MARISA HELENA D’ARBO ALVES DE FREITAS RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELOS DANOS ÀS VÍTIMAS DE CRIMES FRANCA 2001 3 MARISA HELENA D’ARBO ALVES DE FREITAS RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELOS DANOS ÀS VÍTIMAS DE CRIMES Tese apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social de Franca da Universidade Estadual Paulista, para a obtenção do título de Doutor em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado Orientador: Prof. Dr. Augusto Martinez Perez FRANCA 2001 4 À Maria Carolina e à Maria Eduarda, presente e futuro, razão maior de tudo. 5 “É morale che la società, dalla quale i buoni cittadini erano in diritto di esigere protezione, repari agli effetti della mancata vigilanza”. FRANCESCO CARRARA Programma del Corso di Diritto Criminale Pisa, 1859. 6 SUMÁRIO Página Resumo Abstract Résumé INTRODUÇÃO............................................................................................................ CAPÍTULO I: O ESTADO E A SEGURANÇA PÚBLICA ....................................... 1. Noções sobre o Estado ............................................................................................ 1. 1. Origem do Estado ................................................................................................ 1. 2. Justificação do Estado ......................................................................................... 1. 3. Conceito de Estado .............................................................................................. 1. 4. Elementos do Estado ........................................................................................... 1. 5. Finalidade do Estado ........................................................................................... 1. 6. Funções do Estado................................................................................................ 2. Função Administrativa Estatal................................................................................. 3. Segurança Pública.................................................................................................... 3. 1. Considerações gerais ........................................................................................... 3. 2. Conceito de Segurança Pública ........................................................................... 3. 3. Ordem Pública ..................................................................................................... 3. 4. Polícia e Poder de Polícia .................................................................................... 3. 5. A Segurança Pública na Constituição Federal de 1988........................................ CAPÍTULO II: RESPONSABILIDADE DO ESTADO.............................................. 1. Considerações gerais................................................................................................ 2. Responsabilidade do Estado: aspectos, categorias e natureza.................................. 3. Evolução doutrinária da responsabilidade do Estado............................................... 3. 1. Teoria da irresponsabilidade do Estado................................................................ 3. 2. Teorias da responsabilidade do Estado................................................................. 3. 2. 1. Teorias civilistas............................................................................................... 3. 2. 2. Teorias publicistas............................................................................................. 4. Fundamentos da responsabilidade objetiva do Estado............................................. 11 17 18 18 21 26 28 30 33 37 47 47 49 53 56 63 68 69 73 77 79 82 83 85 90 7 5. Pressupostos e causas excludentes ou atenuantes da responsabilidade do Estado... 6. Responsabilidade do Estado no Direito estrangeiro................................................. 7. Responsabilidade do Estado no Direito brasileiro................................................... 8. Hipóteses de incidência da responsabilidade no âmbito administrativo estatal....... 9. Responsabilidade do Estado pelos atos policiais..................................................... CAPÍTULO III: A VÍTIMA DE CRIME...................................................................... 1. Considerações gerais................................................................................................ 2. Evolução histórica no tratamento da vítima de crime.............................................. 3. O surgimento da Vitimologia................................................................................... 4. Conceito de vítima.................................................................................................... 5. Classificação de vítima............................................................................................. 6. Vitimização primária e secundária........................................................................... 7. Interesse patrimonial da vítima de crime................................................................. 8. Reparação dos danos às vítimas de crimes no Direito brasileiro............................. 9. Reparação dos danos às vítimas de crimes no Direito estrangeiro.......................... CAPÍTULO IV: FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTADO PELOS DANOS ÀS VÍTIMAS DE CRIMES.......................................................... 1. Considerações iniciais.............................................................................................. 2. A indenização como obrigação estatal..................................................................... 3. Pressupostos, fundamentos e natureza da responsabilidade estatal nos crimes....... 4. Requisitos e causas excludentes ou atenuantes da obrigação estatal nos crimes..... 5. Julgados................................................................................................................... CONCLUSÕES............................................................................................................. BIBLIOGRAFIA........................................................................................................... 93 100 109 118 129 136 137 138 141 146 153 159 161 164 166 174 175 182 195 203 208 223 228 8 RESUMO A responsabilidade do Estado pelos danos às vítimas de crimes verifica-se nas hipóteses em que incide como causa do evento lesivo, concorrentemente à conduta do agente infrator, a anormalidade do serviço público de prestação de segurança aos administrados. Constitui a segurança direito dos indivíduos pelo qual lhes é assegurado proteção e amparo, permitindo-lhes desfrutar de seus demais direitos. Estendida ao âmbito público, pressupõe a garantia de um estado anti-delitual e de convivência social pacífica, com a preservação e a manutenção da ordem pública e a incolumidade das pessoas e dos seus patrimônios. Conforme estabelece a Constituição Nacional, em seu art. 144, a segurança pública é um dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. Cabe ao Estado atuar no sentido de assegurar efetivamente este direito, no cumprimento do dever que lhe compete e, aos membros da coletividade atuar com diligência, evitando situação de risco, que comprometa a garantia e a proteção de bens e valores tutelados pelo ordenamento jurídico. O crime traz para a vítima danos de ordem física, material, moral, social e psíquica. Deve o Estado responder patrimonialmente por esses danos, concorrentemente com o infrator quando, na situação, verificar-se que, sendo possível a intervenção estatal, esta não ocorreu, ocorreu tardiamente ou de forma ineficiente. Há na hipótese a falha na proteção ao administrado, constituindo esta, concausa do evento lesivo, pelo que deve o Estado ser responsabilizado. Estabelece-se uma relação obrigacional entre o Poder Público e o administrado lesado, em razão da anormalidade do serviço que, como atividade própria da Administração Pública, deve ser realizada de forma eqüitativa, contínua, evolutiva e eficaz. A responsabilidade estatal, por determinação constitucional, é objetiva (Art. 37, §6º, CF/88). Configura-se com o estabelecimento do vínculo etiológico entre o comportamento da Administração Pública e o dano a que se sujeitou o particular. O fundamento é a igualdade de todos diante dos encargos públicos. Exime-se o Estado de responder, quebrando-se o vínculo causal, quando demonstrado que o comportamento da vítima deu causa ao evento ou criou condições para que este ocorresse e, ainda, quando na situação não era possível aos órgãos estatais atuarem na proteção e garantia da segurança do ofendido. A responsabilidade do Estado constitui-se em um instituto restaurador do Direito, que busca a tutela dos interesses dos administrados, juridicamente protegidos, recompondo o equilíbrio rompido pela inadequada atuação estatal e que encontra fundamento maior em um princípio de justiça social e nos postulados do Estado de Direito. 9 ABSTRACT The State is hold responsible for damages caused to victims of crimes when the offence results from a poor public safety service provided to the community, summed up to the criminal’s behavior. Safety is understood as the individuals’ right to be protected and supported by the State so that these individuals are able to enjoy their civil rights fully. In a public scale, safety is supposed to reflect an anti-criminal state, peaceful and sociable living, preserving public order and keeping people’s assets and well-being unharmed. According to the National Constitution, article 144, public safety is a duty of the state and everyone’s responsibility. As its duty, it is a state obligation to assure this right to individuals, as it is to the members of the community to act with caution, avoiding situations which might put at risk the assets and values under the state protection. Crime causes physical, material, moral, social and psychical disorders to its victims. The State must, as much as the criminal, be hold responsible for such damages when there is evidence that the State was negligent in providing proper care or did not provide care at all in a specific situation. In such hypothesis the State failed to protect the individual, i.e., the State became a contributory factor to the crime and must be hold responsible for it. A relationship of obligation between Government and Individual is then established since the service – that should be offered in a fair, continuos and efficient manner - was not properly provided for. Under the Constitution, the responsibility held by the state is clear (article 37, paragraph 6, Federal Constitution of 1988). It is based on the causal connection established between the Public Administration behavior and the damage suffered by the individual. The principle is that everyone is equal before public authorities. The State is exempt from its obligations when it the victim’s behavior was the cause or a facilitator to the offence, and when the State was not in position to act as guardian to the individual, therefore breaking the causal bond. The responsibility the State bears must be a re-establisher of Rights caring for interests of legally protected individuals’, restoring the balance ended by improper state action. Its principles are held by the State of Right. 