UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS Cristina de Moraes Uma velha moldura habitada por silêncios, um fundo territorial e seis verbos para integrar: a formação territorial do Oeste catarinense (1880/1940) Rio Claro-SP 2018 DOUTORADO EM GEOGRAFIA UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO – CAMPUS RIO CLARO INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS Programa De Pós-Graduação Em Geografia UMA VELHA MOLDURA HABITADA POR SILÊNCIOS, UM FUNDO TERRITORIAL E SEIS VERBOS PARA INTEGRAR – A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO OESTE CATARINENSE (1880-1940) Tese de Doutorado apresentada ao Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Geografia Orientação: Professor Doutor Paulo Roberto Teixeira de Godoy; Co-Orientadora: Professora Doutora Carla Mariana Lois (UBA/CONICET) Rio Claro - SP 2018 Moraes, Cristina de Uma velha moldura habitada por silêncios, um fundo territorial e seis verbos para integrar: a formação territorial do oeste catarinense (1880-1940) / Cristina de Moraes. - Rio Claro, 2018 352 f. : il., figs. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Paulo Roberto Teixeira de Godoy Coorientadora: Carla Mariana Lois 1. Santa Catarina - Geografia. 2. Formação territorial. 3. Oeste catarinense. 4. Ideologias geográficas. 5. Práticas espaciais. 6. Fundo territorial. I. Título. 918.164 M827u Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP - Adriana Ap. Puerta Buzzá / CRB 8/7987 Doutorado Cristina de Moraes UMA VELHA MOLDURA HABITADA POR SILÊNCIOS, UM FUNDO TERRITORIAL E SEIS VERBOS PARA INTEGRAR – A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO OESTE CATARINENSE (1880-1940) Tese de Doutorado apresentada ao Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Geografia. Comissão Examinadora: Prof. Dr. Paulo Roberto Teixeira de Godoy IGCE – Unesp/Rio Claro Profª Drª Bernadete Aparecida Caprioglio de Castro IGCE – Unesp/Rio Claro Prof. Dr. Manoel Fernandes Sousa Neto FFLCH – USP, São Paulo/SP Prof. Dr. Paulo Pinheiro Machado CFCH – UFSC, Florianópolis/SC Profª Drª Rogata Soares Del Gaudio IGC – UFMG, Belo Horizonte/MG Resultado: Aprovada Rio Claro, SP, 05 de março de 2018. Agradecimentos O trabalho da pesquisa é um caminhar solitário, porém, não se faz sozinho. E nesse andar, longe de terras e hábitos templanos há presenças, apoios e companheirismos que ficam para além da escrita. E, portanto, é necessário agradecer aqueles/aquelas que tornaram possível a feitura desta tese e deste caminho. Com enorme carinho e satisfação por tê-los na minha vida, agradeço o apoio, amizade, as longas, agradáveis e construtivas conversas tecidas com Tiago Cavalcanti, Raiane Florentino, Rafael Henrique Teixeira da Silva, Camila Benatti e Guilherme Caruso. Pessoas que sem sombra de dúvidas tornaram mais agradável esta jornada. Sou grata ainda a Pati Martinelli, Messias de Lira, Lisa Farias, Rodrigo Cavalcanti e aos colegas do CEGeo: Beatriz, José Renato, Ricardo, Adma e Jéssica, bem como a todos os demais colegas, funcionários e professores que convivi. Em especial, minha gratidão ao professor e amigo Fabrício Gallo pela amizade acolhedora e incentivo constante. Sempre pronto e disposto a oferecer uma mão amiga. Minha gratidão também para com os funcionários de todos os acervos que realizei a pesquisa documental. Igualmente as funcionárias da Biblioteca da Unesp de Rio Claro, sempre gentis e prestativas, transformando o simples ato de retirar um livro um “encontro” que carinhosamente ficou em minhas lembranças deste ambiente. Em especial aos professores Manoel Fernandes Sousa Neto e Paulo Pinheiro Machado pelo aceite de participar do desenvolvimento deste estudo enquanto avaliadores na qualificação e defesa. Sou grata ainda as professoras: Bernadete de Castro, que além de avaliadora deste trabalho final, sempre colaborou com seu carinho, acolhimento e exemplo de pessoa. Minha admiração por ti é enorme. Sou grata ainda a professora Rogata Soares del Gaudio pelas importantes contribuições, apontamentos e correções realizadas. Embora sou a única responsável pelo o que é afirmado neste trabalho, acredito que a pesquisa não seria a mesma se não tivesse recebido as orientações e sugestões que recebi de vocês. Portanto, ofereço os parcos resultados desta pesquisa, bem como, expresso minha imensa gratidão e estima. Para a professora e co-orientadora Carla Lois fica uma nota especial por sua inestimável ajuda, pelo respeito recebido e pelo incentivo constante que serviram para tornar mais palpável o desenvolver desta pesquisa e evitar que “eu ficasse cega a luz da procura”. Suas contribuições foram valorosas para além da pesquisa, mas também como exemplo de pesquisadora e pessoa. Meus agradecimentos ao CNPq, agencia de fomento responsável pelo financiamento desta pesquisa. Sem referido apoio financeiro este estudo seria praticamente impossível. Sou grata e desejosa que este auxílio seja multiplicado e distribuído para outros/outras pesquisadoras. A ciência é fundamental para o desenvolvimento social e para isto, é igualmente primordial que ciência, educação e tecnologia sejam âmbitos acessíveis a um amplo e diversificado conjunto populacional. Por fim, mas não menos importante, meus agradecimentos aos meus familiares e aqueles que mesmo distante torceram por mim. Muito obrigado!! Era um fim de dia quieto Para quem quisesse ouvi-lo Apesar do céu sangrando Alguns mateavam tranquilos. Foi quando cascos nas pedras E constâncias de esporas Quebraram o calmo das casas Chamando olhares pra fora. Iam adentrando o povoado Quatro homens bem montados Três baios de cabos-negros Bem à direita um gateado Ponchos negros sobre os ombros, Chapéus batidos na face Silhuetas desconhecidas Pra qualquer um que olhasse. Traziam vozes de mandos Nas suas bocas cerradas E aparecendo nos ponchos Pontas de adagas afiadas. Olhavam sempre por perto Até mirarem um "ranchito" E sofrenarem os cavalos Onde um apeou solito. Primeiro um rangido fraco Depois um grito "prendido" E a intenção da adaga Tinha mostrado sentido. E os quatro em seus silêncios Voltaram no mesmo tranco Deixando junto a soleira Vermelho num lenço branco. Era mais um que ficava Depois que os quatro partiam Por certo em baixo dos ponchos Algum mandado traziam. Traziam fios de adagas E silêncios pra entregar... -era um gateado e três baios Foi o que deu pra enxergar!! Ninguém sabe, ninguém viu Notícias viram depois. Alguém firmava na adaga Só não se sabe quem foi. E o povoado segue o mesmo Dormindo sempre mais cedo Dormem ouvindo o silêncio E silenciam por medo! “No silêncio das janelas do povoado”. Luiz Marenco. Aquele ali, se aquentando, Que parece estar dormindo, É o velho "seu" Esmelindro Que ao pé do fogo se esconde, Quando lhe falam, responde, Mas senão, vive calado, Olhar triste, entrecerrado Perdido, não sei onde! É desses índios de estância Que ninguém conhece o drama. Tem só os arreios da cama E um poncho velho que o cobre. E embora nunca se dobre, Nem ao guascaço mais duro, Pouco lhe importa o futuro, Pois já nasceu pra ser pobre! Conhece de tudo um pouco, Trança, laça e gineteia Não fala da vida alheia Nem se mete em discussão E já ao primeiro clarão, A estrela d'alva saindo Encontra o velho Esmelindro De pé, batendo tição! É quem recolhe os cavalos Bem antes que o dia venha, Puxa água e corta lenha Pra as chinocas da cozinha. É quem cuida de galinha E dá quirera pra pinto. Sabe tudo por instinto E o que não sabe, adivinha! Surgiu um dia na estância Ao tanco dum baio-ruano E ficou. Passou-se um ano, Foi ficando, até ficar... E ao fim de tanto penar Só tem, além da ossamenta, Esse fogo onde se esquenta E esse galpão que é o seu lar. A ninguém diz de onde veio Nem tampouco pra onde vai. Não tem mãe, nem teve pai Que lhe acolherasse um nome E à medida que se some No tremendal da amargura Vai vendo que sem ternura As almas morrem de fome. Por isso é que ao pé do fogo Cabisbaixo e silencioso Vive a pensar no repouso Da cruz do campo, sozinha, Quando ali de tardezinha O vento for repetindo: Dorme aqui um tal de Esmelindro Que nem sobrenome tinha! “Seu Esmelindro” Gabriel Ortaça Resumo Esta pesquisa procurou analisar a formação territorial do Oeste de Santa Catarina, no período de 1880/1940, com o objetivo de desconstruir a interpretação de que os processos de formação possuem seu momento de gênese na implantação dos núcleos coloniais (a partir da segunda metade do século XX). Para isso, em um primeiro momento, constrói uma reflexão sobre como esta interpretação (da origem do Oeste catarinense a partir da colonização) produz uma moldura interpretativa que coloca em silêncio um significativo conjunto de eventos, agentes, relações e conflitos e acaba produzindo uma significação da “colonização” como evento fundador dessa região. Propõe-se como hipótese de investigação que essa perspectiva, de certo modo ainda vigente, acaba por tornar robusta a interpretação historiográfica proposta pela ideologia dominante. Sustenta-se, ainda, que a adoção do espaço-tempo de 1880-1940 como um fundo territorial em processo de integração corresponde a um fio investigativo que permite ultrapassar os silenciamentos produzidos pela historiografia. Também permite incorporar no enfoque acerca da formação dessa região alguns elementos que têm sido expurgados do passado oestino (como os conflitos advindos das relações de poder, os litígios territoriais, a atuação dos engenheiros militares na formação regional, o processo de mapeamento e racionalização etc). Conjuntamente com a ideia de fundo territorial, propõe-se que sejam consideradas as práticas espaciais que permitem a integração deste fundo. São identificadas seis práticas, as quais estão escritas na forma de verbos com o intuito de remeter a necessidade de compreendê-las sempre em uma perspectiva histórica, considerando-as sempre em movimento. São: partilhar, alinhavar, conhecer, significar, tecer e cultivar. Palavras-chave: Fundo territorial – Oeste catarinense – formação territorial – moldura interpretativa - práticas espaciais – ideologias geográficas. Abstract: This research intended to analyze the West territory formation of the State of Santa Catarina – Brazil, in the period of 1880 – 1940, aiming to break up the interpretation that the formation processes have their genesis moment in the implementation of colonial centers (from the second half of the XX Century). In this regard, at a first moment, it builts a reflection about how this interpretation (of the Santa Catarina West origin from the colonization) produces an interpretative frame that puts in silence a significant set of events, agents, relations and conflicts. Also produces a significance of the “colonization” as the founder event of this region. As an investigation hypothesis it is proposed that this perspective, in a certain way still valid, turns robust the historiographic interpretation suggested by the dominant ideology. It is argued yet that the adoption of the time-space 1880-1940 as a territorial fund in integration process agrees to an investigative line which allows to overcome the silences produced by historiography. Also allows to incorporate some elements that have been pushed out of the West past in the approach about this region formation (such as the conflicts from power relations, territorial disputes, military engineers performance in the regional formation, mapping and rationalization process, etc). Together with the idea of territorial fund, it is offered that all the space practices which allow the fund integration should be considered. Six practices are identified, in verb form, with the goal of contemplate the necessity of understanding them always under a historical perspective, always in movement: to divide, to baste, to know, to mean, to weave and to cultivate. Key-words: territorial fund – Santa Catarina Wes – territory formation – interpretative frame – space practices – geographical ideologies. Lista de Ilustrações Figura 01: Carta da Província de Corrientes do Território de Misiones de autoria de Martin de Moussy....................................................................................................................................109 Figura 02: Parte do Mapa das Cortes (1749) “Pepiri” e o rio Santo Antônio.........................112 Figura 03: Carta “Le Paraguay”- Parte S. D’Anville............................................................ 