LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS MOVIMENTO SOCIAL E JORNALISMO MILITANTE: O JORNAL SEM TERRA Alessandra Possebon (Centro Universitário Barão de Mauá) 1 Murilo César Soares (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP) 2 RESUMO Diversos grupos manifestam seus interesses, suas posições críticas à realidade através da construção de meios de comunicação alternativos à grande mídia. Estes meios, que estiveram presentes na história do jornalismo brasileiro, não têm a repercussão e o alcance das grandes empresas de comunicação, mas são iniciativas que colaboram na ampliação de perspectivas sobre a realidade e na construção de uma comunicação mais democrática. A presente análise se constrói a partir de uma observação sobre o jornal Sem Terra salientando suas principais características, o seu discurso sobre a concepção de cidadania relacionada ao projeto de reforma agrária e sua relevância frente ao jornalismo da grande mídia. O jornalismo militante aparece como apenas um dos instrumentais nas lutas de cidadania, mas de importância fundamental ao ampliar as leituras da realidade e permitir reflexões sobre a linguagem jornalística assumida com o advento da modernidade. Palavras-chave: jornalismo; jornalismo militante; cidadania; MST Movement and Social Activist Journalism: The newspaper Sem Terra Abstract Several groups reveal their interests, their critical position on reality through structure alternative of communication ways for great media. These ways, that were present during history of brazilian journalism don´t have the repercussion and reach of great communication enterprises, but they are initiatives that collaborate to spread of perspectives about the reality and on structure of a communication more democratic. This analysis organizes itself from observation about the newspaper Sem Terra emphasizing their principal characteristics, their speech about the conception of citizenship related to agrarian reform project and its significance about journalism of great media. The militant journalism just emerges like one of the tools on 1 Jornalista, Mestre em Comunicação pela Unesp – Bauru. Professora nos curso de Jornalismo e Publicidade e Propaganda do Centro Universitário Barão de Mauá – Ribeirão Preto (SP). E-mail: lelepossebon@hotmail.com 2 Pós-doutor em Ciência Política pela Ufscar. Professor do Departamento de Comunicação da Unesp- Bauru. E-mail: murilo@faac.unesp.br LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS struggles of citizenship, but fundamental importance to spread the reality readings and to allow reflexions about the admitted journalistic language through arrival of modernity. Key words: journalism, militant journalism, citizenship, MST O jornalismo militante Diversas pesquisas comprovam que os temas das minorias são tratados de maneira restrita pela grande imprensa brasileira (Bucci, 2008; Lima, 2001; Soares, 2008). O MST é tratado essencialmente como violento, suas ações são descontextualizadas e muitas vezes criminalizadas (Berger, 2006). O jornalismo enquanto empresa, estudado pelas teorias do jornalismo, é caracterizado por possuir uma estratégia própria de construção do discurso, marcada pela valorização da objetividade. Os protocolos da objetividade permeiam o jornalismo como forma de manter sua credibilidade, perpetuando seu ideal de mediador da realidade, supostamente isento de posições ideológicas. Por ser um produto histórico do capitalismo, nascido como necessidade da informação rápida e mediada, o jornalismo traz em si as contradições do próprio sistema capitalista e também as potencialidades de ultrapassar o pensamento hegemônico, por ser uma forma de construção do conhecimento (Genro Filho, 1987). Em uma sociedade marcada por desigualdades de todo tipo, o quadro de oligopólios, que é tendência do capitalismo em todas as áreas de produção, revela que a comunicação é apenas parte do complexo quadro de relações de poder, sendo que uma das formas de manutenção do pensamento hegemônico é limitar a liberdade de expressão e, ao influenciar imaginários, depreciar a identidade dos povos e seus movimentos de emancipação legítimos, como no caso do MST, suprimindo as diversidades. A concepção de meios fora dos grandes grupos nacionais e transnacionais de comunicação, chamados de alternativos, radicais, subalternos, contra-hegemônicos ou populares, almeja - em grande parte das vezes - a independência, a crítica e a manifestação da diversidade, enfatizando sua necessidade para a construção de uma sociedade que inclua a pluralidade de