UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS ESTEVES PEDRO DINA ANTÓNIO CAMACHO ACERCA DE UMA PROPOSTA DE REGULAMENTAÇÃO DO CRIME ORGANIZADO NA ORDEM JURÍDICA MOÇAMBICANA. FRANCA 2017 ESTEVES PEDRO DINA ANTÓNIO CAMACHO ACERCA DE UMA PROPOSTA DE REGULAMENTAÇÃO DO CRIME ORGANIZADO NA ORDEM JURÍDICA MOÇAMBICANA. Dissertação apresentada ao Progrma de Pós- graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista, como requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de concentração: Sistemas Normativos e Fundamento da Cidadania. Orientador: Prof. Dr. Fernando Andrade Fernandes FRANCA 2017 Camacho, Esteves Pedro Dina António. Acerca de uma proposta de regulamentação do crime organizado na ordem jurídica moçambicana/ Esteves Pedro Dina António Camacho. – Franca: [s.n.], 2017 Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Fernando Andrade Fernandes 1. Direito penal. 2, Dogmática penal. 3. Transação penal. I. Título. ACERCA DE UMA PROPOSTA DE REGULAMENTAÇÃO DO CRIME ORGANIZADO NA ORDEM JURÍDICA MOÇAMBICANA. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista, como requisito para obtenção do Título de Mestre. Área de concentração: sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania. BANCA EXAMINADORA Presidente:_____________________________________________________________ Prof. Dr. Fernando Andrade Fernandes 1º Examinador:_________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Cesar Corrêa Borges 2º Examinador:_________________________________________________________ Prof. Dr. Víctor Gabriel de Oliveira Rodríguez Franca,___de_______de 2017 AGRADECIMENTOS Aproveito desse espaço para endereçar agradecimentos a todas pessoas que, ao longo do meu Mestrado em Direito, me auxiliaram, direta ou indiretamente, a materializar os objetivos a qual me propus nessa etapa da minha formação acadêmica. Destas feita, endereço palavras de profundo agradecimento: A Deus, por me iluminar e me manter a salvo nessa caminhada que, em certos momentos, foi sinuosa. Ao Prof. Dr. Fernando Andrade Fernandes, pela exemplar orientação e apoio incondicional (em todos os domínios) que elevaram sobremaneira os meus conhecimentos científicos e, sem dúvida, muito avivaram o meu desejo de querer, sempre, saber mais. Igualmente agradeço a oportunidade que me deu de integrar o Dream Team e, reconheço, com imensa gratidão, não apenas a confiança depositada e o apoio pessoal, mas também o sentido de responsabilidade que sempre procurou incutir em todas fases do projeto. Ao Prof. Dr. Paulo Cesar Corrêa Borges (ex. Coordenador do Programa de mestrado em Direito), pela oportunidade e privilégio que tive em frequentar este Mestrado que contribuiu sobremaneira para o enriquecimento da minha formação acadêmica e por estar sempre presente como um verdadeiro “anjo da guarda”, não só nos assuntos relacionados com a academia mas também nos assuntos de cunho pessoal. À minha família, em especial aos Meus Pais (Pedro e Domingas), Meus irmãos (António, Hermínio, Pedro Luís, Octávio, Orlando e Nelson), ao meu Filho (Markizini), a minha companheira e camarada (Mariamo) e aos meus Tios (Esteves e Glória), um meu “muito obrigado” por acreditarem sempre em mim e naquilo que faço e por todos ensinamentos de vida e, desejo que, essa etapa ora finda, possa, em alguma medida, retribuir e compensar todo carinho, apoio e dedicação que, sistematicamente me ofereceram. A eles dedico este trabalho. Aos Professores Doutores: Rachael Elizabeth Thompson, Associada da Escola Doutoral Educação e Currículo da Universidade Pedagógica (Maputo); António Caetano Lourenço, Auxiliar do Pós-graduação da Academia de Ciências Policiais (Maputo); Eduardo Saad Diniz, Associado da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Aos meus amigos Leandro, Teuham, Zulaié, Ana Porto, Sabina, Taís, Januário, Maria Izabel, Edwirgens, Roberto, Christopher e Giovanni pela amabilidade e empatia demostrada nos momentos mais agitados. Aos funcionários da Unesp-Franca no geral e em especial a todos Professores, a equipe da Biblioteca, ao Florisvaldo e ao Crerivaldo, pelo carinho demostrado. À família Doin e agregado (Enid, Carolina, João, Pedro, Sônia, Higina, Bruno, Paula), pela forma como me acolheram e me integraram em Franca. Pela amizade, companhia e afeto, obrigado! Aos meus colegas de Casa (membros da entulho, Rodolfo, Pedro e Henrique), pela cordialidade demostrada. RESUMO Nas últimas décadas os avanços científicos, tecnológicos e a globalização, trouxeram consigo, tanto aspectos benéficos quanto prejudiciais que ensejaram a expansão rápida e fácil do crime organizado transnacional pelo globo e, sobretudo, pelos países em via de desenvolvimento. A transnacionalidade criminal organizada, na perspetiva atual, no caso de Moçambique, é nutrida principalmente por fatores de natureza econômico-social, portanto, advirta-se, trata-se de uma modalidade delitiva da elite próxima a “white collor crime” que oportuna impunidade haja vista o caráter seletivo do direito e do direito penal em particular caraterizado pelo enclausuramento aos fundamentos do direito penal clássico, subsidiário das “ideias filosóficas e do ethos político do humanismo racionalista, característico do quadro histórico de reação burguesa contra as conceções ainda remanescentes das sociedades feudais”. O objetivo central da pesquisa é análise da emergência do crime organizado transnacional em Moçambique. Para perscrutar o problema proposto, será necessário contextualizar o fenômeno da criminalidade organizada transnacional na conjuntura da sociedade contemporânea caracterizada e assinalada pelo risco e eficientismo, e apresentar uma proposta de regulamentação para essa modalidade delitiva. Tributa-se especial cuidado relativo ao garantismo no momento da propositura jurídico-normativa por forma à evitar custos inaceitáveis em nome do restabelecimento da ordem. A metodologia procedimental é a bibliográfica e o método de abordagem é hipotético-dedutivo. A hipótese avançada é a de que, com o surgimento da criminalidade organizada, teria sido estabelecido uma nova ordem jurídico-criminal, de caráter eminentemente econômica. Ao assumir que o fenômeno da criminalidade organizada transnacional se insere no contexto da sociedade moderna, conclui-se que o fator econômico determinará o novo rumo do direito penal por forma a gerir convenientemente os riscos nos subsistemas socias. Palavras-Chaves: Crime Organizado. Risco. Moçambique. Direito penal ABSTRACT In the last few decades, scientific and technological advances and globalization have brought with them beneficial aspects, on the other, detrimental aspects that have led to the rapid and easy expansion of transnational organized crime across the globe and, above all, developing countries. The transnational criminal organized, in the current perspective, in the case of Mozambique, is nourished, mainly, by factors of an economic-social nature, so, it should be noted, this is a delinquency modality of the elite next to "white collor crime" timely impunity, given the selective character of the law and criminal law in particular characterized by the enclausement to the foundations of classic criminal law, a subsidiary of "philosophical ideas and the political ethos of rationalist humanism, characteristic of the historical framework of bourgeois reaction against the still remaining conceptions of feudal societies. " The central objective of the research is to analyze the emergence of transnational organized crime in Mozambique. In order to examine the problem proposed, it will be necessary to contextualize the phenomenon of transnational organized crime in the conjuncture of contemporary society characterized by risk and efficiency, and present a proposal for regulation for this type of delinquency. Particular care is taken in relation to the guaranty at the time of the legal and normative proposition in order to avoid unacceptable costs in the name of the restoration of order. The procedural methodology is the bibliographical and the approach method is hypothetico-deductive. The advanced hypothesis is that, with the emergence of organized crime, a new legal-criminal order, of an eminently economic nature, would have been established. By assuming that the phenomenon of transnational organized crime is embedded in the context of modern society, one concludes that the economic factor will determine the new direction of criminal law in order to properly manage the risks in the social subsystems. Keywords: Organized Crime. Risk. Mozambique. Criminal law. SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................. 8 CAPITULO 1 - ABORDAGEM CRIMINOLÓGICA DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA............................................................................................................. 36 1.1. Contexto moçambicano..................................................................................... 36 1.2. Corrupção.......................................................................................................... 40 1.3. Branqueamento de capitais/lavagem de dinheiro........................................... 41 1.4. Grupo de extermínio.............................................................................................. 42 1.5. Tráfico de órgãos humanos.................................................................................... 43 1.6. Contrabando........................................................................................................... 43 1.7. Abordagens da criminalidade organizada projetada na realidade moçambicana........................................................................................................... 44 1.7.1. Abordagem psicológica......................................................................................... 44 1.7.2. Abordagem sociológica......................................................................................... 52 1.7.3. Análise econômica do crime organizado.............................................................. 61 1.8. O Conceito.............................................................................................................. 63 1.9. A Era de Incertezas................................................................................................ 66 1.9.1. A globalização....................................................................................................... 67 1.9.2. Configuração de risco, liquidez e medo............................................................... 71 1.10. Legitimação do Direito Penal na seara da criminalidade organizada............ 76 1.10.1. Regular no “Direito de penal” ?........................................................................ 79 1.10.2. As garantias no moderno processo penal........................................................... 87 CAPÍTULO 2 – A CONVENÇÃO DE PALERMO CONTRA A MACRO- CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSFRONTEIRIÇA E O SEU REFLEXO NO ORDEMENTO JURIDICO MOÇAMBICANO............................ 92 2.1. Palavras iniciais...................................................................................................... 92 2.2. O direito penal global in progress: o marco da Convenção e seus tratados. 96 2.3. Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e seu reflexo na legislação moçambicana............................................................... 98 2.3.1. A Cooperação Internacional............................................................................... 98 2.3.2. Tráfico de Pessoas - protocolo para prevenir e punir o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e criança.................................................................. 