10 RÉSUMÉ La responsabilité de l’État par les dommages aux victimes de crimes est vérifiée dans les hyphotèses sur lesquelles tombent comme cause de l’événement lésionnaire, concouramment à la manière d’agir de l’infracteur, l’anormalité du service public de prestation de sécurité aux administrés. La sécurité constitue du droit des individus par lequel leur est assurée de la protection et de l’appui, leur permettant de jouir de leurs autres droits. Étendue à la sphère publique on présuppose la garantie d’un état antidélictueux et de convivialité sociale pacifique, avec la pré- servation et la maintenance de l’ordre public et l’intégrité des individus et de leurs patrimoi-nes. Selon la Constitution Nacionale à l’article 144, la sécurité publique est un devoir de l’État et la responsabilité de tous. Il appartient à l’État l’obligation d’agir effectivement pour assurer ce droit, dans l’accomplissement de son devoir et, aux membres de la collectivité agir promptement,en évitant de la situation de risque, qui puisse campromettre la garantie et la protection de biens et de valeurs potégés par l’ordre juridique. Le crime porte à sa victime des atteintes d’ordre physique, matérielle, morale, sociale et phychique. Doit l’état répondre patrimonialement de ces atteintes-ci, concouramment à l’infracteur, quand, dans la situation, se vérifier que si c’est possible l’intervention de l’État et celle-ci n’est pas arrivée, est arriveé tardivement ou de façon enefficace. Il y a sur l’hypothèse la faute à la protection de l’administré, constituant celle-ci de la cause concourante de l’événement lésionnaire, et à cause de cela l’État doit être responsabilisé. On établit une rélation d’obligation entre le Pouvoir Public et l’administré lésé, en raison de l’anormalité du service que, comme activité propre de l’Administration Publique, doit être réalisée de façon équitable, continue, évolutive et efficace. La responsabilité de l’État, par determination constitutionnel, est objective (Art. 37, §6e, CF/88). Celle-ci arrive avec l’établissement du lien étiologique entre le comportement de l’Administration Publique et l’atteinte à qui s’est soumis le citoyen. Le fondement est l’égalité de tous devant les charges publiques. On exempte l’État de répondre, en rompant le lien causal, quand on démontre que le comportement de la victime a donné de la cause à l’événement ou a créé des conditions pour que celui-ci arrive et, encore, quand dans la situation il n’était pas possible aux organes de l’État agir pour protéger et garantir la sécurité de l’offensé. La responsabilité de l’État se constitue une institution restauratrice du Droit que cherche la tutelle des intérêts des administrés, juridiquement protégés, en recomposant l’équilibre rompu par l’inadéquate actuation de l’État et qui trouve du fondement majeur dans le postulat de l’État de Droit. INTRODUÇÃO O tema Responsabilidade do Estado pelos danos às vítimas de crimes integra a categoria ampla do instituto da responsabilidade pública, informada por princípios de Direito Público e que consiste na imputação ao ente estatal da obrigação de responder pelos danos causados aos administrados, em razão de suas atividades. Constitui-se em instituto restaurador do Direito, destinado a recompor o equilíbrio rompido com a ocorrência de prejuízos anormais e especiais, fundamentado pelos postulados de eqüidade e justiça social. Como desdobramento da categoria geral, a responsabilidade do Estado em relação aos crimes verifica-se nas hipóteses em que incide como causa do evento lesivo, concorrentemente com a conduta do infrator, a anormalidade do serviço público de prestação de segurança aos administrados. Esta modalidade de responsabilidade não tem recebido o devido acolhimento jurídico, sendo pouco referida pelos doutrinadores e, em geral, rejeitada pelos tribunais, prevalecendo, na matéria, concepções que não se adequam à condição de Estado de Direito, vigente na atualidade. Dada a sua importância no contexto social, necessário se faz o seu tratamento com bases jurídicas mais adequadas, aliadas às garantias definidas da vítima de crime como sujeito de direitos e do reconhecimento do ente público estatal como sujeito responsável, que cria o direito e a ele se submete. O crime e os altos índices de criminalidade têm-se constituído em um dos problemas sociais mais preocupantes dos nossos dias, requerendo a atenção das autoridades públicas e das disciplinas científicas, na busca de soluções que levem ao seu controle e minimizem os seus efeitos. O Estado, nesse processo, não pode ser isentado de sua responsabilidade. Constitui a segurança, um direito dos indivíduos, pelo qual lhes é assegurado proteção e amparo, permitindo-lhes desfrutar de seus demais direitos. Estendida ao âmbito público, pressupõe a garantia de um estado anti-delitual e de convivência social pacífica, com a preservação e a manutenção da ordem pública e a incolumidade das pessoas e dos seus patrimônios. Segundo estabelece a Constituição Nacional, em seu art. 144, a segurança pública é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”. Constitui-se, assim, a segurança 12 pública em tarefa fundamental do Estado Democrático de Direito, consolidado na Carta Magna, voltado para a superação das desigualdades sociais e regionais e instauração de um regime democrático que realize a justiça social. O crime afeta diretamente a incolumidade e o patrimônio das pessoas e coloca em risco a ordem pública e a paz social. A sua prevenção e repressão constituem função do Estado, que tem, por expressa disposição constitucional, o dever de preservar e restabelecer a convivência social pacífica, proporcionando a todas condições de vida harmônica em sociedade, assegurando os direitos e a defesa de interesses legítimos. Para dar efetividade ao texto constitucional, deve o Estado, através de seus órgãos e agentes, exercer uma atividade de vigilância, prevenindo e reprimindo condutas delituosas, além da formulação de políticas criminais que permitam o tratamento adequado do crime, do criminoso e da vítima. Embora o crime seja inerente à própria vida em sociedade, a sua ocorrência, além de limites toleráveis, revela, na maioria dos casos, a inoperância do Estado, a deficiência de políticas sociais, econômicas e criminais e o descaso no tratamento de questão extremamente relevante para a sociedade, negligenciada com a adoção de medidas que, concretamente, pouco contribuem para a solução do grave problema da violência social e que transforma a todos em vítimas potenciais. O alto índice de criminalidade, marco da realidade atual, extrapola os limites aceitáveis, próprios do regular funcionamento de toda a ordem social. Há muito, o crime excedeu a sua condição de elemento integrador e inovador da sociedade, função destacada na concepção sociológica do delito da Teoria Criminológica da Anomia de Durkheim, constituindo-se, na atualidade, fator de isolamento e risco de desestruturação da sociedade institucionalizada. A busca de solução para esse grave problema tem-se limitado, na maioria das vezes, à promulgação de leis que criam tipos penais novos, agravam penas e restringem as garantias e benefícios processuais dos acusados e condenados, medidas absolutamente divorciadas dos caminhos apontados pelas Ciências Criminais. Falha o Estado na sua função de proporcionar segurança aos administrados e à sociedade em geral, omitindo-se ou agindo inadequadamente. Descuida da tutela dos direitos dos cidadãos, que pagam impostos e têm limitada a sua liberdade e os seus demais direitos em benefício da coletividade. 13 Agindo dessa forma, tem ele responsabilidade. Deve, em conseqüência, responder pelos danos decorrentes da não prestação da adequada tutela a que se propõe, razão mesma da sua existência. A concepção do Estado responsável predomina, hoje, na maioria dos sistemas jurídicos, tendo atingido, no ordenamento nacional, a condição de garantia constitucional, com o estabelecimento da responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviços públicos, respondendo pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiro (Art. 37, par. 6º, CF). Embora assente a responsabilização estatal no âmbito da Administração Pública, independente da condição do prejudicado, a vítima de crime permanece desatendida pelo sistema, não recebendo o devido tratamento e a adequada proteção legal. Inúmeras são as dificuldades para o exercício da pretensão de ressarcimento dos danos sofridos com a conduta delituosa e com a incúria do Estado. O interesse da vítima concreta do delito sucumbe ante o interesse público, centrado na busca da restauração da ordem pública com a aplicação da lei penal. Vigora no sistema penal a concepção clássica de delito, como a violação da lei do Estado, desconsiderando-se que a atividade criminosa afeta tanto o interesse público, quanto o privado. Além deste aspecto, há que se destacar ainda, que através dos anos, as Ciências Penais e as Políticas Criminais vêm centrando os seus esforços no estudo do delinqüente e na busca de um sistema que preserve seus direitos e a sua dignidade, criando modelos alternativos de pena e desenvolvendo fórmulas para a sua recuperação e reinserção na sociedade. A vítima de crime, ao contrário, tem sido negligenciada pelos especialistas na matéria e abandonada à sua própria sorte, compelida a sujeitar-se às conseqüências danosas dos delitos, suportando seus efeitos físicos, morais, psíquicos, econômicos e sociais, além da insensibilidade do sistema legal e da indiferença da comunidade e do Poder Público. No sistema penal, tem sido a vítima relegada a uma posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e processual, sem outro papel senão o de mero declarante, em um processo judicial que visa a apuração da responsabilidade penal do infrator para a sua punição, recompondo o interesse público lesado com a infração penal. Esta neutralização, conforme apontam os especialistas, resulta da própria origem do processo legal moderno que objetiva a solução institucionalizada dos conflitos, despersonalizando a rivalidade entre as partes e convertendo a vítima real e concreta do drama criminal em mera abstração. 