Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 84 O DESAFIO DE TRADUZIR LISPECTOR: CRISTINA ROSSI E AS NOTAS DE PÉ DE PÁGINAS Lucilene Machado Garcia Arf 1 Diva Cardoso de Camargo 2 “Assim como as mulheres, as traduções podem ser bonitas ou fiéis” (Moacir Scliar). RESUMO Este artigo discute as notas deixadas ao pé de cada página, como marca de leitura, por aquele que é o pré-leitor do texto original: o tradutor. Ao inserir a nota, o tradutor está avaliando a necessidade do esclarecimento que pretende prestar e, automaticamente, julgando a capacidade do leitor em compreender o texto. Questões conflitantes para quem traduz, considerando que as notas são, segundo a crítica, o meio de maior visibilidade para o tradutor enquanto escritor. A discussão proposta, neste trabalho, se restringe à tradução da obra ¿Donde estuvistes de noche? de Clarice Lispector, traduzido por Cristina Peri Rossi, na Espanha. Palavras-chave: tradução, clarice lispector, cristina rossi, notas explicativas. O mecanismo da tradução está no centro das atividades humanas. É um tema que intervém nas disciplinas mais diversas por estar atrelado a uma concepção global de cultura, seja isso possível ou não. A tradução é uma forma privilegiada de leitura crítica e experimental que serve como uma ponte entre a cultura do autor e a do idioma para o qual se está traduzindo, envolvendo uma série de dificuldades que me custariam enumerá-las. O tradutor tem a responsabilidade de se aproximar do original não apenas pela reprodução de ideias, mas dos subjetivismos do escritor, suas intenções expressivas e estéticas, os ritmos, o conteúdo afetivo e assim por diante. Não significa apenas transportar palavras de um idioma para o outro, mas também carregar toda a ideologia presa à palavra. Nem sempre há um significado correspondente a cada palavra de uma língua para outra. O espanhol, por exemplo, por ser uma língua com estrutura próxima ao português, permite ciladas embaraçosas por conta do alto índice de falsos cognatos. Na tentativa de uma tradução ao pé da letra, há o perigo de falsear-se ou distorcer-se 1 Doutoranda em Teoria da Literatura Universidade Estadual Paulista/UNESP, São José do Rio Preto/SP. Bolsista da Fundect. E-mail: lucilenemachado@terra.com.br 2 Professora Doutora do Departamento de Letras/UNESP, São José do Rio Preto/SP. Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 85 usando palavras com a mesma origem e a mesma grafia, mas com sentidos diferentes. Esta similaridade pode, muitas vezes, induzir o tradutor a confiar no próprio arcabouço de conhecimento e não consultar dicionários. Também há as várias conotações de palavras, um vocábulo com uma conotação estritamente culta em português, pode ser comum em espanhol, além das variações da língua castellana entre América e Europa. Com toda essa possibilidade de significações, exige-se do tradutor um conhecimento profundo do idioma, da cultura e da cosmovisão desse falante. Diante disso, não seria aconselhável o uso das notas de pé de página para esclarecer questões relativas aos significados? Segundo a crítica, cabe ao tradutor avaliar quando essas notas são imprescindíveis para a compreensão do texto, bem como responder pelas consequências de inserir-se no texto, deixando as marcas de que aquele original já foi lido e re-escrito. Foi lido e modificado pelo aparecimento de um novo elemento. Daí que a opção pelas notas é sempre um objeto de dúvidas por parte do tradutor e objeto de críticas por parte dos especialistas, editores e academias. Bella Jozef (1986) indaga se, não seria preferível “procurar o equivalente acessível do idioma a que se traduz e relegar à nota a expressão do original, assinalando sua índole peculiar quando a diferença é notável?” Uma questão que ela própria responde: Entretanto, a nota ao pé da página é a vergonha do tradutor... Em uma operação de análise e síntese, trata-se de descobrir o que acontece quando é necessário descrever em uma língua um mundo diferente do que ela descreve ordinariamente? Como traduzir “deserto” na floresta subequatorial amazônica? (JOSEF, 1986, p. 321). Provavelmente, as notas explicativas