116 Figura 04: Mapa do Território Nacional de Misiones........................................................... 120 Figura 05: “American Progress” ...........................................................................................136 Figura 06: Mosaico de imagens capturadas durante os trabalhos demarcatórios entre os dois países, sob o título de “Cataratas do Iguaçu ou Salto de Santa Maria”.....................................................................................................................................140 Figura 07: Mosaio com o Mapa do Estado do Paraná............................................................143 Figura 08: Caricatura - República brasileira se opõe a partilha de Missões ................................................................................................................................................ 146 Figura 09: Caricatura sobre o Mapa das Cortes......................................................................153 Figura 10: Mappa das Questões de Limites entre Paraná e Santa Catharina......................... 174 Figura 11: Detalhe do Mappa das Questões de Limites entre Paraná e Santa Catharina........175 Figura 12: Legenda do Mappa das Questões de Limites entre Paraná e Santa Catharina......175 Figura 13: Mapa do Estado do Paraná (1896).........................................................................177 Figura 14: Planta de Viação do Estado do Paraná no ano de 1906....................................... 178 Figura 15: Carta do Estado de Santa Catharina (1907)..........................................................179 Figura 16: Mapa Geral mostrando a Estrada de Ferro de Paranaguá a Coritiba e seu prolongamento até a Foz do rio Iguassu nos limites imperais com as Repúblicas do Paraguay e Argentina.................................................................................................................................182 Figura 15: Detalhe da porção Oeste do Mapa Geral mostrando a Estrada de Ferro de Paranaguá a Coritiba...............................................................................................................183 Figura 18: Plano urbanístico de 1938, assinado por Serafim Bertaso....................................188 Figura 19: Imagem do monumento “o Desbravador”.............................................................192 Figura 20: Mosaico composto com imagens do Actas da Segunda Partida (Argentina/Brasil)...................................................................................................................205 Figura 21: Segundo mosaico composto com imagens do Actas da Segunda Partida........... 206 Figura 22: Imagens das cadernetas de campo........................................................................209 Figura 23: Mosaico de imagens referentes aos trabalhos demarcatórios da fronteira entre Santa Catarina e Paraná..........................................................................................................211 Figura 24: Fazendas Registradas pela Comissão Demarcatória em 1916........................................................................................................................................213 Figura 25: Mapa da distribuição magnética da serra divisória da fronteira entre Brasil e Argentina divisor das águas do S.(anto) Antônio do Pepery Guassu, kilometro 09...........................................................................................................................................217 Figura 26: Levantamento expedido pelo Coronel José B. Bormann como parte dos trabalhos da Colônia Militar do Chapecó..................................................................................................................................229 Figura 27: Detalhes do Levantamento expedido pelo Coronel José B. Bormann como parte dos trabalhos da Colônia Militar do Chapecó...................................................................................................................................229 Figura 28: Parte da Carta Corográfica do Paraná, ano de 1882............................................. 230 Figura 29: Mosaico de imagens relativas a Viagem de 1929..................................................239 Figura 30: Propaganda usada pela Sociedade Territorial Mosele, Eberle, Ahrons & Cia com emprego de mapas, plantas cadastrais e fotografias...............................................................251 Figura 31: Litografia “Os assentamentos alemães no Norte do Estado de Santa Catarina, Sul do Brasil”................................................................................................................................252 Figura 32: Localização das Fazendas, Colônias e concessões territoriais no período de 1910- 1920........................................................................................................................................260 Figura 33: Representação da mesma área, mas a partir de uma carta da localização das colônias militares nos Campos de Palmas..............................................................................260 Figura 34 – Localização de algumas das concessões de terras “devolutas” do Estado e das fazendas.................................................................................................................................. 262 Figura 35: Foto do edital expedido pela Brazil Railway proibindo a ocupação e posse das terras situadas às margens do rio do Peixe..............................................................................271 Figura 36: Caminhos e vias em 1880..................................................................................... 279 Figura 37: “Schema da Parte do Sul do Brazil demonstrando a localização geral e linhas da Brazil Railway Company” ....................................................................................................292 Figura 38: Mapa do Estado de Santa Catarina em 1927, com destaque para as comunicações construídas até o período........................................................................................................ 307 Figura 39: Mosaico comparativo de imagens das vias em 1880, 1882 (Campos de Palmas) e 1927 (Oeste catarinense)....................................................................................................... 306 Figura 40: Destaque para a região Oeste catarinense a partir do “Mapa do Estado de Santa Catarina em 1927”, com as vias de comunicação existentes ao final da integração do fundo territorial Oeste catarinense.....................................................................................................309 Figura 41: Propaganda da Colônia Bom Retiro em Concórdia – SC.....................................318 Figura 42: Propaganda da Colônia Rio Branco......................................................................319 Figura 43: Propaganda da Colônia Concordia........................................................................320 Figura 44: Os assentamentos alemães no norte do Estado de Santa Catarina (Sul do Brasil), datada de 1898........................................................................................................................322 Figura 45: Mosaico com detalhe de certificado de Técnico Agrícola e a Direita Brasão da Empresa Colonizadora Bertaso, Maia e Cia...........................................................................328 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 18 CAPÍTULO 01. DA PROBLEMÁTICA, HIPÓTESE E TESE.........................................21 01.01. Alinhavando ideias, incômodos e estranhamentos......................................................21 01.02. O atual conhecimento sobre a formação do Oeste catarinense....................................23 01.03. Do desconforto ao esboço de uma nova interpretação – o conceito de fundo territorial.................................................................................................................................. 35 CAPÍTULO 02. DO MÉTODO E DOS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS PARA DESFAZER A MOLDURA. ....................................................................................55 02.01. A apresentação da proposta construída......................................................................... 63 CAPÍTULO 03. CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL E SOBRE OS CAMPOS DE PALMAS NO FINAL DO OITOCENTOS........ 83 03.01. Considerações sobre a formação do território brasileiro no final do Oitocentos.................................................................................................................................83 03.02. Os “Campos de Palmas e territórios contíguos” no final do Oitocentos...................100 CAPÍTULO 04. INTERESSES, MAPAS E LINHAS A PARTILHAR ESPAÇOS. O LITÍGIO DE MISIONES/PALMAS E SUAS IMPLICAÇÕES NA INSERÇÃO DO FUNDO TERRITORIAL OESTE CATARINENSE........................................................106 04.01. Em busca de estabilidade política e territorial na Bacia platina: o caso do litígio de Misiones/Palmas.....................................................................................................................106 04.02. La tierra del oro verde: a importância de Misiones na formação territorial da República Argentina.................................................................................................................................119 04.03. A interiorização do Império e defesa das fronteiras: a importância das Colônias Militares para o expansionismo imperial brasileiro ...............................................................129 04.04. O Peperi vale mais que o Nicarágua” ou “as Cataratas do Iguaçú valem mais que as Quedas de Niágara”? Os interesses nas disputas territoriais da Questão de Misiones/Palmas.....................................................................................................................137 04.05. Aproximações políticas: a moeda de troca territorial..................................................144 04.05. “Vitória dos mapas” – a moldura cartográfica para (não) entendimento das práticas de poder no litígio........................................................................................................................152 CAPÍTULO 05. AJUSTES DE INTERESSES ENTRE TRILHOS, TERRAS E MATE: A QUESTÃO DE LIMITES ENTRE OS ESTADOS DE SANTA CATARINA E PARANÁ................................................................................................................................159 05.01. Origens e a construção dos limites territoriais entre os dois Estados......................... 160 05.02. Limites demarcados pelos enredos políticos e econômicos: o desenlace e alguns possíveis interesses.................................................................................................................179 05.03. Partilhar e cultivar: a criação dos novos municípios, instituição dos poderes locais e incorporação das ideologias geográficas.................................................................................183 CAPÍTULO 06. ALINHAVAR, CONHECER E SIGNIFICAR: COLOCAR LINHAS, SIGNIFICADOS E PODER NOS CONFINS....................................................................195 06.01. Alinhavar: a geometrização do espaço e o controle estatal..........................................198 06.01.02. As definições dos limites: práticas, questões técnicas, leituras e discursos territoriais................................................................................................................................202 06.02. Linhas, imagens e plantas cadastrais: a formação de um novo saber territorial..........218 06.03. A criação de significações geográficas funcionais a formação territorial................... 