14 Definida, juridicamente, como sendo o sujeito passivo principal ou secundário da infração penal e que se submete, em virtude desta, a um dano, a vítima de crime é um sujeito dotado concretamente de direitos. O reconhecimento desta condição deu-se com o aparecimento, após a II Guerra Mundial, da Vitimologia, ciência interdisciplinar que tem por objeto o estudo da vitimização, seus controles, suas conseqüências e seus remédios e que propiciou, nos últimos anos, um processo de revisão do papel da vítima, no fenômeno delitivo. O redescobrimento da vítima de crime, inserido no movimento internacional de direitos humanos do pós-guerra, iniciou uma nova fase para esse sujeito de direitos, verificando-se no Direito Penal a tendência manifesta da adoção de medidas de proteção aos seus interesses, voltadas para a reparação dos danos, alicerçadas na concepção de que os conflitos devem ser resolvidos pelas partes neles envolvidas, integrando a vítima ao sistema penal com o acolhimento de suas pretensões. Têm sido adotados, para infrações de menor potencial ofensivo, modelos informais de composição e conciliação, restringindo-se o papel do Estado, até então, sujeito lesado principal, priorizando o interesse particular na solução do conflito de interesses, instaurado com a prática da infração penal. Há tendência, ainda, na adoção da reparação dos danos às vitimas como modalidade de pena. Efetiva-se o reconhecimento de que o crime lesa, tanto o interesse público, quanto o interesse privado e o restabelecimento da ordem jurídica só concretiza com a ampla tutela de ambos os interesses: o da sociedade, com a aplicação da sanção penal e o do particular prejudicado, com o atendimento das expectativas geradas pelos prejuízos a que se submeteu. Se a concepção da dupla lesão provocada pelo crime, ofendendo interesses diversos, é relativamente recente na história da humanidade, a reparação dos danos às vítimas de crimes, ao contrário, está presente desde época remota, aparecendo em antigas legislações, como o Código de Hamurabi (1930 a.C.) e a Lei das XII Tábuas. Surgiu como forma de restringir a vingança privada, representando um substitutivo para a sanção penal. A preocupação com a vítima, constante nos primórdios da humanidade, foi abandonada por um longo período de tempo, ressurgindo recentemente em movimentos que buscam a sua revalorização e propõem a instituição de sistemas legais que prevejam mecanismos asseguratórios de sua efetiva reparação. Alternou-se o status da vítima, ao longo da história, do protagonismo para a neutralização e, atualmente, para o seu redescobrimento. Com o seu redescobrimento, muito se tem feito na busca de sua efetiva proteção. Tenta-se, hoje, reverter uma situação de quase completo abandono, dando à vitima a condição adequada de figurar no complexo do crime como um sujeito de direitos. Alerta-se para a 15 insuficiência de um direito penal voltado tão somente para a repressão dos delitos, desinteressado das necessidades que afetam às vítimas, apontando a carência de mecanismos dirigidos ao asseguramento da satisfação dos interesses dos sujeitos passivos dos crimes, os quais, em sua grande maioria, devido à falta de condições econômicas daqueles, juridicamente declarados responsáveis pelos delitos, não experimentam nenhuma mudança na sua situação, quando não resultam prejudicados pela própria intervenção penal. Deve-se observar que, embora a adequada assistência à vítima requeira um amplo atendimento, abarcando os múltiplos efeitos do crime, para o tratamento do tema proposto, é de interesse apenas o aspecto material: o ressarcimento dos danos patrimoniais e morais decorrentes da conduta delituosa. Refere-se essa assistência à compensação dos prejuízos sofridos e ao atendimento das necessidades econômicas da vítima, derivadas do crime. Há, neste âmbito, medidas assistenciais e medidas obrigacionais. Reconhece-se o direito social das vítimas e de seus dependentes carentes de serem assistidos pelo Estado, como um direito subjetivo fundamental, concretizado em prestações positivas, devidas às pessoas ou classes de pessoas menos favorecidas, mais fracas ou vulneráveis. Quanto às medidas obrigacionais, cabe ao sistema jurídico reconhecer e assegurar o direito à compensação dos danos sofridos pelo ofendido com o crime, garantindo o integral ressarcimento dos prejuízos materiais e morais decorrentes do crime. Neste aspecto, é importante ressaltar que a grande maioria dos ordenamentos jurídicos prevê a reparação dos danos, a cargo do infrator, como efeito secundário da pena ou reconhecida em ação própria, independente da ação penal ou vinculada a ela. O grave problema da lesão aos direitos do indivíduo, provocada pelo o delito, não se soluciona, contudo, com a previsão legal da obrigação do infrator de reparar os danos, já que, na maioria dos casos, o seu autor é insolvente ou desconhecido e, mesmo quando identificado, a vítima encontra sérios obstáculos para o exercício da sua justa pretensão nas vias judiciais. A matéria requer, assim, a sua reavaliação, com a redefinição da relação jurídica obrigacional que se forma quando da ocorrência do delito, como imperativo de justiça social. O crime impõe ao Estado, além do dever de assistir às vítimas necessitadas e aos seus dependentes carentes, a obrigação de responder pelos prejuízos a que se submeteram, nas situações em que se evidenciar a omissão ou ineficiência do serviço público. O Estado, pessoa jurídica pública, com funções definidas e finalidades próprias, possui direitos e sujeita-se a obrigações. No exercício de suas atividades, voltadas para o 16 atendimento das necessidades do indivíduo e da coletividade, visando o bem comum, submete-se às normas legais vigentes e tem responsabilidade, devendo responder pelas conseqüências de sua atuação, recompondo os agravos patrimoniais e morais provenientes de sua ação ou omissão lesiva. Com o objetivo de estabelecer os fundamentos para o reconhecimento efetivo dessa obrigação estatal, o presente trabalho analisará, inicialmente, o Estado, ente jurídico público, verificando sua origem, justificação, elementos, finalidade e funções, para o tratamento, em particular, da sua função administrativa, enfocando especialmente a atividade de polícia e a segurança pública. Ainda como pressupostos do tema central deste trabalho, desenvolvido no último capítulo, proceder-se-á à análise do instituto da responsabilidade jurídica estatal, suas teorias e fundamentos que a informam, além da análise da vítima de crime, abordando sua concepção na atualidade, sua condição de sujeito de direitos, a evolução no seu tratamento ao longo da história, o seu papel no processo penal e os modelos de tutela de seus interesses. A matéria será tratada sob os aspectos doutrinário, legislativo e jurisprudencial, enfocando o direito comparado, com especial atenção ao direito brasileiro, prisma fundamental deste trabalho, que visa a análise da atuação do Estado na proteção das vítimas de crime, sob o aspecto da indenização dos danos sofridos. O tema é de grande relevância jurídica e social, constituindo a tutela dos interesses desses sujeitos de direitos, imperativo de uma sociedade justa e solidária, exigência dos postulados do Estado Social e Democrático de Direito. CAPÍTULO I O ESTADO E A SEGURANÇA PÚBLICA 18 1. Noções sobre o Estado O desenvolvimento do tema proposto requer a análise de alguns aspectos do ente público Estado, visto ser ele, na discussão a ser realizada, o sujeito principal da relação jurídica que se pretende estabelecer quando há a ocorrência da infração penal. Sem a pretensão de esgotamento da matéria, necessário se faz esta abordagem, analisando a origem do Estado, sua justificação, conceito, elementos, fim e funções, para se chegar à questão da atividade administrativa estatal e, em especial, da segurança pública, estabelecendo as bases para o desenvolvimento da tese que se pretende defender. 1. 1. Origem do Estado O Estado, tal qual se apresenta contemporaneamente, ente dotado de personalidade jurídica, com elementos definidos na sua constituição e caracterizado como prestador de serviços, voltado para a manutenção dos direitos individuais e do desenvolvimento do interesse comum, constitui estágio atual da organização político- jurídica da sociedade, em um processo de evolução que vem se desenvolvendo desde a origem remota da humanidade. A própria denominação Estado, com o sentido que lhe é atribuído em nossos dias, é relativamente nova. Os gregos utilizaram-se da expressão polis e os romanos empregaram as palavras civitas e respublicae. Alguns autores, atribuem a origem da palavra Estado à expressão latina status, com o seu significado de estar firme. Embora tal expressão tenha por base a idéia de situação ou condição, conforme Fernando Facury Scaff, é possível visualizar-se aí, a origem do termo, já que os romanos utilizavam-se da expressão status reipublicae para significar a coisa pública, os negócios do Estado e, em razão do desuso da segunda expressão pelos medievais, o termo status passou a designar unicamente o Estado1. 1 SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade do Estado intervencionista. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 1. 19 Dalmo de Abreu Dallari, partindo da consideração de que a expressão Estado deriva do latim status, destaca que o seu uso, com o significado de situação permanente de convivência e ligada à sociedade política, deu-se pela primeira vez na obra O Príncipe, de Maquiavel, datada de 1513. Foi, portanto, a partir do século XVI que se deu o aparecimento da expressão Estado, indicando uma sociedade política, dotada de certas características bem definidas. A maioria dos autores, contudo, considera que a sociedade que hoje denomina- se Estado é, em essência, igual à que existiu anteriormente a esse marco temporal, ainda que com nomes diversos e atribuem esta designação a todas as sociedades políticas que, com autoridade superior, fixaram regras de convivência para os seus membros2. Em relação à origem do Estado, Dalmo de Abreu Dallari, com propriedade, afirma ser necessário para o seu estudo, a análise de duas questões: a época do seu aparecimento e os motivos determinantes do seu surgimento3. A questão inicial, relativa à época do aparecimento do Estado, tema ligado à origem da denominação dada a ele, embora sejam muitas as teorias explicativas existentes, é possível sintetizá-las em três posições fundamentais. A primeira delas considera que o Estado sempre existiu, assim como a sociedade, surgindo ambos concomitantemente, de tal forma que seria inconcebível a existência de uma sociedade sem Estado. Neste sentido, as posições de Eduard Meyer e Wilhelm Koppers, que entendem o Estado como “o princípio organizador e unificador de toda a organização da humanidade”4. Para a segunda corrente, de grande aceitação entre os especialistas na matéria, o Estado é fruto da sociedade, surgindo em diferentes épocas e em diferentes lugares, de acordo com as condições concretas de cada um. Por razões diversas, mas essencialmente em função de conflitos de interesses dentro do grupo social, o chefe primitivo, que dispunha de prestígio e desempenhava um papel de liderança, transformou-se em chefe político, em caráter permanente e com autoridade para manter a ordem interna e fixar diretrizes. O Estado seria, assim, resultante da evolução natural da sociedade, constituído para atender às necessidades ou às conveniências dos grupos 2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 1985. p.45. 3 Ibidem. 4 Ibidem, p. 46. 20 sociais, marcado por traços como a necessidade de domínio ou poder, próprio da personalidade humana5, ou subordinado a causas econômicas e culturais6. A terceira corrente só admite a existência do Estado quando este passa a apresentar determinadas características, as quais despontam na transição do Feudalismo e do Absolutismo para o denominado Estado Moderno. Karl Schmidt, partidário desta tese, considera a soberania como traço distintivo, que marca a origem estatal, o que teria ocorrido no século XVII e, Balladore Pallieri, advogando o mesmo entendimento, aponta com precisão o ano de 1648, como marco para o surgimento do Estado, ano em que foram assinados os tratados territoriais de Munster e Onsbruck, denominados Paz de Westfália7. Quanto aos motivos determinantes do surgimento do Estado, deve-se considerar, em razão das divergências doutrinárias, a sua formação originária e derivada. A primeira, refere-se ao aparecimento inicial do Estado como forma de organização social, entendendo o Estado a partir de agrupamentos humanos originários, de formação natural ou contratual, pela vontade dos homens. O Estado teria surgido da evolução da família (origem familial ou patriarcal), ou da sujeição do grupo social mais fraco ao mais forte, numa relação de dominação, ou, ainda, por motivos econômicos, para um melhor aproveitamento dos recursos do grupo, ou, finalmente, como conseqüência do desenvolvimento interno da sociedade que, pelo grau de complexidade alcançado, passaram a ter necessidade absoluta do Estado. Pela forma derivada, os Estados novos teriam se formado a partir de outros preexistentes, pelo fracionamento, com o desmembramento de um Estado já existente, ou pela união, ocorrendo a integração de um Estado a outro8. 