UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP CAMPUS DE MARÍLIA – FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO SILVIA MARIA DO ESPÍRITO SANTO O COLECIONADOR PÚBLICO DOCUMENTALISTA Museu Histórico e de Ordem geral “Plínio Travassos dos Santos” de Ribeirão Preto Marília 2009 SILVIA MARIA DO ESPÍRITO SANTO O COLECIONADOR PÚBLICO DOCUMENTALISTA Museu Histórico e de Ordem geral “Plínio Travassos dos Santos” de Ribeirão Preto Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, campus de Marília, como parte dos requisitos para a obtenção do título de doutor em Ciência da Informação. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Ismael Murguia Linha de pesquisa: Organização da Informação Marília 2009 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. FICHA CATALOGRÁFICA Espírito Santo, Silvia Maria do. O colecionador público documentalista: Museu Histórico e de Ordem geral “Plínio Travassos dos Santos” de Ribeirão Preto / Silvia Maria do Espírito Santo. – Marília, 2009. 206 f. : il. ; 30 cm. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2009. Bibliografia: f. 190-206 Orientador: Eduardo Ismael Murguia 1. Museus. 2. Coleção. 3. Café. 4. Organização da Informação. 5. Historiografia museológica. I. Autor. II. Título. CDD Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências SILVIA MARIA DO ESPÍRITO SANTO O COLECIONADOR PÚBLICO DOCUMENTALISTA Museu Histórico e de Ordem geral “Plínio Travassos dos Santos” de Ribeirão Preto Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, campus de Marília, como parte dos requisitos para a obtenção do título de doutor em Ciência da Informação. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Ismael Murguia Linha de pesquisa: Organização da Informação Aprovado em: ____________________ Banca Examinadora Prof. Dr. Eduardo Ismael Murguia – Orientador Instituição: _______________________ Assinatura: ____________________ Prof. Dr. Oswaldo Francisco de Almeida Júnior Instituição: _______________________ Assinatura: ____________________ Prof. Dra. Suely Moraes Ceravolo Instituição: _______________________ Assinatura: ____________________ Prof. Dra. Marília Cury Xavier Instituição: _______________________ Assinatura: ____________________ Prof. Dra. Maria Lúcia Lamounier Instituição: _______________________ Assinatura: ____________________ Aos meus pais AGRADECIMENTOS Aos professores, alunos, amigos e parentes queridos de sempre, com especial agradecimento aos meus irmãos Iran e Marta, ao meu cunhado Guthemberg Ferro e sobrinhos Gabriel e Flávio. À Matiza, Solange Ferraz Lima, Vânia Carneiro de Carvalho e Denise Cardoso. Aos professores: Profa. Dra. Adelaide de Almeida, Prof. Eduardo Murguia, Profa. Dra. Elenice Mouro Varanda, Prof. Dr. Amando Ito, Prof. Dr. Oswaldo Baffa Filho, Prof. Dr. José Augusto Guimarães, Profa. Mara Pedrochi, Profa. Dra. Mariângela Fujita, Profa. Dra. Silvana Vidotti e alunos queridos. Ao revisor, Carlos Alberto Vieira Coelho. Aos funcionários da Secretaria do Departamento de Física e Matemática da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, e da Secretaria da Pós-graduação da Faculdade de Filosofia da UNESP de Marília. Perguntas de um operário que lê Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis, Mas foram os reis que transportaram as pedras? Babilônia, tantas vezes destruída, Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas Da Lima Dourada moravam seus obreiros? No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde Foram os seus pedreiros? A grande Roma Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio Só tinha palácios Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida Na noite em que o mar a engoliu Viu afogados gritar por seus escravos. O jovem Alexandre conquistou as Índias Sozinho? César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço? Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha Chorou. E ninguém mais? Frederico II ganhou a guerra dos sete anos Quem mais a ganhou? Em cada página uma vitória. Quem cozinhava os festins? Em cada década um grande homem. Quem pagava as despesas? Tantas histórias Quantas perguntas Bertold Brecht RESUMO ESPÍRITO SANTO, S. M. do. O colecionador público documentalista: Museu Histórico e de Ordem geral "Plínio Travassos dos Santos" de Ribeirão Preto. 2009. 206 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2009. A presente tese estuda os conteúdos do desenvolvimento das coleções e da documentação sobre a representação museológica do Oeste paulista (Oeste Paulista, 1948-1958) no Brasil. O trabalho também inclui a análise da personagem agenciadora no exemplo específico e o caso sobre o processo de criação do museu de história natural e oficial e sobre a economia do café. O contexto econômico e da cultura material, nesse estudo do Museu Histórico e de Ordem geral, talvez guarde os aspectos do corpo material e os processos do colecionismo, da documentação de objetos e dos documentos. Palavras-chave: Museus. Coleção. Café. Organização da Informação. Historiografia museológica. ABSTRACT ESPIRITO SANTO, S. M. do. The documentalist public collecter: O colecionador público documentalista: History Museum and general Order "Plínio Travassos dos Santos" of Ribeirão Preto. 2009. 206 f. Thesis (Doctoral) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2009. The present thesis studies the contents of the development of the collections and the documentation on the museológica representation of the São Paulo West (São Paulo West, 1948-1958) in Brazil. The work also includes the analysis of the agent personality in the special example and the case on the creation process of the natural and official history museum and the coffee economy. Perhaps the economic and the material culture context, in this History Museum and general Order study, holds the aspects of the material body and the colecionismo processes, objects documentation and documents. Keywords: Museums. Collection. Coffee. Information Organization. Museologic Historiography. LISTA DE ILUSTRAÇÕES ILUSTRAÇÃO 1 – Fotos da Fazenda Monte Alegre – Economia cafeeira............... 17 ILUSTRAÇÃO 2 – Fazenda Monte Alegre, de Ribeirão Preto ................................. 62 ILUSTRAÇÃO 3 – Telha Marseille St. Henry, da sede da Fazenda Monte Alegre ..... 68 ILUSTRAÇÃO 4 – Carimbo Theodor Wille ................................................................... 76 ILUSTRAÇÃO 5 – Interior do Museu Histórico Plínio Travassos dos Santos ......... 108 ILUSTRAÇÃO 6 – Candeeiros confeccionados por escravos ..................................117 ILUSTRAÇÃO 7 – Restauro do Museu Histórico e de Ordem geral Plínio Travassos dos Santos ................................................... 136 ILUSTRAÇÃO 8 – Coador de café .......................................................................... 139 ILUSTRAÇÃO 9 – Museu do Café Cel. Francisco Schmidt ..................................... 155 ILUSTRAÇÃO 10 – Pilão manual ........................................................................... 161 ILUSTRAÇÃO 11 – Interior do Museu do Café Cel. Francisco Schmidt. ................ 164 ILUSTRAÇÃO 12 – Interior do Museu do Café Cel. Francisco Schmidt ................. 174 LISTA DE INSTITUIÇÕES PESQUISADAS Arquivo da Prefeitura Administrativa do Campus da USP – Ribeirão Preto Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto (APHRP) Biblioteca Altino Arantes – Ribeirão Preto Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro Centro de Documentação da Faculdade de Medicina – Ribeirão Preto Centro de Documentação e Memória da Unicamp – Campinas Instituto de Estudos Brasileiros – Universidade de São Paulo Museu da Cidade do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro Museu Histórico e de Ordem geral Plínio Travassos dos Santos – Ribeirão Preto (Arq. MH) Museu Histórico Nacional – Rio de Janeiro Museu Paulista – Universidade de São Paulo SUMÁRIO INTRODUÇÃO .....................................................................................12 1 O COLECIONADOR ....................................................................... 24 1.1 O COLECIONISMO E O OBJETO ............................................................. 24 1.1.1 A produção social do objeto .............................................................. 33 1.1.2 A memória e a coleção ...................................................................... 36 1.1.3 As tensões entre o público e o privado no colecionismo .................. 40 1.1.4 O objeto museológico e o colecionador ............................................ 44 1.1.5 Colecionismo, agenciamento e circulação ........................................ 49 1.2 CONTEXTO CULTURAL E BIOGRÁFICO DE PLÍNIO TRAVASSOS DOS SANTOS ............................................................................................ 54 1.2.1 O marco histórico do café .................................................................. 56 1.2.2 A conversão da sede de fazenda para museu ................................... 89 1.2.3 Traços biográficos da personagem de Santos, um colecionador público ................................................................... 92 1.3 A FORMAÇÃO DA COLEÇÃO DE SANTOS ........................................... 103 1.3.1 O museu, produto de ações colecionistas ....................................... 107 1.3.2 A personagem do colecionador e seus colaboradores .................... 122 1.3.3 As diversas formas da coleção histórica e de Ordem geral ............. 131 1.3.4 A classificação, o arranjo e a linguagem representada .................... 138 2 O DOCUMENTALISTA ................................................................... 142 2.1 O DOCUMENTALISMO E O DOCUMENTO ............................................. 142 2.1.1 A produção social do documento ...................................................... 146 2.1.2 A memória e a documentação .......................................................... 148 2.1.3 Os dispositivos – ordem e classificação – destinados ao controle da documentação do acervo ............................................................ 152 2.2 A ORDEM DOS OBJETOS: A SELEÇÃO PERMEADA PELA INTENCIONALIDADE NA FORMAÇÃO DA COLEÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO ........................................................................... 154 2.2.1 As fontes documentais do Museu Histórico Plínio Travassos dos Santos e o acervo ...................................................................... 168 2.3 A ORDEM GERAL DOS DOCUMENTOS: INTENCIONALIDADE NA PRODUÇÃO DA DOCUMENTAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO .............. 171 2.3.1 Análise dos documentos do acervo .................................................. 173 2.3.2 As diversas formas da documentação do museu ............................. 174 2.3.3 O documentalista define o arranjo como Ordem geral ..................... 177 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 183 REFERÊNCIAS ................................................................................. 190 12 INTRODUÇÃO No sentido formal da tese, a premissa antecipa o argumento da hipótese que é desenvolvida ao longo da dissertação. De uma forma geral, nas pesquisas realizadas no programa do Curso de Ciência da Informação da UNESP – Campus Marília, nos últimos quatro anos, analisou-se o colecionismo além das questões que envolvem o ato de reunir, classificar e disponibilizar os objetos. Assim, na linha de pesquisa Organização da Informação, à qual o presente trabalho está vinculado, a ordem, a classificação, o arranjo dos documentos ou a documentação produzida no âmbito do museu são direcionados na análise para a sua posterior recuperação. Nesta tese, o foco de pesquisa e reflexões ficou restrito aos objetos e lugares. Diferentes seriam as abordagens sobre o objeto desde já posicionado no interior de uma vitrine de museu. O colecionismo, aqui, foi trabalhado a partir das ações de um agente colecionador público, objetivado na construção de traços de uma personagem – Plínio Travassos dos Santos. Ele foi fundador do Museu Histórico e de Ordem geral e Museu do Café de Ribeirão Preto, exerceu as funções de advogado, funcionário público, cronista, jornalista, historiador, e preocupava-se, especialmente, com a Educação. Para o desenvolvimento do trabalho, apresenta-se a primeira premissa que estabelece o sujeito-colecionador no seu contexto histórico. O destaque no texto não está apenas na ação humana, mas frente à cultura material1. Estão também presentes as relações sociais no tempo e no espaço determinado pela pesquisa. 