é o recurso que oferece maior visibilidade do trabalho do tradutor. Ao inserir uma nota, automaticamente, o tradutor insere no texto sua própria bagagem cultural, social, histórica e pessoal. Baseia-se em seu próprio horizonte de expectativa para detectar uma dificuldade do leitor em compreender o texto. De forma que, ao decidir-se por uma nota, o tradutor deixa subentendida uma mensagem de que ele sabe mais do que está explícito e por isso pode contribuir com o leitor em relação ao seu desvelamento do texto. O que contraria os princípios da Estética da Recepção de que o texto literário é um espaço de interação entre autor e leitor participantes de um jogo de imaginação onde nada está claro e acabado. Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 86 Outra questão que sugere a rejeição das notas de pé de página é a certeza do leitor de que aquele texto já foi lido, já foi possuído e que o contato com seu autor já não se dá de forma direta. A consciência de que o texto contém uma outra voz intermitentemente audível pode, eventualmente, reduzir a atenção do leitor e levá-lo a questionar com que voz exatamente está falando e onde localizá-las. Mesmo sem o uso de pé de páginas, é certo, o tradutor, com maior ou menor visibilidade, deixará sua marca no texto e o que o leitor irá encontrar não é mais o original. Entretanto, o texto sem as referências explicativas acalenta a ilusão do leitor de estar lendo o autor original, sem a interferência de intermediários. As notas de pé de página datam o texto dentro da cultura onde a tradução será consumida. De modo que, além de denunciar a passagem de um terceiro elemento, pode vir a envelhecer, desatualizar-se em relação ao tempo e a história. Questões que contribuem para o seu desuso. Há muito, o procedimento das notas causam algum incômodo. O rei Jaime da Inglaterra, no século XVII, ao encomendar a tradução da bíblia inglesa, para se ver livre da bíblia de Genebra, orientou que os tradutores evitassem as notas de pé de página para que pudesse ser mantida a ideia de contato direto com a palavra sagrada sem mediações de terceiros. Em A bíblia inglesa e as revoluções do século XVII, Christopher Hill afirma que: A principal ofensa da bíblia de Genebra refere-se às suas notas: a decisão crucial foi de que “as notas não seriam admitidas à margem” da versão autorizada. Segundo Jaime, algumas das notas de Genebra eram “muito parciais, poucos verdadeiras e sugeriam conceitos exageradamente perigosos e traiçoeiros” (HILL, 2003, p. 98). Trinta anos depois da impressão de 1611, os leitores sentem falta das notas e voltam a ler a bíblia de Genebra, até que “vários papeleiros e impressores de Londres fizeram uma petição ao Comitê dos Comuns requerendo que fossem impressas ou as notas de Genebra ou notas novas” (p. 98). Para os leitores, a complexidade da bíblia poderia ser amenizada com a inserção das notas explicativas. De lá para cá, a única certeza que temos é de que os tradutores não apenas traduzem, eles fazem escolhas e tomam decisões dentro das concepções, expectativas e metas a atingir. Certo que, às vezes, fazem concessões, optam pelo interesse coletivo, mas são eles importantes agentes culturais para veiculação da literatura em língua Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 87 estrangeira, transmitindo e transformando ao mesmo tempo. As notas explicativas em ¿Donde estuvistes de noche? O ofício de tradutora foi assumido, com muito empenho, por Cristina Peri Rossi na tradução para a língua espanhola das obras Silencio (¿Donde estuvistes de noche?) e Lazos de família, de Clarice Lispector. Rossi experimenta as notas de pé de página em apenas um dos seus livros: ¿Donde estuvistes de noche? publicado em 1988 pela editora Grijalbo, em Barcelona, com o título de Silêncio e reeditado em 2002 com o título original, na obra Contos reunidos, pela editora Alfaguara de Madrid. Coincidência ou não, é o primeiro livro de Clarice que ela traduz, no entanto, não se pode justificar o uso das notas à sua pouca experiência com a cultura brasileira, já que em 1975 traduzira Avalovara, de Osman Lins e em 1978 Angústia, de