227 CAPÍTULO 07. AS TERRAS DO “SERTÃO” À ESPERA DOS “OBREIROS DA NAÇÃO”: LEIS E AGENTES DA COMERCIALIZAÇÃO DE TERRAS NO OESTE CATARINENSE....................................................................................................................242 07.01.Terras para agricultura comercial: o fundamento da lei imperial de terras...................243 07. 02. Constituição de 1891: autonomia para as oligarquias regionais.................................253 CAPÍTULO 08. TECER: O VERBO A COSTURAR OS SERTÕES.............................278 08. 01. Por terras, por águas: Os caminhos do domínio territorial e “descaminhos” do isolamento econômico dos Campos de Palmas em finais do século XIX..............................279 08.02. Caminho de ferro, mais caminhos por terra: intensificação da integração do fundo territorial por meio do ajuste espacial.....................................................................................292 08.03. Tempos e espaços entre as “costuras”: algumas leituras possíveis..............................304 CAPÍTULO 09 – CULTIVAR: A TERRA E O MITO FUNDANTE..............................312 09.01: Retratos do paraíso e “terras de fertilidade”: discursos a tecer o comércio e cultivar significações............................................................................................................................313 09.02. Rupturas e expropriação: elementos constituintes da colonização no e do Oeste catarinense...............................................................................................................................329 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................347 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................352 FONTES.................................................................................................................................365 18 Introdução Este trabalho apresenta o resultado da pesquisa de doutoramento que teve como estudo a formação territorial do Oeste catarinense, com o intuito de construir uma abordagem distinta daquela que permanece até contemporaneamente sobre esse processo. A concepção existente e majoritária aponta, direta ou indiretamente, a adoção do evento da colonização como “marco zero”, o que funciona como um arquétipo de interpretação que acaba por impor uma interdição histórica, designando os eventos que são considerados como pertencentes a essa interpretação. Por conseguinte, acaba por indicar o que não é considerado como elemento do Oeste catarinense, bem como propõe que alguns eventos pertencem a um passado sem vínculo com a implantação dos núcleos coloniais e daquilo que hoje conhecemos como a região Oeste de Santa Catarina. Essa visão, funciona como uma moldura interpretativa, que dentre as consequências mais notáveis, têm-se a existência de saltos explicativos (com intervalos de décadas), os quais são apresentados apenas justapostos, e a não investigação de práticas espaciais e suas articulações desenvolvidas durante a transição do século XIX para o XX. O resultado desta pesquisa está exposto em nove capítulos. A apresentação da problemática, da hipótese e da tese está explícita no Capítulo 01, o qual possui uma exposição sobre reflexões acerca do emprego conceitual referente a pesquisas que abordam a presente temática. Trata de conceitos como os de sertão, colonização e fronteira, para, a partir desses pensamentos, apresentar de forma sucinta a tese construída. Uma apresentação das obras de caráter regional que são referência para estudo da área de pesquisa também integra esse capítulo. No Capítulo 02, discorro sobre método, procedimentos metodológicos e diálogos afins, os quais julgo pertinentes para explicar sobre a construção desta pesquisa. É nesse mesmo capítulo que apresento uma proposta alternativa de interpretação, visto que além da crítica, convém indicar outras possibilidades de estudo e investigação. De certa forma, o Capítulo 01 e o Capítulo 02 estão muito relacionados, de modo que as suas ideias somente são compreendidas de maneira satisfatória com a leitura de ambos. A partir do Capítulo 03, expõe-se a proposta de investigação elaborada. Especificamente esse terceiro capítulo, intitulado “Considerações sobre a formação territorial do Brasil e sobre os Campos de Palmas no final do Oitocentos” foi construído com o objetivo de fornecer um panorama da formação territorial brasileira, por meio da qual a integração do 19 fundo territorial adquiriu caráter processual. É a contar dessa estrutura que o projeto de modernização do território e da sociedade foi construído, sendo importante o entendimento deste para contextualizar as intervenções territoriais e sociais que posteriormente foram realizadas nos Campos de Palmas. Os Capítulos 04 e 05 exploram as intervenções e os interesses que caracterizaram os dois litígios territoriais que integraram as áreas em estudo, sendo a querela das Misiones/Palmas e a formação dos limites entre Paraná/Santa Catarina. A resolução da soberania e da administração de um espaço corresponde a um evento primordial para o desenvolvimento de políticas que visam à formação territorial, visto que somente após essas resoluções é que as práticas de integração podem ser desenvolvidas com maiores efetividade e investimento. O Capítulo 06, denominado “Alinhavar, conhecer e significar: colocar linhas, significados e poder nos confins”, tem como objetivo descrever sobre o que identifico como segundo, terceiro e quarto verbos da inserção de um fundo territorial. O primeiro refere-se ao processo de geometrização do espaço, com o intuito de torná-lo passível de uma leitura que atenda às demandas do Estado territorial, bem como a episteme do capital. Conjuntamente, o ato de conhecer as feições geográficas consubstancia esse processo de tornar conhecido o espaço para melhor exercício do poder e também do desenvolvimento do referido modelo econômico. O ato de conhecer não corresponde necessariamente a uma leitura fidedigna daquilo que é observado. Por fim, a construção de significações funcionais à formação territorial integra e finaliza esse capítulo. O Capítulo 07, “As terras do “sertão” à espera dos “obreiros da nação”: Leis e agentes da comercialização de terras no Oeste catarinense”, versa sobre alguns agentes que orquestraram a colonização do Oeste catarinense, bem como sobre os aportes jurídicos e relacionais que ancoraram a produção de espaço sob os moldes capitalistas, destacando as alianças políticas que funcionaram como domínio de classes. O Capítulo 08, intitulado “Tecer: o verbo a costurar os sertões”, contempla especificamente a construção dessas estradas de rodagens, estradas vicinais e ferrovias construídas, sobretudo, a partir da expansão territorial do capitalismo, cuja integração de fundo territorial é um processo elementar. Isso ocorreu mediante a ruptura das barreiras geográficas e a atribuição de fluidez do espaço, regularidade dos fluxos, dinamicidade dos povoados já existentes. Permite a produção do espaço a partir da articulação de padrões espaciais distintos. 20 Por fim, o Capítulo 09, “Cultivar: a terra e o mito fundante”, tem como objetivo discorrer sobre as leituras sociais tecidas em relação aos caboclos e colonos-migrantes, consistindo em uma expressão do conflito advindo das diferentes formas de organização social desencadeadas a partir da privatização da terra. Essas leituras tecidas e inseridas com fortes ingredientes de animosidade e desprezo para o grupo já residente podem ser compreendidas como estruturas que definem os papéis e as hierarquias dos grupos a partir de certa ideologia veiculada. Ao final do item, tento mostrar como essas representações também estruturam relações de poder, outorgando aos “desbravadores” (e agentes que adotam postura semelhante) a função de direcionar a sociedade, seja como modelo, seja por meio das instituições políticas locais. 21 Capítulo 01 – Da problemática, hipótese e tese. Neste Capítulo, apresento a problemática da pesquisa, a hipótese, algumas indagações e a proposta da tese construída. Após uma breve exposição feita nos parágrafos a seguir, o segundo subcapítulo esboça um panorama de alguns trabalhos e obras acadêmicos que versam sobre o Oeste catarinense, os quais se constituem como parte das referências fundamentais que vêm sendo utilizadas. O terceiro subitem, “Do desconforto ao esboço de uma nova interpretação - o conceito de fundo territorial” traz exposição de algumas ideias subjacentes à tese construída. Embora essa tese construída seja a tese aqui apresentada, uma explicação esmiuçada da mesma está no Capítulo 02, em razão de o desenvolvimento da explicação parecer mais adequado quando apresentado junto à exposição sobre método e reflexões agregadas. 01.01. Alinhavando ideias, incômodos e estranhamentos Com algum tempo vivido em ambiente acadêmico, intrigava a minha atenção o fato de que alguns assuntos, aos quais minha curiosidade era (e é) cativa, não integravam grande parte das temáticas discutidas em eventos científicos regionais. Também não integravam o conteúdo de disciplinas ofertadas para entendimento da região Oeste e, assim, essa ausência se prolongava para outros espaços/momentos: discussões, diálogos, seminários de pesquisas e pesquisas demonstravam a mesma carência para com a temática. Tal constatação deixava a interpretação de que estava implícito que o pensamento científico partilhava da concepção de que o Oeste catarinense tem seu surgimento após e com a colonização, de modo que os eventos precedentes ao movimento migratório eram concebidos como não integrantes do Oeste, situados em um passado desvinculado, sem conexão com o contexto atual e mesmo com o espaço produzido durante a colonização (início do século XX). Nessa abordagem majoritária1, é raro conceber, em um mesmo campo analítico, a colonização com os seguintes eventos: o litígio de Palmas/Misiones – quando aparece é abordado somente nos seus aspectos diplomáticos –, o litígio entre as oligarquias paranaense e catarinense pela definição das divisas territoriais, ou ainda a importância da Colônia Militar 1 Essa abordagem majoritária que me refiro é a proposição que o Oeste catarinense tem na colonização o seu momento fundante. Essa ideia aparecerá ao longo do texto identificada como moldura interpretativa. 