ideias, interesses e valores. Apesar da diversidade de terminologias, acreditamos que elas não salientem o ponto central desses meios, que é o seu engajamento político (não necessariamente partidário) e seu objetivo de mobilização em torno de questões sociais, por isso, propomos, para os fins desse trabalho, a expressão jornalismo militante. LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS O jornalismo praticado nesses meios é um contraponto ao da grande imprensa e tem como princípio discutir outras pautas ou rever os assuntos discutidos pela grande mídia através de perspectivas diversificadas, representando outros projetos de sociedade, críticos do sistema político e econômico atual. É um jornalismo vinculado, na maioria das vezes, às instituições, organizações, movimentos sociais, populares e comunitários, ocupando também a função de divulgador das ações destes grupos e das discussões e ideais dos mesmos. Percebe-se que este jornalismo tem como um de seus objetivos despertar consciências, encarando os textos como instrumento de luta social e de fortalecimento de iniciativas populares. Grande parte desse jornalismo possui, além do jornal impresso meios virtuais de divulgação (sites, boletins eletrônicos, mídias sociais, web rádio e web TV) de seus trabalhos, o que tem constituído um novo desafio em relação à linguagem e também à produção de materiais em outros formatos, como o audiovisual. A internet mostra-se como uma alternativa ao pensamento hegemônico sustentado pelos oligopólios da comunicação e demonstra a vulnerabilidade do atual modelo de comunicação i . Apesar do pouco alcance, principalmente em contraste com a grande mídia, o jornalismo alternativo é necessário para a pluralidade dentro do espaço público e para o fortalecimento de organizações políticas e sociais. Para verificar esta caracterização do jornalismo alternativo os autores optaram pela análise o jornal Sem Terra, veículo oficial do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que traz um discurso declaradamente a favor dos ideais do Movimento, na medida em que se constitui num instrumento de mobilização e de organização para os que já colaboram direta ou indiretamente com as atividades do MST e diálogo entre o Movimento e a sociedade. Por essas razões, o jornal se constitui como um veículo formativo da militância do MST, claramente opinativo. A investigação a seguir constitui uma maneira de testar a pertinência da designação jornalismo militante. Queremos saber se e como a publicação realiza um contraponto ao jornalismo da grande imprensa e se está inserida em uma perspectiva de outro projeto de sociedade, ao ser produzida de maneira colaborativa e com a intenção clara de militar em defesa da reforma agrária. Jornal Sem Terra LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS O jornal Sem Terra é uma publicação já consolidada, com 30 anos de existência, sendo vinculado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), cuja bandeira principal é a reforma agrária, que é um problema histórico brasileiro e um tema dos direitos de cidadania social no Brasil. O jornal Sem Terra tem como marco de sua primeira publicação o ano de 1981, quando foi criado na cidade de Porto Alegre para ser um canal de comunicação dos acampados da Encruzilhada do Natalino, no Rio Grande do Sul, antes mesmo da fundação nacional do MST. A publicação era mimeografada, contava com cerca de 700 exemplares em formato de boletim e circulava semanalmente entre os militantes do movimento da região sul do país. Em 1985, com a criação da Secretaria Nacional do MST o jornal, agora produzido em off-set, passa a circular nacionalmente em formato tablóide. O jornal nasceu com a intenção de ser um canal de comunicação entre o movimento social, seus militantes e a sociedade civil, sendo um instrumento de formação política não somente para os militantes do movimento, mas para todo o público que apóia de alguma forma as ações do MST. De acordo com a jornalista Joana Tavares, que atua no setor de comunicação do MST desde 2007, além de ser um canal de comunicação com a sociedade, o jornal nasceu na perspectiva de “angariar solidariedade” para as lutas que aconteciam no Rio Grande do Sul. Os objetivos principais da publicação atualmente são “a formação - de temas da questão agrária quanto da política e da cultura de forma geral - e a informação. Além disso, reforça a identidade interna, registra as lutas e preserva a memória da organização” (Tavares, 2011). Sua sede está localizada na cidade de São Paulo e o jornal circula mensalmente com tiragem de 