UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Faculdade de Ciência e Tecnologia Campus de Presidente Prudente – SP FÁBIO HENRIQUE MISSARI BRINCADEIRAS E JOGOS DE OUTRO PAÍSES NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA PRESIDENTE PRUDENTE - SP 2024 FÁBIO HENRIQUE MISSARI BRINCADEIRAS E JOGOS DE OUTROS PAÍSES NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Educação Física em Rede Nacional – ProEF ProEF da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista - UNESP, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Educação Física. Área de Concentração: Educação Física Escolar. Orientador: Paulo Roberto Brancatti PRESIDENTE PRUDENTE - SP 2024 FÁBIO HENRIQUE MISSARI BRINCADEIRAS E JOGOS DE OUTROS PAÍSES NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Educação Física em Rede Nacional – ProEF da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista - UNESP, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Educação Física. Área de Concentração: Educação Física Escolar. Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Brancatti Data da defesa: 22/03/2024 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Brancatti Universidade Estadual Paulista – UNESP, Presidente Prudente Membro Titular: Prof. Dr. Luiz Rogerio Romero Universidade Estadual Paulista – UNESP, Presidente Prudente Membro Titular: Dra. Cesira Elisa de Favari Unidade de Gestão de Educação / Prefeitura de Jundiaí Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciência e Tecnologia Unesp – campus de Presidente Prudente Dedico este trabalho à minha Família, por tudo que nos une e nos orgulha! AGRADECIMENTOS À minha mãe, Maria Emília e meu pai Claudio, por jogarem comigo o jogo da vida, torcendo, incentivando, corrigindo e inspirando a cada jogada. Ao meu irmão Junior e à minha irmã Tatiane, minha cunhada Fabiana e meu cunhado Douglas, meus sobrinhos Joseph, Murilo e Henrique, por juntos compreendermos que os laços que nos unem, serão eternos. Ao Elias, pela companhia de toda uma vida e de tantos momentos. Aos meus amigos e minhas amigas, por caminharmos sempre de mãos dadas. Aos que partiram, mas que continuam vibrando a cada conquista. A toda equipe gestora, professores, funcionários e alunos da EMEB dos Sonhos Professor Anézio de Oliveira, por caminharmos juntos na busca por uma educação humanizada e de qualidade. Aos colegas mestrandos, da UNESP/Presidente Prudente, UNESP/Rio Claro e UFSCAR, pelas trocas de notórios saberes, na busca pelos ideias de uma Educação Física transformadora. Aos Professores do ProEF, por toda compreensão, conhecimentos e inspirações, expandindo os horizontes e fortalecendo a paixão pela nossa área. À banca examinadora, Prof. Dr. Luiz Rogério Romero e Profa. Dra. Cesira Elisa de Fávari, pelas ricas e importantes contribuições que possibilitaram que esse trabalho ganhasse cores e formas. Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Roberto Brancatti, pelo apoio, paciência e companheirismo ao longo de toda pesquisa. Aos professores e professoras participantes da pesquisa, por aceitarem o desafio de contribuírem com suas ricas, plurais e valiosas práticas pedagógicas, dando sentido a esse estudo. Às coordenadoras da área de Educação Física, pelo incentivo. Gi, pela ajuda nas entrevistas e Maiza pela leitura e correções. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Jogar mobiliza um universo que nos convida a criar raízes e asas, e nunca é “só um jogo”. (Ana Cristina Zimmermann) MISSARI, Fábio Henrique. Brincadeiras e Jogos de outros países nas aulas de Educação Física. Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Brancatti. 2024. 143f. Dissertação (Mestrado Profissional em Educação Física em Rede Nacional – ProEF) – Faculdade de Ciência e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista – UNESP, Presidente Prudente, 2024. RESUMO Levando-se em consideração documentos atuais como a Base Nacional Comum Curricular e o Currículo Jundiaiense, que propõem as Brincadeiras e os Jogos como unidade temática, a partir de um princípio geográfico, o objetivo do presente estudo foi compreender como os Professores de Educação Física da Rede Municipal de Jundiaí - SP, tematizam e desenvolvem as Brincadeiras e Jogos de outros países nas aulas. Para tanto, a pesquisa deu-se seguindo os princípios da abordagem qualitativa, na qual foram entrevistados 10 Professores que atuam nos anos 4º e 5º anos do Ensino Fundamental, por meio de entrevistas semiestruturadas. Os resultados foram submetidos à Análise de Conteúdo e compuseram três categorias de análise, que posteriormente dividiram-se em subcategorias: a) As Brincadeiras e os Jogos na formação dos Professores de Educação Física; b) Brincadeiras e Jogos na BNCC e no Currículo Jundiaiense; c) Tematização das Brincadeiras e Jogos de outros países nas aulas de Educação Física. Conclui-se que pouca atenção tem sido dada a essas manifestações corporais, gerando dúvidas no decorrer da prática docente e questionamentos quanto ao princípio adotado em ambos os documentos. Mas apesar das dificuldades, os professores organizam seus conhecimentos relacionados a temática em questão, procurando tornar o estudante protagonista no processo educacional, valorizando seus saberes e curiosidade. Faz-se necessários novos estudos e pesquisas, na tentativa de investigar esse amplo e ainda desconhecido universo das Brincadeiras e Jogos de outros países nas aulas de Educação Física. Palavras-chave: Brincadeiras e Jogos de outros países. Educação Física Escolar. Cultura. Brincadeiras e Jogos do Mundo. MISSARI, Fábio Henrique. Play and Games from other countries in Physical Education classes. Supervisor: Prof. Dr. Paulo Roberto Brancatti. 2024. 143f. Dissertation (Professional Master's in Physical Education in National Network – ProEF) – Faculty of Science and Technology, São Paulo State University – UNESP, Presidente Prudente, 2024. ABSTRACT Considering current documents such as the National Common Curricular Base and the Jundiai Curriculum, which propose Play and Games as a thematic unit based on a geographical principle, the aim of this study was to understand how Physical Education Teachers in the Municipal Network of Jundiaí - SP, approach and develop Play and Games from other countries in their classes. To achieve this, the research followed the principles of a qualitative approach, involving interviews with 10 teachers working in the 4th and 5th grades of Elementary School through semi-structured interviews.The results were subjected to Content Analysis and formed three categories of analysis, subsequently divided into subcategories: a) Play and Games in the training of Physical Education Teachers; b) Play and Games in the National Common Curricular Base (BNCC) and the Jundiai Curriculum; c) Theming Play and Games from other countries in Physical Education classes. It is concluded that little attention has been given to these bodily expressions, leading to uncertainties in teaching practice and questions regarding the principles adopted in both documents. Despite the challenges, teachers organize their knowledge related to the subject matter, aiming to make the student a protagonist in the educational process, valuing their knowledge and curiosity. Further studies and research are necessary to explore this vast and still unknown universe of Play and Games from other countries in Physical Education classes. Keywords: Play and Games from other countries. School Physical Education. Culture. World Play and Games. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Ilustração de crianças brincando de Kakopi. ............................................ 48 Figura 2- Tlachtli: jogo autóctone com origem no México. ........................................ 49 Figura 3 - Movimentos das mãos no jogo Jan Ken Pô. ............................................ 52 Figura 4 - Elementos a serem considerados na análise da transmissão da Cultura da brincadeira. .............................................................................................................. 54 Figura 5 - Proposta didática ampliada de trabalho com os jogos. ............................ 63 Figura 6 - Jogos Infantis de Pieter Bruegel. ........................................................... 109 Figura 7 - Site Mapa do Brincar.............................................................................. 114 Figura 8 - Possibilidades de gestos do Mushi-ken. ................................................ 119 Figura 9 - Diagrama do Labirinto. ........................................................................... 120 Figura 10 - Jogo Salto de La Paloma. .................................................................... 122 Figura 11 - Jogo Patintero. ..................................................................................... 123 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159595487 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159595488 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159595489 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159595490 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159595490 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159595492 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159595493 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159595494 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159595496 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159595497 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Unidades temáticas e objetos de conhecimento para Educação Física nos anos iniciais do Ensino Fundamental de acordo com a BNCC. ......................... 56 Quadro 2 - Progressão dos objetos de conhecimento Brincadeiras e Jogos ao longo do Ensino Fundamental I de acordo com o Currículo Jundiaiense. .......................... 57 Quadro 3 - Brincadeiras e jogos do 3º ao 5º ano do Ensino Fundamental de acordo com a BNCC. ........................................................................................................... 58 Quadro 4 - Brincadeiras e jogos no 4º ano do ensino fundamental de acordo com o Currículo Jundiaiense. ............................................................................................. 59 Quadro 5 - Brincadeiras e jogos no 5º ano do ensino fundamental de acordo com o Currículo Jundiaiense. ............................................................................................. 60 Quadro 6 - Caracterização da Rede Municipal de Ensino de Jundiaí. ...................... 68 Quadro 7 - Composição da carga horaria semanal docente..................................... 69 Quadro 8 - Identificação dos Participantes. .............................................................. 75 Quadro 9 - Descrição das categorias e subcategorias que compõem a Análise. ..... 79 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159596535 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159596535 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159596536 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159596536 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159596537 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159596537 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159596538 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159596538 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159596539 file:///C:/Users/fabio/Desktop/DISSERTAÇÃO%20NUMERADA%20com%20sumario%20(1).docx%23_Toc159596539 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BNCC Base Nacional Comum Curricular TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido PROEF Mestrado Profissional em Educação Física em Rede Nacional UNESP Universidade Estadual Paulista PCN Parâmetros Curriculares Nacionais EF Educação Física HTPA Horas de Trabalho Pedagógico com Aluno HTPL Horas de Trabalho Pedagógico Livre HTPC Horas de Trabalho Pedagógico Coletivo na Escola HTPI Hora de Trabalho Pedagógico Individual LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................... 