22 do Chapecó para formação do território2. Esses eventos são parcamente explorados como constituintes da formação territorial e, quando são incorporados, formam uma construção interpretativa e enunciativa que os coloca como momentos “do antes do Oeste”, propondo, implicitamente, que não integram o que hoje é realidade naquele referido espaço, ou que não há relação com a colonização. Embora existam referências a esses eventos, parece que ainda demandam uma análise mais acurada de suas relações, das articulações estabelecidas entre as práticas espaciais, dos desígnios, dos discursos desses momentos, que (majoritariamente) são postos como separados. A impressão é a de que existia (e existe) um campo temático com uma metodologia e estrutura de abordagem que orienta como o Oeste catarinense deve ser analisado, interpretado ou como devem ser efetuadas as suas temporalidades. Diante dessa constatação, algumas inquietações foram tecidas concomitantemente à própria construção da problemática. Dessas indagações, é possível destacar a relação entre essa visão acadêmica e a visão da historiografia oficial construída nos entremeios da política, das classes e da ciência. A resposta, ou algumas explicações que nos permitem considerar como uma dúvida sanada não é (são) uma peculiaridade ao objeto de estudo desta Tese, visto que integra (m) uma prática discursiva e de poder que é comum a boa parte da formação brasileira. As aproximações na origem da interpretação que atribuiu ênfase às datas e aos eventos oficiais criados pelo estado, a estrutura de entendimento associada à história local (com ênfase nos primeiros moradores da colonização ou da fundação), com as propostas de construção da identidade, indicavam as proximidades com a ideologia da classe dominante e a vigência dessa concepção. Disso emerge outra indagação: Qual (ou quais) a implicação que a permanência dessa concepção ainda possui no desenvolvimento de pesquisas e de conceitos, visões e métodos investigativos, para uma compreensão do Oeste catarinense, no seu passado e no seu presente? A inexpressiva presença de pesquisas que englobam a Questão de Misiones/Palmas, litígio entre Paraná e Santa Catarina, é uma das mais evidentes e óbvias consequências desse corte histórico-geográfico. Porém, também parecia ser ainda necessário realizar um esforço para refletir sobre as potencialidades e retrações/fechamentos de investigação e entendimento que a adoção de determinados conceitos e abordagens acabava por ocasionar. Em outras palavras: a atual concepção, majoritária e consolidada de que o Oeste tem seu início a partir da colonização permite explorar quais campos analíticos, quais temáticas e como estas têm sido submetidas metodologicamente. Convém realizar um esforço de indagação sobre como 2 Dos três eventos mencionados, a atuação da Colônia Militar é aquela que tem menor incidência. 23 conceitos empregados ampliam ou reduzem o ângulo de investigação e permitem que um conjunto de problemas seja analisado. Diante desse quadro de questões, adotou-se como premissa de trabalho que as atuais propostas de interpretação sobre a formação do Oeste catarinense não rompem com a proposição incrustada na ideologia disseminada durante o século XX, construída a partir da articulação entre ciência e classe social. Portanto, servindo como sustentação das referidas concepções construídas pelas fracções da classe dominante brasileira e catarinense. Essa sustentação ocorre mediante o corte histórico-espacial que adota a colonização como marco zero, bem como pela expressiva produção historiográfica vinculada à memória coletiva desses colonos3. A partir dessa premissa, buscou-se construir uma abordagem alternativa para romper com a visão emoldurada. Antes de explorar um pouco mais alguns conceitos empregados para abordar a formação territorial e suas capacidades investigativas, apresento, no item seguinte, algumas obras que versam sobre o Oeste catarinense, as quais são muito empregadas para os estudos regionais. Isso auxiliará o leitor a entender uma parte do contexto acadêmico do qual minhas reflexões partiram. 01.02. O atual conhecimento sobre a formação do Oeste catarinense No item anterior foram apresentados dois apontamentos pertinentes de serem retomados. Em um deles afirmo que a proposta de compreender a formação do Oeste a partir da colonização advém da combinação do discurso proferido pelas classes dominantes e estado, mediante a historiografia produzida naquele período e a forma como esta última foi incorporada ao saber escolar. Pode ser identificado como o momento da constituição desta moldura, ou conforme será apresentado no Capítulo 02, o ato e momento do silenciamento das informações indesejadas. O outro apontamento importante é que afirmo que devido à característica do conjunto de pesquisas acadêmicas que se debruçaram sobre eventos que ocorreram no tempo entre 1880 e 1940 e pela baixa expressividade de pesquisas, sobretudo na Geografia, que exploram 3 Sobre as memórias dos colonos, é interessante assinalar que são importantíssimas, seja para as questões de memórias familiares, seja para entendimento do valor de determinados objetos, saberes e relações no âmbito do patrimônio. Elas também são uma das chaves de entendimento da própria contradição do discurso enrobustecido pela ideologia que coloca essa migração sob véus de heroísmo e grandiosidade, quando a concretude da vida era outra. Todavia, se a história da região se reduz somente ao resgate ou à análise a partir dessas memórias, acaba por conferir a elas uma condição de fundante da região, quando defendo que elas são partes de um momento importante, mas que não é o início da região Oeste. 24 os eventos antes da colonização, não houve ruptura da proposta criada pelo discurso hegemônico. É importante salientar que esses dois apontamentos se referem a posturas políticas e acadêmicas distintas, cuja diferença advém exatamente da escolha da forma de abordagem sobre a temática. Se o primeiro conjunto de abordagens refere-se ao momento da criação, o segundo apontamento e todo o conjunto de autores e obras que engloba são mais complexos de se entender por qual razão, mesmo dotados de postura crítica, não produziram uma ruptura com a moldura. Trata-se de uma consequência advinda da escolha de objeto de pesquisa, geralmente muito mais centrado em um evento apenas, como a atuação de uma empresa colonizadora, do Movimento Social do Contestado, do movimento migratório, da criação dos núcleos coloniais etc. De imediato, é possível identificar que esses trabalhos possuem um recorte espacial e, principalmente temporal distinto daquele que assumi nesta pesquisa. Logo, o enfoque e a reflexão também irão diferir. O evento da colonização ao mesmo tempo em que é considerado pela historiografia oficial como marco zero, é, por outro lado, também excessivamente estudado, visando apontar críticas, em especial, aos conflitos decorrentes da especulação e privatização de terras que caracterizam o processo. Neste último caso, mesmo que motivados por interesses distintos, produzem uma ênfase significativa em um único evento, que, ao meu ver, reforça os interesses integrantes da ideologia dominante. Com o intuito de fornecer um rápido panorama da produção acadêmica sobre o Oeste catarinense na transição do século XIX ao XX, os parágrafos a seguir apresentam um sucinto resumo de algumas obras que são frequentemente empregadas para fundamentar a formação da região Oeste. Algumas delas possuem um recorte histórico que abrange eventos antes da colonização, outras um recorte temporal menor. O livro “Ciclos econômicos regionais – modernização e empobrecimento no Extremo Oeste catarinense”, de Paulo Ricardo Bavaresco, é construído através da Geografia Regional e com perspectiva econômica sobre os ciclos econômicos regionais: na divisão proposta pelo autor engloba a pecuária, atividade ervateira, madeireira e o ciclo agroindustrial. Com o objetivo de “compreender e analisar a relação entre o desenvolvimento econômico e a situação social da região” (2005, p.19), ainda possui como proposta “contribuir no debate e buscar aprofundar o entendimento sobre a relação entre cada um dos quatro ciclos econômicos e o desenvolvimento regional, com destaque para a situação atual” (2005, p.19). Ao longo da análise, dialoga com os aspectos populacionais e sociais. Inspirado em Waibel (1949) adota a paisagem cultural como categoria de análise, assim “a paisagem cultural criada pelos colonos é, portanto, o nosso ponto de partida para a realização desse trabalho” (2005, 25 p.20). É um dos trabalhos que apresenta um amplo tempo analisado, com informações que subsidiam a compreensão da formação territorial. Com enfoque notório no âmbito econômico, possui uma proposta que propõe a interpretação a partir de inícios e rupturas, as quais acabam por forçar uma ideia de descontinuidade4. O livro “A luta da erva: um ofício étnico da nação brasileira5 no Oeste catarinense”, da antropóloga Arlene Renk, traz como contribuição o estudo dos “brasileiros no oeste catarinense, que se estabeleceram no hiato de dois povoamentos locais” (2006, p.09). O primeiro povoamento está atrelado à atividade pecuária, e o posterior, à implantação dos núcleos coloniais. Tem como objetivo “traçar a trajetória do grupo de brasileiros, na tentativa de reconstituição da expropriação desse grupo étnico e sua transformação em ervateiro/tarefeiro, o que por sua vez, implica abordar também a sua diferenciação étnica” (2006, p.11), que foi construída em contraposição aos migrantes oriundos do Rio Grande do Sul e que também são abordados no livro. Esta comparação permite uma visão ampla das complexas relações estabelecidas durante a colonização. A noção de trajetória empregada é compreendida como “uma série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo grupo ou agentes no espaço social, ele próprio em constantes transformações” (2006, p.12). É um trabalho rico em informações sociais e culturais desses dois grupos, sobretudo dos caboclos, uma vez que são objetos de pesquisa de forma reduzida. Inegavelmente, traz informações que subsidiam o entendimento da formação territorial – como a concessão de títulos de terras, conflitos entre oligarquias e questões limítrofes, mas sem aprofundá-las. O trabalho de Jaci Poli denominado “Caboclo: pioneirismo e marginalização” foi construído com a finalidade de “interpretar as características da ocupação cabocla, geralmente relegada a segundo plano em função de sua pouca expressão econômica” (POLI, 2014, p.150). Informa que a compreensão de Oeste catarinense adotada no trabalho é o primitivo Chapecó6, dividindo o povoamento regional em três fases: indígena, cabocla e colonização. O desenvolvimento do trabalho traz informações sobre a ocupação dos Campos de Palmas e da Colônia Militar do Chapecó, colocando em foco aspectos econômicos (também em fases: erva-mate, madeira etc.) e sociais (descendência étnica, costumes e relação com a terra). 4 A ideia de descontinuidade é intrínseca a interpretação de ciclos, porém, considerando a proposta ainda vigente de interpretar o início do Oeste a partir da colonização, essa noção de início/fim pode funcionar (mesmo que não desejada pelo autor) como um reforço a historiografia. Em uma aproximação com a ideia de Bavaresco e para evitar transferências de interpretações de um campo temático a outro, poderíamos indagar quais funções para a formação territorial o desenvolvimento de determinadas atividades econômicas está cumprindo. 5Brasileiros é a designação que os caboclos/sertanejos se identificam, portanto a autora usa esta designação. A mesma é fruto das relações de identificação e diferenciação criadas a partir da colonização que introduziu no Oeste catarinense descendentes de imigrantes europeus. 6 Corresponde à abrangência territorial da criação do município de Chapecó, em 1917. 