5 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 12.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. p.119-20. 6 CARVALHO JUNIOR, Clóvis de. As origens do Estado. Franca: Faculdade de História, Direito e Serviço Social, 1988. Tese (Livre Docência), Faculdade de História, Direito e Serviço Social, 1988. p. 38. 7 DALLARI, op. cit., p. 46-47, nota 2. 8 DALLARI, op. cit., p. 50, nota 2. 21 1. 2. Justificação do Estado A análise dos motivos determinantes ou das causas justificadoras da origem do Estado tem relevância para o tema desse trabalho, tendo em vista que o elemento segurança, a ser enfocado como um dos aspectos que fundamentam a tese a ser defendida, aparece sempre, explícita ou implicitamente, nas teorias formuladas pelos especialistas na matéria. A doutrina da justificação do Estado é exposta, com grande acuidade, pelo mestre germânico Jellinek, em sua obra Teoria Geral do Estado, destacando que o problema da justificação do Estado não consiste em esclarecer sua origem histórica, mas em questionar os motivos racionais em favor da sua existência9. Neste sentido, analisando as várias teorias que buscam definir a origem do Estado, afirma este tratadista que as concepções teológica-religiosas da sua origem, atribuindo a ele um poder advindo de Deus, não apresentam nenhum valor de caráter político. Podem elas apenas explicar as causas remotas do poder, servindo as doutrinas do direito divino como justificativa para o poder real, como fundamento para combatê- lo ou limitá-lo. A teoria da força, que tem por essência a concepção do Estado como o domínio dos fortes sobre os mais fracos, relação fundada numa tendência da natureza, determina a submissão do indivíduo ao poder estatal por ser um poder natural, do qual não é possível evadir-se. Para Jellinek, esta teoria desconsidera que o poder de dominação é, predominantemente, de natureza psicológica e não física, faltando a ela motivos éticos, justificadores da existência do Estado. Considerando o Estado originário de atos de violência, a teoria da força não o justifica, não o fundamenta, mas sim o destrói, preparando caminho para a revolução permanente. As teorias que fundamentam a origem do Estado em um princípio de ordem jurídica, que o precede e lhe é superior e do qual ele deriva, compõem-se, segundo Jellinek, das teorias patriarcal, patrimonial e contratual, sendo esta última a mais importante pela influência exercida na construção do Estado moderno. Todas estas teorias, contudo, apresentam o grave erro da adoção de uma falsa concepção do Direito, partindo sempre de um direito que existe sem organização social. 9 JELLINEK, Georg. Teoria general del Estado. Buenos Aires: Albatroz, 1973. p. 137. 22 As doutrinas da origem familial - teoria patriarcal, considerando que o Estado procede da família, significando uma ampliação dela, não têm apoio científico. A teoria patrimonial, inspirada no regime feudal, fundamenta a formação do Estado na proteção da propriedade e considera que o reconhecimento do Estado advem do poder da propriedade. Sujeita-se, contudo, a críticas severas, por estabelecer uma ordem de propriedade pré-estatista, sem o esclarecimento de onde procede o direito do proprietário que cria a ordem jurídica e, ainda, a existência de uma ordem jurídica na qual o elemento territorial aparece como fundamental no Estado, colocando o homem em um plano secundário10. As teorias contratualistas, por sua vez, considerando o contrato como o fundamento jurídico do Estado, são divorciadas da realidade histórica. Têm, contudo, grande importância por fornecer um esquema lógico de interpretação do Estado, fundamentando a limitação do poder (Locke, Montesquieu, Kant) e o princípio democrático (Rousseau), bases para os princípios constitucionais dos Estados modernos11. Dentre aqueles que buscaram a origem estatal na ação consensual dos homens, Thomas Hobbes, personificador do Estado todo-poderoso na sua obra Leviatã, afirma ser o Estado resultante de um pacto voluntário de seus súditos, pelo qual concederam ao governo a totalidade de seus direitos, submetendo-se a ele em benefício da paz social. Na busca da autopreservação, vencendo o estado natural de ferocidade, no qual havia guerra de todos contra todos, os homens teriam se associado, instituindo, por ato voluntário, um poder capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das agressões recíprocas, garantindo-lhes a segurança necessária para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, pudessem alimentar-se e viver satisfeitos. Para Hobbes, o Estado constitui-se em meio para assegurar a continuidade do gênero humano, tendo como lei suprema o bem do povo12. John Locke, grande influenciador do pensamento ocidental, cujas teses serviram de base para as democracias liberais, em sua obra Dois Tratados sobre o Governo Civil defende a idéia de que a sociedade política foi criada pelo homem através de um contrato, celebrado não entre governantes e governados, mas entre homens igualmente livres. Considera que o homem, vivendo no estado natural em perfeita liberdade e 10 JELLINEK, op. cit., p.149, nota 9. 11 Ibidem, p.149-161. 12 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 105. 23 igualdade, estaria exposto a inconvenientes, principalmente em razão da sua inclinação no sentido de beneficiar-se a si próprio ou a seus amigos, ameaçando, em conseqüência, o gozo da propriedade e a conservação da liberdade. O pacto social, implicando no abandono do estado natural, evitaria a concretização dessas ameaças. Não criaria ele, contudo, nenhum direito novo que viesse a ser acrescentado aos direitos naturais. Seria apenas um acordo entre indivíduos, reunidos para empregar a sua força coletiva na execução das leis naturais, renunciando a executá-las individualmente. O objetivo do pacto seria a preservação da vida, da liberdade e da propriedade, bem como a repressão à violação desses direitos naturais. Opondo-se às idéias de Hobbes, Locke acredita que não há, no pacto, a renúncia pelos homens de seus direitos naturais em favor do poder dos governantes13. Jean-Jacques Rousseau, marco revolucionário dentro da história da cultura, principal figura da teoria contratualista, afirma ser o Estado produto de convenção, resultante da vontade da maioria dos indivíduos. Para ele não há governo de direito divino. O governo é instituído para a promoção do bem comum e não pode ser tolerado se é injusto, podendo o povo rescindir o contrato quando não fossem atendidos os anseios populares e o governo deixasse de ser expressão da vontade geral. Em sua obra O Contrato Social, Rousseau assevera que o homem, em seu estado de natureza, deu-se conta da sua existência e cuidando de sua conservação passou a conviver em grupo. Nestes, embora propiciassem o seu desenvolvimento, havia conflitos e vinganças violentas. Buscando proteção da sua pessoa e de seus bens, os homens uniram-se com os demais, em um pacto fictício, criando o Estado para tutelá- los. A legitimação deste pacto advem da condição de que a entrega à Pátria de cada cidadão, o garante contra toda dependência pessoal. Na sua luta de afirmação da liberdade como direito inalienável e exigência essencial da própria natureza espiritual do homem, já que todos, segundo ele, nascem livres, Rousseau procurou encontrar uma forma de associação na qual cada um unindo- se a todos obedecesse, porém, apenas a si mesmo, permanecendo livre como antes de estabelecer o contrato, uma forma de associação que respeitasse essa mesma liberdade que lhe dá origem14. 13 MARTINS, Carlos E., MONTEIRO, J. P. Locke, vida e obra. In: Os pensadores - Locke. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 16-17. 14 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 19-24. 24 Dentre as doutrinas que pretenderam estabelecer justificação para o Estado, conforme destaca Pedro Vidal Neto, a de maior aceitação é a da formação natural. “O Estado surge num certo momento da evolução social, quando as sociedades adquirem maior complexidade e torna-se necessário instituí-lo”15. Embora não haja, em relação às teorias da formação natural ou espontânea do Estado, coincidência quanto à causa, tem- se em comum a afirmação de que o Estado formou-se naturalmente e não por ato voluntário. Nestas doutrinas, refletem-se as idéias de Platão e Aristóteles. Ambos os pensadores desenvolveram suas teorias sem referência à formação consensual do Estado, entendendo-o como uma criação da natureza. O filósofo Platão, em sua obra A República, afirma ser a cidade-estado uma decorrência das necessidades humanas, por não serem os homens auto-suficientes. O poder tem uma função social e a organização da cidade apoia-se numa divisão racional do trabalho, buscando atender às necessidades dos homens. O Estado teria se formado para o aproveitamento dos benefícios da divisão do trabalho entre as diferentes classes de pessoas, cumprindo todas as suas próprias funções, consistentes na produção, defesa e administração interna, visando a felicidade a ser alcançada por todos, indistintamente16. Observa-se, contudo, que há autores que defendem o entendimento de que a formulação justificadora da origem estatal de Platão tem em seu cerne a motivação econômica, incluindo sua teoria dentre aquelas não-contratuais, de natureza patrimonial ou econômica17. Aristóteles, discípulo de Platão, considerado o maior dentre todos os filósofos, descrevendo o homem como um animal naturalmente político, destinado a viver em sociedade, atribui a origem do Estado a uma criação da natureza, resultado da associação de aldeias, constituídas por famílias, como forma de suprir as necessidades diárias dos homens. Essa comunidade nasce para assegurar o viver e, formada, é capaz de assegurar o viver bem. Sua finalidade é a busca da felicidade humana, possibilitando a completa realização de todas as capacidades do homem18. Nas diferentes concepções da formação natural do Estado, admite-se, contudo, não ter havido uniformidade histórica, interferindo nesse processo diferentes fatores, 15 VIDAL NETO, Pedro. O Estado e os direitos sociais. São Paulo: Faculdade de Direito, 1978. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 1978. p. 60-61. 16 Platão, vida e obra. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 23. 17 DALLARI, op.cit., p. 48-49, nota 2. 18 ARISTÓTELES. Política. Tradução de Therezinha Monteiro Deutsch e Baby Abrão. In: Os pensadores. Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 145-146. 