15 2 OS JOGOS COMO CONTEÚDO DA EDUCAÇÃO FÍSICA .................. 20 2.1 As relação entre Educação Física e Jogos através dos tempos ......... 21 2.1.1 Formação Docente em Educação Física ......................................... 28 2.2 O jogo e suas diferentes concepções ................................................ 31 2.3 O Jogo como conteúdo nas aulas de Educação Física Escolar ......... 36 2.4 Brincadeiras e Jogos de outros países............................................... 45 2.5 Brincadeiras e jogos de outros países nas aulas de Educação Física 55 3 TRAJETÓRIA METODOLÓGICA ......................................................... 67 3.1 Universo da pesquisa ......................................................................... 67 3.2 Materiais e Métodos ........................................................................... 70 3.2.1 Coleta das informações ................................................................... 71 3.3 Contextualização da Pesquisa ........................................................... 74 3.3.1 Fase Exploratória ............................................................................ 74 3.3.2 Participantes ................................................................................... 74 3.3.3 Trabalho de Campo ........................................................................ 76 3.3.4 Tratamento do Material ................................................................... 77 3.3.4.1 Pré-análise ................................................................................... 77 3.3.4.2 Exploração do material ................................................................. 78 3.3.4.3 Tratamento dos resultados ........................................................... 79 3.3.4.4 Resultados e Discussões ............................................................. 80 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 126 REFERÊNCIAS ..................................................................................... 130 APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ......... 138 APÊNDICE B - Perguntas orientadoras para entrevista semiestruturada ................................................................................... 141 APÊNDICE C – Produto Educacional: Guia de orientações .............. 143 “Não se pode escrever uma história dos povos sem uma história do jogo.” (Tizuko Morchida Kishimoto) 15 1 INTRODUÇÃO “Uno a uno”, todos vão chegando e animados se preparam. O “Caminho colorido”, repleto de “Pedrinhas”, une momentaneamente a todos, inclusive “Terra e Mar”. A prontidão para encontros e desafios se faz latente, celebrados pelos corpos que exigem presença, imersão e abertura ao diálogo. Ainda que o tempo de Kronos se faça existente, o de Kairós, divino e marcante, poderá se tornar arrebatador. A movimentação aumenta, o jogo vai começar. Nossa jogada inicial se dá aos 28 dias do mês de abril de 1984, no município de Jundiaí, onde nasci e cresci, cercado de familiares e amigos, entre gramados e o cheiro de terra, tendo uma infância bastante brincante e feliz. Protegida pelo gigante indígena, conhecido pelas bandas do Japi como Curuquiã, Jundiaí foi a cidade onde vivi as diferentes etapas da minha vida e onde em 2005 me tornei professor de Educação Física: Professor Fábio! Lecionando desde 2006 nos diversos ciclos escolares, a educação se tornou uma companheira, a escola um espaço de encantos e desafios e o chão da quadra o lugar onde tudo se materializava. Realização pessoal, desafios profissionais e muitas inquietudes causadas pelas diversas nuances da Educação Física, me levaram em 2022 ao ProEF, Programa de Mestrado Profissional em Educação Física em Rede Nacional. Ao longo do mestrado, entre Presidente Prudente, Rio Claro e São Carlos, foram intensos os momentos de trocas de saberes entre professores e mestrandos e a cada disciplina, muitas inquietações, novas descobertas, valiosos aprendizados e inúmeras possibilidades. Nas diversas Problemáticas da Educação física, um encontro real com o chão das quadras da educação básica brasileira, universo a ser explorado pelas pesquisas na busca por uma Educação Física de qualidade. Pesquisa, Escola, Planejamento, Metodologias, Inclusão, foram conceitos e elementos essenciais, que permeiam as práticas corporais e estiveram presentes no decorrer de todo o curso, fazendo do ProEF uma etapa de muito crescimento e desenvolvimento profissional. O ProEF é necessário à Educação Básica! 16 Diante de tantas inspirações e inquietações, nosso trabalho se debruçará sobre o estudo das Brincadeiras e Jogos, fenômenos socioculturais que, por muito tempo foram menosprezados, restritos, porém sempre fascinantes e presentes no cotidiano das pessoas do mundo todo, constituindo-se como um importante patrimônio cultural, que precisa ser valorizado, vivenciado e discutido, a fim de subsidiar a construção de uma consciência social crítica (Brasil, 1997). Os termos Brincadeiras e Jogos, de acordo com Santos (2012), podem se revestir de um sentido diferente conforme o uso que dele é feito, pois a linguagem é dependente do contexto de utilização. Palma et. al (2015), esclarece que há autores (Dantas, 2002; Silva, 2003; Friedmann, 1996), que entendem a brincadeira como uma forma mais livre que o jogo, um comportamento espontâneo que resulta de uma atividade não-estruturada e preferencialmente infantil, ou ainda, desregrada, ao passo que associam o jogo às atividades lúdicas com regras. Porém, na BNCC (2018) e no Currículo Jundiaiense (2022), documentos que norteiam nossa pesquisa, Brincadeiras e Jogos compõem a mesma unidade temática e assim como Franchi (2017) e Darido (2011), acreditamos que independente do verbo utilizado, brincar e jogar são ações que além de terem o mesmo significado em vários idiomas, se constituem a partir de um universo cultural, ou seja, se completam mediante as interações coletivas em sociedade, portanto, são utilizados como sinônimos ao longo desse trabalho. Os jogos sempre estiveram presentes na vida dos seres humanos desde sua origem, acompanhando toda história da humanidade e passaram a ganharam notoriedade no ambiente escolar durante o século XVIII, com o aparecimento de diversos jogos pedagógicos, tornando-se um elemento explícito presente no processo de ensino e aprendizagem. Ao longo de seu decurso histórico, a Educação Física escolar encontrou no jogo um grande potencial formativo, utilizando-o principalmente como ferramenta pedagógica, explorando seu valor utilitário para que outras aprendizagens fossem atingidas, não aquelas atribuídas ao próprio jogo, ocorrendo em muitos momentos a descaracterização dos mesmos, ou sua simples vivência, com um caráter recreacionista. O surgimento do Movimento Renovador na década de 1980, com suas críticas acerca da identidade da Educação Física, calcada numa perspectiva unicamente 17 biológica e com ênfase no processo de esportivização nas escolas, foi determinante ao propor que as práticas corporais pudessem ser entendidas como construções culturais, introduzindo na área o conceito de Cultura Corporal. Nessa perspectiva, os jogos e as brincadeiras passaram a ser propostos como um dos conteúdos da Educação Física, pois estiveram presentes de diferentes maneiras ao longo do seu processo histórico e portanto, precisam ser entendidos como construções humanas que devem ser tematizados nas aulas (Betti e cols., 2010), devendo abranger não apenas o saber fazer mas também o saber sobre este fazer. Embora alguns avanços tenham ocorrido na área da Educação Física, com o intuito de encontrar elementos para construir uma prática pedagógica que garanta a aquisição de novos conhecimentos relacionados às manifestações da Cultura Corporal, ainda é bastante comum encontrarmos os jogos e as brincadeiras presentes nas aulas de Educação Física apenas como recurso pedagógico, no qual os mesmos assumem funções que não lhes são próprias. Atualmente, a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2018), documento de caráter normativo em vigência em todo território brasileiro, busca assegurar os direitos de aprendizagem e desenvolvimento de todos os estudantes ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, concebendo a Educação Física como componente curricular, inserido na área de linguagens, responsável por tematizar as práticas corporais, compreendidas como manifestações das possibilidades expressivas dos sujeitos, produzidas por diversos grupos sociais no decorrer da história. Nessa perspectiva, as brincadeiras e os jogos são entendidos como conteúdo específico, que têm valor em si e precisam ser organizados para ser estudados, afastando assim a ideia do jogo como ferramenta auxiliar de ensino. No documento, a unidade temática Brincadeiras e Jogos é apresentada a partir de critérios geográficos, no qual essas manifestações devem ser estudadas partindo da cultura local e regional, seguida da cultura brasileira e culminando na cultura mundial. Nesse trabalho, Brincadeiras e Jogos do mundo, serão tratados como Brincadeiras e Jogos de outros países, em consonância ao Currículo Jundiaiense (2022), documento norteador da pesquisa e, por acreditarmos que ao assumir um caráter geográfico para classificar essas manifestações, o uso do termo mundo torna- 18 se bastante amplo e até certo ponto genérico, não estando alheios as Brincadeiras e Jogos do contexto cultural comunitário, regional e brasileiro do restante do mundo. Temos observado um crescente e importante movimento de valorização dos estudos das Brincadeiras e Jogos da cultura local, regional e brasileira no ambiente escolar, sendo inegável a importância e o reconhecimento dessas manifestações na escola. Porém, esse movimento é ainda discreto e desafiador quando são propostos as Brincadeiras e Jogos de outros países, pois muitas vezes, adentrar em diferentes culturas, pode nos colocar frente a diversidade e nos causar estranhamento. Diante disso e, apoiados na ideia de Franchi (2017) de que um problema de pesquisa deve ser inicialmente um problema da vida prática, temos como objetivo principal:  Compreender como os professores de Educação Física que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental no Município de Jundiaí - SP, tematizam e desenvolvem as Brincadeiras e Jogos de outros países. Além disso, serão objetivos secundários, mas não menos importantes:  Investigar quais assuntos relacionados as Brincadeiras e Jogos de outros países, os professores consideram essenciais para serem abordados nas aulas Educação Física;  Identificar as principais dificuldades encontradas pelos professores de Educação Física relacionadas a essa temática;  Pesquisar quais relações os professores estabelecem com os jogos e brincadeiras como conteúdo pedagógico;  Identificar o conhecimento sobre jogos e brincadeiras de outros países por parte dos professores a partir dos documentos norteadores da pesquisa;  Descrever algumas brincadeiras e jogos de outros países desenvolvidos nas aulas de Educação Física;  Elaborar um produto educacional, que possa favorecer e auxiliar na prática pedagógica. Em função dos pressupostos apresentados, no primeiro momento traremos o jogo como grande protagonista, descortinando as relações estabelecidas pelo mesmo com a Educação Física ao longo do seu decurso histórico. Os jogos também serão apresentados a partir de diferentes concepções assumidas ao longo da história, estando presentes na vida dos seres humanos desde sua origem. Em seguida, na 19 tentativa de que a Educação Física seja um componente curricular alinhado aos ideias de uma escola criativa, diversa, plural, crítica e emancipadora, os jogos, com ênfase nos jogos de outros países, serão propostos como conteúdo curricular, manifestações socioculturais carregadas de saberes, sentidos, significados e conhecimentos, que precisam estar presentes nas aulas e serem estudados para além da mera vivência. No segundo momento abordaremos a trajetória metodológica da pesquisa, a fim de possibilitar a compreensão adequada de como a mesma foi realizada. Nele serão caracterizados o universo da pesquisa e seus participantes, elencando os materiais e métodos utilizados e explicitando como os dados foram levantados, coletados, tratados, explorados e analisados. Traremos o tratamento dos resultados, tendo por base a Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2011). Será um momento importante, no qual procuraremos realizar as inferências e as interpretações, visando tornar os dados válidos e significativos. Em nosso último momento, traremos as considerações finais, procurando articular os resultados obtidos na pesquisa com os objetivos inicialmente propostos, bem como apontamentos e contribuições. Com esse prazeroso jogo das palavras, nossa expectativa é que todos aqueles que jogam o jogo da educação, principalmente professores de Educação Física, possam encontrar nesse trabalho e no guia de orientações, produto educacional que será desenvolvido como requisito obrigatório ao Mestrado Profissional, contribuições para inserir em suas práticas pedagógicas as brincadeiras e jogos de outros países, tematizando, desenvolvendo, reconhecendo e valorizando-os como conteúdo curricular que precisa estar presente nas aulas de Educação Física, carregados de imensa riqueza cultural. 