104 2.3.3. Tráfico de migrantes – protocolo contra o contrabando de pessoas por terra, mar e ar........................................................................................................................... 108 2.3.4 Tráfico de Armas – Protocolo contra a Produção Ilícita e o Tráfico de Armas de Fogo, suas Partes, Componentes e Munições............................................................ 110 2.3.5. Convenção de Mérida........................................................................................... 112 2.3.5.1. Variáveis das relações corruptas (exemplo moçambicano)................................ 116 2.3.5.2. Casos “EMATUM e Embraer”........................................................................... 119 2.3.6. Crime grave........................................................................................................... 120 2.3.7. Lavagem de Dinheiro............................................................................................ 121 2.3.8. Obstrução de Justiça............................................................................................. 126 2.3.9. Responsabilidade da pessoa jurídica.................................................................... 127 CAPÍTULO 3 ACERCA DE UMA PROPOSTA DE REGULAMENTAÇÃO DO CRIME ORGANIZADO NA ORDEM JURÍDICA MOÇAMBICANA............... 131 3.1. Palavras iniciais...................................................................................................... 131 3.2. Autoria em concurso de pessoas............................................................................ 132 3.3. Autoria mediata no bojo do domínio da organização......................................... 135 3.4. Pode-se fazer uma interpretação extensiva da teoria de domínio da organização?.................................................................................................................. 140 3.5. Confisco alargado como mecanismos de refreamento do avanço das organizações criminosas – uma possibilidade de lege ferenda................................... 146 3.5.1. Confisco Alargado................................................................................................. 149 CONCLUSÃO................................................................................................................ 154 REFERÊNCIAS............................................................................................................ 156 8 INTRODUÇÃO A presente pesquisa surgiu da urgente necessidade de se obter um conhecimento mais aprofundado – bem como sua compreensão mais ampla – acerca do fenômeno novo (possivelmente não tão novo como talvez se possa pensar) das organizações criminosas e do crime organizado em Moçambique, que tem criado fissuras significativas nos alicerces da sociedade moçambicana, trazendo graves riscos a uma convivência social harmônica e pacífica. Também se coloca como escopo deste trabalho fazer uma apreciação da dogmática jurídico-penal da questão em escrutínio, a fim de, na medida do possível, promover um exercício de conscientização sobre seus riscos bem como dos eventuais modos de prevenção e combate a esta modalidade delitiva (enquanto delito). O processo de pós-modernização típico do século XXI trouxe consigo diversas mudanças nas relações sociais, fazendo vigorar a ideia de uma sociedade configurada no paradigma da liquidez, do risco, da insegurança, da incerteza, da velocidade de informação e, supostamente, da ausência de fronteiras físicas1. Nesse sentido, não haveria terras nem povos fora do alcance das redes virtuais de informações – muito menos povos de cultura e costumes incognoscíveis, isto é, impermeáveis às ações do aparato tecnológico da modernidade, não subordinados, enfim (de forma plena ou residualmente) ao meio técnico-científico- informacional2, símbolo da presente era. De modo que eventos de lugares longínquos são apresentados por meio de eletrônicos de forma tão nítida e precisa que se tem a impressão de que estão a ocorrer na própria vizinhança. Assim, no contexto atual, aberto à livre circulação de capital e mercadorias, os fatos que ocorrem em determinado lugar têm um peso muito grande sobre a forma como as pessoas de todos os outros lugares vivem ou supõem viver, nisso inclusas as ações do crime organizado, de base transnacional ou nacional, cujo estudo, convém destacar, coloca-se como objeto do presente trabalho de pesquisa. Pode-se dividir o crime organizado em duas modalidades: aquela que atenta à dignidade humana (eg. tráfico de pessoas, crimes de guerra, etc.) e a que atenta diretamente contra a ordem econômica (abstraindo, neste caso, os crimes de cunho terroristas), tanto um 1BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução Carlos Alberto Medeiros, ZAHAR Editor, Rio de Janeiro, 2007. p. 11-12. 2SANTOS, Milton. Espaço e método. São Paulo: Nobel, 1997. p. 27. 9 como o outro possuem (em alguns casos) um viés economicista muito forte3 o que nos remete para a análise a partir do direito penal enquanto conjunto de normas jurídico-penais que protegem a ordem vigente. Em virtude do desenvolvimento de sociedades cada vez mais complexas, a que se vincula o fenômeno da elevação da concentração de pessoas em um mesmo espaço demográfico, o direito impõe-se inevitavelmente como um instrumento de regulação social decisivo e, de outra parte, e ainda sob essa ótica, o direito penal tem-se afirmado como o uso da força institucionalizada. Hodiernamente o direito penal (também chamado por alguns autores como direito penal pós-moderno) vive um paradoxo, dada a dificuldade de se alcançar uma conciliação eficiente entre segurança e liberdade, isto é, no sentido interpretativo de que o ganho para a segurança significa ocasional ou mesmo necessariamente uma perda para a liberdade individual, causando um certo frenesi no imaginário penalista, ameaçado, neste caso, pela reposição da tradição de cunho punitivo – secularmente posta em desuso pelo discurso jurídico-penal.4 Esse paradoxo foi costurado a partir do período pós-revolução francesa e declaração de independência norte-americana, no momento em que o direito penal ganhou contornos de legalidade estrita e acoplou-se em garantias individuais face a força institucionalizada do Estado. A legalidade, ainda que atue como ente limitador do poder punitivo do Estado, serve, de forma iniludível, para legitimar o uso da força pelos poderes públicos. Porém as garantias individuais representam a sombra protetora em favor da sociedade em prejuízo do poder ilimitado do Estado. Por outro lado, na assertiva de Fernandes, transcrita abaixo, é possível a identificação das linhas em que a questão penal se encontra, de tal forma que se verifica uma grande tensão entre os modelos garantista e o eficientismo penal, associados ao recrudescimento da criminalidade violenta e, sobretudo, à criminalidade organizada de cunho terrorista.5 Expressão dessa busca de uma maior funcionalidade, e não de um mero eficientismo, é a proposta de uma conformação do processo penal como instrumento de política criminal, intentando-se que, partindo da ideia de sistematização anteriormente proclamada, também ele possa contribuir para obtenção as finalidades ligadas à questão penal como um todo. Uma concretização dessa proposta é a tentativa de introdução de diversificações no processo penal, fundadas num consenso entre as partes ou numa 3 Vale lembrar, que a caraterística predominante da criminalidade organizada em Moçambique é fundamentalmente econômico-financeira. 4 DINIS, Eduardo Saad. Inimigo e pessoa no direito penal. LibertsArs, São Paulo, 2012, p. 25. 5 FERNANDES, Fernando. Processo penal como instrumento de política criminal. Livraria Almedina, Coimbra, 2001, p. 10. 10 exclusão/atenuação do dogma da legalidade processual, sendo esse, por conseguinte, um termômetro adequado para medir o acerto da ideia.6 Destarte, pode-se afirmar que nos dias atuais verificam-se momentos singulares e positivos, mas também de constrições, uma vez que, por um lado, o respeito às garantias, positivado na legislação e formalizado na Constituição, reafirma a condição do viver; e, por outro, as crises sociais, econômicas, culturais e valorativas da sociedade concorrencial geram crises de segurança, fomentada pela incapacidade do Estado de conciliar garantias gerais com intervenção de segurança pública. Nisto, nas palavras de Coelho7, questões como maioridade penal, medidas de segurança, embate entre punitivismo e minimalismo não devem ser tratados como itens estanques do problema criminal, mas sim como parte de um sistema penal complexo, de viés intercomunicativo e inserido numa realidade social contraditória, tanto ideológica como culturalmente. De entre as diversas tendências metodológicas de realização do direito moderno, destacam-se, por um lado, as que se inserem dentro de um pensamento sistemático – associado à hermenêutica; e por outro, aquelas que se encaixam dentro de um pensamento problemático – associado, neste caso, ao tópico-retórico. Para Fernandes8, essas opções metodológicas, que parecem inconciliáveis, não são de todo exclusivistas, podendo ser, inclusive, complementares, o que ocorreria a partir de uma integração dialética dos dois vetores latentes, a saber: o sistema e o problema. A noção do pensamento problemático, no contexto de metodologia jurídica, se embasa na ideia de que o direito é um mecanismo de resolução dos problemas, sendo a ciência do direito um processo especial de debate de problemas, tornando-se claro e seguro, dependente do desenvolvimento de uma teoria de praxe.9 Theodor Wiehweg arremata o que vem a ser essa opção metodológica ao sustentar que “qualquer disciplina especializada constitui-se através do aparecimento de um problema qualquer”. Nisto, em Viehweg, os pontos metodológicos resumem-se nos seguintes termos: a estrutura total da jurisprudência somente pode ser determinada a partir do problema; as partes integrantes da jurisprudência, os seus conceitos e proposições devem estar ligadas de um modo específico ao problema e por 6 FERNANDES, Fernando. Processo penal como instrumento de política criminal. Livraria Almedina, Coimbra, 2001, p. 12. 7 COELHO, Ediherme Marques. Direito penal: parte geral. Del Rey, Belo Horizonte, 2015, p. 2. 8 FERNANDES, Fernando. Processo penal como instrumento de política criminal. Livraria Almedina, Coimbra, 2001, p.17. 9 ibid. 11 meio dele podem ser compreendidas; os conceitos e preposições da jurisprudência somente podem ser utilizados numa implicação que converse a sua vinculação com o problema.10 Esse paradigma constitui uma nova forma de pensar o direito, tendo como foco principal os problemas concretos, para a pesquisa em alusão. Na contraposição do padrão logico-sistemático e a tópica, apresentam-se novos mecanismos de controle de racionalidade sobre o discurso jurídico e parâmetros seguros para a fundamentação das decisões. Na verdade a tópica estabelece uma verdadeira ruptura com o já conhecido método sistemático – dedutivo, em que a lógica formal interpreta o direito como um sistema fechado que de per si detém respostas perante todas as situações da vida. Assim, afastado do método logico-dedutivo, o direito é interpretado a partir da tópica como um sistema aberto de regras e princípios, no qual não há certezas absolutas e que tudo, enfim, é construído, e forjado, a partir das discussões. Em termos práticos: perante um determinado problema, como sucede frequentemente no diálogo científico e na discussão das deliberações judiciais, primeiro colocar-se-iam sobre a mesa todas as soluções e argumentos imagináveis e, após uma análise acerca dos prós e contras, seria tomada uma decisão passível de consenso.11 Os limites da possibilidade de identificação entre o pensamento jurídico e a tópico- retórica são apresentados por Castanheira Neves12, no sentido de que os tópico-retóricos buscam fundamentos num “a posteriori consensus”, e o jurídico, por sua vez, sustenta o fundamento numa “a priori validade normativa vinculante”. Ou dito de forma mais clara: o consensus é resultado contingente numa participação situacional, a validade é pressuposição universal (transindividual) que dá sentido e critério à própria comunicação participativa (…). Depois, na tópica-retórica os topoi, enquanto tais, são entre si equivalentes, a sua diferença de força persuasiva é função apenas da concludência concreta da argumentação, e no jurídico as objetivações da sua normatividade (nos valores, princípios, normas, etc.) têm índole dogmaticamente vinculante e preferem por isso a quaisquer outros topoi invocáveis.13 10 Castanheira Neves apud FERNANDES, Fernando. Processo penal como instrumento de política criminal. Livraria Almedina, Coimbra, 2001, p. 17. 