10 mil exemplares, formato tablóide, colorido, com 16 páginas. Por ser uma publicação institucional do movimento, a secretaria nacional do próprio MST o financia, assim, o jornal não conta com patrocinadores ou anunciantes externos. A publicação é produzida pelo setor de comunicação do MST, que conta com jornalistas e militantes de todo o país, os quais produzem reportagens também para os outros meios de comunicação do movimento (revista Sem Terra, boletim virtual, site e outros meios de comunicação dentro dos assentamentos) e atuam na assessoria de imprensa do MST. O jornal ainda conta com colaboradores que apóiam as causas do movimento, entre eles professores universitários, jornalistas, escritores e militantes de movimentos pela terra na América Latina. A distribuição é realizada gratuitamente dentro dos assentamentos do MST e de outras LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS organizações que trabalham junto ao movimento, como Via Campesina e Consulta Popular, além dos assinantes, sendo que a publicação não é vendida em bancas. Mensalmente, a equipe de jornalistas se reúne com representantes de diferentes setores do MST para definir os temas que formarão a pauta em cada editoria do jornal. As pautas algumas vezes são sugeridas por membros do MST nos estados, sendo que o jornal tem o acompanhamento político da direção do MST. Após a consolidação da pauta, o editor do jornal entra em contato com os colaboradores que, em média, têm duas semanas para entregar sua matéria (Tavares, 2011). As seções do jornal aparecem no alto da página e são acompanhadas por uma linha fina referente à matéria principal da página. A publicação conta com seções fixas: Editorial, Palavra do Leitor e Frase do Mês, Estudo, Entrevista, Estados, Especial, Realidade Brasileira, Internacional, Lutadores do Povo, Literatura e Balaio. Além das seções, há um caderno chamado Jornal das Crianças Sem Terrinha. A seção Editorial está assinada pela Direção Nacional do MST e traz a perspectiva do movimento sobre alguns assuntos centrais na pauta de discussões do movimento: reforma agrária, criminalização dos movimentos sociais, agronegócio, código florestal, mobilização dos movimentos sociais, políticas públicas para o campo e política nacional. A seção Palavra do Leitor reproduz, a cada edição, trechos de cartas e e-mails de leitores sempre apoiando as ações do MST. Já a Frase do Mês, traz uma afirmação de apoio ao MST assinada por personalidades, de atores cinema a pesquisadores. As páginas de Estudo tratam de assuntos variados como as cirandas infantis, a crise financeira e vários temas ligados à formação crítica, sendo que a seção é marcada por matérias com característica de didatismo, que se propõem a explicar e discutir uma questão específica. A seção Entrevista utiliza a técnica de entrevista pingue-pongue (pergunta-reposta), com breve texto de abertura apresentando o entrevistado e o tema central da entrevista. A seção Estados traz notícias das ações do MST, como marchas, encontros, assembléias, comemorações, ocupações, festas e outras atividades, em diferentes estados do país. A seção Especial é constituída de ilustrações e fotos com textos pequenos, sendo que, na maioria das edições observadas, foram publicadas coberturas de atividades de caráter nacional, como a Jornada de Mulheres e a Jornada de Abril. LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS As duas páginas dedicadas à seção Realidade Brasileira variam bastante de temática, sendo que algumas matérias são coberturas de ações nacionais do MST e outras discutem questões relativas à área rural. A seção Internacional traz pautas da África, América Latina e Oriente Médio, algumas delas sobre questões atuais, como as revoltas no Egito, outras relembrando assuntos que ainda não estão resolvidos, como as bases militares dos EUA em países da América Latina. Todas as matérias analisadas no período trazem revisões históricas sobre os temas que abordam. A seção Lutadores do Povo traz artigos biográficos, mostrando vínculos entre a vida de pessoas e os ideais de lutas do MST. Os personagens não são todos conhecidos do grande público, como por exemplo, a vida de um dos meninos vítima do massacre de Eldorado dos Carajás, publicada em abril de 2010. Literatura foi ocupada no período por nomes reconhecidos da literatura brasileira como Mário de Andrade e Graciliano Ramos. Além dos dados biográficos e da constatação de vínculos entre as vidas dos autores e as lutas do MST, a página traz trechos de obras do autor em questão. A penúltima página do jornal traz