forma de calendário. Ao final do ano, o conteúdo era transferido para um rolo ou um codex e automaticamente tornava-se parte de uma crônica a qual presumivelmente preservava o formato do calendário. A data do primeiro anal: entre 400 e 350 (Cícero,De Re Publica. 1,16,25), não muito tempo antes da destruição gaulesa de Roma. Esta coleção de crônicas foi ordenada e aparentemente publicada em oito volumes no final do século II a.C. No entanto, muito se discutiu entre os pesquisadores modernos acerca do que poderiam significar os anais dos pontífices como fonte histórica para os historiadores da antiguidade. Os impasses se apresentam quando se compara as opiniões dos escritores antigos. Para Catão, não se encontraria informação nos anais, que registrava apenas fomes, eclipses e outros portentos. 50 Os anais, segundo ele, não informavam nada sobre acontecimentos políticos e militares (Aul. Gel. 2,28,6). Cícero, quando menciona os anais, preocupa-se mais em criticá-los pela falta de ornamento, e sugere que os anais não se restringiam somente aos acontecimentos religiosos, mas a todos os feitos dos homens: [52] O pontífice máximo punha por escrito todos os acontecimentos de cada ano (...) para dar ao povo a possibilidade de conhecê-los. [53] Muitos seguiram essa forma de redação que sem ornamento algum, deixou apenas os monumentos relativos aos tempos, aos homens e aos lugares, aos acontecimentos. (De Orador 2,52-53). Em Sérvio, há uma menção em que pode se constatar de maneira mais explícita que os anais registravam os feitos políticos e militares: o registro incluía domi militiaque terrra marique gesta per singulos dies. (Serv. Dan. Ad Verg. Aen 1,373). Esta aparente contradição com a afirmação de Catão é resolvida por Momigliano a partir da constatação de que os anais tomaram nova forma com o passar do tempo (2004, p.139). Lívio também afirma estar ciente de que, devido à negligência que resulta da crença popular de que os deuses não dão notícias do futuro, os prodígios há muito não são anunciados publicamente ou incluídos nos anais; o que sugere que os anais consultados por ele não mais valorizavam os prodígios, mas se ainda o fizesse, seriam para buscar outros tipos de informações20. Ele, interessado em persuadir o 20 Para informações complementares, ver Rawson, 1971. 51 leitor de sua competência como historiador e mantenedor das tradições, afirma que quando escreve sobre temas antigos, a minha mente se torna de certo modo também antiga, e assim, uma certa inibição religiosa me impede de considerar impróprio para a conclusão de meus anais, eventos que os mais prudentíssimos homens daquela época pensaram que deviam ser tratados publicamente (43.13.1-2)21. Poderia até ter sido através das críticas proferidas por Catão, que os anais teriam recebido uma nova roupagem, pois há entre Catão e Cícero na distância temporal de mais de meio século profundas transformações na cultura romana (no latim, para se citar um exemplo) que já estavam em curso desde o século III. Os oito volumes, publicados em de 120 a.C., não deve ter sofrido, necessariamente, adições a posteriori. Mas elas dever ser consideradas, afinal não se pode atribuir os primeiros relatos oficiais a Rômulo. Assim, um processo de ordenação e talvez até de reformulação de acontecimentos estava sendo motivado pelo interesse de se estabelecer uma linha coesa desde a fundação da cidade, que deveria ser apresentada aos leitores de acordo com as novas exigências do público leitor, tanto enfatizadas por Cícero. Para Momigliano é evidente que os Anais dos Pontífices foram manipulados. Sua parte confiável dificilmente teria incluído muito material que fizesse referência aos eventos anteriores a 400 a.C. Não é possível saber, com 21 Non sum nescius ab eadem neclegentia, quia nihil deos portendere uulgo nunc credant, neque nuntiari admodum ulla prodigia in publicum neque in annales referri. Ceterum et mihi uetustas res scribenti nescio quo pacto anticus fit animus, et quaedam religio tenet, quae illi prudentissimi uiri publice suscipienda censuerint, ea pro indignis habere, quae in meos annales referam. 