26 Em relação a esses três primeiros trabalhos, já é possível tecer algumas considerações. São trabalhos que efetuam um recorte temporal antes da colonização, ou que integram claramente o caboclo como objeto central de pesquisa (no caso, o livro da Renk). Logo, perpassam temáticas que no interior da visão hegemônica “não integram” o Oeste de Santa Catarina – SC. Então, por quais razões esses trabalhos não rompem com a moldura? A primeira razão, e que servirá para todos os demais trabalhos analisados, é acerca do objetivo que moveu a construção da pesquisa e a exposição da mesma. O segundo motivo é que, por diferentes causas, os três colocam de forma muito demarcada o que ocorreu antes e durante a colonização, seja pela proposta de ciclos, seja pela proposta de fases de povoamento. Tal tratamento metodológico, com uma demarcação temporal que coincide com a proposta da historiografia oficial, é que acaba funcionando (mesmo que não intencionalmente) como um reforço ou aceitação da abordagem temporal. Compete, ainda, assinalar que quando afirmo que ocorre esse reforço, o mesmo provém do tratamento metodológico atribuído ao tempo. É válido salientar, também, que quando sustento a afirmação de não ruptura, esta não é sinônimo de afirmar que esses trabalhos partilham da mesma concepção do discurso oficial. Ao contrário, é notório o conjunto de críticas e reflexões que levantam, as quais permitem compreender os conflitos que caracterizaram aquela sociedade. Prosseguimos. A obra “A colonização de Santa Catarina”, de Walter Piazza, é rica em informações, inclusive algumas não muito disseminadas. Com exposição mais pontual, não traz o aprofundamento de alguns assuntos, nem os submete a um processo reflexivo. O recorte temporal efetuado pelo autor é feito desde os primeiros movimentos migratórios, com a invasão do continente americano pelos ibéricos. É importante ressaltar que o termo “colonização” é empregado para designar todo o movimento de uma população avançar sobre outra, e não apenas para a implantação dos núcleos coloniais no Oeste do estado. Especificamente sobre esta região é possível identificar que o autor considera o povoamento realizado antes da criação dos núcleos no século XX. O livro de Renilda Vicenzi, “Mito e história na colonização do Oeste catarinense”, traz no título a proposta de discutir os mitos existentes acerca da colonização, proposta reforçada pelo prefácio de Maestri ao afirmar que: uma das múltiplas contribuições deste livro é o sensível trabalho de desconstrução das narrativas míticas assinaladas sobre o processo colonizador, sobretudo, mas não apenas, no que se refere à região estudada. Através de segura revisão e crítica historiográfica, a autora impugna as apresentações da ocupação pioneira ítalo-sulina de um oeste catarinense falsamente sugerido como sertão (MAESTRI apud VICENZI, 2008, p. 09). 27 O trabalho explora pouco essa discussão sobre o “mito” do sertão e centra mais em suas contribuições na análise da colonização. Nas considerações iniciais afirma que investigou-se o processo migratório dos pequenos proprietários colonos de ascendência italiana no oeste catarinense em geral, e em especial no município de Chapecó, nos anos de 1920 a 1950, procurando elucidar a forma de colonizar dessa comunidade humana, no contexto da apropriação da terra demarcada, loteada e vendida pela Companhia Colonizadora Bertaso. (VICENZI, 2008, p. 19) O trabalho de Radin, “Companhias colonizadoras em Cruzeiro: representações sobre a civilização do sertão”, investigou a atuação das companhias colonizadoras na reconstrução do espaço no antigo município de Cruzeiro (hoje Joaçaba), no período da construção da ferrovia, no final da primeira década, até meados do século XX” (2006, p.iii). Nessa mesma perspectiva, estão os trabalhos de Werlang (2002) e Valentini (2009). Do primeiro autor, a tese “Atuação da Cia Territorial Sul Brasil – 1925-1954” ,que também resultou na obra intitulada “A colonização do Oeste catarinense7”, teve como objetivo “estudar o processo de colonização do Oeste catarinense a partir da atuação da Companhia Territorial Sul Brasil” (1992, p. iv). A tese de Valentini (2009), “Atividades da Brazil Railway Company no Sul do Brasil: a instalação da Lumber e a Guerra na Região do Contestado”, analisou a “atuação da Brazil Railway Company, olding criada por Percival Farquhar em 1906 nos EUA e que atuou na Região do Contestado nos ramos ferroviário, madeireiro e colonizador” (2009, p.08). Esta última, assim como a tese de Radin, possui um recorte espacial distinto daquele que aqui investigamos. Entretanto, ambos são citados para fundamentar trabalhos sobre a atuação desta ou de outras empresas colonizadoras no Oeste catarinense, devido à semelhança do processo e procedimentos adotados por essas8. Os trabalhos de Radim, Valentini e Werlang possuem o objeto de estudo centrado no momento da implantação dos núcleos coloniais. Salientam com rigor os conflitos sociais e culturais, advindos das relações entre caboclos e migrantes, que se estabeleceram a partir da privatização da terra. E é exatamente por centrar o objeto de pesquisa neste momento histórico que não existem argumentos para que essas pesquisas realizassem uma crítica acerca do recorte espaço-temporal semelhante ao que estou a realizar. 7 Que compõe a série “Oeste Catarinense – Paradidáticos”, da Editora Argos (UnoChapecó). 8 E também porque a Brazil Railway Company atuou em outras concessões de “terras devolutas” que estão no Oeste. 28 Diante desse quadro composto pelos dois grandes grupos mencionados acima, fica a indagação acerca das possibilidades de pesquisa e seus enfoques a partir do panorama apresentado acima. Diretrizes, recortes, conceitos e abordagens permitem reflexão e entendimento que pressupõem uma linha evolutiva (convergindo com o discurso oficial), ou permitem explorar outros enfoques? Quais são as interpretações existentes quando é necessário realizar uma busca de obra acadêmica sobre a formação do Oeste catarinense no final do Oitocentos e início do Novecentos? Nesta mesma linha de argumentação, acrescento mais duas considerações. A primeira é a ausência de trabalhos de Geografia que contemplem o período aqui estudado, nas diferentes possibilidades de investigação (regional, territorial, conhecimento geográfico e cartográfico, atuação dos engenheiros militares na formação territorial etc.). Isso pode ser constatado ao se avaliarem as temáticas dos trabalhos de pós-graduação em geografia das Instituições de Ensino Superior do Sul do Brasil, nos quais a presença dessa temática é baixa. Essa inexpressividade de trabalhos que investigam o final do Oitocentos e início do Novecentos pode estar vinculada, ainda, aos seguintes fatores: a) ideia de que a Geografia está mais voltada para discussões contemporâneas9, o que explica a inexistente discussão sobre a formação territorial do passado nas pesquisas; b) pela historiografia oficial que ainda permanece em partes dos trabalhos que não emergem da descrição e que enfocam os grandes atos sobre o processo de ocupação e povoamento; c) a adoção da ideia de território dado, e não a partir da noção de formação territorial. Este último caso ocorre quando a leitura geográfica é destituída de um olhar histórico e passa a considerar o território já formado (com as divisas estaduais acordadas em 1916), sem levar em consideração as práticas espaciais e os conflitos políticos que resultaram nessas divisas. A manifestação mais evidente disso é a ausência de trabalhos que estudaram a formação territorial do Sudoeste do Paraná, como referência para entendermos a própria formação do Oeste de Santa Catarina, visto que até 1916, ambas correspondiam aos Campos de Palmas. Trabalhos como o de Cristiane Szesz (1997), intitulado “A invenção do Paraná – o discurso regional e a definição das fronteiras cartográficas (1889-1920)”; o de Liliane Freitag, sob o título “Extremo-Oeste paranaense: história territorial, região, identidade e (re) ocupação”; o de Cecília Westphalen e Ruy Wachowski fornecem um cabedal de informações e reflexões que permite ampliar o entendimento para o finessecular do século XIX, considerando a escala geográfica de ocorrência dos eventos e não a unidade territorial delimitada. 9 “(...) muitas comunidades acadêmicas de geografia, notadamente do Brasil, parecem ter instalado uma regra informal de que a geografia deve tratar unicamente do presente”. SILVA, 2012, p.02 29 Ainda é possível encontrar algumas publicações mais recentes, como de Xavier (2015), Martinello (2016), Petrolli (2018) e Aranha (2014). Do primeiro autor, tem-se o livro “O Coronel Freitas e a Colônia Militar do Chapecó – Os primórdios de Xanxerê e a colonização do Oeste catarinense”, que tem como foco “a administração da Colônia Militar do Chapecó, de 1900 a 1903, quando dirigida pelo então Major João José de Oliveira Freitas” (p.17), possui informações importantes sobre essa instituição, embora sejam breves e careçam de maior fundamentação científica. É um livro com aspectos biográficos, visto que o maior enfoque está mais na pessoa do Coronel Freitas do que propriamente nos aspectos históricos, geográficos ou sociais da Colônia Militar do Chapecó. Todavia, permite ao leitor o acesso a informações interessantes sobre o funcionamento da instituição, as quais podem ser aproveitadas para impulsionar a elaboração de pesquisas com viés mais acadêmico. Do autor Martinello (2016), tem-se o trabalho de doutoramento com a tese intitulada “Geografia histórica, discursos espaciais e construção territorial em Santa Catarina”, a qual buscou “mapear alguns momentos relevantes, circunstâncias e situações na constituição histórica de “um espaço catarinense” e suas territorializações [...] defende uma ideia, a tese de como a localização da capital e sua sede administrativa é resultado de arranjos do período colonial, sendo herança que resistiu ao tempo (mais do que a conjuntura que a tornou lócus de poder) e permaneceu às mudanças.” O trabalho abrange desde o período colonial até o republicano. Sob o título “De Buenos Aires a Misiones: civilização e barbárie nos relatos de viagens realizadas à terra do mate (1882-1898)”, a dissertação de Aranha traz importantes contribuições para entender o jogo de interesses entre Brasil e Argentina para dominar os Campos de Palmas. Na mesma perspectiva, é possível citar o trabalho de Alcaráz (2013), intitulado “La gestacion de una elite local durante la explotacion yerbatera-maderera en el Alto Paraná (1870-1920)” que: Rompiendo con una tradición del historicismo local corriente, cuyo problema ha sido por lo general el de explicar el hiato entre la organización misional jesuítica y el poblamiento desplegado por el impulso del gobierno central y las empresas privadas de colonización desde 1897 en adelante, el autor parte del supuesto de una ordenación territorial y consolidación de los grandes patrimonios a la luz de un capitalismo sui generis, característico de las regiones subalternas respecto de los centros de poder mundial. Diante da riqueza desse trabalho, é possível indicar o conjunto de informações e reflexões sobre a formação do capitalismo nas proximidades da Fronteira Sul brasileira, em 30 especial a atuação dos empresários ervateiros, principalmente Barthes, que exploraram ervais nos Campos de Palmas. Outro trabalho interessante é de autoria de Petrolli (2018), que estuda a questão de limites entre as Províncias do Paraná e Santa Catarina durante o período de 1853 até 1889. Coloca como enfoque de análise um importante evento da formação territorial dos dois estados, o que também tem recebido poucos estudos. Nesta pesquisa10 Defende-se que, a contenda entre catarinenses e paranaenses se constituiu num problema de significativa importância política e econômica na Fronteira Sul, pois contemplava assuntos considerados centrais – “consideração política”, administração pública, desenvolvimento fiscal e expansão da colonização – inerentes ao processo de constituição da unidade nacional a partir das relações estabelecidas entre o centro (Corte) e as partes (províncias). A partir daí, sustenta-se que a não resolução da pendência de limites pode ser explicada através da própria natureza da organização política brasileira daquele período. [...] Nesse sentido, a continuidade de problemas com pendências territoriais entre muitas das províncias era vista como prejudicial para o desenvolvimento econômico e para a manutenção da estabilidade política. Assim, ao contrário do que se possa imaginar, a Questão de Limites revelou-se como um tema importante para se compreender – guardadas as devidas proporções de um caso específico – a organização política e econômica provincial, bem como o próprio processo de formação do território do Brasil. Este último arrolamento de autores cujas pesquisas são mais recentes (Szesz, Freitag, Aranha, Alcaráz, Petrolli e Martinello), são trabalhos que exploram enfoques que ainda não haviam sido estudados, fornecendo importantes reflexões e debates e ampliando cada vez mais o horizonte de entendimento acerca da formação territorial do Oeste catarinense. Ainda assim, observou-se que a hipótese de trabalho que foi levantada para delinear a presente pesquisa não integrou os objetivos de pesquisa desses autores – o que não reduz a contribuição para o desenvolvimento científico que cada trabalho possui. Com esta nota pretendo apenas reforçar que a problemática deste trabalho permaneceu em aberto, mesmo com as importantes e recentes pesquisas, cuja permanência se deve aos objetivos de estudo de cada autor. Uma segunda observação advém da análise de trabalhos acadêmicos que realizam a tradicional (e necessária) contextualização histórica do seu objeto de estudo (região Oeste), para depois explorar como a sua temática principal (esta temática pode ser desde a agrária, rural, algum setor econômico etc). Observa-se que essa contextualização histórica possui grandes saltos explicativos – da Questão de Palmas ao início da colonização, que é o mais 10 Até a finalização da pesquisa apresentada, a tese de Petrolli estava nos trabalhos finais para a defesa. Logo, o trecho citado foi gentilmente fornecido pelo autor (ao qual sou imensamente grata). 