1 A cultura material é objeto de estudo de várias áreas na contemporaneidade. Entre elas, ressaltam-se a Antropologia e a História da Cultura. Portanto, há fenômenos complexos que circundam tal temática e, para não incorrer na irresponsabilidade reducionista do uso do termo – cultura material –, restringe- se o conceito ao aplicado no âmbito museológico. 13 Esta, como já mencionado, considerou o processo do colecionismo no aspecto público e como fenômeno da sociedade. A premissa intermediária pontua o contexto cultural da cidade de Ribeirão Preto, na história da produção do café e nas relações sociais no Brasil. Particularmente, o período em questão localiza-se na segunda fase de produção econômica e desenvolvimento no Oeste Paulista, no estado de São Paulo. A terceira premissa baseou-se na identificação das ações colecionistas e documentalistas do sujeito da ação na atividade colecionar. A construção do objeto de estudo foi erigida no cruzamento de três campos interdisciplinares conhecidos hoje como Colecionismo, Museologia e Documentação, entrelaçados no cruzamento da História, das Ciências Sociais e da Ciência da Informação. Paralelamente, tratou-se de enriquecer a discussão, na temática do colecionismo público, trazendo aspectos relevantes presentes na sociedade cafeeira brasileira, na sua expressão na cidade de Ribeirão Preto. O objetivo, por isso, é analisar o colecionismo público, justificar a intimidade do sujeito com o ideário da história oficial, remanescente nos museus brasileiros e, particularmente, no Museu Histórico e de Ordem geral Plínio Travassos dos Santos, situado no Campus da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. Assim, os pensamentos histórico e sociológico, embora tenham as suas premissas imbricadas nos estudos do tema café, apresentam-se estáveis nas linhas de pesquisas já pautadas no emprego dos conceitos, manejados pelos autores abaixo citados, e têm por objetivo a análise do contexto histórico e da cultura. Neste sentido, tais premissas foram pautadas no emprego de diversos conceitos aplicados nas áreas em que atuam os profissionais da informação: objeto, 14 coleção, arranjo, documento e documentação, todos conhecidos nas disciplinas acadêmicas da Ciência da Informação. Ao perceber a aproximação das áreas da História, da Arquivologia e da Museologia, no campo da memória humana, buscou-se explicar e resolver o problema da seleção dos elementos significantes na base historiográfica da sociedade cafeicultora, para erguer um argumento pautado pela importância do contexto da cultura e pelo estudo do museu como objeto, no campo da Ciência da Informação. O texto foi estruturado a partir de reflexões sobre as possibilidades e a qualidade do uso da documentação para o enriquecimento da pesquisa da Organização da Informação, no campo de interesse dessa linha. A pesquisa foi centralizada no arquivo histórico do Museu Histórico e de Ordem geral Plínio Travassos dos Santos, em Ribeirão Preto, analisando a documentação, por referir-se à sua formação como uma instituição museológica2. No percurso de atores e registros dos acontecimentos dos primórdios do período econômico do café, os elementos para a formação da cidade, a imigração italiana, o café no mundo rural, o fomento do plantio nas fazendas, o colonato integrando o sistema de trabalho, as fazendas produtivas e o terreiro como espaço central da produção cafeeira, são partes das questões, ainda não esgotadas nos estudos da academia. Partiu-se da temática “o colecionismo no período de produção do café na cidade de Ribeirão Preto”, aplicada à análise de conceitos das áreas científicas 2 O texto elaborado a partir de anotações e pesquisas nos acervos públicos documentais, ou elementos colhidos de depoimentos orais, também aponta para a finalidade de tornar a localidade – hoje campus universitário – memorável, o que se tornou legítimo nas esferas modernas de categorização do Patrimônio Cultural como um bem tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Arquitetônico, Artístico, Arqueológico e Turístico da Secretaria de Estado da Cultura, com limites do perímetro e dos remanescentes arquitetônicos da Fazenda Monte Alegre, em 1994. 15 mencionadas. Assim, fez-se uso dos estudos de Celso Furtado, Sérgio Buarque de Holanda, Warren Dean, Paula Beiguelman, Queiroz & Telles e Luiz Saia, autores clássicos da história econômica e da cultura brasileira. Também foram considerados os conteúdos de pesquisa e da crítica elaborados pelos estudiosos contemporâneos como André Argollo, Ângelo Trento, Wladimir Benincasa, Carlos de Almeida Prado Bacellar, Renato Marcondes, Carlos Lemos, Hugo Segawa, Ulpiano Bezerra de Meneses, Vânia Carneiro Carvalho, Solange Ferraz Lima, entre outros do domínio da pesquisa contemporânea da Arquitetura e da História. Neste texto, consideram-se também escritores da cidade de Ribeirão Preto, memorialistas, historiadores e pesquisadores – Plínio Travassos dos Santos, Prisco da Cruz Prates, Rubens Cione, Prof. Marcos Vinícius e Gaeta Junqueira –, além dos autores dos artigos de jornais da cidade de Ribeirão Preto, do período de 1938 a 1956. Esses autores, além de focarem em genealogias da história local e da regional, dedicaram as suas vidas para narrar a história da sociedade plantada na terra roxa, realizando longas pesquisas substanciais para a história brasileira do café. Nos caminhos interdisciplinares, buscou-se conhecer as proposições dos autores preocupados com as questões da organização da informação, no campo da pesquisa na Ciência da Informação. Iniciaremos este texto com uma pequena descrição, com a finalidade de localizar, no endereço físico e da história, a Fazenda Monte Alegre, que será a protagonista do território deste estudo. O local onde estão instalados o Museu Histórico Plínio Travassos dos Santos e o Museu do Café Cel Francisco Schmidt (Museus Municipais) é integrado pelo Jardim Botânico da antiga Fazenda Monte Alegre, denominada anteriormente de Fazenda Laureano, cujo primeiro proprietário foi o Cel. João Franco de Moraes Octávio “[...] que aqui se instalou na 16 mesma época em que o café começou a marcar presença [...]” (MORAES, 1992, p. 12). Mineiro, migrou de Atibaia, interior paulista, para a região de Ribeirão Preto, fixou-se em Descalvado, empreendeu o trabalho escravo, criou e comerciou gado, além de ser considerado como um grande produtor de café na fazenda Monte Alegre. A casa-grande dessa fazenda, atual Museu Histórico, foi construída provavelmente em 1870. Trata-se de um exemplar de arquitetura rural cafeeira, construído no assento de meia encosta (do terreno em declive), com a fachada principal assobradada, voltada para o córrego Laureano. Na sua face posterior, sustenta-se em um pavimento retilíneo, diretamente apoiado sobre a parte mais elevada do terreno. No ano de 1883, essa casa entrou definitivamente para a história de Ribeirão Preto, como o primeiro local da cidade a utilizar iluminação elétrica, com energia ali produzida. O destaque à fazenda foi dado porque a iluminação pública em Ribeirão Preto apenas foi inaugurada em 26 de julho de 1899. Em 1890, Francisco Schmidt associou-se a Arthur Aguiar Diederichsen e, entre outros resultados dessa parceria, adquiriram a Fazenda Monte Alegre, cuja transação comercial foi financiada pelo Banco Construtor e Agrícola de São Paulo (escritura lavrada em 8 de novembro de 1890). Após a legalização da compra, Arthur Aguiar Diederichsen vendeu, no dia 22 de novembro de 1890, a sua parte a Francisco Schmidt, que passou a ser o único proprietário da fazenda. Essa compra foi financiada pela firma alemã Theodor Wille & CO, acontecimento condizente com o princípio do assentamento capitalista de produção agrária. Schmidt passou a residir na Fazenda Monte Alegre e empreendeu uma série de reformas na sede. A ela acrescentou as varandas circundantes, sustentadas por 17 grossas colunas com modelos gregos no capitel, remodelando os aspectos dos jardins com a construção de uma fonte e um Belvedere. Foi um dos “reis do café” e proprietário da Empresa de Importação e Exportação Francisco Schmidt. Em 1924, faleceu na cidade de São Paulo, onde foi sepultado. ILUSTRAÇÃO 1 – Fotos da Fazenda Monte Alegre – Economia cafeeira Fonte: Acervo Centro Memória da Unicamp, Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo Após a morte do Cel. Schmidt, o seu filho Jacob Schmidt herdou a Monte Alegre. Com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em outubro de 1929, uma crise sem precedentes influenciou negativamente a economia cafeeira, mudando o cenário dessa monocultura. Por isso, houve uma diminuição drástica do número de colonos e da área de plantio, além da desativação dos trilhos e vagões da locomotiva usados no transporte do café até o porto de Santos. Com a marca histórica da crise de 29, a derrota econômica do café atingiu a Monte Alegre, de propriedade de João Marchesi. Na ação estratégica econômica, o 18 governo provisório de Getúlio Vargas (1931) tomou medidas drásticas para acabar com a superprodução, o que também não desviou a fazenda Monte Alegre dessa crise e da falência de Marchesi. No final da década de 30, o Governo Federal empreendeu uma política de desenvolvimento de técnicas agrícolas, criando várias escolas práticas de agricultura. Foi nesse contexto que o Governo Estadual desapropriou a Fazenda Monte Alegre, desenvolvendo um plano de ocupação para aquelas terras férteis, e instalou ali, em 1942, a Escola Prática de Agricultura Getúlio Vargas. A ocupação do espaço pelo Governo estava justificada pelo projeto de racionalização e de aproveitamento da terra, qualificando técnicos em práticas da agricultura para concluir a tarefa “modernizadora” do campo brasileiro. Assim, nesse território, terminaram as convulsões econômicas surgidas do café. Contudo, o fenômeno econômico, em Ribeirão Preto, será notado a partir do desenvolvimento de serviços, instalações de estabelecimentos comerciais, bancos e escolas. Em 1950, o Governo do Estado iniciou o processo de doação de parte da área da Fazenda Monte Alegre à Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto com o objetivo de ali instalar o Museu Municipal, hoje Museu Histórico e de Ordem geral Plínio Travassos dos Santos. Em 24 de dezembro de 1952, foram doados à Universidade de São Paulo – USP cerca de 240.000 alqueires da Fazenda Monte Alegre, para a instalação da Faculdade de Medicina3. Dessa área, aproximadamente 17.000 m2 são correspondentes às construções e cercanias. A sede dessa fazenda não foi incluída, devido a sua anterior designação, de anexo da Escola Prática de Agricultura. Todos esses elementos factuais, representados no espaço ocupado, antes, pela Fazenda Monte Alegre, depois pela Escola Prática de Agricultura Getúlio 3 A Escola Prática de Agricultura foi desativada por razões administrativas e políticas. 