Graciliano Ramos, além de ter nascido (e vivido) no Uruguai, país vizinho, que guarda muitas similaridades com o Brasil. Cristina Peri Rossi é uma escritora premiada, poeta, romancista, ensaísta, publicou seu primeiro livro em 1963 e recebeu os prêmios mais importantes do Uruguai, porém sua obra foi proibida, assim como a menção de seu nome nos meios de comunicação durante o período da ditadura militar que governou o país de 1973 a 1985. Foi para Espanha em 1972 e prosseguiu com sua atividade contra a ditadura uruguaia escrevendo para revistas até 1974 quando passou a ser perseguida pela então ditadura franquista e teve que exilar-se na França. Mas ao final do mesmo ano regressou a Barcelona, obteve cidadania espanhola e lá permaneceu. Durante esses anos, foi professora, tradutora, jornalista e militante feminista, além de seguir lutando contra as ditaduras e a favor das minorias, principalmente os homossexuais. É reconhecida como uma das escritoras mais importantes da língua espanhola e sua obra também está traduzida em pelo menos quinze idiomas. A obra ¿Donde estuvistes de noche? cujas notas explicativas vamos analisar é parte do livro Cuentos reunidos, apresentada em 93 páginas, entre as folhas 352 até a 435. São quatorze contos, o que se diferencia do livro original, escrito em português, que contem 17. Ficaram de fora os contos “Esvaziamento”, “Um caso complicado” e “Águas do mar”. No total, encontramos dez notas de pé de página. As duas primeiras no conto “La salida del tren” que narra a trajetória das personagens Ângela Pralini e a Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 88 velha, cujo nome era Maria Rita Alvarenga Chagas. A primeira referência é uma tentativa de explicar a palavra “bandeirantes” que aparece no texto com uma conotação distinta da concebida para a palavra original. Bandeirantes, no dicionário, refere-se ao homem que no Brasil colonial fazia parte de uma bandeira e adentrava o país em busca de explorar suas riquezas. Deslocada para o contexto dos anos 70 e 80, a palavra tem o seu significado desvelado e mesmo os leitores brasileiros terão de atualizá-la a partir da memória histórico-social. No conto o narrador assinala: Original - “Ouvia-se do outro vagão o grupo de bandeirantes que cantavam o Brasil agudamente. Felizmente no outro vagão.” Tradução - “Del otro vagón se oía un grupo de bandeirantes que cantaban Brasil agudamente. Afortunadamente, era en otro vagón.” A tradução ganha outros sentidos ao considerarmos que, em espanhol, os bandeirantes “cantavam Brasil” e não “o Brasil”. Mas quem são esses tais bandeirantes tardios? A tradutora opta por manter a palavra como no original, já que não há vocábulo correspondente no idioma de recepção. Mas, preocupada com o seu leitor, Rossi acrescenta em notas do tradutor: “hombres que suelen actuar en grupo en distintas faenas, no siempre legales”, o que quer dizer, homens que costumam atuar em grupos, em diferentes tarefas, nem sempre legais. Percebe-se que a definição apontada remonta o significado da época do colonialismo, mas não o clarifica exatamente, o que pode suscitar vários questionamentos por parte do leitor estrangeiro, visto que o termo está deslocado no tempo e no espaço. A essência revelada na língua de partida não é plenamente alcançada na língua de chegada, ainda que com notas explicativas, mas poderá ser intuída a partir da complementaridade de sentido possibilitado no emprego das notas ou, poderia ser expresso por aproximações e analogias no confronto de uma língua e outra. De qualquer modo, cada leitor terá de emitir seus próprios significados, a diferença é que o primeiro se sentirá conduzido por um intermediário e o outro não. Mas, ambos poderão ter seus horizontes de expectativas satisfeitos ou quebrados pelo uso inadequado de palavras. A segunda nota introduzida por Rossi está relacionada com um jogo de palavras que a narradora faz com a palavra “chagas” que é sobrenome da personagem Maria Rita Alvarenga Chagas Souza Melo e as “Chagas de Cristo”. Como o sobrenome da Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 89 protagonista se mantém no original, e as chagas