a seção Balaio que reúne notas variadas sobre datas importantes para os movimentos sociais no mundo todo, trechos de poemas, lançamentos de livros, descrição de ações do movimento, indicação de filmes e frases. Com quatro páginas, o suplemento Jornal das Crianças Sem Terrinha tem sua capa sempre ilustrada por um desenho feito por uma criança assentada. O caderno, na maioria das vezes, traz um texto escrito por crianças do MST nas duas páginas centrais. Na contracapa, há uma brincadeira como desenho para colorir, palavra - cruzada e uma seção com dicas de atividades para os educadores realizarem com as crianças. A contra-capa do jornal traz uma grande imagem relacionada a uma campanha do MST, como “Lutar não é crime” ou a produtos relacionados ao Movimento, como a agenda de atividade nacionais do MST. As matérias do jornal são em sua maioria assinadas por membros do MST que aparecem associados ao setor ou núcleo em que atuam como Setor de Direitos Humanos, Setor de Comunicação, Coordenação Nacional, Coletivo de Cultura e assim por diante. As matérias que não são assinadas por LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS pessoas ligadas diretamente ao Movimento são de intelectuais conhecidos nacionalmente e que mantêm vínculos ideológicos com o Movimento, como Frei Betto e Altamiro Borges ou de professores e alunos de universidades públicas do país. Há também matérias assinadas por profissionais do jornal Brasil de Fato, membros do Partido dos Trabalhadores, representantes de entidades como Consulta Popular, Via Campesina Brasil, CPT (Comissão Pastoral da Terra) e Uneafro (União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora). As fontes entrevistadas no jornal são, em sua maioria, membros do MST, apresentadas pelo setor ou núcleo em que atuam dentro do Movimento. Optamos por denominar genericamente os textos publicados de “matérias”, pela dificuldade em diferenciá-los em reportagens, artigos e notícias, já que grande parte dos textos traz adjetivações, são mais analíticos que informativos e utilizam-se de poucas fontes. Um olhar sobre o jornal Sem Terra A análise foi realizada a partir das publicações no período de um ano: abril de 2010 a abril de 2011. Apesar de ser mensal, por duas vezes, nesse período, o jornal foi publicado bimestralmente, assim a análise se deu a partir de 10 edições. O método utilizado foi o da análise de conteúdo (Bardin, 1995), buscando identificar e analisar como são tratados os temas de cidadania pelo jornal Sem Terra. A análise parte de dados quantitativos sobre os temas mais tratados pelo jornal no período estudado, que revelam algumas características da publicação, compreendendo que o maior número de matérias sobre um assunto reflete aspectos do fazer jornalístico e as representações da realidade evidenciadas pela publicação em questão. A pesquisa caminha, depois, para a análise qualitativa, focalizando o conteúdo discursivo das matérias analisadas, compreendendo, como afirma Lopes (2005) que não há uma divisão clara entre quantitativo e qualitativo, já que uma análise complementa a outra. A partir da primeira observação do jornal, optamos por analisar somente as matérias de cunho nacional e não examinar as sessões Lutadores do Povo e Literatura por serem essencialmente biográficas, nem a seção Balaio porque não traz matérias, mas, notas sobre lançamentos de livros, publicações de poesias e trechos de textos literários e datas comemorativas. LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS Títulos, manchetes e chamadas de capa A primeira etapa da análise concentrou-se nos títulos, manchetes e chamadas de capa referentes às seções a serem analisadas: Editorial, Estudo, Entrevista, Estados, Especial e Realidade Brasileira, somando 114 títulos e 29 manchetes e chamadas de capa. Começamos por destacar as expressões mais frequentes nos títulos das matérias, por verificar uma evidente insistência em certas idéias, o que pode ser constatado no Quadro 1. Quadro no. 1 – Palavras mais frequentes nas manchetes, chamadas de capa e títulos 1- Luta/lutar/lutas 18 vezes 2- MST 16 vezes 3- Reforma agrária 6 vezes 4- Sem Terra 5 vezes 5- Agricultura/agrícola/agricultor 4 vezes Abaixo, fazemos algumas considerações sobre o sentido dessas expressões no contexto do jornal. Luta/lutar/lutas. As palavras luta/lutar/lutas aparecem relacionadas a manifestações já realizadas, enfatizando as reivindicações já conquistadas em tom, na maioria das vezes, eufórico, e também estão relacionadas à organização de novas frentes de reivindicação e ao fortalecimento das