11 ibid., p. 19. 12 ibid. 13 ibid. 12 A essência do pensamento na abordagem tópico-retórica é orientada para o problema, do qual emergem os topoi e é justamente a partir destes que se desencadeia o raciocínio tópico, formador da coerência e da integridade do ordenamento jurídico. A tópica, sob esse aspecto, é uma forma de raciocínio que lida pragmaticamente com uma problemática, no sentido de que a sua validade não está necessariamente acoplada à lógica-dedutiva, mas à situação base da qual o discurso é proveniente. O pensamento tópico está, finalmente, habilitado a quebrar o rigor dedutivo dos sistemas formais, talhados, como se sabe, pelas abordagens positivistas. Sendo a ciência do direito uma matéria multidisciplinar e inserida em dimensões sociológicas, políticas, econômicas, históricas e éticas, bem como outras afins, restringi-lo exclusivamente à norma equivale a não permitir a adequada interpretação do fenômeno jurídico; a visão sistemática, por sua vez, visa traduzir e desenvolver a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica.14 tendo em vista a natureza praxístico-decisória e não simplesmente significativo-cognitiva do pensamento jurídico, a sua intenção e as suas exigências regulativas não se cumprem a partir de um correto compreender mas sim a partir de um justo decidir; os valores a serem potenciados nesse pensamento não são a correção cognitiva ou a verdade mas sim a justeza decisória ou a justiça; a compreensão dos fundamentos ou dos critérios previamente dados não basta para a decisão, pois entre esses fundamentos ou critério de decisão concreta intervém a mediação judicativa, com a sua específica dimensão problemática e com uma particular autonomia constitutiva; ainda quanto a oposição entre o carácter simplesmente especificante da concretização hermenêutica e a intencionalidade normativa da decisão justificativa, é de salientar que não se trata apenas de conhecer o sentido de uma significação cultural numa concreta situação de compreensão e em referência a esta, mas de ajuizar decisoriamente do mérito normativo de um problema prático concreto na perspetiva de uma fundamentante validade – não se trata só de pragmática significante, mas de justiça (justeza) decisória. 15 Nisto, pode-se afirmar que enquanto o positivismo jurídico primava pela dimensão sistêmica e fechada do direito, deixando de lado as particularidades do caso concreto, dando enfoque à tese normativa previamente estabelecida, advinda das considerações sobre o comportamento humano, a tópica, axioma de pensamento orientado por problemas concretos, questiona (questionava) a regularidade desse comportamento, depositando nova confiança no poder discricionário do julgador, em sua capacidade de decidir de forma justa ou com justeza. 14 FERNANDES, Fernando. Processo penal como instrumento de política criminal. Livraria Almedina, Coimbra, 2001, p.20. 15 ibid., p. 20-21. 13 Como se viu, a ideia de sistema é irrenunciável numa ordem jurídica e a dogmática jurídica orientada funcionalmente imprescinde de uma compreensão específica de normas e de especial interpretação dos vínculos de alterabilidade de acordo com as condições em vigor. Para tanto, a sociedade atual possui mecanismos de adequação que a capacita a propor conceitos jurídicos adequados. Isso só pode ocorrer (ocorre) se houver uma verdadeira abertura para o sistema social, de tal forma que a interação com a sua complexidade se imponha como uma realidade fatual a fim de, neste caso específico, a “alcançar a sua função”. Visão sistêmica na ciência do Direito Penal As discussões levantadas acerca do sistema jurídico são válidas no contexto do sistema jurídico-penal, sempre tendo em mente a oposição entre o método sistemático e o problemático, no que diz respeito à abordagem penal, como bem afirma Fernandes “a expressão de garantia e segurança jurídica, o método sistemático em Direito Penal não diverge da sua feição elaborada em relação à Ordem Jurídica como um todo”, porém o que se faz aqui é reafirmar o princípio matricial do direito penal, a saber: nullum crimen sine lege, ensejando a uma dogmática jurídico-penal, caracterizada por elementos e princípios previamente definidos, o que, de forma geral “ assegura e informa o sistema penal”. 16 O direito em sentido amplo e o direito penal, stricto sensu, radicam sobre uma realidade social complexa, e um sistema jurídico-penal fechado do ponto de vista dogmático pode levar (ou leva) à “abstração desmedida das categorias penais”, menosprezando os aspetos peculiares do caso concreto. Nesta perspectiva, parece bastante pertinente a angústia indagativa de Fernandes, apresentada nos seguintes termos: “o modelo assim erigido, ainda que formalmente correto, não poderá conduzir a resultados materialmente injustos?”17. No entendimento de Jorge Figueiredo Dias, o trabalho com casos jurídicos penais sem uma visão sistêmica seria irrealizável não só por motivos de (in)segurança jurídica na aplicação do direito, mas também pela própria teleologia de intervenção penal e também porque fora do sistema “ou independentemente dele não haveria nunca garantia de ser encontrada a solução justa e adequada para o caso jurídico-penal”18, ou seja, é por essa razão que o pensamento do problema tem que necessariamente coexistir com o pensamento do 16FERNANDES, Fernando. Processo penal como instrumento de política criminal. Livraria Almedina, Coimbra, 2001, p. 21. 17 ibid. 18 DIAS, Jorge Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisadas. São Paulo: editora revista dos tribunais, 1999, p. 37. 14 sistema. É com base nesse prisma que se busca uma (re)construção do Sistema Jurídico Penal e uma composição entre o pensamento sistemático, a dogmática jurídica, e o pensamento problemático, a política criminal.19 Geralmente, a Criminologia é definida como sendo o estudo do crime e do criminoso, isto é, da criminalidade20. Esta definição, a priori, nos remete a tautologia do conceito, sem, contudo, nos encaminhar ao destino desejado. Alargando a base conceitual, pode-se assumir como uma ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, do criminoso, da vítima e em última instância do controle social do comportamento delitivo, e que trata também de subministrar uma informação válida, contrastada sobre a gênese, dinâmica e variáveis principais do crime, olhando para este comportamento como problema individual e como problema social, assim como sobre os programas de prevenção eficaz do crime e a técnica de intervenção positiva no homem delinquente e nos diversos modelos de resposta ao delito21. Trata-se de uma ciência pré-jurídica (a criminologia), a sua matéria de estudo é o homem, seu viver social, suas ações, toda sua evolução como espécie e como indivíduo. Ela pretende ser uma ciência de informação, manifestando-se sobre as causas (conhecidas ou a pesquisar) e os efeitos (próximos ou remotos) das ações antissociais, pretende chegar lá através das ciências do homem, da Antropologia lato sensu, em sua maior amplitude, que se dilatará com o próprio desenvolvimento dos acervos científicos acumulados.22 Embora a cientificidade da Criminologia não seja consensual na doutrina, como mostra a assertórica shecairana23, a maior parte dos autores defende a criminologia como sendo uma ciência. De fato, não há como negar que, de forma geral, ela utiliza um método próprio bem como detém uma função e um objeto definidos, o que de certa forma delimita claramente seu universo de investigação e atuação (ainda que tal premissa não seja absoluta na doutrina). Do que decorre que é bastante difícil rejeitar seu estatuto de ciência, na medida em que reúne uma informação válida, confiável e contrastada sobre o problema criminal, e que é obtida graças a um método (empírico) que se baseia em análises e observação da realidade. Não se trata, pois, de uma “arte” ou de uma “práxis”, senão de uma genuína “Ciência”, haja visto que dispõe de um objeto de conhecimento próprio, de um método ou 19 FERNANDES, Fernando. Processo penal como instrumento de política criminal. Livraria Almedina, Coimbra, 2001, p. 27. 20 CARVALHO, Hilário Viegas de. Compêndio de criminologia (1973). São Paulo, p.11. 21 PABLOS DE MOLINA, G.; GOMES, L. F. Criminologia. São Paulo, 2012, p. 30. 22 CARVALHO, Hilário Viegas de. Compêndio de criminologia. São Paulo, 1973, p. 12. 23 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p. 36. 15 métodos e de um sólido corpo doutrinário sobre o fenômeno delitivo, confirmado, por certo, por mais de um século de investigações24. Mas isso também não significa que a informação subministrada pela Criminologia deva ser reputada exata, concludente ou definitiva, pois a Criminologia é uma Ciência empírica, uma ciência do “ser”, não uma ciência “exata”. Pode-se inclusive afirmar que o próprio modelo ou paradigma de ciência hoje dominante dista muito do causal-explicativo acolhido pelo positivismo naturalístico, com base em pretensões de segurança e certeza25. Com efeito, a criminologia se detém no estudo do delito, do delinquente, da vítima e do conjunto social do delito e, para tanto, lança mão de um objeto empírico e interdisciplinar, diferentemente do Direito Penal, seu objetivo é conhecer a realidade e explicá-la26, enquanto este último valora, ordena e orienta a realidade, com apoio de uma série de critérios axiológicos. Outrossim, a criminologia se aproxima do fenômeno delitivo sem prejuízo, sem mediações, procurando obter uma informação direta destes fenômenos. Já o direito limita interessadamente a realidade criminal, mediante recurso ao princípio de fragmentariedade e seletividade, observando a realidade sempre sob o prisma do modelo típico. Dessa forma, o Direito Penal e a Criminologia aparecem como duas disciplinas que têm o mesmo objetivo, mas com meios diversos e não necessariamente afins: a Criminologia voltando sua atenção para o conhecimento da realidade, e o Direito Penal atuando através de uma valoração interessada dessa mesma realidade.27 Superada a ideia matricial do sistema penal como uma categoria de sistema fechado sobre seus critérios exclusivamente logico-categoriais, atualmente vigora a ideia de um sistema aberto “dotado de mobilidade e historicidade, consequência mesmo da mediação efetuada pelo pensamento problemático”.28Sendo mérito de Franz Von Liszt, segundo Jorge Figueiredo Dias, a criação, entre vários pensamentos do crime, de uma relação, modelo tripartido da ciência conjunta do direito penal, tal como segue descrito abaixo: 24 PABLOS DE MOLINA, G.; GOMES, L. F. Criminologia. São Paulo, 2012, p.31. 25 ibid. 26 Entende-se, na visão foucaultiana, que a criminologia é um dispositivo de saber/poder que nasce com surgimento das prisões (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Pondé Vassallo. Petrópolis, vozes. 