25 isolada ou concomitantemente. Conforme destaca Dalmo de Abreu Dallari, ao fator inicial deve-se, ainda, adicionar novos fatores que interferem na vida social, dentre eles a própria liberdade humana e os determinismos sociais, de tal forma que a situação inicial é, inevitavelmente, modificada19. Ainda na linha das teorias da origem natural ou espontânea do Estado, há que se falar na doutrina formulada por Engels e pelo marxismo, inseridas na teoria patrimonial, fundamentando a criação do Estado na proteção da propriedade, por motivos econômicos. Para Engels, o Estado é um produto da sociedade, ao atingir determinado grau de desenvolvimento. Decorrência da evolução natural da sociedade, aliada à vontade de domínio ou de poder, inerente à personalidade humana, o Estado tem por finalidade a consagração da propriedade privada, a proteção das riquezas adquiridas e da forma de sua acumulação20. Engels21 e as doutrinas marxista, ao contrário das outras formulações apresentadas, pretendem a condenação do Estado, considerando-o como uma instituição que perpetua a divisão da sociedade em classes, o direito da classe possuidora explorar a não-possuidora, e o domínio da primeira sobre a segunda. Negando justificação para sua existência, postulam sua extinção, tendo em vista sua não existência nos primeiros tempos da sociedade humana e sua criação dirigir-se à satisfação de apenas uma pequena minoria. A despeito dessas teorias terem significativa importância para a evolução do Estado, enfatizando a relevância dos interesses coletivos em detrimento do interesse do capital, o Estado se justifica, sendo necessário para a realização de determinados fins. Neste sentido, afirma Jellinek que o “Estado, nas formas concretas de sua existência histórica não será justificado senão pelas finalidades cumpridas”, reclamando a doutrina da justificação do Estado, o complemento da doutrina dos fins do Estado22. Como entidade criada pelo homem para dirigir a vida da coletividade, o Estado tem seu gérmen na idéia de restrição disciplinadora do comportamento humano em benefício do interesse geral. Uma restrição à liberdade integral que o homem possuía na sua origem, em favor de um comando coordenador para a coletividade, como forma de obter uma coexistência pacífica em comunidade, como meio de se obter melhores 19 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 69. 20 ENGELS, op.cit., p. 102 e 160, nota 5. 21 DALLARI, op.cit., p. 49, nota 2. 22 JELLINEK, op.cit., p. 170, nota 9. 26 condições de sobrevivência, como garantia de proteção e segurança dos seus administrados. Justifica-se a existência do Estado para a satisfação da necessidade de segurança que os indivíduos têm, condição superior para que eles possam desenvolver-se integralmente, propiciando, em conseqüência, o progresso da sociedade. 1. 3. Conceito de Estado Dada a heterogeneidade do Estado, produto de realidades de natureza distintas, apresenta ele grande dificuldade na sua conceituação. Como fenômeno complexo, pode ser considerado sob diferentes pontos de vista. Afirma Dalmo de Abreu Dallari23 que a complexidade e a variedade de formas do ente estatal determinam a existência de uma multiplicidade de conceitos. Desenvolvidos segundo o elemento considerado primordial pelo observador, numa perspectiva que envolve sempre um quantum de subjetividade, verifica-se, ainda, a impossibilidade de um conceito que satisfaça a todas as correntes doutrinárias. Nesta grande variedade de conceitos, observa o autor a existência de duas orientações fundamentais: ou a ênfase recai sobre a noção de força ou sobre sua natureza jurídica, tomando-se como ponto de partida a noção de ordem. Na primeira, cujos conceitos são considerados políticos, o Estado é visto, essencialmente, como força que se põe a si própria e que, por suas próprias virtudes, busca a disciplina jurídica. Duguit adota esta orientação conceituando Estado como uma força material irresistível, limitada e regulada atualmente pelo direito. Para a segunda, enfocando a noção jurídica de Estado, orientação surgida na Alemanha, no século XIX, este é conceituado como pessoa jurídica, estando o seu funcionamento subordinado às regras jurídicas. Neste sentido, os conceitos de Hans Kelsen, que considera o Estado como ordem coativa normativa da conduta humana24, e 23 DALLARI, op.cit., p. 101-104, nota 2. 24 KELSEN, Hans. Teoria geral do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 191. 27 de Jellinek, de que “o Estado é uma corporação formada por um povo, dotada de um poder de mando originário e assentada em um determinado território”25. Dallari conclui a sua análise, apresentando um conceito de Estado com base nos seus elementos, enfatizando o componente jurídico, sem afastar, contudo, os fatores não-jurídicos. Segundo ele, o Estado é a “ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”26. Celso Ribeiro Bastos, visando a conceituação do Estado, observa que este ente público é, ao mesmo tempo, fato social e fenômeno normativo, podendo ser estudado pela Sociologia e pelo Direito. Sob o primeiro aspecto, o Estado é enfocado como agrupamento humano que se organiza sobre determinado território, destacando os elementos população e território. Em relação ao segundo, a ênfase recai sobre a organização normativa do Estado ou mesmo sobre a força ou poder que impõe a obrigatoriedade desse direito, destacando os “pré-requisitos ou as condições que tornam possível o funcionamento de uma ordem juridicamente soberana na qual residirá a essência derradeira do Estado”27. Considerando a origem do Estado, a evolução por que passou e os elementos que o integram, Celso Ribeiro Bastos conclui que: “o Estado é a organização política sob a qual vive o homem moderno. Ela caracteriza-se por ser a resultante de um povo vivendo sobre um território delimitado e governado por leis que se fundam num poder não sobrepujado por nenhum outro externamente e supremo internamente”28. Para Pinto Ferreira, o conceito de Estado deve ser determinado na sua expressão ideal e histórica a fim de se ter uma noção aproximada da sua essência ideológica. Segundo ele, o Estado é “ordem normativa-coativa da conduta humana, dotado de uma autonomia constitucional ampla ou restrita”29. Qualquer que seja o conceito adotado, há que se considerar que as concepções que identificam o Estado com apenas um de seus elementos não se coadunam com a realidade. Na sua definição, devem ser considerados todos os seus componentes, assim como seus diferentes aspectos. 25 JELLINEK, op.cit., p. 135, nota 9. 26 DALLARI, op.cit., p. 104, nota 2. 27 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do Estado e ciência política. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 6-7. 28 BASTOS, op. cit. p. 10, nota 27. 29 FERREIRA, Luís Pinto. Teoria geral do Estado. 3.ed. (revista, ampliada e atualizada). São Paulo: Saraiva, 1975. v. 1. p. 165. 28 A ênfase recai geralmente no elemento poder, como pode-se observar nos conceitos apresentados. Embora o poder constitua o centro de gravidade do Estado, este não é, exclusivamente, poder. Deve-se considerar, ainda, que este poder não se identifica com a simples força material, podendo-se dizer que é a força qualificada pelo Direito. Ele se legitima na medida em que se conforma ao Direito. Deve ele ser exercido segundo o Direito, para a realização de um ideal de justiça. 1. 4. Elementos do Estado Constituído de forma originária, partindo de agrupamentos humanos ainda não integrados a outras sociedades, ou de forma derivada, a partir de outros Estados preexistentes, quer pelo fracionamento, quer pela união, o Estado evoluiu, desde o Estado Antigo, fundamentalmente teocrático, até atingir o estágio atual de Estado Moderno, uma sociedade política e juridicamente organizada, com unidade territorial, dotada de poder soberano e formado por pessoas que se integram em função de um fim comum a ser atingido. Contrapondo-se aos demais tipos de Estados, como o Antigo e o Medieval, o Estado Moderno é caracterizado, fundamentalmente, pelos conceitos de soberania, povo e território. São estes os elementos entendidos como essenciais ao Estado. Há doutrinadores, como Groppali, que acrescentam a estes elementos a finalidade, como razão e justificativa do Estado30. Dentre os elementos tidos por essenciais, povo e território são os elementos materiais porque ocupam lugar no espaço: ser humano e base física. O terceiro elemento, a soberania, é formal, porque depende das formas ou leis do pensamento. Característica fundamental do Estado, base da idéia de Estado Moderno, a soberania tem conteúdo polêmico, tendo o seu conceito firmado-se no século XVI. Em todas as teorias formuladas a seu respeito, a noção de soberania está sempre ligada a uma concepção de poder. É referida por alguns estudiosos como um poder do Estado e entendida por outros como qualidade do poder do Estado. 30 DALLARI, op.cit., p. 63, nota 2. 29 Definida pela primeira vez por Jean Bodin31, em sua obra Les six livres de la Rèpublique, a soberania era considerada como um poder absoluto e perpétuo, sem limitação e sem tempo certo de duração, características às quais foram acrescidas, posteriormente, a inalienabilidade, a indivisibilidade e a imprescritibilidade. Concebida em termos políticos, expressava a plena eficácia do Poder, como poder incontrastável de querer coercitivo e de fixar competências. Na atualidade, distanciando-se da sua origem histórica, é entendida como um poder limitado pela ordem jurídica, um poder que está disciplinado juridicamente quanto a sua aquisição, exercício e perda, que sujeita-se a restrição no uso arbitrário da força. Em sua concepção jurídica, soberania é o poder de decidir em última instância sobre a atributividade das normas, ou seja, sobre a eficácia do Direito32. Numa formulação mais abrangente, integrando os conceitos social, jurídico e político do poder, Miguel Reale conceitua soberania como “o poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência”33. Verifica-se que, no Estado Moderno, a evolução da ordem jurídica levou a uma restrição, cada vez mais acentuada, da margem de atuação livre e incondicionada do poder estatal. Há, nos Estados, limitações constitucionais ao exercício do poder e os Estados Constitucionais só podem atuar nos limites das competências que lhes são conferidas pela Lei Maior. Afirma Celso Ribeiro Bastos que a soberania constitui-se na atualidade como qualidade ou atributo da ordem jurídica estatal e, neste sentido, mantém-se soberana, “porque embora exercida com limitações não foi igualada por nenhuma ordem de direito interna, nem superada por nenhuma outra externa”34. 31 BODIN, Jean. Les six livres de la Rèpublique. 1583. Apud. DALLARI, op.cit., p. 67, nota 2. 32 DALLARI, op.cit., p. 70, nota 2. 33 REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 2.ed. São Paulo: Martins, 1960. p. 127. 34 BASTOS, op.cit., p. 27, nota 27. 30 1. 5. Finalidade do Estado Entendida por alguns teóricos, dentre eles Alexandre Groppali, como sendo um dos elementos essenciais do Estado Moderno, a finalidade do Estado tem fundamental importância no âmbito das atividades estatais, condicionando as funções a serem desempenhadas por ele, os direitos, os deveres e os limites da autoridade. A teleologia estatal constituiu-se no centro de interesses da Teoria do Estado durante um longo período, principalmente na primeira metade do século XIX, quando se considerava que o conhecimento do Estado dependia da compreensão que se tivesse de seus fins. Alguns doutrinadores conferem a ela grande destaque, dentre eles o mestre germânico Jellinek, considerando-a como complemento necessário da doutrina da justificação do Estado. Há aqueles, contudo, que entendem ser a doutrina dos fins do Estado destituída de significado, fugindo ao conteúdo normativista da sua teoria geral. Dentre eles Kelsen, para quem o Estado, como personificação da ordem jurídica, é meio para a realização de todos os fins sociais possíveis35. Outros autores, ainda, consideram o Estado como um fim em si mesmo, como a própria finalidade do homem, autorizando moralmente o Estado a servir-se do homem como instrumento da própria grandeza nacional36. Em seu trabalho monográfico intitulado O Estado é meio e não fim, Ataliba Nogueira analisa as teorias favoráveis e contrárias à teleologia estatal, concluindo que o Estado “não é o fim do homem; sua missão é ajudar o homem a conseguir o seu fim. É meio, visa à ordem externa para a prosperidade comum dos homens”37. Esta concepção, do Estado como um instrumento do progresso humano e não um fim em si mesmo, tem sido dominante no âmbito da filosofia política e social. Para Dalmo de Abreu Dallari o conhecimento das finalidades é imprescindível para que se tenha uma idéia completa do Estado, havendo estreita relação entre os fins e as funções estatais. Ele sintetiza as várias teorias que buscam definir os fins do Estado, estabelecidos em inúmeras classificações, tais como fins objetivos ou subjetivos, fins expansivos, limitados ou relativos e, ainda, fins exclusivos ou concorrentes, concluindo 35 KELSEN, op.cit., p. 191 e seguintes, nota 24. 