bandeiras do Movimento, como é possível observar na seleção feita no Quadro 2, abaixo: Quadro no. 2 – Seleção de manchetes, chamadas de capa e títulos com as palavras luta/lutar/lutas 1- “Mobilizações em 20 Estados marcam luta das mulheres” (manchete, abril, 2010) 2 - “Lutar não é crime” (título seção Editorial, abril, 2010) 3- “Luta em defesa do Código Florestal” (título seção Editorial, junho, 2010) 4- “Juventude que ousa lutar” (manchete, julho/agosto, 2010) 5- “´Saúde é a capacidade de lutar contra tudo que nos oprime´” (título seção Entrevista, outubro, 2010) 6- “Unidade da classe trabalhadora abre perspectivas de lutas” (título seção Especial, outubro, 2010) 7- “Os desafios para a luta em tempo de descenso” (chamada de capa, janeiro, 2011) LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS 8- “A luta dentro e fora da ordem, por Ademar Bogo” (chamada de capa,fevereiro, 2011) A alta incidência dos termos luta, lutar e lutas nas chamadas de capa e títulos do jornal revela o caráter militante do jornal, já que essas palavras aparecem como forma de chamar a atenção dos leitores do jornal para a importância de continuar defendendo os ideais do movimento. MST A sigla MST aparece em títulos referentes a matérias que tratam de diferentes assuntos como descrição de conquistas do movimento, projetos em desenvolvimento, reflexões sobre os valores do movimento e reivindicações. Também aparece relacionada à valorização de atividades realizadas pelo movimento, como a matéria que trata de escola rural que obteve nota alta no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), ou ao descaso do Estado em relação às lutas do movimento, como os empecilhos para assentar famílias em Minas Gerais. Os problemas do movimento aparecem relacionados à insuficiência de políticas públicas para o campo, não sendo discutidos como dificuldades da própria organização. Reforma Agrária. Os títulos analisados tratam de matérias que relacionam a reforma agrária a assuntos de grande relevância para o movimento: criminalização dos movimentos sociais, organização dos militantes, produção de alimentos, justiça social e propostas políticas em diferentes áreas. Sem Terra. O termo Sem Terra é utilizado nos títulos das matérias do jornal como sinônimo de membro/ativista do movimento. As matérias tratam de conquistas dos militantes, de um encontro de educadores e de dois assassinatos em foi comprovada a culpabilidade da polícia, o que o jornal associa a uma política de criminalização dos movimentos sociais. O termo Sem Terra aparece associado à identidade dos participantes do MST e em todas as matérias do período está relaciona a conquistas coletivas, mesmo na matéria que trata das premiações de trabalhadores a homenagem é vinculada às atuações do movimento. Agricultura/agrícola/agricultor. Por se tratar de um jornal vinculado a um movimento cuja reivindicação principal é a terra, pautas sobre agricultura são recorrentes na publicação. Ao observar os títulos pudemos constatar que as matérias estão relacionadas à proposta de agricultura do MST, a agroecologia e sua preocupação com a postura do governo, denunciada como de apoio ao agronegócio. LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS Temas como alimentação orgânica, agricultura familiar e agroecologia estão presentes nas quatro matérias salientando a proposta do movimento para o uso da terra. A reforma agrária nas matérias do jornal Sem Terra No segundo momento da análise, focalizamos especificamente a relevância dada ao conceito de reforma agrária – tema de luta principal do MST - nas matérias, tanto quantitativamente quanto qualitativamente, ou seja, os sentidos expandidos dessa expressão, examinando os contextos em que ela aparece. Quantitativamente o conceito de reforma agrária aparece em 68 das 114 matérias observadas, relacionado aos mais diferentes assuntos. Identificamos dez contextos com relação direta entre reforma agrária e distintos temas, no conjunto do corpus. Os modos como o tema da reforma agrária é tratado, vinculando-se a outras questões, podem ser vistos no Quadro 3. Quadro 3 - Contextos temáticos aos quais se integra a expressão Reforma Agrária Contextos temáticos Número de matérias 1- Política 23 2-Educação /Cultura 12 3- Alimentação 9 4-Direito à terra / modelo de produção 9 5-Legislação 5 6-Comunicação 4 7-Igualdade de Gênero 3 8 –Trabalho 1 LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS 9 –Saúde 1 10-Habitação 1 Vamos, a partir de agora, examinar as formas pelas quais os textos incluem o tema da reforma agrária nos contextos temáticos