31 recorrente. Trazem mais informações sobre os primeiros anos da implantação e do desenvolvimento dos núcleos coloniais, o que perpassa a ideia de que é este o “início”. Estão mais atrelados aos eventos oficiais do que propriamente ao processo de formação territorial. Como resultado desse somatório está a interpretação do início do Oeste catarinense a partir da colonização, por conseguinte, isso implica que os processos e sujeitos antecedentes a isso não são vistos como partes dessa formação territorial e social. Foram transformados em elementos exóticos, silenciados ou mesmo em inexistentes. Assim, não afirmo que os autores que mencionei, que compõem o primeiro grupo (Radim, Bavaresco, Werlang, Renk, Valentini, Piazza etc.), possuíam a intenção de corroborar essa historiografia oficial. Os mesmos, além de possuir posicionamento distinto da historiografia oficial, cumpriram os objetivos assumidos no interior de suas respectivas pesquisas, as quais não se propunham a discutir a formação do território no período de 1880 a 1940. Afirmo que, como um somatório de fatores, a historiografia oficial recebe continuidade nos trabalhos de Geografia, mesmo que indiretamente (por não questionar alguns conceitos, escalas espaciais e temporais, etc). É oportuno destacar que referidos autores deixaram uma significativa contribuição a questões importantes e fundamentais para se entender essa região, o que pode ser comprovado pelo relevante emprego dessas obras como referências para o desenvolvimento de outras pesquisas acadêmicas. Outra ocorrência é o uso de expressões que tem subentendida a ideia de início do Oeste a partir da colonização. Como exemplo temos a expressão “antes do Oeste”11 (a qual adota a colonização como divisor de águas) que inculca a pensar e interpretar de forma fragmentada e desconexa um passado caracterizado por conflitos de poder e que não pertence a um processo diferente daquele que fundamenta a privatização da terra: que é a formação territorial de um mercado circunscrito e administrado pelo estado nos seus diferentes regimes políticos. Nesse contexto, saliento, ainda, a necessidade de se efetuar a análise considerando o todo: desde a identificação de Ibiturunas, Campos de Palmas ou Oeste, a região não estava esquecida dos interesses e projetos direcionados ao território. É evidente que existem diferenças entre os períodos em que o espaço está sob a identificação de Ibiturunas, Campos de Palmas ou Chapecó/Oeste. Todavia, compete investigar e questionar as suas mudanças, funcionalidades e relações existentes entre os nomes e o espaço produzido. 11 Aqui compete uma ressalva: O livro “Antes do Oeste Catarinense”, de Miriam Carbonera, é uma exceção, visto que possui foco na ocupação indígena que antecedeu a colonização lusitana. Logo, é totalmente plausível a autora empregar a expressão “antes do Oeste”, pois este Oeste é oriundo da colonização portuguesa e não está vinculado à sociedade indígena antes do advento da colonização. 32 Ainda nesta perspectiva, é importante atentarmos para a estrutura dos discursos políticos e como os mesmos funcionaram como chaves de leitura dos processos sociais e territoriais. A intepretação de Costa (1929) realizada em uma expedição político-simbólica do Presidente do Estado (Adolfo Konder) indicava que “chegarão os primeiros colonos, os imigrantes, os obreiros da civilização, com estes à fartura e o progresso a um trecho fadado pela natureza para ser o verdadeiro Éden”. Uma concepção que não é um ato individual do autor, mas amplamente enraizada na identidade regional. Isso pode ser reforçado com a afirmação de Picolli12 quando menciona que: Para quem, como eu (...), cresceu no oeste catarinense, está aí uma síntese da epopeia colonizadora13. Empreendida por tão bravas gentes às quais é imprescindível prestar honrarias. Reforçada em hinos, monumentos, literaturas, rituais, datas comemorativas, etc., esta representação preserva-se – com atualizações – hodiernamente. A suposta superioridade auto-atribuída é defendida fervorosamente pelos guardiões da memória coletiva. Estes, por sua vez, encontram respaldo em autores clássicos e locais (PICOLLI, 2011, p.01). Diante desse contexto, duas implicações são identificadas. A primeira é a permanência dos saltos explicativos conforme já indicado. A segunda decorrência é a concepção de que o Oeste catarinense surge somente após a colonização; esta última, com todo o discurso produzido pelos políticos ilustrados e vinculados às ciências, é concebida como o momento fundante dessa região. É uma visão que implica na produção do conhecimento, pois funciona como uma estrutura interpretativa que torna inapropriados alguns elementos que estavam nessa região antes, durante e até mesmo depois do processo colonizador14. O caboclo, as relações de poder e as disputas territoriais (sobretudo entre as oligarquias paranaense e catarinense) são exemplos de temáticas que não são contempladas com essa postura teórico-metodológica. Expressão como “Antes do Oeste catarinense”15 demonstra com precisão uma interpretação que funciona como um corte epistemológico, que impõe aquilo que pode ou não ser estudado ou considerado como parte dessa sociedade. Esta última consequência dialoga 12PICOLI, Bruno Antônio. Sono tutti buona gente: a invenção da superioridade italiana. In: Revista Semiva. Vol 10. 2º Sem/2011. 13 A síntese da epopeia que o autor menciona é semelhante à afirmação de COSTA (1929): “chegarão os primeiros colonos, os imigrantes, os obreiros da civilização, com estes à fartura e o progresso a um trecho fadado pela natureza para ser o verdadeiro Éden.” 14 Com esta classificação de inapropriado ou não constituinte deixa subentendido que “não convém estudar isso pois não faz parte dessa região”. 15 SILVA, Augusto; ROSA, Adenilson da. Antes do Oeste Catarinense: aspectos da vida econômica e social de uma região. In: Fronteiras: Revista Catarinense de História [on-line], Florianópolis, n.18, p.139-160, 2010. (Edição em 2011) 33 diretamente com os interesses das oligarquias nas suas diferentes escalas durante a transição do Oitocentos para o Novecentos, caracterizada pela construção de uma sociedade eurocêntrica e inserida na ordem social competitiva (FERNANDES, 1987)16. A partir da inserção dessa região no conjunto de políticas territoriais após a década de 20 (século XX), foi construída uma id-entidade17 para o Oeste catarinense que expressa os fundamentos da colonialidade (capitalismo e eurocentrismo): enquanto entidades foram desdobradas em um conjunto de políticas territoriais (dimensão material) que viabilizaram a conformação de uma sociedade que atendesse aos interesses do estado: consolidação do mercado (com a implantação da pequena propriedade para abastecimento interno), europeização populacional com forte discurso e identidade ligada ao trabalho como criação de valor, economia de mercado e construção da ordem social aquisitiva. Contemporânea a essas políticas, a proliferação de discursos feitos pelos membros da classe dominante consistiu uma reflexão sobre a região, visando recriá-la. É mediante esta reflexão sobre si, processo típico das sociedades modernas (CHAUÍ, 2003), que foi elaborada a construção da própria identidade, sem desvincular-se da entidade: a formação regional como parte da formação territorial. Isso pode ser identificado como um arquétipo advindo de um padrão de relações de poder provocando um processo de silenciamento nos eventos, fatos, escalas geográficas, agentes que é concebido como ideal a uma sociedade. No caso do caboclo, que foi claramente um desses elementos indesejados, observa-se que são relocados em determinados papéis, claramente hierárquicos, contudo são expostos como naturais – ou como um “ofício étnico”18. Com essa visão, são efetuados uma seleção e um ocultamento de fatos, dados cartográficos, vozes, atribuindo relevo às informações que convergiam com os interesses das oligarquias regionais sincrônicas à formação de uma dada sociedade. É possível afirmar que se trata de uma perspectiva que não permite compreender o processo em sua essência (conflitos por poder, seja entre diferentes classes ou entre frações da classe dominante), fazendo com que o 16 Corresponde à ordem social aquisitiva ou, ainda, à ordem da civilização burguesa. Envolve ética racional, igualdade legal-formal, competição, luta. É a apropriação da lógica de mercado como princípio fundamental das relações societárias. Neste processo, o sistema de produção se adapta às potencialidades econômicas e socioculturais do espaço (país, região etc.) – O sociocultural pode ser exemplificado pela lógica senhoril (no Brasil) que, além de ter permanecido como forte obstáculo e se relacionar diferentemente de acordo com a região (Nordeste e Sudeste), é a base do preconceito em relação ao negro e indígena – portanto, não permite que a igualdade e individualidade do sistema capitalista e do liberalismo aflorem com integridade, mas sim moldados pelas características socioculturais. O preconceito neste tipo de sociedade burguesa não se reduz ao preconceito de classe, nem se torna possível reduzir classe e preconceito um ao outro. 17 QUIJANO, 2005. Esse autor constrói sua argumentação a partir da interpretação de uma hierarquia étnico- racial que privilegia europeus em detrimento de não-europeus. A minha análise não toma isso como central, mas dialoga com isso. Por essa razão, emprego o termo id-entidade, que escrito assim, com hífen no meio da palavra, parece-me ser mais representativo para o que se quer expor: a construção da identidade e da entidade conjuntamente. 18 RENK, 2005. 