19 Vargas e Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, contribuíram para tornar aquele território atraente para cientistas e intelectuais. A partir dos anos cinquenta, o espaço será conhecido genericamente como Museu do Café. Por fim, a cidade de Ribeirão Preto sempre figurou como localidade de expansão econômica, do mercado potencializado pela produção da agricultura, de serviços e da urbanização crescente. Neste contexto, apresentam-se as relações históricas, a partir da retomada de fatos selecionados na bibliografia clássica da história do café no estado de São Paulo, dos elementos importantes retirados na análise dos documentos dos acervos do museu em questão, das imagens iconográficas e objetos. Assim, formulam-se as questões abaixo. Qual será o dispositivo do contexto cultural, criador de modificações sociais e, entre elas, a formação de um museu histórico? Quais foram as ações do sujeito colecionador que lutou para dar conformidade às unidades significativas do condensamento informacional no interior de um museu? Ao organizar uma coleção, apropriada a partir do legado da história oficial, quais elementos analisam as inquietações emanadas pela significação do mundo material? Então, para obedecer a um traçado de uma linha de fuga aqui adotada, e apesar das distâncias entre os conceitos – objeto material, documentação, documentos e cultura material –, disponibilizam-se os argumentos da hipótese. No sentido de tentar resolver os problemas acima expostos, pela proximidade desses conceitos, pela via das significações articuladas e através da interiorização do conceito materialidade da informação, definiu-se um caminho de investigação. Aquilo que foi apropriado da história de Ribeirão Preto, pelo sujeito, que pode dar conformidade à cultura material no interior de um museu, ainda não se esgotou. 20 A descrição dos objetos reais, na maneira pela qual o sujeito é apresentado ao mundo e a partir do ciclo fechado na consciência de quem os consome, talvez esteja aí o diferencial entre o ato de acumular e o de colecionar. Mesmo assim, não se resolvem todos os problemas que aparecem no momento da pesquisa; na complexidade e nas respostas, o como e o porquê permanecem questões que envolvem os objetos na coleção e na documentação. Tratar o colecionismo como método de conhecimento do mundo seria simplificado demais. Explicar tal complexidade, apenas descrevendo os bens materiais no espelho da documentação museológica, seria entendê-la sem acabamento de um processo museal. Afinal, por que determinadas pessoas colecionam objetos, no centro de uma temática, e preocupam-se em disponibilizá-los visualmente ao público? Ao contrário, havendo dialética entre a relação social e a criação de produtos materiais – produção, distribuição e consumo deles – nos ambientes, a produção material social (humana) é identificada como cultura material. Agora, se a cultura material é vista além do que o fenômeno da produção possa acumular objetos (produtos dos bens da produção racional), nesta tese, poderá ser entendida como ponte mediadora da relação do homem com o mundo. Talvez, o que faz desta relação algo importante para o estudo dos objetos em coleções sejam as possibilidades de lhes atribuir qualidade e quantidade, resultantes dos estímulos da apropriação, de seus dispositivos, estratégias das ações racionais ou passionais. Além disso, onde e o porquê ocorreram, o estado da ação em que foram produzidos, utilizados, guardados e expostos. Na sociedade de consumo, o excesso da produção de bens materiais e a negligência dos usos por essas sociedades também diz respeito ao desperdício. 21 Ambos, consumo e desperdício, são decorrentes e recorrentes na produção e na distribuição. Na linha do tempo e espaço, essas sociedades, que podem ser representadas por objetos, favorecem aos “voyeurs”, colecionadores, pesquisadores e curiosos reconhecerem-se diante dos processos irreversíveis de produção de objetos de consumo. No plano físico, os materiais em tais processos de uso e descarte, sem utilidades e “batizados” na cultura material social, possuem inserção absoluta no mundo moderno, quando se processa a substituição incessante de uma tecnologia por outra. Por isso, esse manancial material poderá oferecer ao ator/leitor questionamentos a respeito da natureza social das mediações, dos objetos entre o ser e a materialidade da cultura, em determinados contextos da história. A produção de objetos, do que se denomina como objetos de kitsch4 – exemplo do julgamento de determinados objetos de arte ou consumo “popular” – responde a estas questões de produção da cultura material, consumo, descarte e notoriedade objectual. Assim, se procede à análise do colecionismo, identificando-se as ações colecionistas, que são diversas. Nas demais análises do comportamento dos sujeitos/colecionadores, não se indica somente um caminho para afrontar o sistema que produz infinitamente objetos de toda a natureza e universo, mas também para compreender o mundo por uma lente empírica e capaz de ilustrar as proposições do sujeito no coletivo. Procura-se reunir, neste texto, elementos para comparações do fenômeno do colecionismo, nas ações de outros colecionistas contemporâneos de Santos, de Taunay, de Gustavo Barroso, entre outros, cujos princípios de ordem, organização e 4 O kitsch é um termo de origem alemã – verkitschen –, usado para categorizar objetos de valor estético distorcidos, modificados, exagerados, que são considerados no sentido afetivo de quem os adquire. 22 classificação documentais (objetos, documentos iconográficos e textuais) estavam respaldados pelo pensamento científico, histórico, classificador do mundo natural, vivo, e do mundo artificial, da sociedade e da cultura (SEDGWIK; EDGAR, 2003, p. 75). As narrativas históricas e descrições sucintas, envolvendo o acervo museológico, nem sempre são autossuficientes para reconstituir a maneira pela qual os objetos foram abordados, apropriados e classificados. O vazio temático entre a forma e o conteúdo será possível de desfazer-se a partir da memória operante, considerando o como, o quando e o porquê foram atribuídas qualidades físicas e sígnicas ao objeto. Do ponto de vista dos suportes em acervos museais, diferenciados pela sua materialidade e simbologia, a documentação5, não raramente, restringe-se ao papel descritivo, testemunhal e, talvez pelo vício do cachimbo ou por precisão obsessiva dos bancos de dados, é renegada na sua importância – documentar. Dentro da própria natureza material que lhe pertence, é objeto de suporte das ideias, dos comunicantes, das forças ideológicas, da invisibilidade dos sentidos. Os papéis, material derivado da celulose, são suportes de grande parte da documentação. Os documentos em papéis são tangíveis e, ao mesmo tempo, são veículos de modificações das relações humanas. São também considerados nos termos da organização da cultura material, embora, na maioria das vezes, são esquecidos ou, ainda que sejam lembrados, são negligenciados no mesmo mundo regido pela virtualidade. A primeira parte da presente tese abordará, em três seções, os seguintes itens apresentados como problema entre colecionismo e contexto cultural: a prática do colecionismo e o agenciamento; os objetos (re)interpretados através da linguagem natural de uma sociedade; a cultura e o processo de contextualizar os 5 Refere-se aqui à documentação produzida sobre o objeto. 23 modos do fazer no espaço e, por último, a interdisciplinaridade entre a Museologia, as Ciências da Informação e a História. O termo documento é também encontrado, na literatura das áreas acima citadas, transversalmente em usos e é empregado para definir a unidade material de informação associada a um tipo documental6. Para entender o objeto que sofreu conversão – do mundo das coisas vivas para o museal estático, do objeto da produção material para a informação materializada, para a documentação – tais questões serão demonstradas no segundo capítulo da tese. Na terceira seção do capítulo primeiro, houve a preocupação com a formação da coleção Santos, da personagem documentalista, que se apropriou do termo estático para explicar a organização e arranjo no museu7. No segundo capítulo, após a apresentação dos dispositivos – ordem e classificação – destinados ao controle da documentação do acervo, na segunda e terceira seções, será apresentada a busca dessa ordem, dos objetos e dos documentos, do Museu Histórico, a partir do que ele considerava como organização, descrevendo a ordem dos documentos produzidos principalmente pela intencionalidade do colecionador/documentalista. 6 Tipo de suporte que implica em diversidade, como manuscritos, impressos, audiovisuais, objetos bidimensionais e tridimensionais (BELLOTTO, 2004, p. 43). 7 No documento do acervo do Museu Histórico, denominado Plano para a devida organização dos Museus Municipais, de autoria de Santos, o termo estático é reproduzido para definir um museu “completo”, mesmo que ainda esteja em formação. 24 1 O COLECIONADOR 1.1 O COLECIONISMO E O OBJETO O colecionismo pode ser explicado como um tipo especial de relação entre uma pessoa e certos objetos. O vínculo entre o indivíduo e o social implica estudos e pesquisas dos fenômenos que transcendem a aparência imediata e, por isso, o colecionismo poderá ser visto como atividade humana e também ser considerado uma das formas de reconhecimento e de interatividade do sujeito no mundo. A atenção desta parte do texto deverá focar a idéia de colecionismo como fenômeno social. Tal fenômeno age sobremaneira no contexto cultural porque dele se fez espelho (ou extensão) do querer de um sujeito que, cuidadosamente, montou estratégias e condicionou objetos. Comumente, compreende-se o colecionismo como coletar, reunir e compor acervos ou arranjar peças consideradas memorialistas, fetichistas, históricas e artísticas num determinado espaço. No caso específico da esfera pública, a tendência é considerar o colecionador como um guardião do passado. Isto é, a guarda do passado torna-se um “local” imaginário em que se processam imagens de direito humano de apropriação universal. Mas, é com o colecionador que, justamente, se encontram as questões profundas referentes ao campo do indivíduo e do coletivo. Esta complexidade é devida a questões inerentes ao desejo, à posse, juntamente com a ordem e o arranjo nos lugares da organização dos objetos. Os elementos ocultos pelo ato de arranjar e aproximar objetos da retórica do 25 passado, no presente em que se vive, são analisados no âmbito de áreas científicas a partir de proposições e argumentos fundamentados nas pesquisas da História, da Medicina, da Psicologia, da Antropologia, da Sociologia, entre outras que fazem a diferença na construção do conhecimento sobre as coleções. Conforme a explicação lexicográfica da língua portuguesa, ao substantivo feminino primitivo coleção, derivado do latim (FERREIRA, 2007), foi acrescentado o sufixo nominal “ismo”, derivando para o termo colecionismo. Na língua italiana, collezionismo indica tendenza a raccogliere e ordinare oggetti, e il collezionare (DIZIONARIO, 1984), o mesmo que recolher, coletar, ordenar objetos e o colecionar. Em contrapartida, na língua inglesa, coleção descreve-se da seguinte forma: Collection, the act or process of collecting, something collected; esp: an accumulation of objects gathered for study, comparison, or exhibition […] (WEBSTERS, 1976). A precisão semântica do termo inglês collection, para definir o que seja uma coleção, identifica os aspectos situacionais dos significados do termo na frase. O sentido conotativo da palavra originária do processo ou do produto – collection –, a partir da tradução para o português, torna a compreensão prejudicada. Sendo assim, não será possível entender coleção, no sentido imediato do português, como processo. O verbo colecionar, se conjugado no gerúndio – “colecionando” –, adquire o sentido de continuidade do fazer, e não é possível ser empregado como substantivo; ao invés, se empregado no particípio – colecionado – pode ser entendido como “coisa em si”. No caso da língua inglesa, efetiva-se a compreensão como um processo, um aprendizado. A “coisa coletada” (something collected), no sentido do ato consumado, e o fazer da coleção (collection) aproximam-se e assemelham-se – 26 collection/colecionismo – nos sentidos semânticos utilizados para identificar o objeto (real) e o objeto apropriado pelo sujeito (tendência e em movimento). Sendo assim, colecionismo, se estiver localizado de forma