52 certeza, quando as interpolações foram feitas. Mas a discordância entre Catão e Cícero a respeito do conteúdo dos anais leva a suspeitar que interpolações mais sérias foram feitas por volta de 120 a.C. E se isso for correto, é necessário assumir que os editores serviram-se de vários livros de história produzidos no final do século III e durante o século II (Fabio, Alimento, Catão e Hemina). De acordo com esta hipótese, os Anais, ou os registros acessíveis a Fábio eram muito mais pobres em conteúdo que aqueles que estavam acessíveis a Cícero. Forneciam apenas um quadro cronológico essencial. Mencionariam derrotas, vitórias, guerras e tratados de paz toda vez que esses eventos determinavam a ação dos sacerdotes, em cerimônias ou em interpretação de prodígios. Mas não havia regularidade no registro dos acontecimentos políticos e militares. E, portanto, Fabio não poderia reconstruir um relato coerente da história romana antes da I Guerra Púnica, a partir do conteúdo dos anais. Não teria encontrado registro de ações heróicas individuais tão essenciais à tradição antiga romana. Percebe-se assim que a influência grega na maneira de escrever, ou no conteúdo a ser relatado não deve ser deixada de lado. A arte de escrever história herança grega trazia consigo fontes para eventos que entre os romanos, tal como entre outros povos do Mediterrâneo, não haviam sido preservadas, pois esta preocupação ainda não tinha sido levantada. A inovação, a partir de Fábio, consistia em afugentar os temores supersticiosos por meio da busca do conhecimento, fruto da helenização romana. As obras de Cícero apresentam um romano interado da questão de integração cultural presente na sociedade romana do século I. Isso se nota tratado religioso De Diviniatione22, quando se vale da filosofia grega para formular debates e refletir sobre as práticas divinatórias 22 Ver Beard, 1986. 53 da religião romana, ora se remetendo à tradição romana ora à tradição grega, procurando pontos de contato entre as duas da maneira que melhor possam ser utilizadas por seus contemporâneos. Para Cícero, a história possuía importância por dois motivos: a partir da história era possível promover a manutenção de toda uma estrutura social e, trazer à tona exemplos de conduta moral que os romanos, principalmente os líderes, deveriam seguir. (MELLOR, 1999, p.3). Em Do Orador 2, 51-64, quando pelo diálogo entre Antônio, Catulo e César, Cícero estabelece uma genealogia (literária) da história, que encara o desenvolvimento da escrita da história fundamentalmente pelo caráter da ornamentação do texto (da simples anotação e ausência de eloqüência ao discurso ornado e eloqüente), e acaba por ignorar o pressuposto da história como investigação23; Heródoto e Tucídides apenas são reverenciados pela qualidade de seu estilo (HARTOG,2001, p.180). No diálogo entre Antonio, Catulo e César se questiona sobre que tipo orador ou de homem ou está mais capacitado para escrever a história. Deve-se levar em conta que, entre os gregos, a ação dos homens eloqüentes não se restringiam ao fórum; eles se dedicaram também a outras atividades ilustres, sobretudo à escrita da história. Não desmerece os primeiros historiadores romanos, pois tal como os primeiros gregos apenas se preocupavam em registrar os fatos, ou melhor, em não ser mentiroso. Este procedimento era tanto adotado por Fabio Píctor, Catão e Pisão (os quais não sabiam com que coisas se orna um discurso) como entre os gregos Helânico, Acusilau, Ferécides e muitos outros. 23 Além do mais, como também já havia destacado Beard (1986) a fórmula de diálogo possibilita ao escritor do texto deixar a questão em aberto sem pender para um lado específico, uma atitude característica de um autor que procurava conciliar as tradições romanas e gregas. 54 Quando sugere a ornamentação da história de acordo com as regras da retórica, ele não indica apenas que a linguagem deve ser sofisticada. O historiador, assim como qualquer outro retórico, deve inclinar-se para aquilo que era tecnicamente chamado de inventio24, para encontrar materiais apropriados para ilustrar a história, assim como fizera Heródoto para manter o interesse do leitor (MELLOR, 1999; p.27). Em Ad Familiares (5,12,5) célebre por apresentar um pedido de Cícero para que Lucéio enalteça o seu consulado sugere a incorporação de elementos retóricos, a fim de proporcionar uma leitura envolvente: De fato, a organização dos anais prende-nos mediocremente, da mesma forma que a enumeração dos fastos, enquanto freqüentemente as desventuras perigosas e variadas de um homem eminente geram admiração, atenção, alegria, pena, esperança, medo; e se terminam com uma morte insigne, o espírito então se eleva pelo agradabilíssimo prazer da leitura 25 A preocupação de Cícero não reside somente em evoluir do método historiográfico baseado nos anais elaborados pelo pontífice máximo para um estilo literário melhor ornamentado, no melhor estilo dos oradores que atuavam no fórum romano. Ele até reconhece que as técnicas da historiografia grega estivessem mais avançadas, mas também quer deixar claro que não despreza os historiadores romanos, pois o conteúdo da história romana tratado 24 Segundo os termos retóricos, inventio não significa literalmente como um processo de criação, mas encontrar por meio da recordação. Desse modo, os pensamentos aptos para o discurso já se fazem presentes no subconsciente do orador, e só precisam ser despertados por técnica mnemônica. A concepção de memória é espacial em que os pensamentos são divididos por lugares (loci, ou do grego topói) diferentes. 