1985.), portanto, a relação de saber e de controle do sistema punitivo constitui a microfísica do poder, a estratégia das classes dominantes para produzir alma como prisão do corpo do condenado, a forma acabada de ideologia de submissão de todos os administrados, corrigidos e utilizados na produção material das sociedades moderna (ANTOS, Juarez Cirino dos. 30 anos de Vigiar e Punir (Michel Foucault). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, n. 58, p. 289-298., jan./fev. 2006. Portanto, ensejando o surgimento da máxima “poder produz saber que legitima e reproduz poder”. 27 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004. p.38-39. 28 ibid., p. 28. 16 uma ciência conjunta, esta que compreenderia como ciência autônoma: a ciência estrita do direito penal, ou dogmática jurídico-penal, concebida ao sabor do tempo, como conjunto de princípios que subjazem ao ordenamento jurídico-penal e devem ser explicitados dogmática e sistematicamente; a criminologia, como ciência da causa do crime e da criminalidade; e a política criminal, como conjunto sistemático dos princípios fundados na investigação científica das causas do crime e dos efeitos da pena, segundo os quais o estado deve levar a cabo a luta contra o crime por meio por meio da pena e das instituições com esta relacionadas.29 Mesmo reconhecendo que a dogmática jurídico-penal por si só não resolveria a problemática do crime, socorrendo-se do modelo de Ciência global do direito no sentido de que “o direito penal, a criminologia, e a política criminal são três pilares de sustentação do sistema integrado das chamadas ciências criminais”30, a assertiva de V. Liszt de que a dogmática jurídico penal constitui a barreira intransponível da política criminal, associando a dogmática jurídico penal à doutrina geral do crime e a política criminal à doutrina das consequências jurídicas do crime, traduz a ideia de que no contexto de aplicação ou de materialização do direito penal, a doutrina das consequências jurídicas desempenha um papel secundário numa comparação à doutrina geral do crime. Nessa perspectiva, perante o papel guia da dogmática, o relevo jurídico-científico da doutrina geral do crime sobrepujaria o da doutrina das consequências jurídicas.31 Ora, no entender de Jorge Figueiredo Dias32, a perspectiva supra não é de se absorver. Na visão hodierna, a política criminal não é uma mera auxiliadora de segunda categoria da dogmática, existindo entre elas uma relação de autêntica unidade funcional, que se distancia da relação de simples subserviência. As valorações político-criminais penetraram (e penetram) em toda dogmática jurídico-penal, dando o lustro de justeza e adequação das soluções dos concretos problemas jurídicos penais. Muitas das questões da doutrina geral do crime só encontram respostas determinantes a partir da consequência jurídica. Nisto, entende Fernandes33 que, para Roxin, o caminho a ser seguido é deixar penetrar as decisões valorativas político-criminais no sistema do direito penal, de tal forma que a sua fundamentação legal, clareza e legitimação, sua harmonização e efeitos não estejam 29 DIAS, Jorge Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisadas. São Paulo: editora revista dos tribunais, 1999, p. 24. 30 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p. 42. 31 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito penal português: as consequências jurídicas do crime. Coimbra: Editora notícias editorial, 1993, p. 39-40. 32 ibid. 33FERNANDES, Fernando. Processo penal como instrumento de política criminal. Livraria Almedina, Coimbra, 2001, p. 31. 17 inexoravelmente subjugadas às vinculações do sistema positivista formal proveniente de Liszt, pois a vinculação ao direito e a utilidade político criminal não podem contradizer- se, mas devem sim compaginar-se numa síntese, do mesmo modo que o Estado de direito e o estado social não formam, na verdade, contrastes irreconciliáveis, mas sim uma unidade dialética34 Por outro lado, não se deve cair no erro de se pensar que a solução dos problemas levantados na doutrina das consequências jurídicas do crime estaria (ou está), apenas, ou grandemente, à mercê da capacidade subjetiva do juiz de captar as valorações políticas criminais, ocorrendo desta forma, o manteria a margem do domínio da dogmática jurídico- penal. Do exposto deve-se concluir que a problemática das consequências jurídicas do crime possui a mesma hierarquia jurídico-cientifica que a doutrina do crime, podendo-se afirmar apenas, em conformidade com a posição de Jorge Figueiredo Dias, que a importância prática da primeira é superior à da segunda, na medida em que “quer para o delinquente que sofre as consequências jurídicas, quer para a sociedade em nome da qual é aplicada, quer ainda para a vítima do crime, o sistema das reações criminais e os processos da sua determinação e aplicação surgem como os pontos decidido relevo”.35 Pode-se afirmar ainda que a determinação das consequências jurídicas do crime materializa a valoração política criminal no caso concreto e que o cumprimento das finalidades político-criminais no sistema depende da irrepressível aplicação da consequência jurídica do crime. Não subsistem dúvidas de que tal posicionamento supera parcialmente a visão Finalista, que tem em Hans Welzel um dos seus precursores mais conhecidos, na medida em que, mesmo assumindo uma visão sistêmica, ela esbarrava no obstáculo que impedia uma maior simbiose entre as ciências, impedindo por conseguinte uma comunicação mais efetiva entre elas. No finalismo, o pilar de sustentação da teoria do crime se encontra nas estruturas 34 FERNANDES, Fernando. Processo penal como instrumento de política criminal. Livraria Almedina, Coimbra, 2001, p. 31. 35 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito penal português: as consequências jurídicas do crime. Coimbra: Editora noticias editorial, 1993, p. 41. 18 lógico-objetivas, decorrente do método ontológico, que leva em consideração os fatos advindos do mundo do ser, do real. Sendo as estruturas lógico-objetivas do finalismo caracterizadas pelo conceito ontológico da ação humana final e pela culpabilidade, a ação é voltada a um fim, configurando-se desta forma num elemento incontornável para a caracterização do crime, uma vez que o que não configura uma ação humana dirigida finalisticamente não deve ser objeto de discussão na seara penal; ou dito de outra forma, na criação dos tipos penais, o legislador, deve ter em conta a estrutura lógico-concreta advinda do mundo fenomênico e que serve como limite estrito à atuação legislativa. A culpabilidade desempenha a função de reprovabilidade, correspondendo a um conceito valorativo graduável, que reprova o autor, dado que podia ter atuado conforme as normas mas, ao invés disso, teve uma conduta contrária ao direito. Tal concepção lustrou o caráter puramente normativo da culpabilidade, tendo em vista que as assunções anteriores se assentavam na teoria psicológica da culpabilidade (Casualismo) e na teoria psicológica-normativa da culpabilidade (Neokantismo), em que a culpabilidade estava adstrita ao elemento psicológico. Pode-se afirmar então que o finalismo ocasionou a culpabilidade, configuração puramente normativa dentro da seguinte estrutura: imputabilidade, exigibilidade de conduta adversa e potencial consciência da ilicitude. Embora com nítidos avanços em relação às correntes antecessoras, o pecado do finalismo se encerra justamente no fato de o ontologismo se prender a conceitos pré-jurídicos, do que decorre que, por essa razão, não poderia forjar conceitos puramente jurídicos oriundos do finalismo, como claramente infere a crítica atribuída a Roxin em relação ao finalismo, isto é, de que a esfera ontológica não é capaz de proporcionar a matéria nem os conceitos jurídicos, uma vez que as regulações jurídicas têm por objeto e conteúdo um viés essencialmente normativo, assim só é razoável determinar o objeto do Direito penal em função dos seus fins e de suas valorações.36 Ou, nas palavras do próprio Roxin, “O que é uma ação proibida não pode ser respondido através de um conceito pré-jurídico, ontológico, de ação, pois o direito tem autonomia para valorá-la de acordo com seus objetivos”37. O movimento finalista, mesmo tendo aberto a busca de princípios e valores, cai na armadilha do movimento dominante na época – qual seja: o positivismo formalista, GRACIA MARTÍN, Luís. O finalismo como método sintético real-normativo para a construção da teoria do delito. Revista da associação brasileira de professores de ciências penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 2, ano 2, p. 5-28, jan./jun. 2005, p. 4-5. 37 ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Trad. Luis Greco, 3ª edição, Rio de Janeiro, editora renovar, 2002, p. 38-39. 19 consumando enfim o reforço ao formalismo jurídico por mera dedução dos elementos ontológicos do sistema jurídico, enclausurando, em consequência, o sistema mediante a categoria da ação, nisto a conduta só importa para o direito penal se preencher todos os requisitos do tipo normativo e não os de base empírica. Ora, a apresentação do sistema global se justifica, nessa altura, por informar o ambiente metodológico no sentido de que, quando da propositura normativa da criminalidade organizada no contexto moçambicano, a Lei deve obstruir a criação de tipos penais (no caso tipo penal) iligítimos e, em caso de interpretação do julgador, não deverá fazê-lo às cegas sob o risco de minar a essência do Direito penal no tratamento dessa modalidade delitiva. O sistema jurídico-penal é um subsistema social com sua própria teleologia, seu específico modo de funcionar e sua lógica estratégica peculiar, nesse sentido, corresponde a um sistema autônomo, porém autopoiético, conforme demonstraremos a seguir. Ele é ao mesmo tempo um sistema fechado e aberto, ou seja, apesar de possuir sua funcionalidade própria e autônoma, também está aberto a uma unidade axiológica-funcional especifica. Visão sistémica de Niklas Luhmann A teoria sistêmica de Luhmann encontra na ideia da autopoiesis um espaço de fala marcado por paradoxos e aporias, sendo concebida com o propósito de apontar aspectos problemáticos, antagonicamente usados de forma construtiva. Trata-se, enfim, de uma das teorias de grande importância na atualidade, apresentando uma elevada complexidade e se desenvolvendo a partir de conceitos e linguagens específicas, que fogem à lógica tradicional. Tendo emprestado termos advindo da pesquisa empírica desenvolvida no campo da biologia, da neurofisiologia e os aportes teóricos advindos da cibernética, da matemática e da lógica, faz uma análise sociológica da sociedade moderna, deslocando o centro do centro para fazer uma abordagem multicêntrica no contexto de redes de relações diferenciadas e interligadas, o que enseja a formação não hierárquica de coordenação coletiva. Segundo Orlando Villas Bôas Filho38, a complexidade da teoria dos sistemas acompanha a complexidade da própria sociedade que se pretende descrever, de modo que a sociedade é claramente um objeto que se auto-descreve, implicando que as teorias da sociedade são teorias da sociedade para as sociedades, ou seja, o conceito de sociedade pressupõe ser constituído autologicamente. 38 FILHO, Orlando Villas Bôas. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo, editora Max Limonad, 2006, p. 11-12. 