de Cristo são traduzidas para llagas, o jogo de palavras é desfeito. A nota, nesse caso, é uma tentativa de salvar o trocadilho, ainda que tardiamente. Para isso, no pé da página, ela acrescenta: “Juego de palabras entre el apellido y la acepción de la palabra, llagas”. No entanto, mesmo a explicação necessitará uma inferência do leitor provando que nem sempre as notas são suficientes. Ainda na mesma página a tradutora deixa de justificar a presença do nome Kissinger que foi um dos mais importantes e controversos diplomatas americanos. Durante a ditadura militar brasileira, na década de 1970, tentou fortalecer o Brasil para torná-lo parceiro dos Estados Unidos na Guerra Fria e na nova ordem internacional que se formava. Clarice que vivera nos Estados Unidos e tinha profundo conhecimento dos engendramentos políticos, alfineta por meio do pensamento da personagem velha, a submissão do país à vontade dos americanos: “o Brasil melhorou a sinalização de suas estradas. Um tal Kissinger parecia mandar no mundo.” (p. 21). A tradução para o espanhol mantém um padrão similar sem qualquer nota: Brasil mejora en el señalamiento de sus calles. Un tal Kissinger parecía mandar en el mundo. O que também deixa subentendido que foi a sinalização das ruas que melhorou e não das estradas como no original. A nota seguinte está no mesmo conto e refere-se a uma frase em italiano arriscada pela protagonista Ângela Pralini que, em seguida justifica saber um pouco do idioma italiano, mas nunca ter certeza do seu sentido. A frase diz: “Mangia, bella, que te fa bene”, que em espanhol, em pé de página, ficou: “Come, preciosa, te hace bien”. Se, no campo da literatura, um dos objetivos principais é manter a fluência do texto que está relatando uma história, sem debater idéias ou conceitos, a nota em cotejo poderia ser suprimida, considerando que o leitor toma conhecimento de que a referida está no idioma italiano e buscará a compreensão da mesma, caso tenha interesse. Mas, apesar de não ser absolutamente necessária, é perfeitamente compreensível já que sua finalidade foi de dar ao leitor a compreensão de um outro idioma que não o dele, ainda que a autora brasileira não faça uso dessa ferramenta para justificar o italiano no texto em português. No conto que dá título ao livro “¿Donde estuvistes de noche” a tradutora usa a nota de pé de páginas para explicar o que seria “mãe de santo”. Ela afirma: *“En original, mãe de santo, sacerdotisa de un culto afrobrasileño”. Embora a explicação Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 90 acrescente uma informação cultural ao texto, não fica totalmente explicitada, até porque para o leitor espanhol comum, a significante “mãe” é estranha por “ã” não fazer parte de seu sistema lingüístico e provavelmente ele não fará a relação entre “mãe” e a sua correspondente “madre”. O que torna necessário ponderar os limites e medidas em que a tradução se torna possível. Um desses limites pode ser exemplificado em outro conto com o título “La relación de la cosa”, em que Rossi opta por não traduzir a palavra “macumba”, apenas acrescenta, em nota da tradução, “malefício”, que seria a correspondente mais próxima, o que não quer dizer a ideal, já que a nota de pé de página é a voz audível do tradutor no texto. Seguindo a sugestão da voz, recorremos ao dicionário da Real Academia Espanhola para ver se o significado de “malefício” apresenta alguma correspondência com “macumba”. Encontramos três definições: 1. m. Daño causado por arte de hechicería. 2. m. Hechizo empleado para causarlo, según vanamente se cree. 3. m. ant. Daño o perjuicio que se causa a alguien. Ocorre que a macumba citada no texto não é tão subjetiva quanto o significado dicionarizado. Trata-se de um amontoado de velas acesas em que o personagem descuidadamente pisou e como consequência teve um inchaço negro e esquisito que surpreendeu os médicos chamados para realizar uma avaliação. Nove deles afirmaram ser gangrena e indicaram a amputação. Fato que seguirá sendo explorado no desenrolar do texto. Compreender o ocorrido fora do contexto cultural brasileiro exige algum esforço. A questão está