25 Estas duas citações de Cícero foram extraídas de HARTOG (2001). 55 pelos historiadores possui importância capital na legitimação do sucesso romano, criando um teor de identidade com um passado glorioso. Como o próprio Cícero comenta em Do Orador (2,36), a definição de história consiste em ser testemunho dos séculos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, mensageira do passado . A importância da história para Cícero pode ser atribuída ao caráter de formação do cidadão romano, atuando como um instrumento adicional de todo o esforço de manutenção de uma ordem social consolidada, mas ao mesmo tempo em movimento. Os propagadores da tradição romana não poderiam, portanto, fazê-la de maneira inconsistente. Para Cícero o único modo realmente eficaz de assimilação do ouvinte, seria o emprego do estilo do orador e suas técnicas. 1.2.3. Lívio Com preocupações semelhantes às de Cícero, Lívio apresenta desde o prefácio do primeiro livro sua opinião acerca da importância do conhecimento do passado para seus contemporâneos, que podem encontrar na sua história referências de caráter moral a serem imitadas, que exaltam a tradição dos ancestrais, o mos maiorum. A partir da análise de seu prefácio é possível esboçar alguns pontos de suas concepções e das referências literárias, metodológicas e ideológicas que o influenciaram. Neste sentido, o prefácio oferece uma amostra das relações que Lívio estabelece entre presente, passado e futuro, e ainda a relação entre escritor e leitor. A história e o futuro caminham juntos com o presente atribulado de Lívio (KRAUS & WOODMAN, 1997, p.52). 56 Ao se analisar o prefácio do primeiro livro da Ab Urbe Condita, é possível encontrar muitas premissas de Lívio sejam elas teóricas ou ideológicas. O que não se sabe ao certo é se este prefácio foi escrito com o propósito de encabeçar toda a obra, determinando o tom pessimista aos livros subseqüentes, até chegar à abordagem do período de Augusto, exaltando o renascimento promovido por este princeps; ou se apenas o fez para acompanhar o primeiro livro, uma vez que o segundo livro também conta com um prefácio, tal como os demais arranjados nas unidades temáticas. Parte desta questão começou a ser analisada com mais cuidado desde os estudos de Luce acerca da época de publicação de Lívio, ou seja, antes ou depois de Otaviano tornar-se Augusto26. Logo nas primeiras linhas do prefácio, Lívio começa a demonstrar sua habilidade retórica. A análise aqui elaborada parte do princípio de que o prefácio deve ser dividido em duas partes. Na primeira, Lívio se propõe a empregar a tática de atrair a simpatia (captatio benevolentiae) do leitor, procurando convencê-lo a se interessar pela sua obra, explicando a grandeza do assunto. Em Prefácio 1, Lívio insinua que o assunto por ele tratado já é antigo (volgatam) e bem conhecido por todos (videam). A tradição e os escritores anteriores a Lívio já teriam tratado da história do povo romano, e para um assunto tradicionalmente conhecido, de nada adiantaria aos escritores crerem ser possível acrescentar informações mais autênticas ou que superariam os escritores anteriores pela arte de escrever. 26 Para mais detalhes, ver discussão presente no item 1 do capítulo 3 57 [1] Se me terá valido a pena escrever minuciosamente os feitos do povo romano desde os primórdios da cidade, não sei bem, nem, se soubesse, ousaria dizê-lo, [2] pois vejo que o assunto é tão antiquado quanto banal, enquanto sempre os novos escritores crêem que podem produzir informações mais autênticas aos fatos ou superarão a rude Antiguidade pela arte de escrever. [3] Seja como for, agradará pelo menos ter cuidado, eu próprio, na medida dos meios humanos, pela memória dos feitos realizados pelo povo que é o primeiro da terra; e se numa turba de tão grandes escritores, minha fama ficasse obscurecida, me consolaria a nobreza e a grandeza dos que fazem sombra ao meu nome27. Temas caros à tradição historiográfica grega e aos propósitos ciceronianos são apresentados logo de início. Lívio quer se mostrar consciente de que novas fontes sobre os assuntos mais antigos não serão encontradas, e que os escritores sobre os primórdios romanos muitas vezes se valem