20 "O jogo é uma coisa nova feita de coisas velhas." (João Batista Freire) 21 2 OS JOGOS COMO CONTEÚDO DA EDUCAÇÃO FÍSICA Neste capítulo faremos uma breve descrição da História da Educação Física no Brasil, elencando alguns estudos de autores da área, e também da História para entendermos os percursos que a mesma percorreu e percorre na tentativa de se firmar como área do conhecimento escolar, principalmente no que envolve as concepções de jogo, que é nosso objetivo da pesquisa. Além disso, apresentaremos o jogo como conteúdo curricular e a importância das brincadeiras e jogos de outros países serem tematizados nas aulas de Educação Física. 2.1 As relação entre Educação Física e Jogos através dos tempos A Educação Física passou, historicamente, por importantes e significativos processos de transformações na busca de uma identidade, passando de Atividade Escolar até a sua legalização como Componente Curricular, assumindo assim uma nova configuração. No Brasil, a inclusão e obrigatoriedade da Educação Física na Escola ocorreu oficialmente ainda no século XIX, em 1851, com a Reforma Couto Ferraz1, quando foi apresentada à Assembleia as bases para a reforma do ensino primário e secundário no município da Corte. De acordo com os PCNs (1997), muitos pais demonstraram insatisfação em ver seus filhos envolvidos em atividades que não tinham caráter intelectual, principalmente as meninas. Segundo Betti (2020), em reforma realizada por Rui Barbosa, em 1882, o mesmo recomendou que a ginástica fosse obrigatória a ambos os sexos na Escola Normal, assim como na formação de professores e nas Escolas primárias, devendo ser inserida nos programas escolares como matéria de estudo. Contudo, Darido e Rangel (2017) explicam que a implementação na prática ficou restrita, até os primeiros anos da década de 30, às Escolas do Rio de Janeiro, como município da Corte imperial e capital da República, e às Escolas Militares. 1 Decreto nº 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1331-a-17-fevereiro-1854-590146- publicacaooriginal-115292-pe.html https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1331-a-17-fevereiro-1854-590146-publicacaooriginal-115292-pe.html https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1331-a-17-fevereiro-1854-590146-publicacaooriginal-115292-pe.html 22 Apenas a partir da década de 20 que diversos Estados começaram a promover reformas nos seus sistemas de ensino e incluíram a Educação Física, geralmente denominada de ginástica. Para Darido e Rangel (2017) desde seu início, a Educação Física na Escola já sofria preconceitos, estando presente na lei, mas ausente na Escola, pelo não cumprimento dessas mesmas leis. Nesse momento, a Educação Física Escolar era calcada numa perspectiva biológica, centrada nos hábitos de higiene e saúde, valorizando o desenvolvimento físico e da moral, a partir do exercício físico. Segundo Darido e Rangel (2017) nesse período surgem os métodos ginásticos suecos, francês e alemão, com a finalidade de sistematizar e valorizar a ginástica nas Escolas brasileiras e, os meios para alcançar padrões de conduta são encontrados na adoção de um correto programa de Educação Física. Embora a ênfase estivesse nos métodos ginásticos, Ghiraldelli Junior (1992) aponta que os jogos estiveram presentes nessa perspectiva: [...] a ginástica, o desporto, os jogos recreativos etc. devem, antes de qualquer coisa, disciplinar os hábitos das pessoas no sentido de levá-las a se afastarem de práticas capazes de provocar a deterioração da saúde e da moral, o que “comprometeria a vida coletiva” (Ghiraldelli Junior, 1991, p.17) Num contexto histórico e político marcado pela ascensão dos movimentos nazista e fascistas, que associavam ainda a Educação Física à eugenização da raça, a mesma ganhou contornos militaristas. Segundo os PCNs (1997, p.20), “o exército passou a ser a principal instituição a comandar um movimento em prol do “ideal” da Educação Física que se mesclava aos objetivos patrióticos e de preparação pré- militar.” Nesse modelo, a Educação Física Escolar passou a selecionar indivíduos fisicamente fortes e capazes e excluir os “incapacitados”, buscando formar essas pessoas para atuar na guerra, obedecendo cegamente e servindo de exemplo para o restante da juventude pela sua bravura. Ghiraldelli Junior (1991) nos explica que nesse momento, as atividades presentes na Educação Física, dentre elas os jogos de caráter recreativos, só tinham utilidade se cumprissem o papel de eliminar os sujeitos fisicamente incapazes, aumentando a força e o poder da população, sendo elementos essenciais a coragem, a vitalidade, o heroísmo e a disciplina. 23 Nos modelos higienista e militaristas, a Educação Física era entendida como atividade exclusivamente prática, não necessitando de qualquer fundamentação de cunho teórico ou pedagógico, sendo os profissionais atuantes nas Escolas, instrutores militares e ex-praticantes, não sendo a Educação Física entendida como uma atividade propriamente educativa. A partir de 1920, a Educação Brasileira passou por um importante processo de renovação, surgindo o movimento que deu origem a chamada “Escola Nova”, no qual era proposto que fossem revistas as formas tradicionais de ensino, a partir de bases biológicas, psicológicas e sociológicas. Para Betti (2020) a Escola Nova estava alicerçada no respeito à personalidade da criança, visando seu pleno desenvolvimento e para isso, a Escola deveria ser necessariamente, uma escola ativa; do trabalho; democrática e utilitária; escola do movimento, da saúde, da moralidade; da consciência econômica e política; que buscasse auxílio na ciência; com participação ativa da criança; tendo a atividade como fonte principal de aquisições e meio de expressão, por meio do desenho, trabalhos manuais, modelagem, etc.; escola popular, aberta a todas as classes sociais e preocupada com a proteção higiênica e a formação física dos escolares (Betti, 2020, p.98). Nessa nova concepção de Educação, ocorre o abandono da autoridade absoluta, surgindo novos valores pedagógicos baseados no respeito à criança, interesse dos alunos e valorização da autonomia, cabendo à Escola, a função de ajudar a criança a resolver problemas reais e no presente. Nesse contexto, os métodos utilizados na Educação Física passaram a sofrer fortes críticas, sendo condenados os exercícios formais e artificiais. De acordo com Betti (2020), existe a tendência natural da criança em procurar os jogos, inclusive os jogos esportivos, que passaram a integrar o universo escolar de maneira mais sólida e efetiva. Embora os jogos e brincadeiras passassem a ganhar destaque na Educação e na Educação Física, para Pinto (1996) os mesmos eram considerados um meio eficiente de induzir disciplina, não caracterizada pelo silêncio de imobilidade, mas pelo respeito às regras e ao adversário, domínio de si e sacrifício em benefício do grupo ou eram utilizados como passatempo e distração, ou seja, como algo que não ensinava elementos específicos do processo de escolarização (Galhardo, 2020). Com o fim do Estado Novo, a Educação Física passou a sofrer forte influência de métodos esportivos. De acordo com os PCNs (1997), o processo de esportivização 24 da Educação Física teve início com a introdução do Método Desportivo Generalizado, que propunha uma tentativa de contrapor os antigos métodos tradicionais de ginástica, procurando incorporar o esporte como conteúdo nas aulas de Educação Física, com ênfase no aspecto lúdico, visando proporcionar uma atividade prazerosa e que compreendesse o indivíduo como um todo. Diante dessa finalidade, o jogo passou a ser defendido como um meio bastante privilegiado, sendo mais agradável aos jovens, despertando alegria e prazer, e porque, jogando, o aluno manifesta plenamente sua personalidade, descobre suas aptidões e gostos, adquire conhecimento de si próprio, exerce sua iniciativa e responsabilidade, trabalha cooperativa e coletivamente e assim prepara-se para a vida, que também é jogo e competição” (Betti, 2020, p.119). Nessa proposta, o jogo é entendido como o jogo esportivo e aparece em duas estratégias propostas pelo método, sendo a “forma de jogo” uma atividade exercida de maneira mais livre, na qual se fixam uma ou mais regras dominantes de uma atividade esportiva, tendo o aluno total liberdade de ação, praticando sem limitações. Já o “jogo dirigido” é entendido como a prática da atividade esportiva com todas as suas regras e com as ações do jogador limitadas por técnicas e táticas impostas (Betti, 2020). O Método Desportivo Generalizado passou a figurar nos programas de quase todas as Escolas do país, porém, para Galhardo (2020), se inicialmente o jogo, ainda que com objetivos esportivos, foi visto como um meio mais prazeroso para prática da Educação Física Escolar, possibilitando uma maior participação, o método passou a sofrer adaptações e interpretações equivocadas, transformando-se numa proposta que buscava o desempenho máximo dos estudantes e a seleção de talentos para as competições esportivas. Com o golpe militar de 1964, o governo encontrou nas Escola públicas uma fonte de propaganda do regime militar, passando a Educação a ser vista como um dos componentes do desenvolvimento econômico do país. De acordo com os PCNs (1997), o ensino seria uma ferramenta para a formação de mão de obra qualificada, promovendo mais desenvolvimento e eficiência produtiva para o mundo do trabalho, sendo que a disciplinarização, a normatização, o alto rendimento e a eficácia eram as lógicas da tecnização patrocinada pelo governo (Oliveira, 2004), ganhando destaque os cursos técnicos profissionalizantes. 