substantiva, no português, poderá expressar o desenho da escala produtiva social para, dessa forma, vir a significar as características da ação de quem coleciona. O termo coleção, com os significados das ações colecionistas, é derivado do verbo colecionar, permitindo indicar situações e movimentos, muitas vezes, invisíveis no ato de colecionar. Visto pelo ângulo do estudo das subjetividades, geradas a partir de desejos, intenções individuais ou coletivas, manifestas no tempo e no espaço, verificam-se os sentidos do colecionar como os significados de uma prática que consiste na reunião de coisas além das semelhanças e elementos significantes. Nesses aspectos, ora aparentam atávicos ou adquiridos pelo sujeito da ação, ora aparecem de maneiras divergentes, mesmo num contexto histórico específico. Desta forma, são possíveis as diversas narrativas a partir do estudo das trajetórias das coleções das Bibliotecas, dos Gabinetes de Curiosidades, dos Museus e até mesmo das casas comerciais (sebos e antiquários). Uma vez adquiridos, através de formas estranhas à sua criação originária, os objetos colecionados passam também a uma (re)significação determinada pela posse. Todavia, nas unidades informacionais (compreendidas aqui como condensamento de conteúdos no espaço e passíveis de transmissão), objetos considerados partes de uma coleção pública estão também sujeitos a adquirir significações específicas, muitas vezes particulares, dependendo da função que a instituição reclama deles. Sobre o “status do objeto no museu e na exposição”, Meneses (1992, p. 109) aponta e discute algumas de suas modalidades principais. Uma dessas modalidades seria o fetiche, que resultaria do deslocamento de “atributos do nível das relações entre os homens” e a apresentação 27 “como se eles derivassem dos objetos, automaticamente”. Outra modalidade seria o objeto metonímico [6] que causaria a perda do valor documental do objeto. Advertindo para a impossibilidade de “exibir culturas”, Meneses alerta para os riscos de deformação provenientes do “emprego do típico, do estereótipo, para fins de síntese” e ressalta que “as simplificações sempre mascaram a complexidade, o conflito, as mudanças e funcionam como mecanismos de diferenciação e exclusão”. Uma terceira modalidade seria o objeto metafórico. O uso metafórico do objeto que apenas ilustra problemas formulados independentemente deles. A quarta modalidade citada pelo autor – o objeto no contexto – teria sido produzida pela colocação legítima da questão do contexto sem o necessário “esforço de conceituação”. Para rever ou atenuar a desfiguração causada pela descontextualização do objeto, “tem-se tomado como solução imediata, pronta e acabada, a mera reprodução do contexto como aparência”, o que estaria causando “um dos piores vícios alimentados por bons propósitos sem investimento intelectual”. (LOUREIRO; LOUREIRO, 2007). Partindo das reflexões proporcionadas por essa citação de Loureiro e Loureiro (2007), em que são percebidas as modalidades do objeto em diversos museus, os conceitos coleção e colecionismo contribuem com as possíveis digressões a serem realizadas a partir das relações sociais provocadas por ele (objeto) e das apropriações do sujeito em determinado contexto em que é praticado o colecionismo. As situações colecionadoras aparecem de maneiras singulares e os afetos são significativos no universo das ações, dos atos de um colecionador e das práticas de conhecimento desenvolvidas por ele8. Loureiro e Loureiro (2007) resgatam as críticas de Meneses (1992, p. 109) e refere-se à metonímia figura retórica em que “a parte vale pelo todo”. No bojo destas afeições e conhecimentos estão refletidos os significados que cada sociedade imprime, cujas instituições deverão caracterizar-se nas esferas públicas ou privadas. As categorias dos objetos, observadas pela construção de sentidos e pelo seu uso, podem ser analisadas como semióforos, ou como elos de contato com o invisível. 8 Tais discussões permitem tomar o problema crucial associado ao tema do documento pessoal no espaço público: a coleção. A coleção privada, com efeito, é a forma, senão exclusiva, pelo menos dominante, pela qual objetos pessoais, em nossa sociedade, expõem-se à esfera pública. (MENESES, 1998). 28 Por outras palavras, surge uma divisão no próprio interior do visível. De um lado estão as coisas, os objetos úteis, tais como podem ser consumidos ou servir para obter bens de subsistência, ou transformar matérias brutas de modo a torná-las consumíveis, ou ainda proteger contra as variações do ambiente. Todos estes objectos são manipulados e todos exercem ou sofrem modificações físicas, visíveis: consomem-se. (POMIAN, 1984, p. 71). Mesmo que seja ardiloso pensar no conceito de memória associado aos conceitos objeto e coleção, e principalmente quando o sujeito da ação principal, da construção dessa memória na formação de coleções, está ausente aos fatos do presente, muitas vezes (objeto e coleção) estão localizados de maneira instigante nos âmbitos dos interesses privado e público. Por isso, tais objetos, sujeitos à memória social, expostos aleatoriamente, incomodam ao olhar. Para que isto venha a acontecer será necessário descrever, avaliar, considerar a produção e remontar as rotinas de tais ações. Um conceito essencial para o entendimento do colecionismo é oferecido pelo entrosamento da coleção dentro de um marco social e material maior: a cultura material. Conceito que, para nosso estudo, tem um desdobramento importante, quando consideramos um objeto como documento, isto é, um objeto ao qual as significações, diferentes, são atribuídas, dependendo do tempo ou lugar no qual se encontre. A abrangência da cultura material, identificada como a dimensão material da vida social (MENESES, 2008), permite que se possa pensar em outra direção, além daquela visão simplificadora que considera unicamente a natureza documental – documento/documentação –, pois esta abrangência da cultura material pode agregar, ao objeto, um patamar teórico que permita estabelecer relações entre o objeto e o sujeito, e entre os próprios objetos. Ou seja, a cultura material considera que o objeto seja biografado. Assim, a partir do conceito de entender documentos/objetos como integrantes 29 da cultura material, podem ser acolhidas as dúvidas e as incertezas e analisada a dispersão dos mesmos. Entretanto, costuma-se prescindir da supervalorização da documentação textual. Rede analisa: Quer a cultura material seja vista como reflexo condicionado do pensamento ou do comportamento humanos, quer como geradora espontânea de novas realidades físicas, seu entendimento como fenômeno social fica seriamente prejudicado. (REDE, 2003, p. 281). No caso dos museus, no ensejo de investigar os textos, os objetos, as imagens, as coleções, os pesquisadores deparam-se com a questão das linguagens artificiais (objetivadas em descrições condensadas, tesauros, catálogos etc), obviamente construídas, (re)construídas, disponibilizadas e utilizadas para classificar um universo que possui várias narrativas da natureza, da procedência, da circulação do objeto e suas informações particulares. Desta forma, a apropriação dos conteúdos que descrevem os objetos prescreve a sua trajetória como objeto de pesquisa; isto é, nas mãos do pesquisador, o objeto obedece às ordens de seu novo curador e realiza uma viagem de roteiro incerto para o mundo privado ou público. No entanto, apesar da objetividade pretendida pelas linguagens artificiais que prescrevem os objetos no museu, elas podem, então, servir também a compensações individuais, aos caprichos mais subjetivos ou marcar identidades do sujeito ou do coletivo. Desde o momento em que se constata que há uma “realidade” no passado, o colecionismo poderá destacar-se no estudo das sociedades e constituir-se como objeto de investigações. Ao provocar o processamento das feições imaginadas daquela realidade passada, o colecionismo tem servido para remeter ao imaginário as pontes mediadoras. Essas situações de mediações são sustentadas pelas diversas linguagens étnicas, no campo da ética, da moral, da cultura e da história, e 30 os colecionismos são vistos como fenômenos sociais da teia de significados estéticos, utilitários e sagrados. Profissionais da informação manejam acervos em processo de musealização9. Colecionadores podem ser aportados como pesquisadores, quando seus interesses e os da coletividade propiciam estudos. Com isso, podem eleger a sua própria coleção como fonte10, por influências e por regências das tradições, das novas tendências baseadas na modernidade e para realizar as suas indagações sobre o passado. Portanto, a cultura material aponta para modalidades do ato de colecionar de diferentes indivíduos e épocas, fundamentadas na teoria e práticas tradicionais e em novas pesquisas. No jogo dos impulsos das paixões humanas, os objetos podem ser apropriados em trajetórias históricas, culturais e econômicas. Ainda podem ser submetidos ao julgamento das qualidades, dos atributos a eles destinados, da suposta autenticidade, passível de ser conferida, das contraposições provocadas pelas comparações e das averiguações testemunhadas até mesmo em seus contrários. No avesso da paixão, a força motora é a disposição da ira ou do ódio que também podem movimentar e agregar objetos, colecionáveis, figurados como uma síndrome do sentimento passional, do poder, da rejeição ou da vaidade11. Nesse limite do fetiche, o aspecto material do colecionismo poderá ser caracterizado como uma possibilidade de diferir-se das formas de consumo em relação aos processos de consumo (BOURDIEU, 2003). 9 Acredita-se não ser necessária aqui a explicação do que venha a ser processo museal. Este termo é associado à conformação dos objetos no espaço do museu desde a década de setenta do século passado na Europa. 10 Na perspectiva de Meneses (2008), há um alerta para o “silêncio” das fontes documentais e o fato de ocultarem relações sociais fundamentais. Para não se restringir o sentido das fontes textuais apenas à sua extensão das categorias de fonte (textuais, visuais, sonoras), classificando-as hierarquicamente, talvez seja necessário assumir as articulações entre conceitos de áreas referenciais, a partir do eixo e do caráter das apropriações realizadas na história. 11 Cf., como exemplo, as coleções dos instrumentos de tortura itinerantes em espaços públicos nos continentes. 