do procedimento de reescrever autores antigos. Há em Lívio algo que pode ser remetido aos seus antecessores gregos. Tucídides se esforçou por negar Heródoto, Políbio por negar Timeu. Lívio não desqualifica um antecessor específico, pois se o fizesse incorreria na falha de desqualificar suas fontes, mas parte do pressuposto de que todos que tentam alcançar uma precisão maior do passado não obterão sucesso. Pode-se até entender que ele próprio se inclui nessa lista, mas o que o diferencia é 27 [1]Facturusne operae pretium sim si a primordio urbis res populi Romani perscripserim nec satis scio nec, si sciam, dicere ausim, [2] quippe qui cum veterem tum volgatam esse rem videam, dum novi semper scriptores aut in rebus certius aliquid allaturos se aut scribendi arte rudem vetustatem superaturos credunt. [3] Utcumque erit, iuvabit tamen rerum gestarum memoriae principis terrarum populi pro virili parte et ipsum consuluisse; et si in tanta scriptorum turba mea fama in obscuro sit, nobilitate ac magnitudine eorum me qui nomini officient meo consoler. 58 estar consciente disso. Os escritores que obscureceriam sua fama não o fariam por competência de pesquisa ou de narração, mas pelo assunto tratado por si só. Falar do maior povo da Terra é a garantia do sucesso. Cerca de vinte anos após a publicação dos primeiros volumes da história de Lívio, Dionísio de Halicarnasso publicou sua Antiquitates Romanae28, que narrava as origens do povo e da cidade romana. As semelhanças encontradas em sua obra com a argumentação de Lívio oferecem mostras dos modelos correntes na época. Ambos criticam os que escrevem apenas em busca de prestígio a qualquer preço. O prestígio, ao contrário viria pela escolha do assunto e pela composição não negligente e sem a pesquisa. Dionísio ainda afirma que àqueles que decidem deixar monumentos para posteridade, capazes de não ser apagados pelo tempo como seus corpos, o mais importante deve ser a verdade, que é o princípio da razão e da sabedoria; e que devem escolher argumentos belos, cheios de prestígio e úteis para os futuros leitores. Para isso foi ele próprio foi buscar as fontes mais adequadas, pois quem se lança em obras históricas sobre fatos obscuros, maus ou indignos de qualquer empenho, seja porque visa se tornar conhecido ou adquirir algum tipo de renome, ou porque quer demonstrar habilidade de seu talento oratório, este não é admirado pelos seus conhecimentos, pela posteridade, nem louvado pelo seu talento (...); mas aqueles que escolhem os melhores assuntos, mas compõe por acaso e negligentemente, a partir do que 28 As Antiquitates Romanae de Dionísio de Halicarnasso influenciariam as Antiguidades Judaicas de Flávio Josefo, no séc. I d.C. 59 ouve primeiro, não recebe elogio algum por sua escolha: pois exigimos que não haja improviso nem negligência nas histórias que tratam de cidades e homens célebres (1.3-4) Ele justifica seus esforços por estar construindo uma obra fundamentada sobre um assunto que não é conhecido pelos gregos. Como ele próprio afirma, sua narrativa então será baseada nos próprios autores romanos: Aprendi a língua dos romanos e tomei conhecimento da literatura nacional. Pórcio Catão, Fábio Máximo, Valério Antias, Licínio Macer, os Èlios, Gélios, Calpúrnios e outros (1.7.3). Em outros momentos afirma estar seguindo Varrão (2.47.4; 48.4). Aqui, há uma clara re-significação da autopsia, e Dionísio parece estar tentando, com alguma dificuldade, adaptar a tradicional distinção entre o visto e o ouvido para circunstâncias particulares. Ele contrasta o que ele aprendeu pelo ouvido (parabolon) com o que ele estava apto a ler (analexamenos). Em ambos os casos suas fontes de evidência são indiretas, e ele procura aperfeiçoar as limitações entre os dois modos. Dionísio observa que as informações ouvidas são de primeira mão e que elas provém dos homens mais cultos. E mesmo este apelo à autoridade parece ser o melhor que ele pode fazer diante narrativas escritas das quais ele não é testemunha ocular: ele selecionou os autores mais aclamados (epainoumenoi). Ele, no entanto não indica as qualidades de um informante culto ou sobre qual base um autor vem a ser aclamado. Dionísio explicitamente se desassocia daqueles cuja base da narrativa se apóia em registros orais aleatórios (MILES, 1997, p. 11-13). 60 Uma possibilidade para Lívio ter adotado essa postura diante dos escritores pode ser vinculada ao artifício de amplificatio29. Esta despretensiosa equiparação dos escritores, que não alcançarão resultados mais satisfatórios, no entanto tem como objetivo amplificar o tema história do povo romano. Sutilmente, dá a entender q