34 mesmo acabe por corroborar o discurso legítimo construído pelas frações de classe dominante. Essa construção discursiva de silenciamento não emerge inicialmente somente do meio acadêmico. Ela integrou um conjunto de práticas políticas muito utilizadas por autoridades políticas e por intelectuais vinculados a estas autoridades, cujas relações são presentes em diferentes momentos da história. Especificamente para o Oeste de Santa Catarina, a produção discursiva foi intensa no período do Estado Novo, que, no âmbito local, contou com significativa participação de agentes catarinenses. Um trabalho interessante para avaliarmos a atuação dos poderes locais na criação (material e significação) do Oeste catarinense, é o “Região, civilização e progresso” de Petrolli (2011)19. Este trabalho [...] trata da criação da região Oeste de Santa Catarina, a partir da problematização das ações do poder público catarinense, do Acordo de Limites (1916) até o final do Estado Novo (1945). Grande parte das fontes analisadas são fontes oficiais pelo fato de que as iniciativas estatais foram imprescindíveis para que o Oeste Catarinense se tornasse “materialmente” possível. (PETROLI, p.01, 2011) Ainda para o autor “de fato, do ponto de vista histórico, podemos falar na existência ‘material’ (enquanto região) do ’Oeste Catarinense’ somente após 1916” (PETROLI, 2011, p.09-10), considerando a definição jurídica dos limites, os investimentos estatais que visavam transformar a realidade – o que não deixa de ser válido, pois é a construção da entidade que mencionamos acima; essa “existência material”, que Petrolli (2011) menciona é a busca da concretização dos interesses que compõem os projetos de modernização do território e da sociedade. O autor reitera a necessidade de investigar e compreender as relações de poder que contribuíram para a formação material do Oeste catarinense. Não discordo do autor acerca da importância dessa averiguação, mas acrescentaria que para desvelar esse jogo de poder, que também instituiu uma determinada significação do próprio processo da “criação” do Oeste, é pertinente ampliar o recorte temporal, englobando o período antecedente não como uma “fase” que não mantém relações com aquilo que foi posterior, mas como partes de um mesmo processo. Ainda sobre a moldura interpretativa, tem como consequência dessa postura metodológica que as relações de poder e toda a engenharia social usada que antecedeu a comercialização de terras permanecem ocultas. Portanto, existe uma necessidade de discussão direcionada à formação territorial exatamente no período do finissecular Oitocentos e as primeiras décadas do século XX, para tentar romper com essa noção. Se pensarmos em escala 19 PETROLI, F. Região, civilização e progresso: Oeste Catarinense, 1916-1945, 2011. 35 mundial, esta transição secular é o período da mundialização do capitalismo e consolidação da divisão internacional do trabalho. Um processo que direcionou intensas transformações espaciais, sociais e culturais em diferentes lugares do mundo. Ao meu ver, tais acontecimentos estão relacionados à produção do espaço que ocorreu nos Campos de Palmas exatamente neste mesmo período. 01.03. Do desconforto ao esboço de uma nova interpretação – o conceito de fundo territorial O objetivo da exposição neste item é apresentar um conjunto de reflexões elaboradas sobre o emprego terminológico que são geralmente presentes para explicar um processo de expansão territorial do capitalismo. Trata-se de item que perpassa algumas discussões. Ao final, tento sintetizar porque julgo mais adequado empregar o conceito de fundo territorial para nortear a compreensão do espaço-tempo do Oeste catarinense entre 1880 e 1940. Para tanto, é estabelecido um diálogo com conceitos como “sertão, fronteira e colonização”. É necessário pontuar aqui como o cabedal teórico, ensaístico e literário, que pode ser usado para estudar a expansão realizada sobre fundo territorial, é compreendido a partir da sua capacidade explicativa para atender a problemática da pesquisa, que rapidamente pode ser retomada: evitar uma proposição que fragmente a integridade do processo da incorporação desse fundo territorial entre 1880 e 1940. É importante situar as aberturas ou os fechamentos de interpretações a partir dos empregos conceitual e teórico adotados, pois a temática espacial para além de reflexões científicas tem aparecido como um lugar de destaque no pensamento social e político brasileiro quando se aborda a formação do território e, também, a própria formação da sociedade brasileira. No ínterim desta última vertente, a temática da fronteira agrícola tem sido empregada para discorrer sobre os momentos fundantes, ou sobre o início da formação de um lugar/município ou região. E se pensarmos a respeito do Oeste de Santa Catarina, o termo “colonização” pode ser identificado como o termo correlato que exerce a mesma estrutura explicativa daquela desempenhada pela palavra fronteira agrícola. Nesta linha de pensamento, proponho como tese a ideia de que o Oeste catarinense não pode ser compreendido com início a partir da colonização, mas que esse espaço-tempo (o Oeste de Santa Catarina em 1880-1940) seja compreendido como um fundo territorial em processo de integração. 36 Essa postura permite atentar para os eventos que precedem a colonização, bem como incorporar uma análise que articule diferentes escalas para explicar o porquê de determinados eventos terem ocorrido. Sobretudo esta última permite emergir de um recorte estritamente regional e de forma quase isolada, como era pressuposto em alguns trabalhos, de modo que possibilita entender a relação dessa integração do fundo com o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, a mundialização do capital e a divisão internacional do trabalho. Como proposta para investigação e entendimento, sugiro que eo espaço-tempo seja compreendido como fundo territorial em processo de integração, considerando as diferentes práticas espaciais (identificadas por verbos) que manifestam diferentes naturezas do espaço (espaço absoluto, relativo e relacional) e escalas geográficas que, conjuntamente, constituem o processo de integração e formação territorial. Visa-se, com isso, destacar a importância da diferenciação espacial, seja pela sua natureza (HARVEY, 2010) ou pela escala (SMITH, 2002), que neste trabalho, compreendemos como práticas que consolidam a formação territorial, logo, a inserção de um fundo territorial20. É mister entender que, do ponto de vista do controle estatal, o processo de integração estava alicerçado, principalmente, no espraiamento da sociedade brasileira e no desenvolvimento econômico em áreas incorporadas e não incorporadas, os quais demandam um conjunto de intervenções territoriais (controle da terra e gestão territorial, cartografização, resolução das disputas territoriais etc). Esse processo de espraiamento demográfico é associado ao e tem sido estudado por meio do conceito de fronteira ou cognatas como frente/franja pioneira de autoria de Monbeig. A reflexão sobre os desdobramentos do uso dessas teorias espaciais ou de conceitos espaciais para entendimento da sociedade faz-se pertinente pois as representações geográficas do país foram parte do cabedal de temáticas que estão relacionadas à constituição da identidade brasileira (RAIMUNDO, 2004; 2000; MORAES, 2002; SOUZA, 1998, OLIVEIRA, 1998). Como expõe Oliveira A conquista e a ocupação de terras oferecem uma longa genealogia retomada na construção da brasilidade. A referência ao espaço da América como o jardim do Éden e como "possessões maravilhosas" povoa o imaginário sobre o Novo Mundo e o Brasil. As imagens fantasticamente positivas ou terrivelmente ameaçadoras sobre os novos espaços aparecem na literatura que procurou dar conta da identidade do país O Novo Mundo e o Brasil tiveram no domínio do espaço geográfico o processo básico que acompanhou a formação da sociedade e do Estado. A ausência de um passado histórico remoto, exemplificada na ausência de catedrais góticas, produziu a 20 A apresentação mais esmiuçada da tese está no Capítulo 02, aqui apenas apresento-a para facilitar o entendimento. 37 busca de raízes em passados mitológicos ou em traços culturais primeiros do português, do índio e do negro. Entretanto, estas construções simbólicas têm produzido mais a consciência das distinções do que a da integração. A consciência do espaço, da territorialidade, em contrapartida, forneceu as bases da integração necessária à formulação de um projeto de nação. Esta premissa nos ajuda a entender a importância e a permanência do ufanismo como ideologia fundada na natureza e na relação desta com o caráter do povo, produzindo o sentimento de identidade nacional. A valorização da natureza aparece como que compensando a debilidade da cultura no Brasil. O ufanismo baseado nos atributos da natureza não aparece sozinho. Seu reverso também faz parte do imaginário sobre o país desde seus primórdios e assinala os perigos e as ameaças relacionados à natureza dos trópicos (1998, p.03). O território passou a ser o elemento estruturador da memória coletiva para arguir sobre a identidade nacional, sendo possível indicar como temáticas recorrentes a questão de integridade e dimensão do território, e a prática da conquista territorial das áreas “vazias” no interior do Brasil. A conquista de referidas áreas tem sido lançada como momento fundante das sociedades regionais e locais por repetir a mesma façanha na qual o pensamento social tem creditado a emergência da essência da identidade nacional: a conquista de áreas interioranas pelas bandeiras (tanto pelo espraiamento da população quanto pela criação material de condições para recorrer ao uti possidetis com a dilatação das fronteiras políticas). Conforme lembra Oliveira (2000), as bandeiras têm sido apresentadas como “o evento original que fez nascer a nação” (2000, p. 80), que “confirmando a importância do espaço na construção da identidade nacional, encontra-se a questão do ponto zero da história do país, do evento histórico original que fez nascer a nação: as bandeiras” (OLIVEIRA, 2000, p.08). Para interpretação dessa expansão espacial que ocorre nos séculos XX e XXI tem-se recorrido a interpretações que remetem ou demonstram alguma apropriação da frontier thesis elaborada por Frederick Jackson Turner (1893), quando o mesmo dissertou sobre a expansão ao Oeste dos EUA, retomando também o mito da fronteira daquele país. Desse conjunto de teorias é possível indicar a proposta de frentes pioneiras de Monbeig e também da fronteira/frente de expansão indicada por Martins – que versa de forma muito oposta a Monbeig/Turner, mas emprega o mesmo termo21. A teoria de frentes pioneiras apresentada em 196622, integra significativa parte da produção teórica de Monbeig (mas construída ao longo de toda estadia do geógrafo no Brasil) 21 Ainda é possível indicar os seguintes autores que tentaram estabelecer aproximações entre a tese turniana e a expansão do capital no Brasil: Roy Nash (1926), J.F. Normano (1935), Lombardi (1975) e Katzman (1975). NOGUEIRA, 2013. 22 Pierre Monbeig foi um geógrafo francês que integrou a missão francesa de criação de cátedras no Brasil. Especificamente Monbeig auxiliou a fundar a USP na década de 1930. Na França foi aluno de Vidal de La Blache e Albert Demangeon, importantes nomes da escola francesa. De 1937 a 1946 foi Presidente da Associação dos Geógrafos do Brasil. 38 é fonte de controvérsias sobre sua adesão ou não aos interesses de modernização do território elucubrados pela classe dominante do período, em especial a cafeeira. A Teoria das Frentes Pioneiras pode ser indicada como uma proposta interessante para o momento em que o país estava sendo alterado por uma série de políticas econômicas e territoriais23, cujos contexto histórico e assunto se convergiam. É interessante destacar que a elaboração teórica de Monbeig ocorre no próprio contexto da expansão territorial do capitalismo e trata-se de aspectos que são imbricados, inclusive implicando na elaboração teórica efetuada, visto a proximidade do autor com autoridades políticas do período24. Na proposta que predominou a partir de Monbeig as franjas pioneiras ou fronteiras agrícolas podem ser compreendidas como áreas do mundo que estavam em processo de incorporação ao ecúmeno, áreas estas que eram representadas como de natureza hostil, bruta e ainda não dominada. Não destoando dessa leitura, as populações que ocupavam essas áreas também eram compreendidas de forma pejorativa seja no âmbito cultural, social, econômico ou tecnológico, por meio de uma interpretação que pressupõe uma naturalização do sujeito que a habita. Convém indicarmos que existe uma diferença entre a tese das franjas pioneiras e a da fronteira de Turner. Esta última tem como central a ação particular dos pioneiros no processo de expansão espacial sobre as áreas “inóspitas” e os índios “bravios”, enquanto que Monbeig tem inclinações para a presença do Estado, na ação e no planejamento para ampliar as bordas do ecúmeno, partilhando do entendimento que essa expansão levaria os benefícios da civilização para aquelas populações ainda não incorporadas na órbita do poder estatal (NOGUEIRA, 2013). Essa distinção entre a presença do Estado na consecução do avanço do capital situa-se como uma influência de Isaiah Bowman (NOGUEIRA, 2013, p.43). Aqui é importante lembrar que a condição colonial que invenção a formação do Brasil, bem como o seu ingresso tardio na economia capitalista (MELO; NOVAIS, 2009) tem implicado na diminuição da espontaneidade dos processos sociais de valorização espacial (MORAES, 1999), em razão de os grupos dominantes (ou fracções destes), sobretudo através do Estado, terem passado a comandar os processos de valorização simbólica e material do espaço com o intuito de ajustá-lo às demandas de ordem econômica e/ou política. Esta diminuição da espontaneidade tem como função apressar as etapas do desenvolvimento do capitalismo. 