31 A matéria física é denotada pelo acúmulo, posse ou reserva de objetos. Belk (2005) descreve as diferenças entre o colecionar e o acumular. Esta última não faz distinção entre todas as nuances apresentadas pelos cuidados (ou caprichos) do colecionismo. Demarca-se esta fronteira entre coleção e acumulação com a ferramenta básica da consciência do indivíduo que, porventura, pratique ou venha a praticar o colecionismo. Acumular, necessariamente, não corresponde ao ato de colecionar, nem exige métodos sistêmicos de guardar, manter ou até mesmo categorizar objetos, em classes, selecionados ou excluídos no julgamento aferido pela cultura material. E, ainda, acumular não faz distinções dos diversos contextos culturais, nem tem o rigor da narrativa e da aplicação das linguagens artificiais. Colecionar prevê dois momentos básicos: a exposição dos objetos, cujas questões envolvem a produção, a circulação e o contexto da cultura, e a invenção da ordem, ou seja, associar atribuições às vertentes classificatórias destinadas a eles, definidas no tempo e no espaço da sociedade. Contudo, nessas abordagens, ainda constam insuficiências que são vistas como polarizadas, por privilegiar contextos de origens e não os gestos museológicos em suas apropriações e descontextualizações (STEWART, 2005, p. 257). Em cada caminho percorrido no mesmo “mundo”, encontram-se colecionadores para dar forma ao colecionismo. Há, então, princípios atrás da organização aparente das coleções que podem reproduzir valores, ideologias e modelar narrativas. Pearce (2005) afirma que tal fenômeno poderá reforçar o sentimento de bem- estar e do pertencer ao lugar e a determinados costumes. Ainda assim, poderá habilitar, preservar e mediar mundos. Nos aspectos da autenticidade, a autora (PEARCE, 1997) demonstra conhecer com profundidade o que é próprio de cada 32 cultura, dando coesão aos atributos que funcionam como indícios do tempo em que se viveu ou se vive. Baudrillard, já em 1968, sinalizava: Não se trata pois dos objetos definidos segundo a sua função, ou segundo as classes em que se poderia subdividi-los para comodidade da análise, mas dos processos pelos quais as pessoas entram em relação com eles e da sistemática das condutas e das relações humanas que disso resulta. (BAUDRILLARD, 2002, p. 11). Baudrillard (2002) concluiu a análise da correspondência entre sistema de objetos e a “intimidade” do sujeito com o objeto pela via do consumo, onde não há passividade do sujeito no processo de apropriação e nem isenção de responsabilidade de quem consome. “O consumo, pelo fato de possuir um sentido, é uma atividade de manipulação sistemática de sígnicos”. Na verdade, as relações provocadas pelos objetos são consumidas e não somente os objetos. Assim, as paixões e relações se tornam abstratas e podem adquirir a materialidade dos objetos, constituírem-se em signos e em objetos ao serem remetidas ao mercado, compradas, e consumidas. (MARX apud BAUDRILLARD, 1968, p. 207). Os objetos, quando privados de sua função e uso, adquirem significados das apropriações objetivas, aqui, na forma da coleção, para representar o que está fora deles. Esta trajetória do objeto, como já mencionada, do lugar privado ou público, irá revelar o que Belk (2005) define como modos de surgimento de uma coleção, definidos pelo acaso, pela posse, pela aquisição de compra ou doação, pela ausência e presença. Os objetos ainda podem surpreender e despertar sensações estimulantes ao colecionador para adquirir outros objetos. 33 1.1.1 A produção social do objeto A construção de objetos manufaturados e artesanais é simbólico no universo urbano, rural e pode ser incluído no rol desses objetos tudo o que pertence ou é considerado estar fora ou dentro da cidade, isto é, estar presente no âmbito do mundo rural, da produção da agricultura e pecuária, no passado e na atualidade. Ainda, os sujeitos, para conseguirem alcançar (consumir) sofisticados bens e produtos industriais – e para que o design desse objeto (produto) seja socialmente absorvido – têm que valorizar os aspectos diferenciados na qualidade do produto a ser beneficiado. Para efeito de esclarecimento, essa questão pode ser verificada no caso dos produtos alimentares, transformados do estado “bruto” para o “refinado”. Os produtos agrícolas – como cana-de-açúcar, café, milho, arroz, feijão, entre outras espécies da base alimentar – passaram a ser colhidos e beneficiados pela máquina ainda no século XIX e não mais pela força natural (homem, animais e água), até então amplamente utilizada. O açúcar testemunha essa “evolução” alimentar que tem a sua origem no pão de açúcar atingindo uma gradação até chegar ao pó refinado e essencialmente branco. Outros objetos, como no caso das construções artificiais, dos instrumentos de trabalho, dos monumentos, dos marcos históricos culturais imóveis – como residências, fábricas de manufatura ou indústria – foram verificados e valorizados a partir da perspectiva do que pudessem ostentar no lugar social, e até mesmo para inovar o mercado vigente. Sendo assim, esses objetos passaram a exercer uma postura de “renovação” dos sentidos subjetivos ou das suas extensões coletivas. 34 Tais objetos firmam o compromisso com a significação da beleza, do status, da manifestação de expressões em narrativas históricas ou figurar em dados empíricos em pesquisas científicas12. Os objetos industrializados não apenas eram consumidos a partir do preço da mão-de-obra operária – que se tornava compatível ao que fosse proporcionado pela eficiência dos objetos modernos – mas, também, porque eram os meios de expressar socialmente o que o homem deixara para trás, isto é, o mundo rural, caracterizado pelos termos do campo, caipira, country, campestre, rural ou nativo. Os fabricantes, cidadãos do século XX, apostaram na substituição da força motriz natural pela mecanizada e, sem a ausência da originalidade, mas, sobretudo por significar urbanidade, os objetos industrializados alcançaram o maior número de consumidores nas cidades. Uma vez submetidos aos processos econômicos dinâmicos da “distribuição” de riquezas, nas passagens da revolução pré-industrial para a industrial, a presença dos objetos disponíveis nos mercados, e passíveis de serem consumidos, passou a ter outro significado simbólico na representação do lugar social do sujeito (DEAN, 1971). Os objetos “fora da cidade”, das fazendas, suportes ou equipamentos das manufaturas ficaram ao relento, à exposição das chuvas, das pragas e da reciclagem material física que denunciavam a mutilação das formas. Assim, modificaram-se, foram substituídas as tecnologias ou foram prejudicados o funcionamento dos moinhos, das rodas d’água, dos monjolos, dos pilões, das cestarias; além do mobiliário, dos meios de transporte, como o carro-de-bois e o trole. As evidências formais dos objetos denunciam, na aparência, a construção artesanal. A absorção de materiais industrializados (como latas de produto ou de 12 Será necessário esclarecer que incorporação da estética nos objetos não é próprio da modernidade, mas sim do clássico. 35 conserva de mantimentos) apropriados nas engenhocas de produção doméstica para a produção industrial em grande escala caracteriza uma (re)criação – o objeto híbrido da tecnologia aplicada ao mundo rural ou ao urbano. Este, na origem manufaturada ou industrializada, denota o improviso no manejo ou na desvalorização da mão-de-obra escrava, operária e no aspecto da sobrevivência marcante dos excluídos sociais. Retomando a fronteira do tempo e do espaço, entre o urbano – pelos processos da modernidade – e o rural, o processo industrial da lavoura abandonou os cambões, arados, cestarias, moinhos, moendas, entre outros artefatos, instrumentos rudimentares, primários da agricultura antiga e medieval, adaptados tecnicamente, para se aplicar na lavoura, trazendo para o interior das casas a mecânica do cotidiano. A mecânica, a eletricidade do final do século XIX e a eletrônica no século XX não são sinônimos de homogeneidade social ou de linearidade nas histórias das sociedades. Contudo, no texto a seguir, a tentativa é a de abordar as apropriações dos objetos pelo olhar do colecionador, Santos, com o desenvolvimento de atividades com finalidade pública e perene na conservação das tradições e costumes. Na pesquisa contextualizada pelo objeto histórico e para dar destaque às coleções científicas, na busca do objeto desejado e do ato de apropriação do mesmo, detecta-se um suporte racionalizado no planejamento para a construção do conhecimento da história natural. Este plano misturou as classificações históricas dos objetos artificiais com as classificações das coisas naturais – biológicas, geológicas, zoológicas –, com o mundo dos objetos culturais regionais. Talvez, tal método de seleção de objetos tenha funcionado como um aparador da angústia incessante da pesquisa na vastidão do universo das coisas naturais, as quais poderiam retornar e permanecer na história. 36 1.1.2 A memória e a coleção Os argumentos vigentes na literatura crítica da memória social (PEARCE, 2005) são voltados para a investigação do papel da memória, no campo do indivíduo e do social. Memória também é compreendida como um processo de reter informação, mas, estando ela baseada nos estudos produzidos nos últimos trinta anos, pode-se compreender a memória como um processo ativo, seletivo e articulado entre os saberes do presente/passado. Nesse sentido, os estudos voltados para as memórias individual e coletiva, associados aos materiais que dão suporte aos seus significados pretéritos, podem significar para a construção da memória coletiva o mesmo que é o papel da “lembrança” para a memória do sujeito – orientadora e integradora. Ainda, a memória coletiva terá (ou não) os seus suportes informacionais incorporados às redes sociais de significações hierarquizadas (ou não). O problema da memória, ou daquilo que seria “esquecível”, também está associado à relatividade da linguagem. Entretanto, cada sociedade depende de uma estrutura linguística adotada, que poderá ser operante na construção do conhecimento na medida em que estiver articulada ao sistema de comunicação sígnica: a relação dos fenômenos sociais percebidos a partir das linguagens entre os homens. Não será excessivo lembrar que este sistema criado significa algo e age no campo das convenções, pressupondo sequências de valores morais e éticos na construção de uma memória social. Num sentido restrito ao nosso trabalho, a memória social também pode ser associada ao âmbito da circulação e das diversas maneiras de se colecionar objetos. Assim, os objetos servem como referências para a memória social porque 37 eles não são “donos” de suas qualidades. Ao contrário, são necessários apoios sistêmicos das linguagens das redes estruturadas da comunicação social para lhes garantir a inserção no campo da memória. Posto isto, os objetos possuem propriedades físicas, formais, estéticas, e estes conceitos condizem, em relação à dimensão, com a percepção equiparadamente sensorial. Se todos esses elementos presentes na memória não estiverem historicamente combinados e contratados, não podem contribuir com a solução do problema da identidade e redunda-lhes imprimir, aos objetos, a sua pura condição material, e sem significações. Pomian encerra o seu texto Coleções (1984) com a afirmação sobre a invisibilidade, ou sobre os aspectos diretamente referentes à imaterialidade proporcionada pelos objetos na coleção: Opõe-se ao passado, ao escondido e ao longínquo que não pode ser representado por objecto comum. Este invisível que não se deixa atingir senão na e através da linguagem é o futuro. Ao colocar objectos nos museus expõem-se ao olhar não só do presente mas também das gerações futuras, como dantes se expunham outros ao dos deuses. (POMIAN, 1984, p. 84). Essa citação também faz lembrar as diversas estruturas de percepção encontradas nas sociedades, que são arranjos, recortes, na maioria das vezes, divergentes entre si. Na verdade, são maneiras diversificadas de demonstrar uma temática importante para o estudo do colecionismo e da memória. Nesse encontro do sujeito com o objeto, se fosse favorecido pelos sentidos construídos em contato com esta materialidade e pronto para ter uma experiência com o “universo” externo ao seu, poderia perceber estes objetos funcionando na construção social do passado, via lembranças dos sujeitos, embora socialmente construídas. Os critérios, segundo os quais certos atributos da forma são capazes de 38 reforçar a percepção do passado, alterando-o, são fenômenos que dependem de determinadas estruturas sensíveis e historicamente determinadas. Ou seja, a visibilidade do passado. Tais atributos contêm propriedades passíveis de identificação e são as funções derivadas das propriedades formais do objeto, que podem ser descritas morfologicamente, condicionantes e reforços tonificantes da percepção13, e que, no entanto, precisam ainda de atribuições explicitadas na linguagem. Ainda a respeito do objeto, mas focando em outra direção do conhecimento, e particularmente da memória no museu histórico, este produto da vontade de um sujeito dependerá do arranjo materializado no universo simbólico e vice-versa. No campo da História, para entender o papel do objeto museológico, percebe-se o sistema de atribuições a ele determinado no contexto cultural. No museu histórico, a seleção do objeto funciona, no âmbito da memória seletiva, como um esquecimento programado em que a memória articulada faz sentido nas relações sociais e pode ser percebida exclusivamente na dinâmica da sociedade. Dessa forma, as coisas não são apenas aquilo que são quando apresentadas ao mundo. A memória, por isso, opera para garantir a reprodução tradicional (transmissão) de signos da sociedade em questão e realiza um exercício do registro da cultura, da aculturação, da inculcação de valores, normas e padrões. São estes os elementos que integram o corpo social e garantem a coesão dos atributos a eles destinados a partir da linguagem funcional para “controlar” tais objetos significativos. Esse é o momento em que a memória se torna história oficial. Mesmo assim, as relações assimétricas entre os homens e o culto ao passado (dos homens, das tradições morais e éticas) são acentuadas no sistema de força das autoridades 13 Os objetos estéticos, por exemplo, ou de caráter instigador são provocadores dos sentidos e mais facilmente percebidos nos museus de arte, por razões óbvias, embora diversas e pertinentes, tais como espaço em que o “objeto respira” e a obra é contextualizada. As propriedades historicamente atribuídas ao objeto artístico e à circulação social são imperativas para considerações objectuais na pós-modernidade. 