20 Atrelada à complexidade da sociedade moderna, a teoria remove o homem do centro da sociedade, “preceito anti-humanista”, fragmenta a sociedade moderna em subsistemas funcionais e atribui um estatuto subalterno à linguagem, que seria entendida por Luhmann como a superação das teorias da sociologia clássica. Nesse sentido, em sociedades marcadas pelo mencionado grau de complexidade, em que avulta o funcionamento dessa sociedade por sobre o próprio componente humano (individual) que a compõe, temos um ambiente altamente propício para o florescimento de atuações humanas organizadas de forma igualmente complexas ou, reproduzindo a complexidade da própria sociedade, também no âmbito das práticas ilícitas, como se verifica em relação à criminalidade organizada. A capacidade heurística da teoria dos sistemas radica na separação da sociedade, enquanto sistema social, em que a autopoiesis se dá por meio da comunicação e o indivíduo, enquanto sistema psíquico, cuja consciência é um elemento da autopoiesis. Ou seja, um é entorno do outro, do que decorre que, em última análise, o homem é excluído da sociedade. Nisto, para Luhmann, pertence à sociedade apenas aquilo que no processo da comunicação é tratado como comunicação, isto é, aquilo que em referência recursiva a outra comunicação é gerado como operação do sistema. A sociedade englobaria outras diversas sociedades locais, tidas como meras dessemelhanças de condição de vida no contexto do sistema social geral. Na perspectiva teórica luhmanniana, a sociedade é um sistema autorreferencial que se descreve. Sob uma ótica distinta da adotada por um dos seus críticos mais determinados, Habermas (que nutria uma relação negativa sobre o paradoxo da autorreferência, por considerá-lo aporético), Luhmann tem uma acepção positiva acerca do paradoxo da autorreferência, que é incorporado enquanto característica primacial dos sistemas autopoiéticos, sendo este definido como forma geral de construção dos sistemas que se valem do enclaustramento autorreferencial. A assunção desse paradoxo favoreceu a segmentação da sociedade moderna em diferentes subsistemas autopoiéticos de segundo grau, autorreferenciais, fechados e autônomos entre si. Autônomos mas providos de inputs e outputs, no sentido de que sofrem influências exógenas de eventos independentes de sua lógica interna, porém, essas influências não passam de meras perturbações ou irritações, sem capacidade de determinar o sistema, a despeito de ser capaz de suscitar-lhe reações internas de compensação, fenômeno ligado ao enclaustramento normativo (normative closure) e à fissura cognitiva (cognitive openness), um traço característico (e imanente?) desses sistemas.39 39FILHO, Orlando Villas Bôas. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo, editora Max Limonad, 2006. p.18-19 21 [...] a relação entre um sistema autopoiético e outro nunca é de determinação ou regulação direta, mas apenas de choques ou perturbações mútuas, colocam-se, entre outras, as questões relativas à legitimidade do direito e às suas reais possibilidades regulatórias, uma vez que ele (entendido como subsistema funcional de uma sociedade funcionalmente diferenciada, que convive e se relaciona com outros subsistemas autopoiéticos, igualmente fechado e autorreferenciais, que são seu entorno, o que lhe obsta qualquer pretensão a supremacia) jamais poderá pretender direcionar ou determinar a atividade de outros âmbitos como, por exemplo, o econômico ou o político e nem muito menos legitimar-se noutra instância que não a partir de si mesmo.40 No contexto da autonomia sistêmica, não há posição privilegiada por parte de qualquer dos sistemas funcionais, nesta situação, é impossível pretender encontrar uma instância que possa alcançar um distanciamento normativo da sociedade em relação a si mesma, nas palavras de Luhumann “[...] não é possível inaugurar equivalentes funcionais fora do sistema porque o fato de ser um equivalente os inclui no sistema.”41 Descartando nesse entendimento qualquer possibilidade de regulação direta por parte do subsistema jurídico em relação aos demais subsistemas, no sistema autopoiético e auto-referencial a legitimidade não pode advir do entorno sob pena de haver uma substituição da autorreferência por uma referência externa ( do que decorreria inclusive uma contradição junto ao modelo), ou seja, os subsistemas como direito, política, economia, educacional, religião, arte, etc., não podem pretender qualquer ingerência direta uns sobre os outros.42 O avanço da técnica e da tecnologia, bem como dos mecanismos de gestão econômica, social, política e cultural no contexto globalizante, fez Luhmann compreender que se encontrava num contexto de extrema complexidade e para responder ao questionamento suscitado por esse contexto precisaria de um arranjo que levasse à redução dessa complexidade. Assim, apoiado nas formulações teórico-conceituais resultantes da teoria de sistemas, da teoria dos meios de comunicação e de uma teoria da evolução, entende que, quanto maior o grau de complexidade, os sistemas sociais e os outros sistemas só podem desenvolver-se no caso de se diferenciarem internamente, gerando mais complexidade ao 40 FILHO, Orlando Villas Bôas. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo, editora Max Limonad, 2006, p. 19. 41 Luhumann apud FILHO, Orlando VillasBôas. op. Cit., P.90 42 NEVES, Marcelo. Luhmann, Habermas e o estado de direito. Lua Nova, São Paulo , n. 37, p. 93-106, 1996 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64451996000100006&lng=en&nrm=iso. Acesso em:16/05/2017. 22 sistema, por um lado e, por outro, possibilitando novas formas de redução daquela complexidade.43 Ou seja, a sociedade moderna como com recurso a sua diferenciação funcional, estaria mais apta para operar a seleção e estabilização de expectativas em um universo de maior complexidade. A força motriz exógena da evolução reside justamente na diferença entre a complexidade do sistema e a complexidade do entorno, que é sempre maior. O ambiente complexo irrita o sistema e este, para se adequar, necessita de mudar a sua estrutura, sob o ponto de vista de reações que ocorrem a partir de sua própria rede de operações, que é, como se sabe, recursivamente fechada. Baseando na distinção que Heinz Von Foerster faz entre máquinas triviais (referencialidade externa) e máquinas não triviais (auto referencialidade), Luhmann afirmará que nas maquinas não triviais, diferentemente do que ocorre nas maquinas triviais, ocorre uma suspensão do output no seu estado interno, de tal forma que de idênticos inputs podem decorrer diversos outputs,44 materializados nos sistemas sociais e psíquicos (enquanto máquinas não triviais) por meio de variação, seleção e estabilização. Importa ressaltar aqui, como foi mencionado acima, que a autopoiesis em Luhmann é fruto da transposição da teoria de autopoiesis do âmbito da biologia para a teoria da sociedade, isto é, no sentido de abstração do conceito de autopoiesis como categoria “vida” que passa a ser concebido abstratamente, isto é, como uma construção geral de sistemas a partir do fechamento autorreferencial. Pode-se fazer, assim, uma distinção entre sistemas autorreferenciais e autopoiéticos, que se baseiam na vida (célula, organismos, cérebros, etc.), e sistemas cuja autopoiesis se baseia em sentidos (sistemas sociais e sistemas psíquicos).45 Tendo em vista esse quadro teórico, a teoria da ação comunicativa de Habermas sofre duras críticas por parte de Luhmann, por entender que a proposta daquele autor está atrelada aos paradigmas do passado e, por consequência, não mais se encontra apta para responder aos desafios altamente complexos da sociedade atual. Embora conceba a comunicação como elemento último da rede de operações recursivas do sistema social, entende que ela, em Habermas, é uma forma de ação que envolve vínculos entre a sociedade e os homens – ou suas ações. Este entendimento, contudo, se distancia da sua assunção, no sentido de que a 43 MELO JUNIOR, Luiz Cláudio Moreira. A teoria dos sistemas sociais em Niklas Luhmann. Soc. estado., Brasília , v. 28, n. 3, p. 715-719, Dec.2013 .disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922013000300013&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16/05/2017. 44 FILHO, Orlando Villas Bôas. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo, editora Max Limonad, 2006, p. 90. 45 ibid 23 comunicação como unidade elementar da autopoiesis social não pode ser confundida com linguagem, pois, implica “mais que a simples emissão/elocução de modo a incluir também a compreensão”.46 É aqui onde radica a diferença primordial entre essas duas assertivas, pois enquanto a teoria da ação comunicativa de Habermas se atém ao ato de fala, excluindo o ato de entender, a teoria autopoiética da comunicação incorpora também o ato de entender na própria unidade do conceito de comunicação, o que corresponde a uma diferença significativa na abordagem do processo em discussão.47 Na verdade a comunicação é uma seletividade coordenada que envolve necessariamente o alter (fonte da informação) e o ego (o receptor, que pode ou não entender a informação emitida pela fonte), havendo o envolvimento de três operações: emissão, informação e compreensão, essenciais para a clausura dos sistemas sociais. Importa ressaltar que apesar da “compreensão”, no contexto das operações seletivas, ser entendida como condição para que a comunicação siga adiante, ela não se vincula à aceitação ou não da informação emitida, o que desliga a comunicação de qualquer pretensão que remeta à procura de consenso, ou seja, a teoria da comunicação de Luhmann não alude especificamente ao consenso.48 A utilização produtiva do paradoxo autorreferencial é a marca da teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann, distanciando-o de seus opositores mais próximos, Michel Foucault e Jürgen Habermas, dado que, como se viu acima, os sistemas são capazes de produzir e reproduzir seus próprios elementos por meio de processos internos. Porém a autorreferencialidade é também paradoxal, isto é, na perspectiva de diferença entre o sistema em si e o seu entorno. Reconhecendo que o tal paradoxo, à semelhança da tautologia, pode bloquear a auto-observação do sistema, Luhmann propõe a introdução de assimetrias que interrompem (ou supostamente interromperiam) a autorreferência pura com recurso a escolhas de um ponto de referência, que servirá de referência para que a direção do sistema possa operar de modo produtivo. 46 FILHO, Orlando Villas Bôas. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo, editora Max Limonad, 2006, p. 148. 47 “definida como síntese de três operações seletivas(emissão/elocução, informação e compreensão), a comunicação poderá ser concebida como a única operação que é genuinamente social, pois é somente ela que pressupões a existência e interação de pelo menos dois sistemas psíquicos, isto é, de dois seres humanos ( entendidos como unidade sintética de sistemas orgânico e psíquico) [...] tomada a comunicação nesses termos, basta à teoria dos sistemas passar a estar atenta à conexão de ações tanto consensuais como dissensuais, pois ao incluir o entendimento na própria unidade sintética da comunicação a autopoiesis do sistema social fica automaticamente assegurada” (FILHO, Orlando Villas Bôas. op.cit.p.149). 48 KUNZLER, Caroline de Morais. A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Estudos de Sociologia,v.9, n.16, 2007. Disponível em:http://seer.fclar.unesp.br/estudos/article/view/146. Acesso em: 06/05/2017. 