25 Segundo Darido e Rangel (2017), durante a ditadura militar, o Brasil observou a ascensão do esporte à razão de Estado e a inclusão do binômio Educação Física/Esporte na planificação estratégica do governo, ocorrendo forte investimento no esporte, na tentativa de fazer a Educação Física servir como um apoio ideológico, na medida em que ela participaria da promoção do país através do êxito em competições esportivas de alto nível. Na tentativa de eliminar as críticas internas e deixar transparecer um clima de prosperidade e desenvolvimento, a Educação Física ganhou atribuições importantes para a manutenção da ordem e do progresso, ganhando investimentos do governo militar em função de ideologias pautadas no nacionalismo, na integração e segurança nacional, tanto na criação de um exército formado por uma juventude forte e saudável como na tentativa de desmobilização de forças políticas de oposição ao governo (PCNs,1997), sendo as atividades esportivas consideradas como fatores determinantes para esses ideais. Com o esporte ganhando cada vez mais espaço no cenário escolar, a Educação Física teve seu caráter instrumental reforçado, sendo considerada uma atividade prática (PCNs, 1997), passando a ser entendida como uma “atividade que por seus meios, processos e técnicas, desenvolve e aprimora forças física, morais, cívicas e sociais do educando” (Betti, 2020, p.126). A aptidão física foi estabelecida como principal referência dos programas de Educação Física, passando a orientar o planejamento, controle e avaliação. Para Betti (2020) essa ênfase na aptidão física restringia demasiadamente as possibilidades pedagógicas para que fossem atingidos objetivos tão amplos, como os que eram propostos. Ainda de acordo com o autor, a Educação Física proposta teria início com a Educação do Movimento, através de exercícios e jogos que desenvolvessem o ritmo, a organização tempo-espacial, o esquema corporal, e a coordenação, seguida pela iniciação esportiva a partir dos dez anos. De acordo com Oliveira (2004) as aulas de Educação Física foram reduzidas às práticas esportivas, passando a ser fundamentadas primeiramente na técnica esportiva, no gesto técnico e na repetição, reduzindo as possibilidades corporais a algumas poucas técnicas estereotipadas, fazendo com que ganhasse destaque o rendimento, a seleção dos mais habilidosos e o fim justificando os meios (Darido e Rangel, 2017). 26 Seguindo os ideais proposto pelo governo militar, o professor de Educação Física passou a desempenhar um papel bastante centralizador, empregando procedimentos extremamente diretivos, sem nenhuma reflexão ou criticidade, Via de regra é o “animador da escola” [...] dispensa todos que por qualquer motivo não puderem frequentar as aulas. Participa pouco da vida escolar, de reuniões pedagógicas [...]. Tem, geralmente, sua “turminha” particular de alunos [...]. Conhece muito pouco a legislação específica. Raramente participa da elaboração de suas turmas. Executa sem questionar, no mais das vezes (Betti, 2020, p.139). Os professores eram formados numa perspectiva de técnicos esportivos ou treinadores e embora acreditassem desenvolver um trabalho com cunho pedagógico, na realidade o mesmo consistia na busca exclusiva de um único objetivo: vencer! Assim, a Educação Física estabeleceu uma nova relação de professor-treinador e aluno-atleta (Soares et al., 1992). Nesse contexto, ganhou destaque o “modelo piramidal”, no qual a Educação Física Escolar, a melhoria da aptidão física da população e o empreendimento da iniciativa privada na organização desportiva para a comunidade, comporiam o desporto de massa que se desenvolveria, tornando-se um desporto de elite, com a seleção de indivíduos aptos para competir dentro e fora do país (PCNs, 1997, p.21). Porém, com o início do processo de redemocratização do país, notou-se que os objetivos não haviam sido alcançados, ou seja, o Brasil não tornou-se uma potência olímpica e a competição esportiva da elite não aumentou o número de praticantes de atividades físicas, eclodindo duras críticas ao modelo esportivista e ao próprio discurso da Educação Física. Essa crise de identidade que atingiu a Educação Física Escolar, desencadeou mudanças significativas na área, que passou a priorizar a pré-escola e o segmento de primeira a quarta série, com enfoque no desenvolvimento psicomotor da criança (PCNs, 1997). Na perspectiva da psicomotricidade, para Darido e Rangel (2017) a Educação Física tinha como preocupação o desenvolvimento da criança, com o ato de aprender, com os processos cognitivos, afetivos e psicomotores, buscando garantir a formação integral do aluno, atribuindo ao professor a possibilidade de responsabilidades escolares e pedagógicas. 27 Neira (2008) explica que as brincadeiras e os jogos, entendidos como “situações lúdicas”, foram utilizados nas aulas de Educação Física como estratégia didático-pedagógica, a fim de que fossem desenvolvidos inúmeros comportamentos cognitivos, afetivos, sociais e motores. Porém, como alerta Saviani (2003), deixou-se de lado a transmissão de conhecimentos, que é uma das tarefas primordiais do processo educativo escolar, tendo o jogo um caráter utilitário. Em oposição à vertente mais biológica e esportivista da Educação Física, a partir da década de 1980, presenciou-se o debate e a divulgação de novas ideias, com maior embasamento científico e reflexão teórica (Betti, 2020), discutidas sob a influência das teorias críticas da Educação, numa tentativa de compreender as relações entre Educação Física e Sociedade e justificar a função social da Educação Física, tendo em vista seu papel nas transformações sociais (PCNs, 1997). Para Betti (2020) foi com a consolidação do discurso pedagógico de transformação social da Educação Física, que esta passou a ter como objetivos educacionais o desenvolvimento do pensamento crítico, da criatividade e da conscientização. Essas transformações buscavam aproximar a Educação Física dos propósitos da Escola, ou seja, encontrar elementos para constituir uma prática pedagógica não mais reduzida ao caráter meramente descompromissado e alienado, com ênfase no exercitar-se, mas na aquisição de novos conhecimentos relacionados às manifestações da Cultura Corporal de Movimento, que para Betti (2001, p.56) pode ser entendida como: [...] a parcela da cultura geral que abrange as formas culturais que se vêm historicamente construindo, no plano material e no simbólico, mediante o exercício da motricidade humana – jogo, esporte, ginásticas e práticas de aptidão física, atividades rítmicas/expressivas e dança, lutas/artes marciais, práticas alternativas. Nesse sentido, a Educação Física Escolar passou a ter o papel de Componente Curricular obrigatório da Educação Básica, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (1996), sendo responsável por “[...] introduzir os alunos no universo da Cultura Corporal de Movimento” (Betti, 2009, p.3), assumindo a responsabilidade de não se limitar à reprodução dos sentidos e significados presentes nas diferentes manifestações corporais, mas procurando tematizar, desnaturalizar e evidenciar a 28 pluralidade de sentidos e significados que os diferentes grupos sociais podem dar a eles (Gonzáles, 2020). Os conteúdos da Educação Física Escolar passaram ser as diferentes manifestações que compõe a Cultura Corporal de Movimento (jogos, brincadeiras, lutas, danças, ginásticas, esportes, práticas corporais na natureza, atividades circense), os quais devem abranger o saber fazer e o saber sobre este fazer, ao passo que envolvem uma produção historicamente localizada e que mobilizam a compreensão das formas de movimento como construções socioculturais (Galhardo, 2020). Dentre essa manifestações da Cultura Corporal de Movimento, os jogos para Betti e cols. (2010) pertencem ao rol dos conteúdos clássicos da Educação Física, [...] pois estiveram presentes, sob várias formas, em alguns períodos do processo histórico da Educação Física Escolar, devendo ser tomados como construções humanas, patrimônios culturais a serem pedagogizados nas aulas (Betti e cols., 2010, p.111). Desta forma, os jogos assumem um caráter de conteúdo da Educação Física Escolar e não mais uma visão funcionalista, devendo ser organizados e sistematizados, para que os estudantes possam estudar, vivenciar e compreende-los como parte da Cultura e da História da humanidade. 2.1.1 Formação Docente em Educação Física O processo de formação docente em Educação Física no Brasil é um tema de grande relevância e complexidade, envolvendo aspectos históricos, sociais, políticos e pedagógicos. Ao longo das últimas décadas, esse processo passou por transformações significativas, refletindo mudanças na concepção de Educação e na própria prática pedagógica. A formação de Professores de Educação Física no Brasil acompanhou todo o processo histórico da área, passando por diferentes momentos, desde a ênfase na preparação de professores de ginástica até a valorização da formação humanista e crítica, voltada para a compreensão da corporeidade e das práticas corporais em diferentes contextos socioculturais (Darido, 2017). 29 Embora alguns currículos ainda estejam norteados na ênfase do desenvolvimento dos aspectos físicos, principalmente com caráter esportivista, Soares et. al (1992), defende que na formação docente em Educação Física sejam incorporados conhecimentos relativos às áreas das ciências humanas, das ciências biológicas, das ciências sociais, além das próprias práticas corporais. O processo de formação de professores de Educação Física está envolto de complexidades que vão além da aquisição de conhecimentos técnicos. Para Tardif (2002), esse é um processo contínuo e dinâmico, permeado por saberes diversos, como os saberes da experiência, os saberes disciplinares e os saberes da prática educativa. Dessa forma, a formação deve integrar teoria e prática, possibilitando ao futuro professor uma compreensão ampla e aprofundada do seu papel na educação. Tardif (2002), destaca a importância dos "saberes docentes", que são conhecimentos construídos na interação entre teoria e prática, considerando a realidade específica do contexto escolar, constituídos por componentes inter- relacionados: Saberes da Formação Profissional: refere-se ao conjunto de saberes que, baseados nas ciências e na erudição, são transmitidos aos professores durante o processo de formação inicial e/ou continuada. Também se constituem o conjunto dos saberes da formação profissional os conhecimentos pedagógicos relacionados às técnicas e métodos de ensino (saber-fazer), legitimados cientificamente e igualmente transmitidos aos professores ao longo do seu processo de formação. Saberes Disciplinares: são os saberes reconhecidos e identificados como pertencentes aos diferentes campos do conhecimento (linguagem, ciências exatas, ciências humanas, ciências biológicas etc.). Esses saberes, produzidos e acumulados pela sociedade ao longo da história da humanidade, são administrados pela comunidade científica e o acesso a eles deve ser possibilitado por meio das instituições educacionais. Saberes Curriculares: conhecimentos relacionados à forma como as instituições educacionais fazem a gestão dos conhecimentos socialmente produzidos e que devem ser transmitidos aos estudantes (saberes disciplinares). Apresentam-se, concretamente, sob a forma de programas escolares (objetivos, conteúdos, métodos) que os professores devem aprender e aplicar. 