36 FERREIRA, op.cit., p. 197, nota 29. 37 NOGUEIRA, José Carlos de Ataliba. O Estado é meio e não fim. São Paulo: Saraiva, 1955. p. 155. 31 que todas as sociedades políticas têm um fim geral, “constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais sociedades possam atingir seus respectivos fins particulares”. Este fim geral é o bem comum, conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana, tal como foi definido pelo Papa João XXIII, na Encíclica Pacem in Terris. Esse é o objetivo da sociedade humana. Cada Estado tem a sua finalidade, qualificada pela busca do bem comum, definido em função das peculiaridades de seu povo, situado em seu território, fato que determina uma concepção de bem comum para cada Estado, em função das particularidades de cada povo38. Embora a concepção de bem comum, reportando-se às finalidades próprias da vida social de cada povo, implique na existência de conceitos variáveis no tempo e no espaço, conforme adverte Georges Burdeau, não há impedimento para a formulação de um conceito universal, abordando elementos permanentes e estáveis, de ordem formal, que figuram ao lado de elementos materiais, interpretações dos primeiros e que têm caráter contingente e variável. Os elementos formais do Estado são a ordem e a justiça. A ordem, decorrente da necessidade social de estabelecer medidas e limites ao comportamento dos indivíduos, e a justiça, consistente na atribuição a cada um do que é seu, têm conteúdo e interpretação variáveis no tempo e no espaço, segundo as circunstâncias, em relação a cada povo e de acordo com a cosmovisão dominante39. Darcy Azambuja é contrário à idéia da variabilidade do fim do Estado, afirmando ser ela decorrente da confusão feita pelos doutrinadores entre os conceitos de fim e de competência. Segundo ele, o fim do Estado, que é o bem público, é invariável, mudando incessantemente as atividades que exerce para atingir a sua finalidade. Estas atividades constituem a sua competência. O bem público compreende, em síntese, dois elementos: segurança e progresso, havendo uniformidade nos meios para realizar a ordem interna e externa, ou seja, a manutenção dos serviços de justiça e polícia, de forças armadas, diplomacia, dentre outros40. A maioria dos autores, contudo, admite a multiplicidade de variações na interpretação do bem comum, decorrente da necessidade de adequá-lo às finalidades da 38 DALLARI, op. cit., p. 90-95, nota 2. 39 BOURDEAU, Georges. Traité de science politique. Paris: Librarie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1949. v.1, p. 59. Apud. VIDAL NETO, op.cit., p. 81, nota 16. 40 AZAMBUJA, Darcy. Introdução à ciência política. 4.ed. Porto Alegre: Globo, 1982. p.114 e seguintes. 32 vida social, com caráter contingente e variável. A concretização do bem comum em cada caso particular poderá variar, conforme a cultura, as instituições, os recursos e as necessidades de cada povo. A variação temporal e espacial na interpretação do bem comum dá-se em razão da relação que se estabelece entre os valores individuais e coletivos e da forma como estes valores são tutelados pelo Estado, sendo o critério diferenciador a maior ou menor atividade social do Estado. Fundamentalmente, as atividades do Estado, para a consecução das finalidades que devem ser alcançadas, podem ser separadas em jurídica e social. A atividade jurídica, essencial ao Estado e indeclinável, é dirigida à tutela do Direito e abrange a declaração do Direito, a distribuição de justiça, a manutenção da ordem interna e a defesa contra agressões externas. A atividade social compreende todos os demais campos de atuação do Estado, visando assegurar aos cidadãos bem-estar, cultura e progresso. Incide especialmente na ordem econômica, na educação e na saúde pública. Sua extensão dependerá das finalidades que forem conferidas ao Estado. O bem comum ou o bem público, como preferem alguns autores em razão da amplitude da primeira expressão, a par das diferentes interpretações que pode sofrer, apresenta algumas idéias fundamentais, tais como direito, ordem, segurança, justiça, liberdade individual e dignidade humana. Essas idéias ou elementos, ou integram a concepção de bem comum, ou estão imediata e solidariamente ligadas a esse conceito. A finalidade do Estado e também do Direito consiste em assegurar que pela justiça, pela ordem e pela segurança, sejam criadas as condições que permitam aos membros da sociedade alcançar o seu bem, o bem de todos, o bem público ou comum. Sem se confundir com o bem de cada indivíduo isolado, ou com a soma ou o resultado dos bens individuais, pois cada um pode ter interesses ilimitados e conflitantes em relação aos outros, ou ainda, com o bem de uma entidade abstrata, o bem comum deve ser entendido como o bem de todos e o bem de cada um. Tem por sujeito o público, o povo inteiro, conjunto de indivíduos reunidos no Estado, sem a exclusão de ninguém, ou a particularização de quem quer que seja. Constitui meio para que os indivíduos possam realizar o seu fim, conjunto de condições materiais e morais que possibilitam o seu integral desenvolvimento. Dessas condições, entendidas como elementos formais do bem comum, faz parte a segurança dos indivíduos e da própria sociedade, objeto de interesse maior para o desenvolvimento do tema proposto. Constitui-se em elemento permanente dos fins do 33 Estado, definidor da noção de bem comum, figurando ao lado da ordem e da liberdade como valor meio fundamental, em linguagem utilizada por Miguel Reale41, estando subordinado à Justiça que, com o sentido de ordem social justa e como valor fim do Direito, vale para que todos os valores possam ter validade. 1. 6. Funções do Estado Visando a promoção do bem comum ou do bem público, o Estado tem funções, exercendo atividades sobre um conjunto de assuntos, serviços ou objetos, de forma ampla ou restrita, mantendo a ordem interna, assegurando a defesa contra perigos externos, realizando vários serviços para o bem-estar e o progresso da coletividade. Segundo Cretella Júnior, deve-se entender por funções as diferentes atividades que o organismo estatal exerce para atingir os fins a que se propõe o Estado42. Tradicionalmente, as funções do Estado têm sido tripartidas em executiva, legislativa e judiciária. Essas funções, ao longo do processo de evolução e organização do ente público estatal, sujeitou-se às variações de concepções, às ampliações e restrições, centralizadas na pessoa única do governante ou distribuídas por diferentes órgãos da composição estatal. Em sua fase inicial, o poder do Estado achava-se concentrado em uma pessoa única, quer física, singular ou coletiva, e toda a atividade era exercida por esse órgão único e supremo. Nas sociedades primitivas, ao chefe cabia a manutenção da ordem interna, o julgamento dos dissídios, a imposição de penalidades, o comando dos guerreiros e, geralmente, o desempenho das funções religiosas. Toda a atividade de interesse do grupo, relativa ao que hoje se denomina direito, moral, religião, administração, serviços públicos, governo, dentre outras, era exercida por um órgão único, pessoa individual ou coletiva. Esse modelo de concentração do poder e da atividade pública em um só órgão, não teve, contudo, mesmo nas sociedades primitivas, duração prolongada. A complexidade adquirida pelos grupos, com o aumento da população e do território, conforme destaca Darcy Azambuja, obrigou a delegação de certas atribuições à pessoas 41 REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1953. v. 1. p. 254. 42 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 81. 34 da confiança do chefe ou príncipe, impossibilitado de atender pessoalmente a tudo. “Ainda que a autoridade permanecesse em princípio concentrada nele, o seu exercício tinha de ser dividido entre várias pessoas. É a lei natural da especialização das funções e da divisão do trabalho nas sociedades complexas e relativamente adiantadas”43. Conforme aponta o autor citado, “a especialização das funções ou divisão dos poderes no Estado é a conseqüência natural do desenvolvimento social, da complexidade crescente da atividade do poder público, do progresso material e moral dos povos”44. A teoria das funções do Estado, mais comumente tratada como teoria da separação de poderes ou da divisão de poderes, foi concebida para assegurar a liberdade dos indivíduos, como meio eficaz e necessário para se evitar a formação de governos absolutos. Seu acolhimento e consagração deu-se numa época em que se buscavam instrumentos para o enfraquecimento do Estado, restringindo a sua interferência na vida social apenas como vigilante e conservador das situações estabelecidas pelos indivíduos45. À concepção inicial, foi acrescida, com o passar dos tempos, a idéia de aumento da eficiência do Estado, pela distribuição de suas atribuições entre órgãos especializados, como uma conquista de técnica de governo. Segundo Pinto Ferreira, o princípio da separação de poderes pode ser definido como “o sistema que consiste em confiar cada tarefa governamental a um órgão diferente”, órgãos que são o legislativo, o executivo e o judiciário, possuindo cada um deles uma especialização funcional e uma relativa independência orgânica46. A teoria da separação de poderes tem sua origem remota em Aristóteles que identificou a existência de três funções principais em todo o Estado, referindo-se a uma função consultiva que se pronunciava acerca da guerra e da paz e acerca das leis, uma função judiciária e um magistrado incumbido dos assuntos restantes da administração. Depois do filósofo grego, a doutrina da divisão dos poderes permaneceu por longo período esquecida, sendo retomada aos poucos pelos filósofos do Estado. No Século XVII, com John Locke, foi sistematizada pela primeira vez. Inspirado na Constituição inglesa, esse filósofo afirmou em suas obras ser necessário que as funções do Estado fossem exercidas por órgãos diferentes, não sendo adequado, dada a fragilidade humana e a tentação ao abuso do poder, que as mesmas pessoas que faziam 43 AZAMBUJA, op.cit., p. 174-175, nota 40. 44 Ibidem, p. 177. 45 DALLARI, op. cit., p. 189, nota 2. 46 FERREIRA, op.cit., p. 733, nota 29. 