24 Autorreferência no direito e sua legitimação Como se viu, Luhmann, a partir da teoria dos sistemas autorreferenciais e autopoiéticos, apropria-se do uso positivo do paradoxo e propõe o uso do mecanismo de assimetrização para ensejar a “destautolização” e “desparadoxização”. Agora cabe verificar como o direito, enquanto subsistema funcional autorreferencial e autopoiético, opera dentro do modelo proposto. A priori, identifica-se o problema de conciliação e inter-relação sistêmica entre diversos sistemas autorreferenciais e funcionais da sociedade com clausuras operativas que lhes são características, sem afetar a sua essência, é necessário enfatizar. A problemática é bem mais acentuada no caso do sistema jurídico, que tem pretensões regulatórias em relação aos outros sistemas, o que deve ocorrer sem pôr em causa a autorreferencialidade. Numa sociedade moderna como a nossa, composta de subsistemas funcionais autorreferenciais e autopoiéticos, o direito, que é um dos subsistemas que compõe a sociedade e que, indiscutivelmente, é reproduzido por meio da comunicação, recorrendo a códigos próprios, como se sabe, terá obstáculos para materializar a sua função e, inclusive, para legitimar-se, uma vez que, em consequência dessa diferenciação funcional, não seria possível, em tese, alcançar uma representação global da sociedade, isto é, que pudesse facultar-lhe critérios normativos para responder às situações de perigo. Importa referir que Luhmann assume o princípio de que o mundo é caracterizado pela contingência, na dimensão da realidade como plano do possível, de tal forma que nas palavras de Orlando Villas Bôas Filho49 “a realidade pode ser diversa do que é, o possível também pode ser diverso daquilo que se espera”, sobrecarregando, por conseguinte, as possibilidades que reforçam a complexidade do mundo e para a montagem de estruturas é necessário então reduzir a já afirmada complexidade do mundo, recorrendo, neste caso, a operações seletivas. Trata-se de estruturas de expectativas que a priori não irão permitir a eliminação da complexidade a que se refere, mas reduzi-las, ou melhor dizendo, mantê-las em níveis toleráveis ou, talvez, até controláveis. Distinguem-se, enfim, nessa fase dois conceitos fundamentais na análise do direito, o de expectativas e o da dupla contingência. Extraído do pensamento de Talcott Parsons, o conceito de dupla contingência compreende que tanto o ego como o alter olham para suas recíprocas seleções como contingentes, isto é, tal como explica Filho, 49 KUNZLER, Caroline de Morais. A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Estudos de Sociologia,v.9, n.16, 2007. Disponível em:http://seer.fclar.unesp.br/estudos/article/view/146. Acesso em: 06/05/2017. 25 supõe que a constituição do mundo social se apresenta a partir de um horizonte de dupla perspectiva, o que torna imperioso que a ordem social se apoie em mecanismos de coordenação das seleções reciprocamente imprevisíveis e contingentes de alter e ego”.50 Luhmann propõe uma abordagem abstrata da dupla contingência, expectativas de expectativas, no sentido de que o comportamento de uma pessoa não deve ser esperado como algo necessário, mas resultado de uma seleção diante de várias possibilidades e variáveis conduzidas por expectativas próprias; portanto, no mundo social (da dupla contingência) é imperativa a construção de estruturas de expectativas reflexivas para dar conta da condução alheia e do caráter seletivo. Fica claro que as estruturas de expectativas não garantem a plena determinação das seleções por elas realizadas, porém as tornam mais prováveis, ocasionando a gestão de frustrações de expectativa. Para tanto, a fim de evitar o desmoronamento das estruturas é preciso desenvolver mecanismos que se impõem como capazes de superar a frustração. Essas estruturas de expectativa, por serem de natureza noética (sistemas de sentidos – sociais e psíquicos), devem ser tratadas, segundo Luhmann, em três dimensões: dimensão temporal, dimensão social e dimensão objetiva/material. Para o direito, essa abordagem é essencial, uma vez que o sistema do direito, enquanto sistema social, baseia-se na generalização congruente de expectativas comportamentais normativas, isto é, nas dimensões supra-enunciadas. As três dimensões atuam de maneira independente uma da outra, o que vale dizer que a seleção de possibilidade em uma delas não implica necessariamente seleções idênticas em outras. Assim, ao direito, para além de operar generalizações de expectativas de modo incongruentes nas diversas dimensões de sentido, é necessário também gerar congruência seletiva entre as três dimensões de sentido, por forma a garantir a existência contra-fática de expectativas normativas. A expectativa (que pode ser normativa ou cognitiva) consiste em esperar (antecipação do futuro) que algo/alguma coisa seja viável ou provável que ocorra, portanto, passível de falhas ou de não ocorrência. Assim, em caso de não ocorrência existiriam duas formas de se lidar coma situação, adaptar a expectativa à situação (expectativa cognitiva) ou simplesmente mantê-la contra tal situação (expectativa normativa– mantém-se mesmo contra a situação que causa sua frustração). No entendimento de Luhmann, as duas formas de lidar com as frustrações de expectativa estão na dimensão temporal do sentido, no qual o direito busca 50 FILHO, Orlando Villas Bôas. op. cit. p.186. 26 obter a estabilização das frustrações por meio de normatização. A norma seria, uma forma de estruturação temporal das expectativas, cuja função residiria em fixar uma dada expectativa como normativa, a chamada segurança jurídica, visto na perspectiva do direito como recurso a artifícios de absorção de frustrações, e sua correspondente anulação contra condutas que delas se desviam.51 [...] haveria vários tipos de mecanismos de absorção das frustrações, que vão desde ignorar a violação da norma até o mecanismo da sanção, que nos interessa mais de perto por ter o mecanismo característicos de absorção das frustrações na dimensão temporal das sociedades modernas.52 A determinação normativa da expectativa se realiza apenas na dimensão temporal do sentido, portanto, na extensão dos sistemas psíquicos, o que não se adéqua satisfatoriamente à extensão dos sistemas sociais, sendo-lhe, desse modo, outorgado incompetência em situações conflitivas. Nessa situação, vigora a ideia de que as expectativas devem igualmente ser generalizadas na dimensão social, com recurso obviamente a outro meio, que se apoie na institucionalização de expectativas de condutas. A institucionalização de expectativas de condutas pressupõe um consenso, na verdade um pseudo consenso, uma vez que “ela antecipa ficcionalmente o consenso, de modo a fazer com que ele passa a ser pressuposto e não precise ser concretamente expresso”53, tanto é assim que a sua função se constitui mais como uma espécie de gestão de riscos – fazendo com que as expectativas e condutas contrárias à instituição tenham contra si o peso da autoevidência – do que o estabelecimento de consenso (v.g. contrato, procedimento), o que inclusive seria impossível no contexto da sociedade atual. Por fim, resta verificar como sucederia a generalização na dimensão material/objetiva ou na prática das expectativas, que, segundo Luhmann, assentam na fixação de um ponto ou pontos de referências abstratos, em que as expectativas podem ser estabelecidas de forma concreta. Trata-se, na realidade, do conteúdo das expectativas e a sua generalização ficará adstrita à abstração dos pontos de referências que ensejam a constância nas expectativas. A abstração em causa opera a partir de quatro princípios de identificação, a saber: pessoas, papéis, programas e valores. 51VIANA, Ulisses Schwarz. Horizontes da justiça: complexidade e contingência no sistema jurídico. 2013. Tese (Doutorado em Filosofia e Teoria Geral do Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 62-65. 52 FILHO, Orlando Villas Bôas. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo, editora Max Limonad, 2006. P.188 53 FILHO, Orlando Villas Bôas. op.cit. p.188. 27 Nisto, o direito positivo moderno assenta sua capacidade de generalização congruente de expectativas normativas por meio da sanção (na dimensão temporal), bem como através de procedimentos (na dimensão social) e também por meio de programas condicionais de decisão (na dimensão material/objetiva/prática). Nas palavras de Orlando de Villas Bôas Filho: O direito positivo moderno (posto e validado por decisões) utiliza a sanção como instrumento de absorver frustrações na dimensão temporal, o consenso fictício para generalizar as expectativas na dimensão social, imunizando-as contra condutas dissidentes, e os programas decisórios condicionais para, na dimensão material/objetiva/prática, obter decisões a partir do esquema se/então.54 Conforme explicitado acima, o direito e a sociedade são sistemas de sentidos que se reproduzem com recurso à comunicação e a sociedade é o entorno do direito, do que decorre que não há direito fora do contexto social “ubi societas ibi jus”55, ou seja, só há direito na sociedade. É, em outras palavras, um subsistema que compõe a sociedade. Sendo a sociedade moderna caracterizada, como vimos acima, por funcionalidade diferenciada, o direito é, por conseguinte, um subsistema funcional, que busca para a sua autopoiesis, à semelhança da sociedade, a comunicação. Mas para que essa comunicação se diferencie das restantes comunicações gerais que circulam na sociedade é imprescindível que o direito adquira um sentido próprio. A diferenciação em relação à sociedade demanda da clausura autopoiética a autorreprodução, isto é, “pelo subsistema jurídico, de todos os componentes (estruturas, elementos, etc.) a partir de operações recursivamente fechadas.”56 Se, por um lado, a sociedade é para o direito o entorno intrassocial, por outro, há mais um entorno, no caso, o extrassocial, que abrange tanto o homem (sistema psíquico e sistema vivo) como o mundo com seus fenômenos biológicos e físicos. O homem não é indiferente ao direito, mas parte dele. Segundo Luhmann, sem a clausura operacional não se aventa a possibilidade de se considerar um sistema autopoiético, mas o enclaustramento não é o bastante para se definir um sistema como autopoiético, de modo que para a diferenciação e enclaustramento do sistema do direito é relevante a especificação da função direito, ou seja, o seu redirecionamento a um problema social específico e a codificação binária do sistema 54 FILHO, Orlando Villas Bôas. op.cit. p. 190 55 VENOSA, Silvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito. Editora Atlas, São Paulo, 2004 56 FILHO, Orlando Villas Bôas. op.cit. p. 196. 28 (direito/não-direito). A importância dessa perspectiva é expressa por Orlando no sentido de que é: [...] pela fixação de uma função social específica que o direito delimita aquilo que deve ser levado em consideração como operação do sistema e, [...] o faz a partir da remissão a uma codificação binária composta de um valor positivo (direito) e de um negativo (não direito). Código e função são, nesse sentido, conceitos complementares de fundamental importância a elucidação da clausura operacional dos sistemas autopoiéticos em geral e do direto em particular.57 Consequentemente, fica claro que para haver sistema jurídico é necessário que haja uma comunicação orientada pelos códigos binários direito/não-direito, ao qual assegurando a auto-adjudicação das operações do sistema, permite-se o fechamento operacional, pois o recurso aos códigos binários descarta a possibilidade de interposição de outros códigos existentes. Aqui reside a ideia de que a definição do código do direito garante a unidade operativa e é primordial na especificação da função do sistema.58 Importa salientar que Luhmann busca nos conceitos códigos e programas para dar ênfase ao direito enquanto um subsistema autopoiético de uma sociedade funcionalmente diferenciada de modo a contrabalançar a inflexibilidade que compõe os códigos binários dos subsistemas funcionais, o que se dá por meio de introdução de programas que permitem estabelecer critérios para atribuição de valores dos referidos códigos. Nisto o programa seria essencial na abertura cognitiva do sistema, sendo que ele determina quais aspectos do sistema teriam que processar cognições e evidentemente em que ocasiões isso aconteceria. O direito é, sob a ótica desse paradigma, um subsistema com capacitador de clausura normativa e abertura cognitiva.59 No entanto, a assertiva Luhmanniana trás consigo questões relativas à problemática de validação das normas no interior do circuito autopoiético do sistema jurídico bem como a questão da legitimação, pois, como se viu acima, o enclaustramento operacional do sistema se dá com intuito de que se possa, a partir de sua codificação binária e de seus programas decisórios condicionais, materializar sua função estabilizadora de expectativas normativas. Todavia a estabilização implica a generalização congruente de tais expectativas nas três dimensões anteriormente mencionadas (temporal, social, e material de sentido). 