30 Saberes Experienciais: saberes que resultam do próprio exercício da atividade profissional dos professores. Esses saberes são produzidos pelos docentes por meio da vivência de situações específicas relacionadas ao espaço da escola e às relações estabelecidas com alunos e colegas de profissão. Nesse sentido, “incorporam-se à experiência individual e coletiva sob a forma de hábitos e de habilidades, de saber- fazer e de saber ser”. [...] esse repertório de conhecimentos poderá existir se, e somente se, reconhecermos que os professores possuem a capacidade de racionalizar sua própria prática, de nomeá-la, de objetivá-la, em suma, de definir suas razões de agir (Tardif, 2002, p.205). Neste sentido, a formação de professores não deve ser vista de forma isolada, mas como um processo dinâmico que envolve a interação contínua entre a teoria e a prática, os saberes acadêmicos e os saberes da experiência, pois a valorização desses saberes docentes é essencial para o desenvolvimento de uma prática pedagógica mais efetiva e contextualizada. Contudo, no Brasil, a formação de professores de Educação Física enfrenta desafios complexos e estruturais. Darido (2017) e Betti (2020), destacam a necessidade de superar a fragmentação dos conhecimentos, muitas vezes presente nos cursos de formação, que tendem a separar a teoria da prática, podendo comprometer a capacidade do docente em lidar com as complexidades do contexto escolar. Além disso, nos deparamos com a constante atualização frente às demandas contemporâneas e que para Libâneo (1994), demandam uma formação que esteja alinhada com as mudanças sociais e culturais, preparando o professor para lidar com a diversidade e promover uma educação inclusiva. Duarte (2010), defende que o percurso formativo seja um processo contínuo e reflexivo, no qual os professores devem estar em constante busca por atualização e aprimoramento de suas práticas pedagógicas, pois assim estarão mais aptos a enfrentar os desafios em constante evolução do ambiente educacional. Sendo assim, a formação docente em Educação Física no Brasil é um processo complexo, que demanda atenção constante às transformações sociais e educacionais. Ao superar os desafios existentes e abraçar perspectivas inovadoras, é possível construir uma formação que prepare professores comprometidos, críticos e capazes de contribuir para uma educação física inclusiva e de qualidade. 31 2.2 O jogo e suas diferentes concepções Na maioria das vezes, estando associado ao mundo da fantasia, podendo representar uma realidade mais ou menos “mágica”, o jogo sempre esteve presente na vida dos seres humanos desde sua origem, fazendo parte da História da humanidade. A partir dos valores difundidos no cotidiano, diversas áreas do conhecimento passaram a refletir e buscar compreender a magia e os mistérios desse fenômeno. Nas indagações de Freire (2017): [...] qual o segredo do jogo? O que tem o jogo, na sua mais profunda intimidade, que deixa os pesquisadores a meio do caminho, como se caminhassem ao longo de uma profundíssima caverna, cuja luz fosse desaparecendo quanto mais fundo a penetrassem?” (Freire, 2017, p.5). Definir a palavra jogo não é tarefa tão simples, a começar pela origem do próprio vocabulário. Na língua portuguesa, a palavra jogo, entre seus significados, possui um caráter lúdico e está vinculada ao mundo infantil. Em outras línguas, como no alemão, no inglês e no francês, por exemplo, é utilizada apenas uma única palavra para expressar uma série de ações. Em alemão spilen, em inglês play e no francês jouer são termos que se fundem para representar ações distintas, relacionados ao jogar e ao brincar e, também, ao imitar e representar (Santos, 2004, p.3) A língua portuguesa, segundo Santos (2012), utiliza várias palavras para expressar ações distintas como: brincar, fantasiar, imaginar, representar e outras, podendo o mesmo termo se revestir de um sentido diferente conforme o uso que dele é feito, pois a linguagem é dependente do contexto de utilização. Para Kishimoto (2017), a multiplicidade de fenômenos incluídos na categoria jogo, a diversidade de situações que recebem a mesma denominação jogo e quando um mesmo comportamento pode ser visto como jogo ou não-jogo, podem contribuir na dificuldade de conceituá-lo. [...] uma mesma conduta pode ser jogo ou não jogo em diferentes culturas, dependendo do significado a ele atribuído. Por tais razões fica difícil elaborar uma definição de jogo que englobe a multiplicidade de suas manifestações concretas. Todos os jogos possuem peculiaridades que os aproximam ou distanciam (Kishimoto, 2006, p.15) 32 Essa dificuldade, para Santos (2012), está associada também à inter-relação entre a fundamentação científica, a linguagem cultural e a própria utilização prática do jogo. A autora ainda salienta que “existe uma rede de significações explícitas e implícitas, todas resultantes da utilização no contexto social em que o jogo está inserido” (Santos, 2012, p.40), não sendo o uso do termo um ato neutro, individual e solitário, mas decorrente do uso por um grupo social que dê sentido a essa palavra, trazendo em si um certo corte do real, uma certa representação do mundo. Dessa forma, Kishimoto (2017), reforça que o jogo assume a imagem e o sentido que cada sociedade lhe atribui, enquanto fato social. É este o aspecto que nos mostra por que, dependendo do lugar e da época, os jogos assumem significações distintas e que cada contexto social constrói uma imagem de jogo conforme seus valores e modo de vida, que se expressa por meio da linguagem, que para Brougère (1998) funciona em um contexto social, devendo a utilização do termo jogo ser considerado como um fato social, remetendo à imagem do jogo encontrada no seio da sociedade em que ele é utilizado. Para Huizinga (2000), o termo jogo tem sua origem e desenvolvimento relacionado à palavra humanidade, no sentido de raça humana, de produtora de Cultura. Na sociedade antiga, o trabalho não tinha o valor que lhe atribuímos há pouco mais de século e nem ocupava tanto tempo do dia, sendo um dos principais meios de que dispunha a sociedade para estreitar seus laços coletivos e de união. Com a crescente tendência de racionalização, a ascensão da burguesia e a modificação nos costumes, as características dos jogos foram mudando radicalmente e o que antes era motivo de profundas relações familiares, com valores e sentidos culturais muito significativos, tornou-se objeto destinado a um público alvo, passando os jogos a serem reprimidos, regrados e restringidos a determinadas ocasiões, ganhando uma nova organização (Neira, 2008). Huizinga (2000), concebe o jogo como elemento da Cultura, produzido pelo meio social, tendo como características: o prazer, o caráter “não sério”, a liberdade, a separação dos fenômenos do cotidiano, as regras, o caráter fictício ou representativo e sua limitação no tempo e no espaço. O jogo para o autor pode ser entendido como [...] uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si 33 mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida cotidiana” (Huizinga, 2000, p.33) A partir de uma ocupação voluntária, o jogo torna-se uma atividade de livre adesão, podendo o jogador suspendê-lo a qualquer momento, ou seja, o jogo não comporta coações externas. Para Kishimoto (2017), o caráter “não sério” presente no jogo, não implica que o mesmo deixe de ser sério, estando mais relacionado ao riso, ao cômico, acompanhando o ato lúdico e se contrapondo ao trabalho. Huizinga (2000, p.24), corrobora ao afirmar que “o jogo autêntico e espontâneo também pode ser profundamente sério”. O jogo acontece dentro de limites de tempo e espaço, com uma sequência própria e a existência de regras “possibilitam o aparecimento de ordem em meio a desordem harmônica” (Scaglia, 2005, p.42). Segundo Kishimoto (2017), as regras podem ser internas, ocultas, flexíveis, rígidas, explícitas ou implícitas, porém, são fixas, obrigatórias e respeitadas por todos os jogadores, sendo elas que ordenam e conduzem o jogo. Essas regras para Santos (2012), são as únicas restrições possíveis na realização do jogo, pois os jogadores decidem as atitudes que executam, de acordo com os resultados que lhes interessam. O ambiente do jogo, para Carneiro (2009), é marcado pela imprevisibilidade e incerteza, ocorrendo inúmeras mudanças, alternâncias, associações, gerando assim tensão. Porém, a alegria presente no mesmo ambiente não é descaracterizada, ou seja, “encontramos uma compenetração sem excessiva seriedade” (Carneiro, 2009, p.26). Essa ausência de seriedade está relacionada ao modo como se conduz o momento do jogo e não que o jogo seja entendido como uma atividade “não séria”. De acordo com Scaglia (2005), o jogo é uma atividade que tem um fim nela mesma, ou seja, um fim na sua própria realização, não sendo uma preparação para algo maior, pois a auto superação e auto satisfação são as principais preocupações de quem joga. Assim, quem brinca de cozinha não está se preparando para ser cozinheiro, chef ou dona de casa, apenas entra em contato com uma nova forma de intervir em sua realidade e vivenciar ativamente novas experiências. Caillois (1992) nos traz importantes contribuições a respeito jogo, encarando-o essencialmente como uma atividade livre: uma vez que, se o jogador fosse a ela obrigado, o jogo perderia de imediato a sua natureza de diversão atraente e alegre; 34 separada: circunscrita em limites de espaço e de tempo previamente estabelecidos; incerta: já que o seu desenrolar não pode ser determinado nem o resultado obtido previamente, e já que é obrigatoriamente deixada à iniciativa do jogador uma certa liberdade na necessidade de inventar; improdutiva: porque não gera bens, nem riquezas nem elementos novos de espécie alguma e salvo alteração de propriedade no interior do círculo dos jogadores, conduz a uma situação idêntica à do início da partida; regrada: sujeita a convenções que suspendem as leis normais e que instauram momentaneamente uma legislação nova, a única que conta; fictícia: acompanhada de uma consciência específica de uma realidade outra, ou de franca irrealidade em relação à vida normal. Além de definir o jogo considerando os elementos característicos de sua ação, Caillois (1992) estabeleceu uma classificação a partir da sua natureza social, assim sendo, em qualquer jogo podem ser encontrados pelo menos um dos quatro elementos: Agôn – jogos dominados fundamentalmente por atividades competitivas; Alea – jogos em que predominam a força do acaso, o destino, a sorte; Mimicry – são jogos imaginários em que os participantes adotam para si o papel de determinados personagens, apropriando-se de outra realidade que não a sua; Ilinx – jogos que se assentam na busca de vertigem, com o intuito de destruir a estabilidade de percepção do corpo humano, ou seja, busca-se atingir uma espécie de espasmo, transe, afastamento súbito da realidade. Scaglia (2005) e Freire (2017), mesmo reconhecendo as inúmeras contribuições apresentadas pelos diversos estudiosos do fenômeno jogo, acreditam que estuda-lo detectando apenas as suas partes, pode tornar-se um ato bastante reducionista, pois: [...] esse conhecimento particularizado não pode ser negligenciado, mas sim estudado por outro prisma, pois as partes isoladas me permitem somente determinar comportamentos de jogo e não o jogo que joga, o jogo em si, como um todo complexo e contextualizado (Scaglia, 2005, p.51). Corroborando com essa ideia, Freire (2017) afirma que o problema do jogo é complexo e precisa ser pesquisado do ponto de vista dessa complexidade, portanto, ao fragmentar o fenômeno em partes, analisando separadamente cada uma delas e juntando-as ao final, produz-se uma ilusão e não uma compreensão, "resta, portanto, buscar o significado do jogo, não mais na caracterização infindável de partes que o 35 compõem, mas sim na identificação dos contextos em que ocorre" (Freire, 2017, p.58), pois assim: [...] o mundo do jogo passa a ser então um terreno fantástico, arrebatador, concatenando-se com a realidade. Não se configura um local de fuga, como pode, desavisadamente, parecer a priori, atribuindo-lhe até um falso caráter alienante. O ambiente de jogo, por si só, não permite que a realidade simplesmente seja deixada de lado, porém de uma forma muito peculiar ela permanece suspensa. Sendo assim, se faz necessário compreender o jogo a partir da complexidade dos entrelaçamentos existentes no ambiente e nos elementos que o constituem, pois é o ato de jogar que revela o jogo. 36 2.3 O Jogo como conteúdo nas aulas de Educação Física Escolar O lugar é a Escola. Um lugar com uma identidade única, repleto de responsabilidades e expectativas sociais. Um lugar que não pode ser confundido com nenhum outro, pois a Escola é um tempo e um lugar singular. Um lugar que para Gadotti (2007) é cheio de vida e, embora muitas vezes não oportunize as melhores condições de trabalho, nela existe o essencial: gente! De acordo com Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB (1996), é neste lugar que todas as crianças e todos os jovens, dos quatro aos dezessete anos de idade, devem estar presentes diariamente, para que tenham oportunidade de pleno desenvolvimento, estejam preparados para o exercício da cidadania e qualificados para o trabalho. Embora a Legislação Brasileira (1996), logo em seus primeiros parágrafos, vincule a Educação Escolar apenas ao mundo trabalho e as práticas sociais, precisamos compreender que a Escola não pode ser apenas um lugar para estudar, mas um espaço para se encontrar, conversar, confrontar-se com o outro, discutir e fazer política, constituindo-se como um espaço de pessoas, de relações e também de representações sociais e que tem procurado contribuir tanto para a manutenção quanto para a transformação social, com seu papel essencial no desenvolvimento da criatividade e da criticidade (Gadotti, 2007). Para Saviani (2003), a Escola é uma instituição que tem a função de transmitir o saber socialmente acumulado e sistematizado, sendo que esse saber não está relacionado ao conhecimento espontâneo e fragmentado, mas ao saber científico e metódico. A Escola tem um papel fundamental em instruir e possibilitar que as novas gerações se apropriem desses conhecimentos de acordo com as necessidades sociais vigentes. Porém, Freire (1987) nos alerta que devido a nossa herança histórica, a Escola tornou-se um espaço no qual a transmissão do conhecimento acontece, ainda nos dias de hoje, de maneira autoritária, sem questionamentos, com corpos inertes, limitando a aprendizagem a uma verdadeira transferência de conteúdo, na maioria da vezes, pautada na repetição e na memorização. Essa concepção de Educação nega o diálogo, à medida que a prática pedagógica é pautada na ideia de que os educandos devem escutar dócil e 37 passivamente o educador, devendo não violar as regras impostas, para que o mesmo possa transferir os conteúdos necessários à sua aprendizagem. Assim, a prática pedagógica dos educadores é permeada pelo autoritarismo, dizendo aos educandos o que devem fazer e o que responder; portanto, eles vivenciam uma pedagogia da resposta. Não é permitido realizar críticas, assim como não se deve questionar e nem duvidar do professor - aquele que detém o conhecimento e que irá depositá-lo no corpo "vazio" dos alunos (Brighente e Mesquida, 2016, p.162). Esse tipo de Educação tem como finalidade realizar uma divisão entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem, entre oprimidos e opressores (Freire, 1987), supervalorizando a ação e o papel do educador e desconsiderando a condição do educando como um sujeito histórico, marcando um processo de manipulação, dominação e alienação do educando, impossibilitando-lhe o direito à crítica, à autonomia, a expressão e à liberdade. Contudo, de acordo com Freire (1987), para que possamos romper com essa Educação fragmentada e opressora e esperançarmos com uma Escola que de fato liberte, é necessário que “[...] creiamos nos homens oprimidos. Que o vejamos como capazes de pensar certo também” (Freire, 1987, p.34), validando seus saberes, valorizando as diferentes culturas, apresentando outras versões das Histórias, discutindo os processos de exclusão, possibilitando assim, que o educando passe de um mero espectador para um sujeito reflexivo, capaz de colocar-se criticamente no mundo. O que precisamos de fato encarar é que ou a escola passa a ser um espaço vivo de produção de saberes, de valorização da curiosidade, da pesquisa, da arte e da cultura, da criatividade, da reflexão – um espaço de convivência ética e democrática no qual se exercita a cidadania, um espaço vinculado à comunidade a que pertence, bem como à cidade, ao país, ao mundo – ou se tornará obsoleta e estará fadada ao desaparecimento (Mosé, 2013, p. 56). Para Duarte (2010), a escola deve ser um ambiente que integra as vivências e experiências dos estudantes, conectando-se com a realidade que os cerca, sendo de suma importância considerar o contexto social e cultural dos alunos ao elaborar práticas educacionais, contribuindo para tornar a educação mais significativa e relevante para a vida cotidiana dos alunos. 38 Para que a Escola se configure como um espaço de cidadania, é preciso que ela faça sua própria inovação, elaborando seus projetos, planejando a médio e longo prazo, organizando seus dados, reestruturando seus currículos, pois as mudanças que vêm de dentro da Escola são mais duradouras (Gadotti, 2000). Precisa investir para que o educador seja capaz de mediar o conhecimento e o educando seja protagonista na sua formação, com a certeza de que “ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria” (Freire, 2004, p.148). A Escola, cada vez mais, deverá ser um espaço aberto, e a Educação, inevitavelmente vinculada à vida, cumprindo seu papel enquanto instituição social capaz de favorecer uma aprendizagem, reflexiva, dialógica e crítica, onde a partir da consciência do seu lugar no mundo e do lugar do outro, meninos e meninas possam ter garantido seu pleno desenvolvimento e sua emancipação. Presente na Escola desde os séculos XVIII e XIX, a Educação Física, foi por muito tempo considerada como atividade educativa, tendo seus objetivos associados aos cuidados com o corpo, o desenvolvimento de hábitos de higiene, da saúde, do físico e da moral, da melhoria das aptidões físicas e das habilidades motoras, ou seja, “a Educação Física esteve estreitamente vinculada às instituições militares e à classe médica” (PCNs, 1997, p.19). Na tentativa de que esses objetivos fossem alcançados, a Educação Física encontrou no jogo grande potencial formativo, passando a utilizá-lo nas aulas como ferramenta pedagógica, predominando assim uma visão funcionalista do jogo. Scaglia (2004) explica que assim, atribuiu-se ao jogo valor utilitário no qual ele passou a ser visto apenas como veículo para se aprender alguma coisa que está além dele mesmo. De acordo com Neira (2008) o jogo foi bastante utilizado como recurso nas aulas de Educação Física, responsabilizando-se por inúmeros comportamentos cognitivos afetivos, sociais e motores, ou seja, os jogos passaram a ser aplicados visando determinadas aprendizagens, dentre essas, o respeito, o raciocínio, a solidariedade e a atenção passaram a ser objetivos alcançados por meio de situações “lúdicas”. Para Scaglia (2004), este caráter funcionalista atribuído ao jogo abriu caminho às concepções desenvolvimentistas, que por meio do prazer gerado pelo jogo, puderam, com a direção do professor, desenvolver determinadas habilidades nos alunos, mas que acabaram descaracterizando o jogo. Neira (2008) reforça que a 39 apropriação do lúdico como instrumento de aprendizagem, no qual o jogo é projetado e construído em função de objetivos educacionais pré-definidos, faz com que o jogo deixe de ser jogo, tornando-se material pedagógico. O jogo, quando utilizado como ferramenta didático-pedagógica, acaba passando por um processo de descaracterização, pois assume funções que não lhes são próprias, como auxiliar no processo de alfabetização, de operações matemáticas ou ainda no desenvolvimento da lateralidade, como jogos nos quais os alunos só podem saltar, ora com o pé direito, ora com o pé esquerdo. Freire (2017) exemplifica a descaracterização do jogo, quando o mesmo assume um caráter utilitário e descontextualizado nas aulas de Educação Física: O professor traça no chão um desenho do jogo da amarelinha, com os quadrados numerados de 0 a 9. Ele fala para algum aluno um número, por exemplo, 12, e a criança tem que saltar nos quadrados de forma a totalizar 12. Acaba descaracterizando de tal maneira o jogo que o torna tão enfadonho quanto a maioria das atividades de sala de aula. Ou o caso do professor de educação física que, preocupado em desenvolver em seus alunos a noção de cooperação, propõe o jogo da queimada mas obriga os alunos a, antes de queimar o adversário, passar a bola para três ou quatro colegas de equipe. Com a ilusão de que, com isso, promove a cooperação, desrespeita a lógica do jogo e a inteligência dos alunos (Freire, 2017, p.107) Desta forma, o jogo por si só não carrega em si um poder que conduz o aluno à aprendizagem e a apropriação de conteúdos curriculares, principalmente porque muitos professores não o utilizam adequadamente, pois limitam um tempo e um espaço e restringem o jogo a aspectos superficiais (Santos, 2012). O surgimento do chamado Movimento Renovador, na década de 1980, trouxe à área uma visão mais humanista, propondo o estudo da Educação Física a partir de princípios filosóficos em torno do ser humano, sua identidade, valor, limites e interesses. Para Soares et al. (1992) esse movimento surgiu como crítica às correntes baseadas na psicologia comportamentalista, nas quais a aprendizagem está fundamentada no esquema estímulo-resposta. De acordo com Bracht (2010), esse movimento promoveu na Educação Física brasileira uma “desnaturalização” do seu objeto, no qual o corpo e suas práticas passaram a ser entendidos como construções culturais, expressando a sociedade na qual estão inseridos. Isso foi determinante para indicar o início de uma mudança de sentido e de função para sua presença na Escola. 40 Porém, apenas no ano de 1996 com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Brasileira – LDB (1996), a Educação Física perdeu seu caráter de atividade e assumiu o papel de Componente Curricular. O parágrafo 3º do artigo 26 da LDB nº 9394/1996 determina que: A educação física, integrada à proposta curricular pedagógica da escola, é componente curricular da Educação Básica, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar, sendo facultativa nos cursos noturnos (Brasil, 1996). Legalmente, ao tornar a Educação Física Componente Curricular, reconheceu- se que seu ensino tem objeto de estudo e conhecimento próprios presentes nos esportes, nas ginásticas, nas lutas, nas danças e nos jogos, constituindo a base que a mantém na Escola (Darido e Rangel, 2017). Devido a redação bastante genérica, em 2001 foi aprovada uma alteração na LDB (1996), que incluiu a expressão “obrigatório” após o termo “Componente Curricular”, na tentativa de garantir a presença da Educação Física em toda a Educação Básica, tornando assim a Educação Física Componente Curricular obrigatório. Ao passar de atividade para Componente Curricular obrigatório, atrelada às ideias propostas pelo Movimento Renovador e o avanço nos estudos e pesquisas acadêmicas, diversas transformações, ainda que lentamente, foram ocorrendo na área da Educação Física Escolar. Essas mudanças buscam aproximar o Componente Curricular com os propósitos da Escola, ou seja, encontrar elementos para construir uma prática pedagógica não mais reduzida ao caráter meramente recreativo ou esportivista, descompromissado e alienado, com ênfase no exercitar-se, mas na aquisição de novos conhecimentos relacionados às manifestações da Cultura Corporal de Movimento. Para Darido e Rangel (2017, p.28), podemos entender a Cultura Corporal de Movimento “como uma parte da Cultura humana, definindo e sendo definida pela Cultura geral em uma relação dialética, abarcando o domínio de valores e padrões de práticas corporais, sobretudo as institucionalizadas”. Assim, não só as regras, a técnica, a tática e o aprendizado desses conteúdos são o foco dos estudos, mas o contexto em que acontece sua prática. Na perspectiva da Cultura Corporal de Movimento as diversas práticas corporais construídas historicamente como os jogos, as brincadeiras, os esportes, as 41 ginásticas, as lutas e as danças, presentes nos diferentes contextos sociais, passam a compor os conteúdos da Educação Física Escolar, rompendo com a hegemonia