atravessada pela cultura da superstição, largamente divulgada pelos brasileiros, de que tocar em macumba é azar certo, o mal invocado no ato pode recair sobre aquele que tocou ou alterou a macumba. As variáveis culturais causam dificuldades por não se encontrar correspondência completa na outra língua, de forma que nem todo significado pode ser traduzido. Determinadas situações, expressões e condições culturais guardam em si um repertório histórico-social compreensível apenas àquele contexto por fazer parte de suas experiências anteriores e interiores. Antes de tudo é preciso compreender as palavras “macumba” e “mãe de santo” para em seguida compreender a rede de relações proposta por elas. Compreendemos uma frase quando integramos todos os seus elementos em uma representação semântica unificada. Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 91 Segundo o teórico José Antonio Marina (1998, p. 152) “El significado vivido de la palabra es um complejo de informaciones verbales, imágenes, fragmentos de memória episódica, fragmentos de memória semántica, sistema de relaciones, trozos de metáforas”. Ainda no mesmo conto, não se sabe se por erro da tradução ou da editoração, a palavra “quatis” em português foi traduzida por “cuatíes”, palavra que não se encontra no dicionário da Real Academia Espanhola, tampouco o animal. De modo que, em pé de página acrescentou-se uma nota explicando que “cuatíes” são “pájaros del Brasil”. Em uma pequena pesquisa foi possível constatar que o pequeno animal existe em países da América do Sul e América Latina. Daí a grafia cuatíes. No entanto, a nota de pé de página criou um problema plenamente evitável. A tradutora confiou em seu arcabouço de conhecimentos e cometeu o equívoco. Quati não é pássaro e seu significado poderia ser construído dentro do próprio contexto, ainda que este dê margem para um entendimento deturpado, quando Clarice fala do cavalo branco do campo de Santana que é “praça para passarinhos, pombos e quatis”. O que deve ter confundido a tradutora. A seqüência das palavras introduzidas na frase, que incluem passarinhos, pombos e quatis, leva o leitor a crer que o terceiro substantivo seja também de uma ave. Outra indução é a de que os animais brincam sobre o cavalo, logo seria mais provável que fossem todos pássaros. São pequenas ciladas capazes de atrair até os tradutores mais experientes, como é o caso de Cristina Peri Rossi. Ciladas que não comprometem o núcleo do conto, mas atingem diretamente o tradutor. Em “Las artimañas de doña Frozina” que em português é “As maniganças de dona Fronzina”, há uma frase originalmente escrita por Clarice em que a própria narradora indaga a personagem D. Fronzina com a seguinte pergunta: “D. Fronzina, a senhora tem qualquer coisa a ver com d. Flor e seus três maridos?” (p. 67). A tradução foi feita ao pé da letra, mas no rodapé a tradutora acrescenta: *Doña Flor y sus dos maridos es el título de uma novela de Jorge Amado”. No mesmo conto há uma outra nota justificando a presença estranha do substantivo “miñoca” que ela optou por traduzir apenas a sonoridade para o espanhol, para não perder o jogo de palavras entre “minhoca” e “minhora”. Como uma forma de esclarecer ao leitor o significado da palavra, ela acrescenta em pé de página: “*En original minhoca; significa gusano.” Na sequência Rossi acrescenta nova nota para informar ao leitor estrangeiro qual Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 92 era o título do conto em Português. A nota diz: “*Éste es el título del cuento en portugués: As maniganças de dona Fronzina.” Pode-se inferir que, na primeira nota há um jogo de palavras, mais propriamente de idéias que mesmo em português deixa o leitor com uma dúvida enroscada na ponta da língua: por que três e não dois maridos? O texto não dá a resposta, Dona Florzina, uma senhora com 70 anos, viuvara aos 29 e desde então, nada de homens. Portanto, nenhuma relação com a viúva de Jorge Amado. O intertexto praticamente se reduz ao nome da personagem e a viuvez, o que só poderá ser estabelecido por quem leu a referida obra. Isso demonstra que a tradutora tem conhecimento da obra e