57FILHO, Orlando Villas Bôas. op.cit, p 198. 58 VIANA, Ulisses Schwarz. Horizontes da justiça: complexidade e contingência no sistema jurídico. 2013. Tese (Doutorado em Filosofia e Teoria Geral do Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. p. 60. 59 Ibid. p. 201. 29 A problemática da legitimação se dá por ocasião da generalização das expectativas normativas e, na extensão temporal, mediante o direito estabelecido e validado (direito positivo), uma vez que o consenso, neste caso, sem dúvida, não é verdadeiramente alcançado. Neste sentido, Luhmann define legitimidade, de forma precisa e sem atrelar nenhuma carga normativa, como sendo a disposição generalizada para aceitação de decisões de conteúdo ainda não definido, dentro dos limites de tolerância60, cuja função consiste na implementação fática do direito e no controle da decisão jurídica61. E, como subsistema de uma sociedade funcionalmente diferenciada, o direito visa apenas realizar sua função de estabilização contrafática de expectativas normativas, conforme se pode perceber de forma clara nas palavras de Orlando: num tal contexto, a definição da legitimidade em termos de disposição generalizada para aceitar as decisões de conteúdo ainda não definido é totalmente compatível com a função que o direito visa resolver, pois, ao garantir uma tal disposição generalizada para aceitação das decisões, ela garante a implementação fática do direito e, para a perspectiva sistêmica, isso basta62 Segundo Luhmann, o direito se vale do “procedimento” como mecanismo para obtenção da disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, o que inclusive se dá por meio da institucionalização do direito na dimensão social de sentido, do que decorre, aliás, a consequente generalização social de expectativas normativas. Nessa assertórica, o procedimento é visto como um tipo especial de sistemas sociais, constituído de forma imediata e provisória, que desempenha função específica, associado à elaboração de decisões vinculativas. Com o recurso a procedimentos, nos termos apresentados, é possível obter a legitimação do direito sob o prisma exclusivamente sistêmico, sem a necessidade de recorrer a uma validação normativa proveniente do entendimento comunicativo, que pressuporia inevitavelmente um duplo enfoque a partir da conjugação de sistema e “mundo da vida”. Não é á toa que Luhmann sustenta que a legalidade é a única legitimidade possível.63 O sistema jurídico legitima a si mesmo por meio de procedimentos que faculta a possibilidade da disposição generalizada de aceitações de decisões de conteúdo ainda não definido. Ou seja, esquivando-se da função socialmente integradora de Habermas, o direito 60 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real, Brasilia, Ed. Universidade de Brasília, 1980.p.29. 61 FILHO, Orlando Villas Bôas. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo, Saraiva, 2009.p.174. 62 FILHO, Orlando Villas Bôas. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo, Saraiva. 2009.p.174. 63 FILHO, Orlando Villas Bôas. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo, Saraiva. 2009. p. 175. 30 realiza sua função estabilizadora contrafática de expetativa normativa, preservando a clausura operacional do sistema jurídico, que enseja a sua autopoiesis por meio de códigos binários licito/ilícito e pelos programas condicionais que adjudicam concretos valores dos códigos.64 Apresentados os fundamentos da teoria do sistema Luhuman resta estabelecer a conexão entre a eludida teoria e o fenômeno da criminalidade organizada e, mais especificamente a criminalidade organizada à moçambicana. E isso é forjado a partir de dois campos: o primeiro, advêm da complexidade do sistema social na atualidade que demanda novas soluções aos problemas surgido dentro da sociedade do risco, medo, liquidez, globalização e do liberalismo como demostramos no primeiro capítulo em relação a emergência do fenômeno da criminalidade organizada em Moçambique. Nestas sociedades (atuais e complexas) o direito é invocado a promover generalização congruente de expetativas normativas dentro da unidade do sistema jurídico, variabilidade das normas, normatividade especifica jurídica, e da relação entre direito e a sociedade.65 No bojo do racionalismo do sistema é possível entender os mecanismos organizacionais e de funcionamento da sociedade capitalista (moderna). E o direito no processo de redução de complexidade através de escolhas e seleções desempenha um papel importante, na medida em que translada a complexidade do ambiente e seus problemas para o sistema, por meio de dupla seletividade visualizando escolhas iniciais que reduzam as incertezas (produção de lei) e visualizando outras escolhas (verificação da constitucionalidade, por exemplo!) . “para tanto, o sistema jurídico demanda estruturas que definam o grau de complexidade que pode ser compreendido, processado e reduzido no interior do sistema. Estruturas que registem às variações do ambiente e isolam as desilusões. São essas estruturas que permitem a generalização de expetativas relativa ao direito”66 O direito moderno, que é o direito posto, busca resolver de modo tautológico e paradoxal a base do seu fundamento a partir de códigos comunicativos (licito/ilícito), que implementa programas condicionais (do tipo se/então) e desempenham funções infungíveis (generalização congruente de expetativas normativas) e, por conseguinte não consegue 64 FILHO, Orlando Villas Bôas. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo, Saraiva. 2009, p. 176. 65 YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. A influência da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann na teoria da pena. Ciências Penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, São Paulo, v. 1, n. 0, p. 287-298., jan./jun. 2004. 66 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2002. 31 traduzir de forma diversa dos seus códigos, programas e funções. O que reforça a autonomia desse sistema face ao sistema político, econômico, etc.67 Podemos dizer que a teoria de Lhumann serve (e bem) para ilustrar categorias analíticas que fundamente a forma como a dogmática (no último capítulo) vê como solução (ou pelo menos apresenta enquanto proposta de solução) a problemática da criminalidade organizada no ordenamento jurídico moçambicano. Quando se questiona a racionalidade do direito penal no Estado social, no sentido de uma pretensa apologia ao punitivíssimo ou pretensa existência de apoiadores, nas palavras de Silva-Sanchez, “hipertrofia do direito penal”, não se está nada mais do que trazer a colação os desiquilíbrios sociais que a criminalidade moderna provoca tanto no sistema da política como no sistema direito e até no sistema econômico em última análise. Em fase do desiquilíbrio entre a realidade complexa do universo e o tratamento dispensado pelo sistema para lidar com a complexidade (entre o universo e a percepção), haverá sempre necessidade de reações de compensação dentro do sistema aptos para lidar condignamente com a complexidade posta. Por tanto o juízo de razão devem estar desmembrados dos significado anteriormente atribuído pelo observador externo e a descrição deverá demandar da compreensão interna de cada subsistema68 Assim com recurso a comunicação, a emissão de soluções passa a ser setorizada (dentro de cada subsistema) por forma que essas novas demandas fossem tratadas de um outro prisma mais a contento e com fortes variantes valorativa cuja a referência seria o próprio sistema. Nota-se aqui que os sistemas parciais estão longe se ser caraterizado pela quantidade de troca de dados (inpits/ outputs) mas por olhar a outra parte por meio das próprias referência, uma vez operacionalmente fechado e auto reflexivo69. Não deixando-se influenciar de forma biunívoca pelo ambiente mas pelos canais adequado (só podem se irritar e influenciar indiretamente e a resposta ocorre no seu anterior). É possível verificar deste prisma como a dogmática (subsistema do direito) trata a política criminal da criminalidade organizada, no sentido de respostas as irritações advindas tanto do subsistema político como do subsistema econômico. Assim como afirma categoricamente Campilongo, o sistema jurídico é cognitivamente aberto às questões políticas e, se a criminalidade organizada (de complexidade social, 67 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2002. 68 Ibid 69 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2002. 32 tecnológica e até institucional) é um problema que os políticos devem dar resposta satisfatória aos “seus” eleitores (sociedade), conduz-nos a seguinte ilação: por conta do viés econômico da criminalidade organizada vigorante em Moçambique, o subsistema econômico no bojo da globalização esvazia a territorialidade e, por conseguinte, o subsistema político ao aderir aos blocos econômicos e aos organismos supranacionais, sugerem uma irritação ao subsistema jurídico a reduzir a complexidade adoptando um direito de mercado globalizado; as informações do sistemas psíquico descarregado no subsistema político que se vê na contingência de frear o avanço da criminalidade moderna, da corrupção política, se projeta no subsistema jurídico como o mais “adequado” a responder essa demanda por meio de normas complexas para resolver questões complexas.70 Podemos afirmar que a teoria do sistema disponibiliza mecanismos à teoria jurídica para enfrentar problemas jurídicos concretos, como o caso da criminalidade organizada no contexto moçambicano, enquanto meio de compreensão da sociedade atual e complexa. Assim, a norma jurídica definida como qualificador de expectativa apta a proteger, incorpora igualmente os objetivos e critérios meta jurídico na sua formação71para efeito a sanção penal é utilizado como instrumento de enfrentamento às frustrações geradas pela organização criminosa mantendo a expetativa social tolhendo as conditas atentatórias ao contrato social, olhando para a problemática como um todo envolvente (os outros subsistema). No sentido inverso pode-se entender que o direito disponibiliza a sua validade e forma jurídica à política criminal, ensejando uma forma ordeira do exercício da política criminal e a pergunta que se faz é se o direito mas precisamente o direito penal seria a melhor seara para enfrentar a criminalidade moderna associada as organizações criminais que possuem tentáculos bem firmes no solo moçambicano. Breve caracterização do local do estudo Segundo o recenseamento geral da população de 2007, Moçambique detinha uma população de aproximadamente 25 milhões de habitantes, com cerca de 70% residindo nas 70 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2002. 71 SOUZA, Maria de; CARVALHO, Ana Beatriz Belo de; ARAÚJO, Bruna Machado. O ativismo judicial frente às pretensões do estado constitucional democrático de direito em sociedades periféricas: análise de causas e efeitos da política de dispensação de medicamentos excepcionais no Brasil. Revista Arquivo jurídico, Teresina, n. 7, p. 1-19, jul./dez. 2014. 