39 institucionais. Vista por este ângulo, a função da tradição fica mais clara, porque está sob a luz da dependência do passado conscientemente criado. Embora a cultura material seja uma ferramenta, o campo das tradições, na maioria das vezes, aparece como tentativa de eliminar possíveis diferenças e homogeneizar mudanças sociais. Sociedades que se autorrepresentam nem sempre representam de fato a sua imagem espelhada nas contradições das relações sociais. São necessárias as forças da memória representadas na imagem “inventada”, caleidoscópica, construída e aceita socialmente, as quais passaram a ter um papel gerenciador dos vínculos sociais, ou dos elementos da máquina do poder para permitir a sua reprodução (a memória convertida em história oficial). A simples descrição do objeto está sujeita aos significados mais complexos e às ambiguidades da linguagem adotada. As formas de relação do homem com “as coisas” e da sua própria simbologia construída variam ao longo do tempo. Os sentidos atribuídos aos objetos são atrelados às maneiras da recepção e não se reproduzem naturalmente como valores porque estão condicionados às atribuições da linguagem, da produção, da circulação, das formas da reciclagem, do consumo próprio do seu tempo e espaço social. Paradoxalmente, as apropriações dos objetos pela memória não passam necessariamente por esses caminhos. A apropriação dos objetos pela memória pode ser direta, evocativa, emocional e sem mediação de linguagem. A vertente do universo da cultura material, na definição de bens culturais, em que também ocupam lugar as coleções museológicas, irá nortear e compor o patrimônio cultural social ou universal. No âmbito da organização social, esse modo de pensar demonstrará outras e novas perspectivas quando se propuser a investigar os objetos museológicos associados à memória social. 40 Estes componentes – intenção, articulação, circulação – do produto museu não pertencem mais ao passado, mas a um processo colecionista, possuídos de características profundamente particulares aos olhos do julgamento acadêmico e social. Remontam-se as suas histórias e, por força da construção da memória, podem vir a ter um quadro referencial dos aspectos das relações sociais particularizadas nessas coleções. Coleções possuem, além de “coisas” ou objetos, a memória deles. Os objetos aprofundados no campo dos afetos, dos desejos, das novas sensações, dos fatos consequentes das diretrizes de poder, da produção econômica e da eficiência técnica, da velocidade máxima no tempo, entre outros valores dados às coisas presentes, parecem inesgotáveis. Os princípios de Ordem de objetos de uma coleção forjam uma dependência do processo de organização informacional além da realidade externa (como aqueles dos propósitos memorialistas, românticos, sensacionalistas do terror ou da paz) e são combinados com os limites impostos pelas instituições/museus, tidas como produto da coletividade. No entanto, graças à memória, mesmo que enquadrada e manipulada, novas alternativas de apropriação do passado podem ser articuladas. 1.1.3 As tensões entre o público e o privado no colecionismo Na literatura brasileira dirigida aos estudos das coleções buscou-se resgatar, investigar e obter resultados de outras experiências prováveis, principalmente nos centros cosmopolitas, para distinguir, comparar umas às 41 outras, com a análise de uma experiência particular, a do colecionismo público, desenvolvido por Santos. Para o presente trabalho, procurou-se adotar o colecionismo como objeto para dar sustentação ao argumento da importância do estudo da cultura a partir das linhas de fuga implícitas na história social do colecionar e da influência do seu contexto cultural. Da época em que não se vive mais – do passado –, o legado “herança” no presente é a fonte documental revista a partir da observação dos resultados dos atos de quem praticou o colecionismo e, neste caso, a organização de um museu. Afeições são etéreas e, por isso, através do olhar pretérito, os objetos apropriados do passado podem ser registráveis somente quando há uma intenção e um suporte físico. Ao pesquisador cabe somar, discernir e descrever os significados ou valores a eles atribuídos na sociedade moderna. Mesmo assim, não será possível determinar ou dominar de forma absoluta as relações sociais frente às maneiras pelas quais tais objetos foram aprisionados, identificados, apropriados e submetidos à circulação da informação no “espaço museal”. De qualquer perspectiva, negando ou não a sua apropriação, a circulação e a quantidade deles inferem questões da proveniência, da autoria, da função, da forma, do conteúdo informacional para propiciar aos objetos um lugar dos sentidos atribuídos, nas qualidades interativas e potenciais dessa ação coletora e colecionadora. Para efeito comparativo, permite-se representar um “lugar” no imaginário figurativo do passado na função da caracterização dos atos apropriativos do colecionador. Nessa permissão, deve-se atuar com a possibilidade da reconstituição narrativa de valores de grandeza, justiça e igualdade, próprios da estética e da ética; do bom gosto, das crenças, das tradições e da “alma do povo” – e também próprios de cada contexto social. 42 Embora sejam consideráveis as incertezas econômicas, históricas e sociais, tais como aquelas que são decorrentes do sistema de produção – conflitos de classe, detenção dos bens de produção na hegemonia do poder, substituição acelerada da tecnologia – delas também resulta a sua autorrepresentação museológica. As inúmeras tentativas do ato de colecionar poderão ocorrer e caracterizar o fazer, os comportamentos, os hábitos, as atitudes repetidas, as manias, as perturbações no sujeito da ação, de caráter privado ou público. Essas ações poderão possuir características de determinadas inferências, como históricas, filosóficas, sociológicas, psicológicas ou estéticas no processo investigativo do pesquisador e nos atos derivados dos verbos colecionar e documentar. Walter Benjamin (1892-1940), filósofo reconhecido como um dos mais notáveis intelectuais alemães, em Obras das Passagens (apud SCHOLZ, 1999, p. 12), aplica os conceitos coleção/colecionismo, abordados e compreendidos como o objeto no museu e na “organicidade” da coleção, onde foram desprendidos de suas funções originais. A nova relação com o presente se faz com associações estreitas com o seu semelhante, isto é, o objeto que compõe a mesma coleção insere-se na categoria complementar – completude não satisfeita – ao quebrar sua mera existência na cadeia produtiva econômica e ao dotar-se de uma aura no espaço museal. Para exemplificar esse processo, tomamos qualquer objeto que teve a sua origem na escala industrial e, depois de funcionar no tempo e no espaço, rompeu definitivamente com o uso original. O destino inicial determinado pela fabricação, como o de circular no mercado, depois ser apropriado e consumido, agora foi substituído (FORTY, 2007) pela função de documentar e passar a integrar uma 43 coleção, privada ou pública. Neste sentido, o colecionismo, abordado neste texto, deverá ser entendido como resultado das ações de desejos, vigorosos, intermitentes ou pouco contínuos no tempo e no território físico. O olhar do colecionador seleciona o objeto porque vê que nele “[...] está presente o mundo, o saber ordenado [...]” (BENJAMIN apud SCHOLZ, 1999, p. 12). Por fim, o colecionador age por comparações, identifica a insuficiência e a necessária substituição deles. Um objeto, no mundo físico, relaciona-se com outros objetos, comparados a uma “gramática” particular, como uma função de coesão gramatical dos objetos, própria e plena de significados, em cadeia e continuidade insistentes, até alcançar o que a organização informacional considera possuir coerência ou fluidez na narrativa a que se propôs enunciar. Em defesa desse objeto do passado, Benjamin conceitua que ele se insere na categoria de sua “completude” e quebra a sua mera existência para integrar uma coleção. “Colecionar é uma forma da memória prática e, entre as manifestações profanas da ‘proximidade’, a mais sucinta” (apud SCHOLZ, 1999, p. 12). O colecionador assume a luta contra a dispersão, assemelhando-se ao leitor, que busca na leitura um todo coerente, e também a conexão conceitual-cognitiva (FÁVERO, 2001), para efeitos de transformar a informação bruta em conhecimento. A aura – entendida aqui como sugestão mítica e poética pertencentes aos objetos – poderá ser percebida como um indicador de velhas propriedades funcionais, associadas às simbologias de poderes, honra, riqueza, hierarquia social ou hierarquia doméstica do gênero (CARVALHO, 2008) dos objetos no campo da cultura material. O colecionismo, estudo explorado como fenômeno da subjetividade ou como ação social, foi desenvolvido por Philipp Blom (2003), que tomou as origens e as vertentes dos sentidos expostos da paixão, das proposições da narração, da 44 verdade alquímica até serem representadas pelas linguagens das classificações e dos métodos científicos. O autor procurou situar homens-colecionadores nos cenários dos séculos que atravessaram o Renascimento. O ato de colecionar, como projeto filosófico, como tentativa de dar sentido à multiplicidade e ao caos do mundo, e talvez até descobrir seu significado oculto, também sobreviveu até nossa época, e encontramos ecos da elaborada alquimia de Rodolfo em todas as tentativas de capturar a maravilha e a magnitude de tudo para incluí-las no reino dos bens pessoais. (BLOM, 2003, p. 65) A funcionalidade dos objetos, a partir do estudo comparativo da produção em diferentes momentos econômicos e sociais, interfere na produção sempre modificada na ordem do uso social e no advento de novas tecnologias que os substituíram em diferentes usos: doméstico, científico, administrativo, memorial, artístico ou religioso. Estes eixos de análise, dirigidos aqui para o colecionismo, estão voltados para explorar a biografia de quem o fez e para demonstrar as diversas formas e ordens que tomaram tais coleções, particularmente no Museu Histórico e de Ordem geral Plínio Travassos dos Santos. 1.1.4 O objeto museológico e o colecionador A partir das etapas da pesquisa, que priorizou o conceito de suporte de informação ou fonte de informação, foram entendidas (informação e fonte) como o resultado de busca de sentido fora do objeto, isto é, dos aspectos históricos e sociais dos próprios objetos e as relações sociais por eles provocadas. 