23 Além da análise pela paisagem, é coerente destacar a contribuição a partir da análise por redes e também da criação de regiões como etapa seguinte da expansão da frente pioneira. 24 NOGUEIRA, 2013. 39 A construção teórica de Monbeig trata-se de uma postura que adotou um ponto de vista parcial da expansão do capital. Uma concepção que tem como referência o empresário, o fazendeiro, o comerciante e o pequeno agricultor moderno e empreendedor como sendo os agentes de transformação da paisagem. Afirmar que referidas figuras não estão relacionadas às mudanças paisagísticas e dos arranjos que são construídos na expansão dessas populações seria incorrer em um (evidente) erro. Todavia, trata-se de uma perspectiva que, ao considerar as demais populações como transitórias, transforma a sua eliminação em uma fatalidade inevitável. Desconsidera, ainda, as diversidades de relações espaciais que podem ser estabelecidas. Essa abordagem é um ponto de vista que falava de uma das faces da reprodução ampliada do capital: a sua reprodução extensiva e territorial, essencialmente mediante a conversão da terra em mercadoria e, portanto, em renda capitalizada, como indicava e indica a proliferação de companhias de terras e negócios imobiliários nas áreas de fronteira em que a expansão assume essa forma. Nesse sentido, estavam falando de uma das dimensões da reprodução capitalista do capital (MARTINS, 2012, p.137). Para o autor, essa perspectiva traz como componente problemático o predomínio de uma única visão em relação aos sujeitos envolvidos nesse movimento territorial do capital. Quando difundiram no Brasil o conceito de frente pioneira, os geógrafos mal viam os índios no cenário construído por seu olhar dirigido. Monbeig define os índios alcançados (e massacrados) pela frente pioneira no oeste de São Paulo como precursores dessa mesma frente, como se estivessem ali transitoriamente, à espera da civilização que acabaria com eles. A ênfase original de suas análises estava no reconhecimento das mudanças radicais na paisagem pela construção das ferrovias, das cidades, pela difusão da agricultura comercial em grande escala, como café e o algodão (MARTINS, 2012, p.135). O escopo da abordagem das franjas pioneiras não integra o conjunto de violência material e simbólica, parte intrínseca da expansão do capital. O enfoque de Martins é empregar de forma conjunta os agentes apreendidos na concepção de fronteira com aqueles que integram a frente de expansão. A fronteira para Martins pode ser compreendida como espaço de conflito, do encontro com o Outro, ou como sugere o próprio título da obra, dos confins do humano desvelado pelo contato e pela violência. A abordagem presente na argumentação desse autor contempla a exploração da força de trabalho camponesa, com diferentes meios de obtenção da renda da terra não-capitalista (OLIVEIRA, 1998), como a peonagem, parcerias e a imposição de trabalho cativo, atribuindo destaque à subordinação do trabalho camponês ao capital, especialmente no processo de formação das fazendas (com os trabalhos de desmatamento, destocamento, preparação e cultivo). Um dos pontos 40 fundamentais que o autor traz em significativa parte das suas publicações é a incorporação de terras e produção de mercadorias, as quais não são executadas a partir de relações de produção capitalista. Desse modo, a produção não-capitalista, mas subordinada ao capital, é um aspecto fundamental para a compreensão do processo de expansão territorial do capitalismo, como uma especificidade do desenvolvimento desse modelo econômico no Brasil25. Para Martins (2012), são espaços que se transformam em fronteiras “de muitas e diferentes coisas: fronteiras da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteiras de etnias, fronteiras da história e da historicidade do homem. E sobretudo, “fronteira do humano” (2012, p.11). Essas fronteiras de contatos entre culturas e economias distintas podem ser compreendidas, também, como espaços de esperanças: de resistir, que se apoia nos elementos de sua cultura, na ânsia de resguardar para si e para os seus, sua identidade, suas topofilias e farturas. É também espaço de esperança para acumular mais do mesmo para grupos sociais que outorgam a si e seus semelhantes o direito de expansão sobre o Outro. São espaços em que residem esperanças de encontrar a cocagna26. Como bem destaca Martins a fronteira se constitui em um espaço-tempo de diversos agentes, diversas relações sociológicas que são entabuladas a partir da expansão da sociedade civilizada. A contar da transição de um regime escravagista para um desenvolvimento de economia baseada no trabalho livre (1880-193027), houve uma adaptação também no conjunto nas representações e nos discursos que consubstanciavam os processos territoriais de expansão desse modelo econômico. A passagem de Oliveira (1998) é exemplar para indicar esse acomodamento de termos. A categoria de fronteira seria resultado da mudança de perspectiva em relação ao sertão, já que estaria relacionada aos processos econômicos de incorporação e ocupação de "vazios demográficos". A noção de fronteira seria capaz de diluir a dicotomia litoral/sertão, já que significa a oportunidade de chegada da civilização- 25 E sobretudo para entendermos como o minifúndio e a mão-de-obra familiar, ambas especificidades do Oeste de Santa Catarina são articuladas a produção capitalista. Isso também pode ser estudado em “Os colonos do vinho” de Tavares dos Santos. 26 Mito do imaginário medieval que remete à um país, terra de prazeres, abundância, harmonia social e liberdade social, onde não há lugar para o sofrimento, envelhecimento e o esforço para o trabalho. Com algumas alterações foi incorporado ao pensamento popular italiano, registrado nos imigrantes do século XIX e descentes, que diante do desemprego da Revolução Industrial, os benefícios da Cocagna reduziam-se a satisfazer a alimentação. O tema é ilustrado a partir de obras literárias, valendo-se do personagem Nanetto Pipetta, jovem imigrante clandestino veneto, cujas aventuras eram publicadas semanalmente no jornal Stafetta Riograndense. Ver: BAGNO, Silvana (2009). FRANCO JUNIOR, Hilário, 1998. 27 SAES, 2016; FERNANDES, 1981. 41 litoral ao sertão-interior, conciliando a qualidade positiva do litoral a civilidade com a crença de que no interior/sertão está preservado um Brasil autêntico. “Sertão”28 configura um conceito espacial e massivamente empregado no pensamento social-político brasileiro que pode ser situado como uma herança linguística e da política expansionista lusitana. Ou seja, o termo “sertão” indicando o espaço de avanço foi anterior ao emprego dos termos “fronteira” e “frente pioneira”. Para a incorporação do fundo territorial, Oeste catarinense é empregado conjuntamente com termos e referências que lembram as práticas expansionistas norte-americanas e suas ideologias correspondentes – destino manifesto, doutrina Monroe, frontier thesis e mito da fronteira. Ou seja, no espaço-tempo deste fundo territorial observamos elementos do pensamento luso (sertão) e da nova influência norte-americana captada pela intelectualidade. O ensaio de Arthur Ferreira da Costa29 que integrou a Bandeira Konder, é exemplar nessa associação. A nomeação da comitiva que sai da capital Florianópolis para passar por várias localidades até chegar no Extremo Oeste já é sugestiva dos arcabouços interpretativo e associativo que foram realizados na mesma. No artigo “O Oeste Catharinense – visões e suggestões de um excursionista” é possível verificar essa associação: Essa jornada, verdadeira “bandeira” empreendida nos dias que vivemos, tem características de coragem, de ousadia, de resistência, de abnegação, que lembram os gestos de nossos maiores, quando se internavam pelos sertões, desbravando o desconhecido e levando aos rincões mais afastados o cunho de conquista brasileira, assegurando pela posse largos domínios para a nossa nacionalidade. Também se fizeram conquistas, se não de terras, pelo menos de populações brasílicas que se estavam desnacionalizando, pelo abandono completo em que viviam, sem a mínima ligação com a nossa pátria e totalmente alheias da comunhão nacional. (COSTA, 1929, p.07) Quando observamos aquela riqueza imensa e morta por falta da vivificação da inteligência e do trabalho do homem, nos lembrávamos de tantas pessoas que se apoquentam pela ânsia de um miserável emprego público e comparávamos aquele cenário e as recompensas que ele encerra ao que se vê em magníficas películas cinematográficas americanas, sobre os tesouro do mesmo Oeste daquele grande país, formulas admiráveis de propaganda em favor do trabalho dos campos e da possibilidade que o homem tem de fazer fortuna pessoal e de contribuir para a grandeza de sua pátria (...) (COSTA, 1929, p.48). O Oeste, neste caso, não aparece como a direção a ser conquistada, como ocorreu com a produção discursiva da Marcha para Oeste, no Governo Vargas. Mas faz referência à região dos Estados Unidos. Aqui, a relação entre Oeste e avanço territorial é mais histórica do que simbólica – como passou a ser após a política varguista. Em outras passagens, o termo refere- 28 No Capítulo 06, o mesmo será melhor conceituado. 29 O autor ocupava o cargo de Chefe de Polícia do estado de Santa Catarina no referido período. 42 se à localização geográfica em oposição ao Leste. Para o Oeste de SC é possível observar uma mistura desses usos. Encontramos o termo “sertão” – que lembra mais o cabedal discursivo da Colônia e Império – e, também encontramos termos e associações que remetem à recente influência do pensamento social norte-americano, possivelmente advindo da aproximação política entre Brasil e EUA naquele contexto. Aqui inevitavelmente fica a indagação se a integração do fundo territorial Oeste catarinense pode ser observada como um espaço-tempo de transição dos mitos e representações empregados como impulsionadores e justificativas para a incorporação de áreas na economia dominante, demarcando uma transição entre uma influência europeia (e monárquica) para norte-americana (também influenciada pela instauração do regime republicano). Entre 1870 e 1940, o termo “sertão” se constituiu como “uma categoria absolutamente essencial (mesmo quando rejeitada) em todas as construções historiográficas que tinham como tema básico a nação brasileira” (AMADO, 1995, p.02). Ao que indica, após a conclamação da Marcha para o Oeste realizada pelo Presidente Vargas e a produção literária e teórica em torno desse movimento (seja Centro-Oeste brasileiro ou especificamente Oeste paulista), a expansão sobre áreas economicamente não incorporadas ao interior do territóri