mais genericamente da cultura brasileira. Que se interessa pelo entorno da literatura de Clarice e pelas as obras com as quais esta dialoga. No entanto, acrescenta muito pouco ao leitor enquanto referências. A segunda nota está muito bem colocada. A tradutora encontrou um recurso para preservar o trocadilho tão bem elaborado por Clarice. Ela traduz a sonoridade da palavra brasileira sem carregar com esta o seu significado, justificando em nota de página para que o leitor não tenha prejuízos. A terceira nota diz respeito à palavra maniganças que é traduzida no título e no decorrer do conto por “artimanhas”. Ocorre que no final do relato, o conto em português que faz uso de uma palavra praticamente desconhecida do leitor brasileiro, recebe uma nota explicativa no próprio corpo do conto, como se o estivesse finalizando. Mas na sequência da justificativa, a autora resolve acrescentar mais alguma coisa a respeito do texto, de forma que a justificativa fica no meio3. Outra vez a tradutora se depara com uma situação inusitada para qual o tradutor não está preparado. Como explicar a palavra maniganças se ela não foi citada no texto? Como apagá-la? Como introduzi-la no contexto? Rossi opta por traduzir a explicação, mesmo não fazendo sentido para o leitor. Ela usa um espaço duplo para afastar a explicação do texto, como se fosse uma observação - o que não deixa de ser similar ao original, já que Clarice usa as iniciais “P.S.” - e em notas explica que o título em português é As maniganças de d. Florzina4. 3 P.S. Procure no dicionário o que quer dizer maniganças. Mas adianto-lhe o serviço: manigança – prestidigitação; manobra misteriosa, artes de berliques e berloques. (Do Pequeno Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa). Um detalhe antes de acabar: Dona Fronzina quando era pequena, lá em Sergipe, comia acocorada atrás da porta da cozinha. Não se sabe por quê (p. 69). 4 P.D. Busque en el diccionario lo que quiere decir maniganças. Pero le adelanto el trabajo. Maniganças: Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 93 A última nota está no conto “Uma tarde plena” e refere-se à primeira frase do texto que diz “El saguino es tan pequeño como un ratón”, cuja explicação é bastante restrita, a tradutora apenas define “saguino” como espécie de macaco. O que me parece pertinente. Rossi poderia usar apenas o equivalente da palavra macaco em espanhol (mono), o que não informaria tão bem ao leitor quanto à pequena explicação no rodapé. Como é longo o período em que se discute o referido animal, com implicações em toda a narrativa, mesmo não sendo indispensável, a nota cumpre um papel e preenche uma lacuna originada pelo desconhecimento do animal no país onde a língua é falada. O que podemos sublinhar, com respeito às notas de pé de página é que transferimos a elas todo um contingente de expectativa e deveres que nem sempre corresponde à ferramenta que é, tampouco funciona como uma chave para se decifrar alguma circunstância no texto. Ao chamar a atenção do leitor para determinada palavra ou expressão, o tradutor – que o leitor pressupõe conhecedor do texto em sua totalidade – cria a expectativa de que o objeto de explicação terá um papel importante no desenvolvimento da trama. O leitor detido para receber a informação do que se trata, ficará aguardando o momento em que o objeto retratado terá seu lugar na história, o que nem sempre acontece. O tradutor, inadvertidamente, poderá sugerir ao leitor caminhos diferentes para a interpretação e este se sentir frustrado quando sua expectativa não se realiza. A nota de pé de página é uma marca da passagem do tradutor, são rastros que identificam um pré-leitor, ou re-escritor, de forma categórica e inegável. Ela faz lembrar as anotações e grifos feitos num texto que pertenceu a outro leitor, com palavras rabiscadas na margem, uma assinatura, uma folha seca usada como marcador ou a mancha de algum líquido que sobejou do copo de alguém. Embora isso possa soar romântico, na tradução essas marcas podem denunciar um ato de autoridade do tradutor sobre o texto. Autoridade para julgar a capacidade de compreensão do leitor, autoridade