45 O objeto, isolado de suas funções originais, ao longo de uma trajetória espacial e temporal, foi retirado de circulação da produção e, submetido ao olhar do avaliador, do colecionador; passa para um estágio de (re)significação. O ingresso de um novo objeto, ou vários, numa determinada coleção, e com significados atribuídos pelo colecionador, significa também uma mudança de uma fase ocupada pelo objeto no tempo e no espaço de uso para um lugar de expansão de informações. Alguns critérios foram adotados pelo colecionador, quanto à avaliação da forma do objeto, à sua capacidade de reter, presenciar ou postergar no tempo, e com precisão, o seu conteúdo informacional, ou ainda, poder ter sido selecionado a partir do critério estritamente afetivo. Os objetos foram classificados em diversas classes e atribuições – como históricos, artísticos, científicos ou fetichizados – antes de serem inseridos na instituição coletora que será aqui analisada: o museu histórico no interior do estado de São Paulo. Nesse momento, para quem analisa coleções, e reconstituindo-se a trajetória dos objetos ou das coleções, da proveniência ou autoria, percebe-se que eles pertencerão a outro senhor. Agora, o tutor será invisível e social, com intenções de disponibilizá-lo (ou não) ao olhar alheio. Nesse arranjo, a institucionalização da coleção serve para que, além das significações outorgadas pelo colecionador, outras novas possam ainda ser criadas. De maneira estreita com o seu semelhante, isto é, com “afinidades” sígnicas com um outro objeto de uma mesma coleção, compõe uma narrativa própria de uma maneira de ver o mundo a partir do entusiasmo do desenvolvimento. Assim, o que é objeto museológico? Sem confundir com os sentidos semânticos do objeto da Museologia, o objeto museológico (que é o artefato) poderá 46 significar o contexto econômico e social. Rússio14, já em uma publicação de 1984, “Produzindo o passado”, advertia que [...] para o museólogo, cultura é, essencialmente, fazer e viver, ou seja, cultura é resultado do trabalho do homem, seja ele um trabalho intelectual, seja ele um trabalho intelectual refletido materialmente na construção concreta. Daí, vem a relação-objeto, homem-objeto- realidade. A paisagem, o meio natural percebido pelo homem é um objeto percebido pelo homem enquanto é alguma coisa fora dele. A palavra objeto já traz essa carga: “ob-jeto”, ou seja, que existe além de, fora de, apreendido pela consciência do homem. A paisagem percebida pelo homem é para o museólogo também um dado cultural. (RÚSSIO apud ARANTES, 1984, p. 61). “Em outras palavras, faz-se necessário considerar o artefato nos diversos aspectos dos ciclos de produção, distribuição e consumo” (MENESES, 1985, p. 9). Entende-se que o artefato, composto de dimensões bidimensionais ou tridimensionais, é produto da teoria e da prática15. Com o conceito cultura material, além de poder evidenciar simbologias ou ideologias trazidas pela capacidade interpretativa de qualquer um dos seus componentes (manufaturado ou industrializado), é algo perturbador, eminente e proveniente das relações sociais, como vetores indicativos das percepções menos aguçadas ou das propriedades menos evidentes de um objeto. Para Baudrillard (2002), através da Enciclopédia de Diderot, foi possível inventariar e classificar exaustivamente o mundo ao redor do homem; contudo, o desenvolvimento tecnológico criou objetos e estabeleceu uma enormidade de graus para as classificações equivalentes à diversidade dos objetos, neste mundo em que se misturou o natural e o artificial. Na sociedade, todo objeto transforma alguma coisa em outra, embora se 14 Waldisia Rússio, crítica da formação da profissão de museólogo no país, foi coordenadora do curso de Museologia (Pós-Graduação) da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e implantou o projeto “Museu da Indústria”, da Secretaria da Indústria e do Comércio, entre outros projetos pioneiros, na concepção dos anos 80. 15 A produção científica brasileira sobre cultura material agrega autores-pesquisadores desde os anos 70. 47 pergunte: em qual sistema cultural é fundada a continuidade de significações e funções desses objetos? O estudo desse sistema “falado” dos objetos, vale dizer, do sistema de significações mais ou menos coerente que instauram, supõe sempre um plano distinto desse mesmo sistema “falado”, mais rigorosamente estruturado do que ele, um plano estrutural, além mesmo da descrição funcional: o plano tecnológico. (BAUDRILLARD, 2002, p. 11). A partir da constatação da perda das atribuições físicas e funcionais do objeto, a compreensão do valor do tempo em que ocorrem os objetos produzidos, consumidos, possuídos, personalizados ou descartados, define o objeto museológico. Para evitar o risco do esquecimento funcional do esquecimento programado, é necessário conhecer o objeto inserido num plano de racionalidade, num ambiente museológico. Uma das perspectivas de investigação do processo museológico é desenvolvê-la com base no uso ampliado do acervo museal. Em primeira instância, conhecer os percursos dos objetos, reconhecendo as suas biografias.16 Como esclarece Meneses (1998), dar lugar às possibilidades criativas das diversas significações, sem com isso anular a importância das classes e termos adotados, numa segunda instância, para o arranjo dos acervos e, finalmente, para a exposição. De maneira geral, a museologia contemporânea experimenta, ou experimentou, inúmeras tentativas de “dar vida ao objeto”, como animações, reconstituições de fatos históricos em cenários, auxílios de aparelhos multimídia, legendas em áudio etc. A tecnologia, aplicada na museografia, sempre esteve presente ou deu suporte à expografia, a partir do período moderno, no interior 16 O Museu da Inconfidência de Ouro Preto, dirigido pelo Governo Federal, foi remodelado com linguagem contemporânea de museografia. Recorre-se a este exemplo para demonstrar a realização de esforços no sentido de qualificar a informação no seu ambiente. 48 dos museus. No trabalho apresentado, a ideia não é inédita na vivência profissional. Muitos profissionais da informação complementam objetos com textos narrativos, explicativos, montam audiovisuais ou recursos olfativos no trabalho de curadoria. O que se busca aqui é associar, em princípio, o papel da mediação da informação registrada com o estudo de uma coleção de objetos no interior do museu histórico, demarcada pela sua função testemunhal do tempo operante e pela construção da memória social, caracterizando o período moderno: objetos com legendas explicativas, ordenação linear e monitoria (guia), com a função de “explanar corretamente” sobre determinado assunto. São tarefas exaustivas e tornam-se complexas demais quando não há entusiasmo, crítica e planejamento para discernir os conteúdos informacionais de interesse. A grande mudança ocorre no “próprio saber como modo de ser prévio e indiviso entre o sujeito cognoscente e o objeto do conhecimento” (FOUCAULT, 1966, p. 329-330). Essa “descontinuidade” ocorre quando a teoria da representação deixa de ser o fundamento geral “de todas as ordens possíveis” e, dessa forma, marca o início da modernidade. Durante toda a idade clássica existiu uma coerência "entre a teoria da representação e as da linguagem, das ordens naturais, da riqueza e do valor. É esta configuração que, a partir do século XIX, muda inteiramente [...] a linguagem como quadro espontâneo e 'quadriculado', primeiro das coisas, como intermediário indispensável entre a representação e os seres, desvanece-se por seu turno" (1966:12). Assim é que a ordenação, a classificação e a documentação dos objetos passam a ocupar um espaço cada vez mais importante nos museus, pois a ordem ocupa o lugar da interpretação e conhecer é, agora, discernir. (LARA FILHO, 2005)17. As premissas, anteriormente apresentadas no texto, surgiram a partir da observação teórica no âmbito do contexto cultural, das ações do agenciador e da formação do acervo para um museu representativo da história oficial e regional. Contudo, a atuação de Santos na administração, no planejamento e na elaboração 17 Os museus de história que se mantêm com adaptações de linguagens presentes na modernidade e na pós-modernidade, são organizados como a “ordem” da classificação museológica adotada pelas áreas em demonstração. O que de fato foi modificado nos Museus de História Natural além do contexto estático em que foram criados? 49 de propostas para compor coleções, definiu-se, por isso, no âmbito do modo de colecionar, agenciar e circular objetivando dar acesso à informação, a respeito da representação museológica do período cafeeiro. 1.1.5. Colecionismo, agenciamento e circulação Nesta seção, o colecionismo, o agenciamento e a circulação são compreendidos como anéis entrelaçados sem perder o foco da complexidade do ato de colecionar. Os objetos colecionados, em si, não possuem significados construídos socialmente nem lhes são atribuídos significados que dependem (ou não) da interação dos indivíduos para fazer sentido. Tanto na coleção como no processo colecionista, expressam-se as ideologias sociais dos grupos e atribuições dos indivíduos daquelas sociedades. Ainda pode-se contar com três momentos diferenciados do colecionismo, do agenciamento e da circulação. Pearce (2005) oferece um modelo, classificando-o como “três realidades” – material, do grupo e individual – e concebe-o como ferramenta analítica para auxiliar a descrição e a definição, fornecidas pela formação e pelo uso dos significados da coleção dentro de um grupo. A síntese acerca das realidades que envolvem o processo de análise de significações do objeto, segundo a autora, ficaria fracionada em realidades materiais, composta de objetos e percebida na circulação do ambiente determinado pelo tempo e espaço. Desta forma, de modo indireto, a sua interpretação teve, no sentido social, um sistema de signos que gerou significados para manter a sua importância (PEARCE, 1994). Na realidade do grupo, o 50 consenso é necessário por haver a existência de uma rede provocadora dos discursos, da interação entre os indivíduos e de visões particulares do mundo. Os significados são, de certa forma, estáveis por um determinado período, “espaço temporal”. A realidade individual, como não poderia deixar de ser, remete ao indivíduo, quanto à interpretação que ele faz do signo. Este poderá ser interpretado de várias formas. Embora a Antropologia, nos estudos das sociedades simples, aborde a interpretação de signos em significados coletivos, o indivíduo, frente ao signo, faz a sua interpretação e não a do grupo que impõe, em níveis discutíveis, a percepção em consenso. Frente ao quadro de destaque do problema, surgem quatro níveis para compreender o colecionismo, o agenciamento e a circulação das informações dos objetos que se situam entre a complexidade temática e o uso, entre a análise documental e o domínio dos processos de investigação. O primeiro nível é aquele que advém da prática do colecionismo pela força do agenciamento, da apropriação dos objetos que objetivam a formação das coleções no tempo e no espaço. Os objetos semióforos, dotados de significados, quando são expostos ao olhar, não sofrem usura física (POMIAN, 1985); entretanto, a sua condição em criar relações metafóricas entre pessoas e o mundo, necessariamente, não resulta em garantias de continuidade da tradição, da transmissão de valores ou da sua (re)significação. Talvez o maior equívoco do colecionismo seja tomar como ponto de partida, e disparar no mundo presente, os arremedos (muitas vezes lamentáveis tentativas) de reconstituição do passado, a partir da tentativa do enunciado da permanência e da conservação e de teatralizar narrativas dos valores do passado. Usurpa-se a linguagem do teatro para maquiar o que pesquisadores do “passado” considerem como aquilo que é passível de interpretação, mas não de reconstituição. 