identificados, indicando os principais assuntos que compõem cada um deles e os sentidos que adquirem. Política – são matérias que tratam de políticas governamentais relacionadas à reforma agrária no sentido estrito e, num sentido lato, como modelo para a sociedade, como uma proposta de superação das desigualdades sociais. O contexto tem matérias que envolvem diversas temáticas em um único texto, impossibilitando a concepção de uma categoria mais específica. As matérias vinculando a reforma agrária à política reúnem em um mesmo texto diferentes assuntos, sem destacar um especificamente, explicitando a reforma agrária como sinônimo do amplo projeto político e social do MST. Nesta categoria também estão as matérias que tratam de política governamental como as posições da UDR (União Democrática Ruralista) e políticas de reforma agrária dos governos de Fernando Henrique Cardoso, Luis Inácio da Silva e Dilma Rousseff. Educação/ Cultura – Trata-se das escolas nos assentamentos, Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), educação e permanência da juventude no campo, seminários, encontros de educadores, música, Instituto de Educação Josué de Castro, Festa do Carro de Boi e Semana Amazônica de Cultura Brasileira; Alimentação – As matérias nesse contexto focalizam os produtos da reforma agrária, cooperativas, uso de agrotóxicos e agroecologia, comercialização e doação de alimentos e feiras de alimentos; Direito à terra/ modelo de produção- Destacam-se as ocupações, assentamentos, plebiscito popular pelo limite da propriedade da terra, democratização da propriedade da terra, desapropriação de latifúndios e terras públicas utilizadas ilegalmente por empresas, assistência técnica aos assentamentos e agricultura familiar; Legislação – As matérias abordam leis de concessão do uso da terra, títulos de domínio e concessão de uso da terra, leis para renegociação de dívidas rurais, PEC (Proposta de Emenda LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS Constitucional) do trabalho escravo, limites de terras para estrangeiros, artigo 184 da Constituição Brasileira (terra deve cumprir função social); Comunicação – Examina-se a relação entre os meios de comunicação de massa e MST, ações de propaganda dos jovens do MST e outdoors contra o MST; Igualdade de Gênero – A reforma agrária é destacada como item da pauta de discussões nas mobilizações das mulheres em abril de 2010 e abril de 2011; Trabalho – Focaliza o movimento operário e apoio do MST; Saúde – A reforma agrária é associada ao setor de saúde do MST. Habitação – Cobertura sobre o crédito para construção de casas nos assentamentos. Observa-se a partir da análise desses dez contextos que a noção de reforma agrária é relacionada pelas matérias jornalísticas com uma diversidade de assuntos, que envolvem os principais direitos sociais: educação, saúde, alimentação, habitação, entre outros. No entanto, nesse contexto, esses direitos aparecem, na maioria das vezes, como ideais e não com propostas reais de implantação e limitam-se ao espaço rural, não tratando dos problemas urbanos. Grande parte das matérias desse contexto cobra políticas do governo federal, desde a melhora de projetos já existentes até a criação de novos, culpabilizando o Estado pelos problemas no campo, sendo que as políticas públicas para o meio rural aparecem como uma questão de somenos importância na história brasileira. O movimento se afirma apartidário, porém, tem claramente seus inimigos políticos: Kátia Abreu (DEM), José Serra (PSDB) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB) são alvo de críticas. Dilma Rousseff (PT), enquanto candidata a presidente, é apoiada na seção Editorial, no entanto, com algumas ressalvas em relação às políticas julgadas inadequadas para o meio rural, durante o governo de Luis Inácio Lula da Silva (PT). Discussão dos resultados O conceito de reforma agrária é o tema central do jornal Sem Terra, aparecendo em grande parte das matérias e relacionado aos mais diferentes assuntos, sendo vinculado a todas as frentes de atuação do LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS movimento. Escrito sempre com as iniciais em maiúsculas e tratado em tom enfático, o projeto de reforma agrária proposto pelo movimento é apresentado como processo imprescindível para a superação das desigualdades sociais. A reforma agrária é relacionada na publicação com os principais direitos sociais: educação, saúde, alimentação, habitação, entre outros, embora esses direitos surjam essencialmente vinculados ao espaço rural, não tratando dos problemas