esportivista da área e propondo a diversificação desses conteúdos. Para Darido e Rangel (2017), essa diversificação pode facilitar a adesão dos alunos e possibilitar a inclusão de todos nas aulas de Educação Física. Podemos considerar os conteúdos como sinônimos de saberes e de conhecimentos. Coll et al. (2000) definem conteúdo como uma seleção de formas ou saberes culturais, conceitos, explicações, raciocínios, habilidades, linguagens, valores, crenças, sentimentos, atitudes, interesses, modelos de conduta etc., cuja assimilação é considerada essencial para que se produza um desenvolvimento e uma socialização adequada ao estudante. Para Libâneo (1994), os conteúdos de ensino são o conjunto de conhecimentos, habilidades, hábitos, modos valorativos e atitudinais de atuação social, organizados pedagógica e didaticamente, tendo em vista a assimilação ativa e aplicação pelos alunos na sua prática de vida. [...] os conteúdos de ensino emergem de conteúdos culturais universais, constituindo-se em domínio de conhecimentos relativamente autônomos, incorporados pela humanidade e reavaliados, permanentemente, em face da realidade social (Libâneo, 1994, p.39). Segundo Zabala (1998), o conteúdo pode ser entendido como o quanto se tem que aprender determinados objetivos, que não abrangem apenas as capacidades cognitivas, como também contemplam as demais potencialidades humanas, portanto serão conteúdos de aprendizagem todos aqueles que possibilitem o desenvolvimento das capacidades motoras, afetivas, de relação interpessoal e de inserção social. Os conteúdos podem ser utilizados tanto para a emancipação quanto para o coerção social, pois estão envolvidos por ideologias, valores e interesses, não havendo neutralidade nos mesmos. “Quando um professor prepara a sua aula, ele deveria ter convicção sobre o valor que aquele conteúdo terá para a vida do aluno, como especialista da área da Educação, o professor projeta para o aluno aquilo que considera relevante para a sua Educação” (Velozo apud Santos, 2012, p.57). Porém, nem todos os saberes e formas culturais são suscetíveis de constarem como conteúdos curriculares, exigindo da Escola e do professor uma seleção rigorosa dos mesmos. 42 Neste sentido, Soares et. al (1992) nos trazem orientações e alguns princípios para selecionar os conteúdos e serem desenvolvidos nas aulas de Educação Física: a) Relevância social: o conteúdo precisa estar vinculado à realidade concreta dos estudantes, mobilizando a compreensão da realidade vivida, dos determinantes socioculturais e sua condição de classe social; b) Contemporaneidade do conteúdo: os alunos passam a ter acesso aos avanços da ciência e da modernidade, estreitando laços com os conteúdos clássicos, ou seja, aqueles que se firmaram como essencial, compreendendo o processo histórico e social a que pertencem; c) Adequação às possibilidades sóciocognoscitivas: é importante que o conteúdo esteja adequado às possibilidades sóciocognoscitivas dos estudantes, ou seja, torná-lo compreensível, considerando seu desenvolvimento cognitivo, suas práticas sociais e suas possibilidades de desenvolvimento enquanto sujeito histórico; d) Confronto e contraposição de saberes: trata-se de possibilitar que o estudante ultrapasse o senso comum e construa formas elaboradas de pensamento, entendendo a experiência imediata para o conhecimento sistematizado; e) Simultaneidade dos conteúdos enquanto dados da realidade: os conteúdos são desenvolvidos não mais de forma isolada, mas na sua totalidade, explicitando a relação que mantêm entre si para desenvolver a compreensão de que são dados da realidade que não podem ser pensados nem explicados isoladamente; f) Provisoriedade e historicidade do conhecimento: o conteúdo precisa ser apresentado e desenvolvido a partir da noção de historicidade, para que o estudante se perceba enquanto sujeito histórico, ou seja, é necessário explicar que a produção humana expressa um determinado estágio da humanidade. Pautada na Cultura Corporal de Movimento, a Educação Física Escolar passou a entender o jogo como conteúdo curricular, que para Santos (2012) deve ser compreendido como um elemento integrante da Cultura e como produtor dela, devendo estar presente nas organizações curriculares da área de Educação Física Escolar. Segundo Silva et al. (2012), ao assumirmos o jogo como conteúdo nas aulas de Educação Física precisamos considerá-lo como prática pedagógica que incita significados, superando o conteúdo como mero procedimento técnico, mas consolidando-o a partir de possibilidades educativas que vão de encontro aos desejos, anseios e perspectivas do aluno na sua formação. 43 Enquanto conteúdo curricular, o jogo para Santos (2009) não pode ser ensinado de forma acrítica, excludente e nem confundido com a prática esportiva, mas precisa ser estudado, vivenciado e compreendido como parte da História e da Cultura, devendo ser organizado e sistematizado, para que os estudantes possam se apropriar dos conhecimentos que se relacionam a este fenômeno. De acordo com Santos (2011), as aula de Educação Física devem possibilitar que os estudantes ampliem seus conhecimentos sobre determinado jogo, tanto para superar uma visão simplista e tradicional da área, de que ao aplicar determinado jogo na aula está se cumprindo uma tarefa de ensino, voltada para a formação de um cidadão crítico e autônomo, precisamos nos preocupar não apenas com qual jogo devo ensinar e se meus alunos conseguem jogá-lo, mas devemos centralizar nossos esforços em sobre: por que ensinar o jogo? Para que ensinar o jogo? O que ensinar sobre este jogo? Quando ensinar determinado jogo? Como ensinar determinado jogo? (Santos, 2011, p.5). Desta forma, o professor, ao pensar o jogo como conteúdo curricular, como um conhecimento a ser construído, precisar refletir e considerar que este precisa, de alguma forma contribuir na vida cotidiana do estudante. Na tentativa de superar a fragmentação das políticas educacionais, garantir o acesso e permanência na Escola e acima de tudo, assegurar os direitos de aprendizagem comuns a todos os estudantes ao longo de toda Educação Básica, em 2018, entrou em vigor em todo território brasileiro a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2018). No documento, a Educação Física, inserida na área de linguagens é entendida como “o componente curricular que tematiza as práticas corporais em suas diversas formas de codificação e significação social, entendidas como manifestações das possibilidades expressivas dos sujeitos, produzidas por diversos grupos sociais no decorrer da História” (Brasil, 2018), sendo as práticas corporais organizadas a partir de seis unidade temáticas abordadas ao longo do Ensino Fundamental, dentre elas as Brincadeiras e Jogos, ou seja, notamos um movimento de aparente valorização desses elementos da Cultura, se compararmos a documentos anteriores. Na unidade Brincadeiras e Jogos, a BNCC (2018) faz uma importante diferenciação entre jogo como conteúdo curricular e jogo como ferramenta auxiliar de ensino. 44 Não é raro que, no campo educacional, jogos e brincadeiras sejam inventados com o objetivo de provocar interações sociais específicas entre seus participantes ou para fixar determinados conhecimentos. O jogo, nesse sentido, é entendido como meio para se aprender outra coisa, como no jogo dos “10 passes” quando usado para ensinar retenção coletiva da posse de bola (Brasil, 2018). De acordo com o documento, é preciso superar o caráter utilitário dos jogos, pois “as brincadeiras e os jogos têm valor em si e precisam ser organizados para serem estudados” (Brasil, 2018). Assim, na unidade temática brincadeiras e jogos, essas práticas corporais devem ser tratadas como conteúdo curricular e não mais como ferramenta auxiliar de ensino. Embora diversos autores e documentos reconheçam a importância de que os jogos sejam abordados como conteúdo curricular nas aulas de Educação Física, Galhardo (2020) afirma que esse é um território ainda bastante inexplorado. De acordo com pesquisa realizada pela autora, um levantamento feito em três bases de dados mostrou um escasso número de publicações que abordam o jogo como conteúdo curricular da Educação Física, estando na maioria vezes, atrelado ao ensino do esporte, ou seja, assumindo um caráter utilitário, sendo essa também a realidade ainda em muitas Escolas. Decian, Aita e Marin (2017) acreditam também haver uma fragilidade na formação inicial dos professores de Educação Física. Segundo as autoras, de uma maneira geral, nos cursos de licenciatura em Educação Física, não há uma disciplina responsável por tratar o conteúdo jogo, estando ele contemplado como conteúdo de alguma unidade didática ou em aulas isoladas de uma determinada disciplina, evidenciando a necessidade de reflexões e avanços na área. É inegável a importância da presença dos jogos na Escola, seja como ferramenta pedagógica ou conteúdo curricular, porém, faz-se necessário que nas aulas de Educação Física os jogos sejam contextualizados, vivenciados, ressignificados, aprofundados e ampliados, possibilitando que os estudantes compreendam a existência de diferentes jogos e que estes constituem-se como Patrimônio Cultural, cumprindo a Escola seu importante papel da construção do conhecimento e da cidadania. 45 2.4 Brincadeiras e Jogos de outros países Da África do Sul à Finlândia, do Brasil às Filipinas, da Austrália ao Marrocos, de regiões frias e nevadas a outras quentes e úmidas, crianças, jovens e adultos estão ocupados brincando e jogando. O jogo é o espelho da sociedade em que é realizado, trazendo a imagem viva das mentalidades de um lugar, uma época e uma comunidade, carregados de riqueza cultural, sentidos e significados, sendo que para Parlebas (apud Marin e Ribas, 2013, p.15) “cada jogo foi preparado ao longo de uma História e é fruto de uma Cultura particular. Para Santos (2012), a primeira ideia que as pessoas têm sobre o termo Cultura refere-se a transmissão de conhecimentos e valores passados de uma geração para outra, porém, essa é uma ideia bastante reducionista de uma dimensão que carrega em si uma riqueza de diversidade. Segundo Geertz (1989) podemos pensar a Cultura como um amarrado de teias de significados, tecidas pelo próprio homem, cuja análise deve ser feita a partir de uma postura interpretativa desses significados e não por uma busca de leis e padronizações. Esse processo de construção de significados está presente no nosso cotidiano, principalmente a partir das interações que estabelecemos uns com os outros e embora todos as pessoas participem de alguma Cultura, essa não pode ser entendida como poder. Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis que podem ser chamados de símbolos, a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível, isto é, descritos com densidade (Geertz, 1989, p.24). A noção de Cultura se apresenta como um importante instrumento, a fim de acabarmos com explicações que naturalizam os comportamentos humanos, pois a natureza, no homem, pode ser inteiramente interpretada pela Cultura (Santos, 2012). Na Cultura existe uma natureza além das nossas vontades, que precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa, podendo este significado ser estabelecido a partir das estruturas e relações sociais, constituídas em determinada realidade, instituindo assim “uma dialética entre o artificial e o real, entre o que fazemos ao mundo e o mundo nos faz” (Eagleton, 2005, p.11). 