para declarar-se juiz, autoridade para sanar esta incapacidade ou, talvez, para afirmar, ainda que inconsciente, a sua superioridade. Pois, mesmo quando as notas são usadas como um recurso imprescindível para a interpretação do texto, não podem ser lidas sem a consciência de que o texto contém uma outra voz, tão audível que não pode, eventualmente, passar despercebida e o leitor presditigitación; maniobra misteriosa; artes de encantamiento. (Del Pequeño Diccionario brasileño de la Lengua Portuguesa.) Un detalle antes de acabar: Doña Fronzina, cuando era pequeña, allá, en Sergipe, comía en cuclillas detrás de la puerta de la cocina. No sé sabe por qué (p. 419). Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 94 poderá se questionar quem é que está falando. Cristina Peri Rosi comparte com o leitor sua experiência de traduzir a escritora brasileira no prólogo de uma das edições castelhana: Sin Duda, traducir a Lispector Es un desafío. Estamos demasiado acostumbrados a lo ´literario’ como para enfrentarnos espontáneamente a unos textos que de plano renuncian a ello. Pero aun así, la belleza y la prosa de esta mujer resisten muy difícilmente una versión a otra lengua. En primer lugar, no es una belleza convencional. Podríamos decir, incluso, desde una retórica tradicional, que Clarice Lispector escribe mal: repite palabras continuamente (he respectado esas repeticiones), enlaza difícilmente una frase con otra, no se preocupa por la continuidad narrativa, introduce numerosos comentarios personales alejados de la acción. Pero eses aparentes defectos de la escritura convencional son, en cambio, su mayor virtud: siguen el hilo de la asociación libre, del inconsciente. En efecto, el inconsciente es un mal escritor, desde una perspectiva emocional: el inconsciente enhebra mal las frases, asocia libremente. El afán de veracidad de Clarice Lispector se convierte, así, en su belleza propia, inconfundible (ROSSI, 1995, p. 12-13). O mundo do escritor não é o mesmo do tradutor, nem do leitor. Ainda que todos tenham informações sociais parecidas e vivam em realidades semelhantes, têm universos distintos. Essa complexa trama de percepções faz com que cada um recrie o texto dentro das peculiaridades pessoais. Posto que, a forma mais eficaz da comunicação entre línguas alheias seja a tradução, todo transporte, transferência inclui mudanças, ainda que a teoria literária tem se desdobrado em suportes e mecanismos para a correspondência de significados, serão eles insuficientes para expressar a carga cultural que a linguagem carrega. Referências HILL, Christopher. A bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. São Paulo: Civilização Brasileira:2003. JOZEF Bella. A erótica da tradução. In: A máscara e o enigma. Rio de Janeiro: editora Francisco Alves, 1986. LISPECTOR, Clarice. Silencio. Traducción de Cristina Peri Rossi. Barcelona: Grijalbo/mondadori, 1995. Revista de Letras Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, v. 4, n. 7, p. 84-95, jan./jun. 2011. 95 __________. Cuentos reunidos. Trad. Cristina Peri Rossi et al. Madrid: Edições Alfaguara, 2002. MARINA, José Antonio. La selva del lenguaje. Barcelona: Editorial Anagrama, 1998. PERI ROSSI, Cristina. Prólogo. Silencio. Traducción de Cristina Peri Rossi. Barcelona: Grijalbo/mondadori, 1995. EL RIESGO DE TRADUCIR LISPECTOR: CRISTINA ROSSI Y LAS NOTAS AL PIE DE PÁGINAS RESUMEN Este artículo analiza las notas dejadas al pie de cada página como una marca de lectura, por aquél que es el lector del pre-texto: el traductor. Al insertar la nota, el traductor está evaluando la necesidad de aclarar lo que se pretende y, automáticamente, juzgando la capacidad del lector en la comprensión del texto. Temas conflictivos para aquellos que traducen, teniendo en cuenta que las notas son, según la crítica, el espacio de mayor visibilidad para el traductor en cuanto escritor. La discusión propuesta, en este trabajo, se limita a la traducción de la obra ¿Dónde estuviste de noche? de Clarice Lispector, traducido por Cristina Peri Rossi, en España. Palabras-clave: traducción, clarice lispector, cristina rossi, notas explicativas.