51 O indivíduo colecionista, na qualidade de agenciador das tentativas de racionalizar as ações, infere suas concepções, valores e práticas a partir das questões sociais evidentes no processo de colecionar. A interligação entre o indivíduo e tais questões, aqui levantadas no sentido que possa existir além da reunião dos objetos do colecionismo, também se relaciona em estruturas psíquicas, baseadas em padrões éticos ou estéticos, acompanhando as interações anteriores de seus genitores (FORMANEK, 1994, p. 327), ainda que na dinâmica social valores influenciem e sejam influenciados. Por exemplo, no primeiro nível de contato com a documentação museológica, nos registros, a leitura dos documentos de acervos museológicos permitida por alguma razão, isto é, impressos, manuscritos ou virtuais, empregam termos em campos descritivos dos objetos: aquisição por compra, por doação e por receptação; esta última, comum em antiquários. Os termos “compra” ou “doação”, condição das aquisições descritas nos formulários e catálogos, são genéricos demais para o aprofundamento das razões do agenciamento do colecionador. Tais termos ocultam as relações sociais estabelecidas a partir de interesses de aquisição ou de descarte de objetos ou mesmo de coleções. O segundo nível é aquele no qual os objetos são (re)interpretados através da linguagem natural de uma sociedade. Ao submeterem tais órfãos ao novo batizado e destinar-lhes novas denominações espaciais, temporais e classificações, também lhes são impostos novos curadores e pertencerão a novos períodos, nem sempre satisfatórios do ponto de vista da conservação e da acessibilidade. O terceiro está relacionado à cultura a que pertencem no processo de contextualizar os modos do fazer no espaço (CERTEAU, 1994). O conceito lugar é 52 um elemento-chave para o entendimento das bibliotecas, arquivos, museus e centros de memória, porém pouco discutido nessas áreas. A questão dos contextos e das ambiências dessas instituições poderá ser incorporada e ampliada dentro de uma discussão sobre o lugar. Isto é, a institucionalização de práticas profissionais e sociais ligadas à memória e ao conhecimento deveria ser interpretada pelo reconhecimento da construção social desses lugares e das determinações posteriores que eles exercem nas instituições mencionadas. Na década de 70, Michel de Certeau, pensador francês, organizou círculos de pesquisa que os chamou de seminários. O terceiro seminário discutiu etapas de pesquisas, desde a primeira hipótese teórica, na busca de um “terreno”, até chegar às interpretações últimas que formalizaram os resultados obtidos na pesquisa. A invenção do cotidiano é uma obra resultante de um desdobramento da pesquisa intitulada A cultura no plural. A apresentação de Luce Giard para a obra A invenção do cotidiano diz que Certeau faz algum barulho nos anos 70 e 80 na França. Foi censurado por relativizar a noção de verdade, por valorizar a escrita em detrimento da apreensão do “real”, quando o historiador quer imprimir a uma descrição o tom da “verdade”. Certeau foi discípulo de Freud e de Foucault, tendo pertencido à Escola Freudiana de Jacques Lacan, desde a sua fundação em 1964 até a sua dissolução em 1980. Certeau (1994), a partir da obra “A invenção do cotidiano”, contribuiu para a adoção de uma linha de fuga que, em perspectiva, define a maneira de fazer como relevante aspecto estruturado do âmbito do patrimônio cultural. Outra linha desenha, a partir dessa obra, a importância das práticas (falar, ler, circular, fazer, comprar, cozinhar etc.) que muitas vezes são táticas, associadas às estratégias, e são fundadas sobre um “[...] desejo e sobre um conjunto desnivelado de 53 relações de poder [...]” (JOSGRILBERG, 2005, p. 23), dos movimentos políticos e sociais. O autor ainda observa o modo de fazer como algo essencial para a definição de cultura. Define táticas como procedimentos que utilizam as referências de um “lugar próprio”, isto é, do território, da localidade particularizada, que se desfazem pelas mãos da própria história. A partir desses limites e possibilidades da linguagem que estão no cotidiano, as práticas afetam o discurso teórico – território, espaço, táticas e operações. Ele compreende o espaço como controlado por um conjunto de operações táticas, correlatas aos processos enunciativos (JOSGRILBERG, 2005). E, por último, em um quarto nível, há a tentativa de se estabelecer a interdisciplinaridade entre a Museologia, as Ciências da Informação e a História, ainda que de maneira limitada, para a atribuição de valores aos objetos, provenientes mais do contexto local do que de uma simbologia universal. O elo deste local com os sentidos do mundo perfaz a trajetória semelhante às conquistas territoriais como aquelas ocorridas na lembrança da frase de Tolstói: “Se quer ser universal, fale da sua aldeia”. Com essa relação estabelecida, está destacada a importância dos modos de fazer na sociedade. Não tendo a pretensão de universalizar a presente pesquisa, mas talvez torná-la circunscrita aos estudos das Ciências da Informação e à área da Organização da Informação, o desenho das linhas de fuga da pesquisa orienta essa discussão para o que foi considerado na análise dos fenômenos do colecionismo, do agenciamento e da circulação da informação. Certamente, essas discussões remetem às várias modalidades ideológicas – do poder, da produção, do produtor e de quem realiza a mediação entre os níveis, relativos à produção do conhecimento necessário para as instituições culturais. 54 1.2 CONTEXTO CULTURAL E BIOGRÁFICO DE PLÍNIO TRAVASSOS DOS SANTOS Esta segunda seção do primeiro capítulo procura, analisando a história18 da região de Ribeirão Preto, na primeira metade do século XX, focar a personagem de um colecionador – Plínio Travassos dos Santos –, buscando identificar aspectos relevantes de suas atividades profissionais para traçar o perfil de alguém responsável por uma organização museológica vinculada ao setor público no interior paulista. A bricolagem, no processo de pesquisa, foi sustentada pela união de peças de impressões daquela realidade histórica. Inserem-se documentos de caráter primário ou secundário, de vários formatos, espécies e suportes como fontes. A bibliografia utilizada como fonte secundária é recorrente nos estudos do período do café brasileiro, aqui focado no Oeste paulista. A documentação textual manuscrita, a maioria ofícios, relatório e listagens elaboradas por Santos, combina com iconografia e objetos tridimensionais, a maioria, coletados também por Santos. Na maioria das vezes, a biografia é realizada como narrativa sobre a vida de uma pessoa. No presente caso, as intenções da personagem Plínio são lembradas, no passado, a partir do registro documental da história e da economia na época da produção do café; elas poderão ser reconstruídas mediante um bricoleur entre documentação textual, fontes orais e o acervo do Museu Histórico de Ribeirão Preto. 18 O censo de 1920, nesse ano, indica que, dos 9,1 milhões de pessoas em atividade no Brasil, 6,3 milhões dedicavam-se à agricultura, 1,2 milhão à indústria e 1,5 milhão aos serviços. A densidade da população rural esteve mais presente até a transformação econômica como resultado da industrialização nos anos 50, caracterizada pela intensa migração das regiões Norte e Nordeste para as regiões Sudeste e Centro-Oeste brasileiras. 55 São leituras das fontes documentais19 dos acervos, com textos de autoria do colecionador e de fontes orais de pessoas de seu convívio, nas décadas de 40 e 50. José de Souza Martins, sociólogo e professor na Universidade de São Paulo, refere-se à construção de biografias baseadas na experiência sociológica: Você pode comparar biografias, ou utilizar intensamente biografias, relatos de vida e coisas acontecidas em que o próprio biografado informa o que a vida fez com ele. Ver como a sociedade aparece na vida pessoal, como as pessoas lidam com normas, valores, com situações sociais, se há criatividade ou não há. (MARTINS, 1998). Florestan Fernandes, sociólogo brasileiro, utilizou biografias como experimento a posteriori, porque também funcionavam como “[...] relato de um acontecimento, cujos fatores e conseqüências podem ser analisadas por meio de um raciocínio experimental [...]” (apud MARTINS, 1998). Nos objetivos desta tese, não foi possível contar com o depoimento presencial de Plínio Travassos dos Santos, mas, a considerar memórias relatadas, publicadas ou não, a utilização de fontes orais foi favorável a pensar a organização da informação preservada no Arquivo Público e no Museu Histórico Plínio Travassos dos Santos e Museu do Café Cel. Francisco Schmidt (Museus Municipais)20. Mesmo assim, houve ainda a necessidade de se verificar as razões do argumento de que as bases testemunhais da história se sobrepõem às necessidades das observações, principalmente, dos traços de uma cultura, cuja simbologia nacionalista, encontrada na sociedade ribeirão-pretana, é transparente na seleção e nas apropriações materiais dos objetos realizadas por Santos. Todas essas fontes são representações selecionadas para dar sentido e 19 Inserem-se como fontes documentais os documentos de caráter primário ou secundário, de vários formatos, espécies e suportes. 20 “Há situações em que a sociedade pode regredir e ela regride. E isso é possível observar através das alterações biográficas, o próprio sujeito relata situações de avanços e recuos [...]”, analisa o Prof. José de Souza Martins, em entrevista concedida à autora desta tese sobre o método da biografia como documento utilizado pelo prof. Florestan Fernandes. (MARTINS, 1998). 56 identificar os valores aproximados da sociedade que possuía tais objetos, fotografias e documentos textuais, já apresentados na discussão do aspecto da memória e tradição nesta tese. Com a identificação das intenções de um sujeito atuante no contexto histórico da cidade de Ribeirão Preto, que recolheu e aproximou partes significativas da história do café, a partir da reunião desses objetos, pode-se também identificar as tradições e necessidades da construção da memória social. Tais “pedaços” documentais foram deslocados – em trajetórias muitas vezes anacronicamente reconstituíveis e associados àqueles objetos “representados” por linguagens adaptadas no tempo para esta sociedade – e especificados como os objetos de trabalho no colecionismo. 1.2.1 O marco histórico do café Para que o uso da expressão “contexto cultural”, que intitula esta seção, não se torne um jargão circunstanciado na generalidade do amplo e diverso entendimento do termo “cultural”, procura-se analisar a informação contextual relativa a uma época de significativas transformações, reconhecida como período ou ciclo do café no estado de São Paulo. Considerado central na história do Brasil do final do século XIX até a primeira metade do século XX, o período econômico de produção e exportação do café dará destaque ao país no Ocidente. O Café, se bem que fora introduzido no Brasil desde o início do século XVIII e se cultivasse por todas as partes para fins de consumo local, assume importância comercial somente no fim desse século, quando ocorre a alta de preços causada pela desorganização do grande produtor que era a colônia francesa do Haiti. (FURTADO, 2000, p. 118). 57 Uma breve localização da trajetória do café contribuirá para identificar a sua importância no período moderno frente aos títulos de planta lendária e ouro verde que recebeu e deu renome aos seus plantadores barões e reis do café. Segundo a principal lenda – a do pastor de cabras, Kaldi, das tribos da Etiópia e do Negus Cabalet, monarca etíope –, o café foi cultivado na Província de Kaffa, tendo dominado a Arábia. De Meca, espalhou-se pela Ásia, África e Europa. Os mercadores venezianos, no século XVI, o cultivaram na Europa. O café chega ao Brasil pelas mãos de Melo Palheta, Capitão Tenente e guarda-costa oficial, numa expedição militar à Guiana Francesa, em Caiena, século XVIII. Com as proibições de difusão do café aos portugueses, a esposa do governador d´Orvilliers transferiu para as mãos do Tenente os grãos da planta que iria proporcionar ao Brasil a sua mais radical mudança, transformação e expansão do mundo rural ao urbano. Após a viagem, algumas sementes de café foram entregues, em Belém do Pará, no Norte do país, ao Senado da Câmara de Belém e foram definitivas para a transformação da economia dos séculos futuros. Trazido para o Rio de Janeiro, pa