33 zonas rurais. Estima-se que atualmente tenha ultrapassado os 27 milhões.72Localizado na costa oriental da África (com coordenadas 10º-27º S, 30º-41º O), apresenta extensão territorial de 801,590 km quadrados, com sua faixa leste, de 2.470 km, sendo banhada pelo Oceano Índico². Moçambique tem como países limítrofes a norte, a República da Tanzânia, a República do Malaui e a República da Zâmbia; a oeste, a República do Zimbábue, a República da África do Sul e a República da Suazilândia; a sul, a República da África do Sul; a leste pelo Oceano Índico (Canal de Moçambique). A República de Moçambique é um Estado unitário, que respeita na sua organização os princípios da autonomia das autarquias locais (artigo 8 da CRM). Subdivide-se em três regiões (sul, centro e norte), possui uma divisão administrativa em províncias, distritos, postos administrativos, localidades e povoações. Na zona norte existem três províncias (Cabo Delgado, Niassa e Nampula), na zona central, por sua vez, localizam-se quatro províncias (Sofala, Manica Zambézia, Tete) e na zona sul outras quatro (Maputo Província, Cidade de Maputo (capital do país), Gaza e Inhambane), totalizando, portanto, onze províncias. Fonte: http://farm4.static.flickr.com/3093/2289175079_6830dbf164.jpg 72http://www.ine.gov.mz/acessado em 05/03/2017 http://www.ine.gov.mz/ 34 Após a independência do regime colonial português em 197573, iniciou-se uma guerra civil em Moçambique (1976 – 1992)74 que devastou o país, degradou a situação de vida da população e as migrações internas e para o exterior se intensificaram. Os grandes centros urbanos como Maputo (capital política), Beira e Nampula sofreram aumento drástico da sua população durante a vigência da guerra civil, motivada pela intensa migração interna de refugiados. À semelhança de muitos países do continente africano, Moçambique é um país de elevada diversidade linguística, das quais nenhuma é falada por mais da metade da população. O número exato é de difícil determinação, com a estimativa de 20 línguas nacionais, sem contar com as variantes de cada uma.75 Dentre elas se destacam, a língua emakhuwa, falada em toda a zona norte do país e parte norte da Província da Zambézia, constituindo-se deste modo, a primeira língua nacional mais falada no país, com cerca de 30% de falantes. No centro do país, a língua nacional mais falada é a cisena, com 7% de falantes, ocupando o terceiro lugar. E na zona sul do país a língua nacional mais falada é o xichangana, com 11,4% de falantes, ocupando o segundo lugar, de acordo com o Senso Geral da População de 2007 (INE, 2010). As outras línguas nacionais mais faladas são cicopi, cinyanja, cinyungwe, cishona, ciyao, echuwabo, ekoti, elomwe, gitonga, maconde (ou shimakonde), kimwani, memane, suaíli (ou kiswahili), suazi (ou swazi), xironga, xitswaezulu. Apesar de o idioma oficial ser a língua portuguesa, apenas 60% da população a utiliza como língua falada.76 Embora se tenha verificado constantes oscilações do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) desde a independência até os dias hoje, a maior parte da população, cerca de 55% vive no limiar da pobreza, com um rendimento inferior a 0.6 dólares americanos por dia, portanto, fora dos parâmetros internacionalmente recomendáveis que é de 1 a 2 dólares americanos por dia.77 Segundo o Relatório sobre Desenvolvimento Humano (RDH) de 2015, do programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Moçambique encontra-se 73 A independência fora conquistada por meio de luta armada de libertação que colocou frente a frente a Frelimo (Frente de libertação de Moçambique) e o exército colonial português. 74 Essa guerra opôs o governo da FRELIMO e a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). 75 NORTE, Gilberto Mariano; NETO, Eduardo Rios. Linguas Maternas e Escolaridade em Moçambique. Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 29 de Setembro a 3 de Outubro de 2008. p. 1-3. Disponível em https://www.researchgate.net/profile/Gilberto_Norte/publication/254477870_Linguas_Maternas_e_Escolaridade _em_Mocambique/links/02e7e5369e579c6253000000.pdf?origin=pubfile/Gilberto_Norte/publication/25447787 0_Linguas_Maternas_e_Escolaridade_em_Mocambique/links/02e7e5369e579c6253000000.pdf?origin=publicati on_listlication_list, acessado em 08/03/2017 76 Jornal o Público de 28 de outubro de 2013. Disponível em https://www.publico.pt/2013/10/28/culturaipsilon/noticia/ha-244-milhoes-de-falantes-de-portugues-em-todo-o- mundo-1610559, acessado em 08/03/2017 77 MARIANO, Esmeralda; BRAGA, Carla; MOREIRA, Andrea. Estudo Sobre o Tráfico de Órgãos e partes do corpo humano na região sul de Moçambique. INTERACT Moçambique lda. Maputo 2016. 35 na 180ª posição num total de 188 países, com um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0.416.78 Devido à sua localização geográfica, constitui-se historicamente como um local de trocas, contatos e cruzamentos culturais, configurando um processo contínuo de transição bem como um universo social em rápida transformação, onde as diversas modalidades culturais e econômicas colidem, coexistem e se interpenetram. A diversidade religiosa e sincrética, com alto nível de mobilidade de crentes que seguem diversas religiões, propicia, às vezes, contradições de valores e práticas, típicas de sociedades concorrenciais. 78 JAHAN, Selim et al. Síntese, relatório do desenvolvimentohumano 2015: O trabalho como motor do desenvolvimento humano. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2015. Pag.43. Disponível em: http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr15_overview_pt.pdf, acessado em 08/03/2017 36 CAPITULO 1 - ABORDAGEM CRIMINOLÓGICA DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA 1.4. Contexto moçambicano O estudo da criminalidade organizada, no contexto da atualidade, constitui um importante marco não apenas para sua compreensão, mas também para a mitigação de seus efeitos, principalmente tendo em vista os constantes golpes desferidos pelo crime organizado no conjunto social, produzindo fissuras em sua estrutura e abalando os alicerces do aparato estatal, do que decorre inclusive o ceticismo e desconfiança da população sobre sua capacidade (do Estado) de lidar com essa problemática de modo eficiente. A compreensão e a interpretação da criminalidade organizada em Moçambique, como aponta Borges79, deve ter em conta a transformação político-econômica que o país vivenciou em sua transição do regime socialismo ao capitalismo. Com efeito, a mudança na economia impulsionou uma nova realidade, como asseveram Marcelo Mosse e Peter Gastrow80, sobretudo em razão de o sistema socialista implantado pelo Estado moçambicano ter sido um fracasso, do ponto de vista econômico, isto é, caracterizado pela extrema pobreza de um lado; mas, de outro, ter sido caracterizado pela determinação em alcançar a eliminação do enriquecimento ilícito e da corrupção, e essa situação contrastante produziu um a cenário bastante complexa, com muitas frestas para a atuação de grupos criminosos, como será detalhado mais adiante . Como se sabe, no sistema socialista, devido ao seu imenso aparato estatal de controle centralizado, verificava-se maior rigidez no combate às ações contrárias à ordem instituída, pelo menos aparentemente; no entanto, no que diz respeito a Moçambique (na realidade isso costuma ser uma regra nos casos de transição de regime), a introdução de uma economia de mercado de corte liberal, resultou na mudança de paradigma de responsabilidade e padrões éticos, abrindo espaços propícios ao alargamento da “criminalidade organizada” e com bastante certeza entender esse fenômeno pode contribuir para a criação de meios para erradicá-lo, daí, aliás, uma das motivações centrais desse trabalho de pesquisa. 79 BORGES, Egor Vasco. O crime organizado e a eficácia policial: caso de Moçambique. Marília, Ed revista do laboratório de estudo de violência da Unesp. 2010, p.20-21. 80 GASTROW, Peter e MOSSE, Marcelo. “Mozambique: Threats posed by the penetration of criminal networks”, ISS Regional Seminar “Organized crime, corruption and governance in the SADC Region”, Pretoria, 18 e 19 de Abril. 2002, P.2-4. 37 Tomando como referência o surgimento do problema sob análise, o que se nota é que só se pode falar da existência de redes de crime organizado atuando em Moçambique a partir de 1986, como infere Borges81, momento em que se evidenciava a completa falência e dissolução do regime socialista. O Estado – que outrora havia se baseado no planejamento central orientado para a edificação de uma sociedade com menor desigualdade e injustiça, para o qual governar82 passou a ser não mais apenas a gerência de fatos conjunturais, mas também (e sobretudo) o planejamento do futuro, com estabelecimento de políticas de médio e longo prazo –, como se sabe, capitulou ao arbítrio de uma sociedade liberal, em que cabe ao Estado estritamente apenas garantir a estrutura jurídica que mantenha a salvo a propriedade privada e o cumprimento dos contratos. A ideia de que a eficiência dos mercados se molda na inexistência de agentes econômicos dominantes, na livre circulação de informação, mercadorias e ativos financeiros, enfim, no mecanismo de ajuste de preço e na mobilidade plena dos fatores de produção, trouxe consigo uma série de transformações que incidiram não só sobre as privatizações de empresas estatais como também teve efeitos sobre os indivíduos, advindos das demissões em massa por baixa qualificação técnica, criando um terreno propício ao surgimento e atuação do crime organizado, é necessário enfatizar. Os novos padrões de vida e consumo impunham uma competitividade permanente com vista à otimização do funcionamento da economia, dado que essa é a lógica do capitalismo (mercantil). Contudo, esse novo quadro acentuou o fenômeno da exclusão social, oferecendo aos excluídos pelo novo sistema adotado tão somente a opção da miséria absoluta ou o enveredamento por setores informais e/ou assunção de condutas desviantes. O desemprego e a elevação exponencial do custo de vida fragilizaram a classe média bem como produziram o encolhimento desta última. Intimamente correlacionado a esses fatores, também há o fato de que Moçambique vivenciou, naquele momento, uma guerra civil de grandes proporções, provocando um intenso êxodo rural e agravando ainda mais os problemas que afetam as grandes cidades, decorrentes de uma migração descontrolada. É especificamente nesse cenário de anomia mertoniana – e face às tentações do “moderno” – que as instituições de controle social rígidas entraram em colapso e foram substituídas por estruturas estatais frágeis, que somente podem fornecer segurança em uma perspectiva simbólica. 81BORGES, Egor Vasco. O crime organizado e a eficácia policial: caso de Moçambique. Marília, Ed revista do laboratório de estudo de violência da Unesp. 2010, p.20-21. 82 BERCOVICI, Gilberto e SOUSA, Luciano Anderson de. Intervencionismo econômico e direito penal mínimo: uma equação possível.In OLIVEIRA, William et all (ORG) Direito penal econômico: estudos em homenagem aos 75 anos do professor Klaus Tiedemann: LiberArs, 2013, p.16. 38 Com essa abertura, Moçambique foi ameaçado primeiramente pela chamada macro criminalidade organizada transnacional, que incluía atividades para além de solo moçambicano, incluindo países como Brasil, Portugal, Paquistão, Emirados Árabes Unidos, Dubai e África do Sul, com grande foco no tráfico de drogas, tráfico de órgãos humanos, lavagem de capitais, tráfico de veículos automotivos, tráfico de armas de fogo e obstrução da justiça, cuja erradicação ou simples controle se coloca como um grande desafio a um Estado de estrutura fragilizada e