46 Geertz (1989) acredita que a Cultura é a própria condição de vida de todos os seres humanos, sendo produto de suas ações, mas também um processo contínuo pelo qual as pessoas dão sentidos a elas. Todos os humanos produzem Cultura, por isso é um processo universal, mas é também local, pois a dinâmica específica de vida significa o que o ser humano faz, ocorrendo na mediação entre os indivíduos, manipulando padrões de significados que fazem sentido num contexto específico, sendo essa relação dinâmica, transformando-se conforme o tempo e espaço. Segundo Santos (2012) é o contexto cultural que dá sentido ao jogo, pois está imerso numa teia de significados que nos leva a interpretá-lo a partir das imagens que temos de nossas experiências e nossas relações com o mundo, ou seja, para considerarmos uma atividade como jogo é necessário que seja tomada e interpretada como tal pelos atores sociais em função da imagem que os mesmos tem dessa atividade. Ao falarmos dos jogos e brincadeiras de outros países, compreendemos, assim como Marin e Ribas (2013) que os mesmos, com seus sistemas de regras, são construídos pelos grupos sociais que o praticam em consonância com o contexto em que se desenvolvem, pois a geografia e os costumes influenciam na sua organização. Nesse sentido, podemos dizer que os jogos têm relação intrínseca com a identidade cultural dos grupos étnicos. É por isso que os jogos, a partir de tempos e espaços geográficos distintos, permitem visibilizar não só concepções de sujeitos, tradições e avanços tecnológicos, mas também fortes laços de interrelações culturais que criam, formam ou reformulam os significados que apresentam entre os diversos povos (Canon; Fraga, 2015). [...] o jogo assume a imagem, o sentido que cada sociedade lhe atribui. É este o aspecto que nos mostra por que, dependendo do lugar e da época, os jogos assumem significações distintas. Se o arco e a flecha hoje aparecem como brinquedos, em certas culturas indígenas representavam instrumentos para a arte da caça e da pesca (Kishimoto, 2017, p.19). Ao jogar, as pessoas se impregnam de símbolos, signos e códigos que se compõem em ações e traços culturais representativos da sociedade na qual vivem, sendo que as normas e os valores de uma Cultura marcam as condutas lúdicas dos praticantes, ou seja, “entrar num jogo é entrar na própria sociedade” (Lavega apud Marin e Ribas, 2013, p.287). 47 Nessa perspectiva, ao analisarmos as brincadeiras e jogos de outros países a partir de uma visão contextualizada, ou seja, como manifestações culturais que compõem a identidade sociocultural dos povos e estão intimamente ligadas com as condições materiais de existência, nos aproximamos dos jogos propostos por Romão e Brito (2019), sendo eles: jogos populares, jogos folclóricos, jogos autóctones e jogos tradicionais. Segundo Santos (2009), mesmo que estes termos tenham surgido em diferentes contextos históricos e representavam coisas distintas, atualmente não podemos distingui-los, já que todas essas expressões remetem à conservação das tradições pela coletividade, como uma Cultura de origem anônima e espontânea, embora possam apresentar diferenças tênues. Os jogos populares para Lavega (2000), caracterizam-se pela representatividade, estando enraizados em grande número de pessoas ou grupos, ou seja, são praticados pelas massas, podendo se perpetuar com o passar do tempo. Romão e Brito (2019), defendem a ideia de que os jogos populares são os que entram na moda, porém, podem não permanecer por muito tempo, por não possuírem uma boa carga de especificidade e representatividade cultural de seu ambiente. Já Marin e Stein (2015), tecem a ideia de que mais importante do que associar os jogos populares à representatividade, é necessário considerá-los a partir de uma perspectiva de classe, ou seja, jogos oriundos da classe popular, da classe trabalhadora, do proletariado. É de extrema importância a valorização dos jogos que nasceram nas camadas mais populares, principalmente como conteúdo escolar, porém, assim como Lavega (2000), acreditamos que os jogos que se manifestaram entre as camadas mais elitizadas também devem estar presentes na Escola, não de maneira hierarquizada, mas como objeto de estudo carregado da luta de classe existente nas diferentes sociedades. Cunha (2016), em seu livro Brincadeiras Africanas para a Educação Cultural, nos apresenta um jogo popular oriundo de Uganda, chamado Kakop, que significa “as pernas da galinha”. Nesse jogo, com exceção do líder, todos sentam-se em círculo com as pernas estendidas. Enquanto a música vai sendo entoada, vão-se fazendo movimentos da direita para esquerda e vice-versa com o corpo. Enquanto a música vai passando e os corpos vão sendo movimentados, o líder, que irá iniciar a 48 brincadeira, vai apontando para as pernas dos jogadores que estão na roda participando. Quando a música parar, o líder estará apontando para uma das pernas do participantes, este deve dobrar a perna indicada. A música volta a ser cantada e o líder segue o jogo. Quando o jogador que já está com uma perna dobrada tiver a sua outra perna indicada pelo líder, ele estará fora do jogo, vencendo o último que ficar com uma perna estendida. Fonte: Barbosa, 2019. Os jogos autóctones, segundo Marin e Stein apud Franchi (2017), podem ser entendidos como tendo sua origem no mesmo lugar em que se encontram, sendo elaborados por uma comunidade ou região específica, sendo que o termo “autóctone” faz referência às realidades culturais de um ambiente particular. Lavega (2000), acredita haver uma enorme dificuldade em estabelecer relações entre os termos jogo e autóctone devido à incerteza do lugar e da época em que foram originadas essas práticas, porém, podem ter sua origem em épocas ancestrais ou em países e regiões muito afastadas, como consequência das constantes interações culturais as quais foram submetidos aqueles povos ao longo da geografia mundial. Figura 1 - Ilustração de crianças brincando de Kakopi. 49 Há registros de diversos jogos autóctones, dentre eles o Tlachtli, um jogo criado no México a cerca de mais de três mil anos atrás pela civilização asteca e que ainda é jogado em diferentes regiões do México e até em outros países, no qual duas equipes de sete jogadores deveriam atingir um pequeno círculo de concreto afixado em duas extremidades do campo com uma pesada bola de borracha. Durante o jogo, os participantes não poderiam fazer uso dos pés, das mãos ou da cabeça, sendo que para conduzir a bola ao objetivo desejado, era permitido somente fazer uso dos joelhos, quadris e cotovelos. Possati (2019), explica que o jogo Tlachtli possuía um caráter sagrado, representando a atualização do combate cosmológico fundamental para a sobrevivência da humanidade. Sua prática representava a luta cotidiana entre forças contrárias, como a luz e a escuridão, dia e noite, seca e fertilidade. O campo simboliza o universo e os movimentos da bola representavam as trajetórias do Sol, da Lua e das estrelas. Fonte: Federación Mexicana de Juegos y Deportes Autóctonos y Tradicionales, 2005. Assim, carregados de significados simbólicos, os jogos autóctones para Canon e Fraga (2015), estão imersos em uma relação estrutural com o pensamento cosmológico, numa relação que envolve elementos de caráter mítico, ritualístico, de iniciação, de crença, de festas e que só pode ser entendida por quem partilha seus Figura 2- Tlachtli: jogo autóctone com origem no México. 50 significados, apresentando uma dimensão que vai muito além do ato de jogar e de seu sentido meramente lúdico. Segundo Romão e Brito (2019, p.65), o jogo folclórico se apresenta como “um qualificativo que se utiliza para o conjunto de manifestações típicas de uma comunidade, mesmo que não se utilize com frequência para denominar os jogos de uma Cultura”. Isso se deve ao fato de que, por muito tempo, principalmente no espaço escolar, a palavra folclore foi associada ao estudo dos costumes e valores considerados inferiores, atribuindo-lhe características de desigualdade e discriminação (Santos, 2012). O conceito de folclore para Barros e Franzi (2022), se relaciona com a tradicionalidade de um povo, sendo a tradição advinda da transmissão de costumes e práticas culturais, ou seja, é a transmissão de elementos orais que um determinado povo manifesta como forma artística e linguística de sua própria Cultura, defendidos e conservados pelos costumes. Esses conhecimentos, não se constituem como formas e conteúdos estáticos, “mas dependem e mantém padrões do entendimento e da ação, remodelando, refazendo e abandonando os motivos e finalidades indispensáveis para determinadas sequências, com a finalidade de nascer hábitos, costumes, gestos, superstições e alimentação de um determinado povo (Barros; Franzi, 2022, p.5) Para que um conhecimento possa ser considerado como folclórico, Rocha apud Santos (2012), traz alguns elementos que constituem suas características primordiais: se o fato é tradicional, funcional e de aceitação coletiva; o grupo social o recolhe e o vivencia; é atual na vida das pessoas; é articulado na Cultura da comunidade. De acordo com Santos (2012), às práticas culturais que associam a maneira de viver de um povo, seus hábitos, seus costumes, sua capacidade criativa e representam o individual e o coletivo, o anonimato e o popular, podem ser consideradas como tradicionais e apesar da tradição ser transmitida de geração para geração, poderá sofrer alterações, seja na forma ou no conteúdo, podendo apresentar funções e significados em determinada realidade social e, em outro lugar e contexto, constituir outros sentidos. Ainda segundo a autora, encontramos esse processo nos jogos, pois muitos deles fizeram parte do cotidiano infantil até os dias atuais, porém sofreram transformações no decorrer da História, a partir da função cultural que o jogo 51 apresenta em um contexto social específico. Esses jogos, com o passar do tempo, foram sendo ensinados e incorporados, até que se tornaram tradição, sendo denominados jogos tradicionais. Para Lavega (2000) os jogos tradicionais estão associados à temporalidade, ou seja, para ser considerado um jogo tradicional deve ser uma manifestação que tenha sido cultuada por gerações, mesmo que não presente atualmente, porém em alguma época histórica era uma manifestação pulsante. Os jogos tradicionais são atividades motoras de lazer e recreação que podem ter um caráter ritual. Eles fazem parte da diversidade do patrimônio universal. São praticados de forma individual ou coletiva, oriundos da identidade regional ou local; eles são baseados em regras aceitas pelo grupo que organiza atividades competitivas ou não competitivas. Os jogos tradicionais dispõem de um caráter popular em sua prática e em sua organização, mas se transformados em esporte tendem a ser uniformizados e institucionalizados. A prática de jogo tradicionais promove a saúde global (Unesco apud Zimmerman, 2021, p.61). Os jogos tradicionais fazem parte da Cultura e por isso trazem características da sociedade onde são produzidos, como o espaço e o tempo, a geografia e os costumes, em sua produção e reprodução (Marin e Stein apud Franchi, 2015), diferenciando-se dos esportes que se dão em escala continental ou mundial. De acordo com Kishimoto (1993) não se conhece a origem dos jogos tradicionais, porém, carregam consigo conhecimentos elaborados ao longo das gerações e, ao mesmo tempo, características das condições materiais do período histórico em que são desenvolvidos, não de forma cristalizada, pois estão sempre em transformação, incorporando criações anônimas das gerações que vão se sucedendo, assumindo características de anonimato, tradicionalidade, transmissão oral, conservação, mudança e universalidade. Para Parlebas (2001) os jogos tradicionais dispõe de algumas características fundamentais: a) estão ligados à tradição de uma Cultura, mas sempre relacionado ao tempo livre, religião, colheitas, estação do ano, espaços; b) são regidos de um corpo de regras flexíveis que admitem muitas variantes, em função dos interesses dos participantes; c) não dependem de instâncias oficiais, acontecendo a partir da organização de um grupo social; d) estão à margem dos processos socioeconômicos, diferente de outras práticas que estão r