urbanos. Constata-se que, para o MST, política de reforma agrária não é apenas a divisão das terras, mas todo um amplo conjunto de políticas públicas voltadas para a qualidade de vida no campo, que vão dos direitos sociais básicos até políticas de assistência técnica aos assentamentos e comercialização de alimentos. Parte das matérias cobra políticas do governo federal, desde a melhora de projetos já existentes até a criação de novos, culpando o Estado pelos problemas no campo. Os problemas do movimento aparecem relacionados à insuficiência de políticas públicas para o campo, não sendo discutidos como dificuldades da própria organização, o que aponta o caráter institucional do veículo, o qual, sendo um veículo de divulgação dos ideais do movimento, enfatiza suas características positivas, sua importância e suas conquistas. Já a alta incidência dos termos luta, lutar e lutas, e da sigla do MST nas manchetes, chamadas de capa e títulos revela o intuito militante da publicação, que busca convencer o leitor da necessidade do movimento para a transformação social. Essas constatações evidenciam o que chamamos neste trabalho de jornalismo militante. Por ser uma publicação mensal, o jornal traz essencialmente matérias “frias” (ou seja, sem o critério da atualidade), que divulgam ações do movimento e refletem sobre suas posturas políticas. Grande parte das matérias analisadas traz no último parágrafo conclamações ardorosas, como “Boa luta para todos nós! Pátria Livre, Venceremos!” (edição fevereiro/março de 2011), que convocam o leitor a participar ou continuar envolvido nos ideais do movimento. O uso dessas frases é especialmente perceptível nas matérias que tratam de dificuldades históricas do MST. As matérias do jornal são assinadas por membros do MST ou por intelectuais, professores, alunos e ativistas de outros movimentos sociais que mantém vínculos ideológicos com o MST, tal observação também pode ser estendida às fontes entrevistadas; o que fortalece o caráter institucional da publicação. LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS A leitura das matérias permitiu perceber a preocupação do movimento com a formação dos seus militantes, assim diversas matérias tem características didáticas como em abril de 2010 na matéria “Porque defender a concessão de uso”, que traz explicações sobre os títulos de uso da terra. Outra preocupação do movimento é a de envolver os jovens nas lutas do movimento, valorizando sua participação e buscando formas de manter os vínculos deles com as atividades no campo. O jornal Sem Terra atua a favor da valorização do MST, seja através de números (de famílias assentadas, quilos de alimentos produzidos, pessoas envolvidas nas manifestações), através de suas atuações (escolas, assentamentos, encontros, feiras) ou de seus projetos políticos e sociais (campanhas, reivindicações). A publicação deixa claro seus ideais e interesses não só nas escolhas das pautas, mas também na escolha das fontes, sendo um canal de comunicação entre a sociedade civil e o movimento e entre os próprios membros do MST. Considerações finais A partir da observação do jornal foi possível constatar que reforma agrária aparece como principal tema tratado pelo jornal Sem Terra. A pesquisa identificou os seguintes contextos a partir da relação de quais assuntos aparecem diretamente vinculados à reforma agrária: Política; Educação/Cultura; Direito à terra/ Modelo de Produção; Legislação; Igualdade de Gênero; Trabalho; Saúde e Habitação. Reforma agrária para o Sem Terra não se limita ao acesso à terra, mas abrange um amplo projeto de mudanças na sociedade, ao buscar eliminar a pobreza no campo, combater a desigualdade social, alcançar a soberania alimentar, preservar a biodiversidade, entre outros. Na publicação, direitos como educação, saúde, alimentação e habitação aparecem diretamente relacionados à reforma agrária, sendo cobradas ações governamentais e propostas de políticas públicas mais efetivas para o campo. As reflexões incluem, além de cobranças de demandas básicas de infraestrutura, questões complexas que remetem à qualidade desses direitos e também a transformação dos direitos já instituídos. Assim, a cidadania não aparece no jornal como algo imutável, mas como uma luta histórica permanente e o cidadão camponês é considerado agente essencial nas mudanças sociais em meio a um quadro histórico de políticas excludentes. LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS O jornal Sem Terra, no período analisado, não se posicionou como um espelho às avessas da grande imprensa, rediscutindo ou criticando as suas pautas e enquadramentos, mas defendeu seus ideais e divulgou suas ações. Somente em uma matéria publicada em maio de 2010, o Sem Terra se demonstrou claramente avesso às informações divulgadas na grande imprensa: a matéria “Cartel da Cutrale derruba 15 mil pés de laranja por dia” é uma resposta em relação a cobertura da TV Globo sobre o protesto realizado em 2009 contra a empresa Cutrale. Essa postura revela que o jornalismo alternativo além de ser um contraponto ao jornalismo da grande imprensa, pode atuar como um enriquecedor das possibilidades de leitura da realidade. O Sem Terra não tem compromissos com o capital das empresas, por ser sustentado pelo próprio movimento, não deseja alcançar a forma de objetividade da grande imprensa, por isso não se define pelo factual e tem como intenção discutir os temas relevantes para os movimentos sociais que trabalham com a questão da terra e a partir desses temas refletir sobre a realidade social, econômica e política brasileira. Por isso, a nomenclatura que propomos para identificar o jornal Sem Terra foi jornalismo militante, por ser um jornal que defende as posições de um movimento social e busca mobilizar os leitores para atuarem a favor desses ideais. A adoção da expressão jornalismo militante, checado pela análise, revelou-se adequado por salientar que esse jornalismo não se pauta pelos protocolos de objetividade jornalística, porque deixa clara a representação das categorias sociais às quais se liga, adotando assim, o papel de seu de porta-voz, num embate de posições no debate público, sem esconder suas filiações e compromissos. O jornal militante se posiciona de forma declarada, instaurando, assim, um outro modelo de jornalismo, de luta, no contexto de uma pluralidade de grupos de interesse, muitas vezes em choque, no qual explicita as posições de um dos atores. Assim, a diferença essencial entre o jornal Sem Terra e a grande imprensa é que, enquanto o jornalismo dos grandes grupos de comunicação mostra-se fornecedor de relatos que buscam se aproximar da realidade, sem demonstrarem claramente suas perspectivas de leitura de mundo, o jornal Sem Terra assume claramente suas posições e intenções, enquanto porta-voz de uma categoria social. A questão mais problemática e evidente em torno do jornalismo é a concentração dos meios de comunicação em poucos grupos empresariais. Tal realidade que não é só brasileira, mas mundial, enfraquece LINGUAGENS E DISCURSOS DAS MÍDIAS as possibilidades de o jornalismo atuar como transformador da realidade, já que não podemos tratar o campo do simbólico desvencilhado da realidade econômica, política e social. Um jornal vinculado a um movimento social, como o jornal Sem Terra, não significa apenas um meio de divulgar ideais de um determinado grupo, mas um instrumento de fortalecimento identitário, de valorização cultural, de preservação histórica e uma perspectiva complementar ao atual quadro do jornalismo brasileiro, como representante de classes e categorias sem voz. Numa perspectiva democrática, trata-se da possibilidade de setores da sociedade, categorias e classes disporem de seus próprios meios de representação da realidade. Referências BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995. BERGER, Christa. O Caso Aracruz. Do fato ao acontecimento jornalístico. Unirevista, vol 1, no. 3, Porto Alegre, julho 2006. Disponível em < http://alaic.net/ponencias/UNIrev_Berger.pdf> Acesso em agosto de 2011. BUCCI, Eugenio. A imprensa e o dever da liberdade: a responsabilidade social do jornalismo em nossos dias In Canela, Guilherme (org.). Políticas Públicas Sociais e os Desafios para o Jornalismo. Andi e Cortez editora, Brasília e São Paulo: 2008. GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide – para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987. LIMA, Venicio. Mídia, teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. LOPES, Maria Immacolata Vassalo. Pesquisa em Comunicação. São Paulo: Loyola, 2005. SOARES, M.C. Jornalismo e Cidadania: a visão normativa em discussão. In: 18º Encontro da COMPÓS- Ass. Nac. de Progr. de Pós-Grad. em Comunicação, 2008, São Paulo. 17º COMPÓS – Anais, 2008. TAVARES, Joana. Entrevista ao autor, 2011. i Essa discussão foi realizada pelo 1o. Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, organizado por jornalistas blogueiros como Luiz Carlos Azenha, Paulo Henrique Amorim, Luiz Nassif e Rodrigo Vianna. Site do encontro: < http://www.blogprogressistas.com.br>. http://alaic.net/ponencias/UNIrev_Berger.pdf http://www.blogprogressistas.com.br/