35 as leis, as executassem. Ele identificou a existência de quatro funções fundamentais: legislativa, executiva, federativa e discricionária, a serem exercidas por dois órgãos do Poder. Construída gradativamente, de acordo com o desenvolvimento do Estado em função dos grandes conflitos político-sociais, foi, contudo, com Montesquieu que, no Século XVIII, a teoria da tripartição dos poderes ganhou contornos definidos, projetando-se como dogma constitucional e incorporando-se ao Estado Constitucionalista Moderno. Com ele, além da tese da necessidade da distinção de poderes estatais, já prevista por outros filósofos, definiu-se a atribuição de funções e finalidades específicas a cada um dos ramos do grande sistema do organismo estatal. O jurista e filósofo francês, em sua obra O Espírito das Leis, prevê a divisão do exercício do poder ou funções do Estado e a correspondência entre a divisão funcional e a divisão orgânica da atividade estatal. Retomando as constatações aristotélicas, afirma a existência de três funções fundamentais em todo Estado: a legislativa, a executiva e a judiciária, funções intrinsecamente diversas e inconfundíveis, mesmo quando confiadas a um só órgão. Inovou, contudo, ao agregar à concepção anterior, o postulado da necessidade da correspondência entre cada uma dessas funções e um órgão próprio que, de forma autônoma e independente, levá-la-ia a efeito. Assim, a cada uma das funções passou a corresponder um Poder distinto: à função legislativa, o Poder Legislativo, à função judiciária, o Poder Judiciário e à função executiva, o Poder Executivo. A essência da doutrina da separação de poderes de Montesquieu consiste no estabelecimento de um mecanismo de equilíbrio e recíproco controle a presidir o relacionamento entre aqueles três órgãos supremos do Estado, operando uma limitação ao poder estatal, em benefício da liberdade dos cidadãos contra o arbítrio governamental. Cada órgão desempenharia função distinta, de forma harmônica e, ao mesmo tempo, a atividade de cada qual atuaria como contenção da atividade de outro órgão do Poder, sem paralisarem-se uns aos outros. Criou-se, assim, um sistema de freios e contrapesos, possibilitando o equilíbrio entre esses órgãos, pretendendo abolir, com isso, o arbítrio e a prepotência. A teoria desenvolvida por Montesquieu foi adotada pela Revolução Francesa e proclamada enfaticamente na Declaração Francesa dos Direitos do Homem. Sofreu, contudo, alteração com a proposta de uma divisão absoluta de funções, sem controle recíproco, o que na prática constitucional revelou-se inviável, já que dentro do Estado 36 não se admite haver três órgãos que se ignoram reciprocamente e absolutamente bastante a si mesmos. Sua primeira objetivação positiva deu-se na Constituição Americana, de 17 de setembro de 1787, a primeira carta política nacional a admiti-la, universalizando-se para o constitucionalismo moderno. A evolução da teoria da separação dos poderes deu-se no sentido da afirmação da idéia de que nenhum dos Poderes é em si mesmo soberano, havendo sempre a possibilidade de controle recíproco, exercido entre si pelos poderes e de controle realizado por órgãos da sociedade, e ainda, da gradativa perda da pureza de cada uma das funções do Estado, de tal forma que cada Poder exerce a função que lhe é peculiar, sem o caráter absoluto de exclusividade, desempenhando também funções que lhe são atípicas, próprias de outros poderes, para melhor se desincumbir de sua missão, de forma excepcional ou em caráter subsidiário. A diferenciação do Poder Público em Legislativo, Executivo e Judiciário não esgota as funções de legislar, julgar e executar. A legislação não permanece afeta tão só ao Poder Legislativo. A administração cabe ao Executivo apenas quando encarada em sentido estrito, refugindo à sua esfera característica quando vista latu sensu. A função judicante em sentido amplo ultrapassa a concepção do Poder Judiciário, havendo controvérsias que encontram solução fora de seu âmbito próprio. Embora seja clássica a expressão separação de poderes, tratada por alguns autores como divisão de poderes, deve-se observar que o Poder do Estado é uno e indivisível. A existência de vários órgãos encarregados das atividades estatais, exercendo o poder soberano do Estado, não quebra essa unidade, não permitindo um afastamento da vontade política central, informadora de toda organização estatal. Neste sentido, afirma Altamira Gigena que, na atualidade, a doutrina opõe-se à divisão de poder, já que o poder do Estado é um só e o que se divide são as suas funções. O que ocorre, na realidade, é a distribuição de funções entre os órgãos estatais, que exercem uma parte do poder geral do Estado47. Dalmo de Abreu Dallari discorre sobre a relação existente entre as idéias de poder e de função do Estado, afirmando que essa diferenciação tem importância na medida em que está relacionada com a concepção do papel do Estado na vida social. Quando se pretende a desconcentração do poder, atribuindo o seu exercício a vários 47 ALTAMIRA GIGENA, Julio I. Responsabilidad del Estado. Buenos Aires: Astrea, 1973. p. 39/41. 37 órgãos, a preocupação maior é a defesa da liberdade dos indivíduos, buscando eliminar o risco de um governo ditatorial. De outro lado, quando se pretende a divisão das funções, o que se procura é aumentar a eficiência do Estado, organizando-o de maneira mais adequada para o desempenho de suas atribuições48. O grande mérito da teoria das funções do Estado, ou da teoria da separação dos poderes consistiu na captação de três momentos sempre presentes no funcionamento de qualquer ordem jurídica: da feitura das leis, da sua concretização e da recomposição da ordem jurídica lesada. Qualquer que seja o grau de complexidade da atividade a ser desempenhada pelo Estado Moderno, é possível distinguir-se essas três modalidades ou espécies de funções. Ao Poder Legislativo cabe o estabelecimento das normas gerais que regulam a vida social. O Poder Judiciário decide os conflitos de apreciação do direito, mediante as sentenças e decisões da Justiça, tendo função de fixar o direito incerto ou questionável, bem como os interesses e situações jurídicas. O Poder Executivo tem o papel básico de efetivação do interesse comum e proteção coercitiva da ordem jurídica; provê à tutela da ordem jurídica e à realização do bem-estar social49. Essas funções, legislativa, judiciária e executiva, constituem funções vitais do Estado Moderno e referem-se à totalidade dos diferentes atos que podem emanar da atividade estatal. Os Poderes ou órgãos aos quais correspondem têm, na maioria dos Estados, uma estruturação e regulamentação constitucional e compõem, em seu conjunto, o Poder estatal, uno na sua essência e natureza conceitual. A divisão dos mesmos, concebida para assegurar a liberdade dos indivíduos, figura ao lado da submissão ao império da lei e da garantia aos direitos individuais, como postulado fundamental do Estado de Direito. 2. Função administrativa estatal Na estrutura funcional do Estado, o Poder Executivo é o órgão encarregado precipuamente da função executiva ou administrativa. Sua denominação é alvo de 48 DALLARI, op.cit., p. 189-190, nota 2. 49 FERREIRA, op.cit., p. 740, nota 29. 38 críticas tendo em vista ser ele um órgão cujas atribuições, inúmeras e complexas, não se restringem apenas à execução das leis, caráter este vinculado a sua origem. Trata-se do Poder que efetivamente governa, administrando e cuidando dos problemas políticos e sociais, e que tem no seu órgão supremo o representante máximo do Estado. Considerando a formulação de harmonia e equilíbrio existente entre os Poderes que compõem o Poder geral do Estado, preocupam-se os doutrinadores em afirmar a não superioridade do Poder Executivo em relação aos demais Poderes, verificando-se mesmo, em muitos casos, a dependência de seus atos à aprovação e confirmação daqueles. A importância da atividade realizada por ele, contudo, é destacada por tratadistas como Jellinek, que considera ser a administração a mais abrangente das funções estatais, necessitando sempre ser exercida, de tal forma que sem ela o Estado não poderia existir. Segundo ele, pode-se conceber um Estado despótico sem leis e sem juizes; porém sem administração seria a anarquia. Competem a ela a preparação das leis e o apoio à atividade do juiz, assegurando a execução das decisões judiciais. Esclarece o doutrinador que a administração, historicamente, mostra-se como função fundamental, pois a legislação, em princípio, estava unida a ela, separando-se somente mais tarde. A atividade jurisdicional, por sua vez, limitada no começo a uma ação insignificante, alcançou um campo mais amplo de atividade com o processo de evolução do Estado. Afirma, por fim, que se pode designar como administração toda atividade do Estado que resta, uma vez separada a legislativa e a jurisdicional e que esta possibilidade de limitação negativa reflete a significação que tem esta atividade para o Estado, já que somente ela é suscetível de ser explicada pela mera oposição às demais atividades e ordens do Estado50. A atividade de execução da lei, deu à função executiva, contudo, por muito tempo, o caráter de subordinação à função legislativa e de identidade com a jurisdicional, preocupando-se os administrativistas em fixar a sua independência e auto- suficiência em relação às outras funções, fundamentadas no amplo rol de atividades multiformes que exerce e que propiciam serviços, bens e utilidades, dificilmente inseríveis na idéia restrita de execução da lei. Embora se oriente pelo princípio da legalidade, a administração não se limita à atuação da lei, como a jurisdição, não agindo em substituição às partes envolvidas no conflito, quando decide controvérsias, em seu 50 JELLINEK, op.cit., p. 463, nota 9. 39 próprio âmbito. Suas decisões não apresentam o caráter de imutabilidade da coisa julgada, podendo ser revistos os seus atos por outros atos administrativos ou por atos jurisdicionais. Buscando identificar e caracterizar as funções estatais e os seus respectivos órgãos executores, considera Miguel Marienhoff que, “o conteúdo de cada uma dessas funções essenciais (legislação, execução e justiça) varia com relação à lei e com relação ao tempo. O órgão legislativo dita ou cria a lei, a altera e a suspende segundo sua vontade e conforme a Constituição; o executivo cuida que a lei se cumpra e se observe; o órgão judiciário a interpreta e aplica, quando se suscitam controvérsias ou conflitos relativos ao que foi feito ou omitido sob seu império. De maneira que o legislativo se ocupa principalmente do futuro, o executivo do presente, enquanto que o judiciário é retrospectivo, atuando sobre o passado. Deduz-se disto que a atividade da Administração é contínua, permanente, enquanto que a atividade legislativa e a judiciária não revestem esse caráter, já que aparecem como intermitentes ou descontínuas”51. No amplo universo das funções estatais, a função legislativa é aquela por meio da qual o Estado constitui o seu ordenamento jurídico e produz os atos destinados a inová-lo. Atividade de deliberação, compreende, segundo Edmir Netto de Araújo, “o estabelecimento de regras gerais e impessoais às quais todos deverão obedecer”52. Caracteriza-se pela produção de atos apenas subordinados à Constituição. A função judiciária ou jurisdicional, por sua vez, atua nos casos concretos de violação de uma lei ou naqueles em que se pretenda tenha havido tal violação, objetivando a aplicação da norma jurídica a uma hipótese de conflito, mediante processo regular. Caracteriza-se pela aplicação contenciosa da lei e pela imutabilidade da decisão que produz, resultante esta, do caráter de coisa julgada de que se reveste este ato decisório, quando esgotados os recursos cabíveis. A função executiva ou administrativa, objeto de interesse no tratamento do tema proposto, apresenta uma latente dificuldade na sua conceituação. Constitui-se, em lição de Celso Ribeiro Bastos, na “prática pelo Estado, como parte interessada de uma relação jurídica, de atos infralegais, destinados a atuar praticamente as finalidades descritas na 51 MARIENHOFF, Miguel S. Tratado de derecho administrativo. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1970. v.1, p. 38-40. 52 ARAÚJO, Edmir Netto de. Responsabilidade do Estado por ato jurisdicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 19. 40 lei”53. É a função encarregada de promover a satisfação constante das necessidades coletivas, com a prestação de bens e serviços e a realização de prescrições restritivas. Para a doutrina clássica, a função executiva resumia-se à defesa externa e à manutenção da ordem interna, assumindo o controle da Administração e assegurando o funcionamento dos serviços indispensáveis, direta ou indiretamente, executando a lei concretamente. Entretanto, com a mudança da filosofia de atuação do Estado, transformado de État Gendarme em Welfare State, houve um alargamento e diversificação da função executiva, ampliando-se consideravelmente as atividades a serem realizadas por este órgão. Darcy Azambuja alerta não ser tarefa fácil enumerar as atribuições do Poder Executivo no Estado Moderno, tantas e tão complexas são elas. Este autor cita Artaza, que afirma ser “um critério seguido em todas as Constituições, que ao Poder Executivo compete, em primeiro lugar, representar a totalidade do Estado e em harmonia com essa idéia o Chefe do Poder Executivo é o Chefe do Estado. O Poder Executivo é encarregado também de dar um impulso central, uma alta direção a todos os assuntos nacionais. Tem o direito de iniciativa perante as Câmaras, inspeciona os Tribunais de Justiça, dirige os diversos ramos da Administração e associa-se aos atos religiosos, econômicos, científicos e artísticos, mesmo organizados por entidades privadas, desde que alcancem alguma importância nacional. O Poder Executivo vela pela ordem pública no interior e pela segurança do Estado no exterior, promulga e publica as leis e, em muitos países, as sanciona também, trata da execução das mesmas e edita regulamentos oportunos. Preenche os cargos públicos, concede honrarias, tem o direito de graça e administra a justiça em matéria administrativa”54. Segundo Darcy Azambuja, cabe ao Executivo governar. Considera, contudo, que governar, na atualidade, não é só administrar. Inclui atribuições de natureza política e social55. No Estado atual, ampliou-se, significativamente, o número de suas atribuições, decorrentes da sua própria evolução, com a acentuada intervenção do Estado no domínio econômico, com a socialização dos serviços públicos e com a necessidade da planificação da ação governamental. 53 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 169. 54 AZAMBUJA, op. cit., p. 190-191, nota 40. 55 Ibidem, p. 191. 41 Ao Poder Executivo competem, assim, a administração e o governo, atividades que ora se confundem, ora se distinguem, havendo uma grande dificuldade na separação entre elas. Em geral, embora haja uma diversidade de critérios distintivos, adotam-se os sistemas formal ou subjetivista e o material ou objetivista, para o estabelecimento dos traços característicos de uma e outro. Em relação ao sistema formal, com base nos órgãos que desempenham as funções públicas, governo será toda a atividade exercida pelos representantes ou órgãos de representação, que exprimem a vontade da nação, não se sujeitando ao controle de nenhuma vontade superior; administração, por sua vez, será exercida pelos agentes, que não têm o caráter de representação, sujeitando-se à autoridade e controle dos órgãos aos quais se vinculam. No sistema material, apoiado nas funções desempenhadas pelos órgãos públicos e partindo da distinção entre as funções públicas de estabelecimento e conservação da ordem jurídica e de prestação de serviços públicos, considera-se governo toda a atividade relativa à criação da norma, de asseguramento de uma situação de direito e de decisão de conflito de interesses, enquanto que administração seria a realização de obras gerais de caráter coletivo, conjunto de atividades pelas quais o Estado atende aos interesses gerais, satisfazendo às necessidades coletivas. Embora se originem ambas as atividades, governo e administração, de órgãos administrativos, e a distinção entre elas não possa ser feita de modo nítido e preciso, os atos nos quais essas atividades se concretizam têm um conteúdo e uma eficácia diversos. Assim, conforme ensina Groppali, enquanto a atividade administrativa, mediante atos concretos, realiza o disígnio de satisfazer o bem-estar dos cidadãos, a atividade de governo, por sua vez, tem por fim a direção geral do Estado, considerado em sua unidade. De outro lado, se contra os atos administrativos existe recurso ou ação, seja no âmbito da Administração ou na jurisdição ordinária, quando esses atos lesam interesses legítimos ou direitos subjetivos, ao contrário, não se permite nenhum gravame contra os atos emanados do Governo, no exercício do poder político56. Esta afirmação de que os atos exclusivamente políticos não se sujeitam ao controle do Judiciário, embora comum, merece reparos. É necessário observar-se que, na sistemática constitucional atual, dado o modelo de garantias vigente, há instrumentos pelos quais se pode levar os referidos atos à apreciação do Judiciário, caso eles afetem 56 GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado. Tradução de Paulo Edmur de Souza Queiroz. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1968. 42 direitos subjetivos ou individuais e interesses difusos. No Brasil, há a ação popular e ação civil pública para a tutela desses interesses. Sob um ponto de vista particular, afirma Manoel Gonçalves Ferreira Filho que o “Poder Executivo compreende o governo, que é sua cabeça, e a administração, que consiste em seu tronco e membros”. Para ele, governo “é o órgão ou conjunto de órgãos, a que pertence a representação do todo e a tomada das decisões fundamentais, no que é de sua competência”. Administração, por sua vez, é o conjunto de órgãos que, propriamente, acompanham a execução das leis e decisões em geral, ou que a preparam, ou, ainda, que as executam por si, compreendendo tanto o serviço civil ou burocracia, como as Forças Armadas, que é o seu braço militarizado57. Segundo Odete Medauar, diz-se que o governo tem a ver com a tomada de decisões fundamentais à vida da coletividade, com vistas até o seu futuro, enquanto administração significa realizar tarefas cotidianas e simples. Diz-se, também, que o governo é dotado de função, primordialmente política, fixando diretrizes da vida associada, cabendo à Administração a tarefa de cumprimento de tais diretrizes, que aparece, nesta linha, como dependente do governo ou submetida às diretrizes do mesmo. Alerta a administrativista que, em geral, mostra-se difícil a fixação de fronteiras rígidas entre governo e administração em razão do aumento, na época contemporânea, da importância da atividade administrativa na dinâmica do Estado, participando os seus servidores de atividades que seriam típicas de governo e, ainda, da coexistência, no vértice do Poder Executivo, de funções governamentais e funções administrativas, como é o caso do Brasil58. A atividade de governo, exercida pelos representantes do Poder, é política e discricionária, direção suprema dos negócios públicos, exercida com independência, preponderantemente pelo Poder Executivo. A administração, por sua vez, é atividade voltada para a satisfação das necessidades coletivas, de forma direta, contínua e permanente, sujeita ao ordenamento jurídico vigente, atuando de forma hierarquizada e com responsabilidade técnica e legal. É a atividade encarregada de pôr em prática as opções políticas do governo. 57 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 19 ed. revista. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 193. 58 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p.47-48. 43 Oswaldo Aranha Bandeira de Mello apresenta duas versões para a origem do vocábulo administração. Num primeiro entendimento, deriva de ad (preposição) mais ministro, as, are (verbo), que significa servir, executar. Para o outro, vem de ad manus trahere, que traz a idéia de direção ou gestão. Em ambas as hipóteses há o sentido de subordinação e hierarquia. Contudo, conforme, demonstra o citado administrativista, o vocábulo administrar compreende, além da idéia de prestação de serviço, a execução, bem como direção, governo, exercício de vontade com o objetivo de obter um resultado útil, significando ainda, em sentido vulgar, traçar programa de ação e executá-lo59. Em razão da amplitude de seu significado, não é raro ver nela incluída a função administrativa propriamente dita, além da função de governo, referindo-se os autores à administração em sentido próprio ou estrito e em sentido amplo, como sinônimo de função executiva. A administração pública, vista em seu sentido próprio, objeto de estudo do Direito Administrativo, é conceituada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, como “o conjunto de atividades preponderantemente executórias, praticadas por pessoas jurídicas de direito público ou por suas delegatárias, gerindo recursos total ou parcialmente públicos, na prossecução dos interesses legalmente cometidos ao Estado”60. Conforme lição de Odete Medauar, a Administração Pública pode ser considerada sob o ângulo funcional e sob o ângulo organizacional. No primeiro aspecto, significa um conjunto de atividades do Estado que auxiliam as instituições políticas de cúpula no exercício de funções de governo, que organizam a realização das finalidades públicas postas por tais instituições e que produzem serviços, bens e utilidades para a população. Sob o ângulo organizacional, Administração Pública representa o conjunto de órgãos e entes estatais que produzem serviços, bens e utilidades para a população, como coadjuvante das instituições políticas de cúpula no exercício das funções de governo. Predomina, nesse aspecto, a visão de uma estrutura ou aparelhamento articulado, destinado à realização de tais atividades61. A Administração organiza-se, normalmente por lei, e excepcionalmente por decretos e normas inferiores. Formada por um complexo de órgãos personalizados, 59 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1969. v. 1, p. 33-34. 60 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 11.ed.revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 81. 61 MEDAUAR, op.cit., p. 44-45, nota 58. 44 conduzidos por um corpo de agentes, desempenha um grande número de atividades que são complementares entre si, sujeitas a contínua orientação e coordenação. Estas atividades têm adquirido uma extensão cada vez maior, principalmente a partir da aparição do Estado Social, de tal forma que hoje, poucos fenômenos da sociedade estão a margem de sua intervenção. A doutrina tem buscado estabelecer, como forma de facilitar a sua compreensão, a classificação ou tipologia das atividades administrativas públicas. É clássica a elaborada pelo administrativista italiano Orlando, em 1900, que distingue, na Administração, a atividade jurídica e a atividade social. Conforme citação de Odete Medauar, a primeira destina-se a assegurar o direito entre as pessoas e harmonizar os vários direitos dos indivíduos entre si e com o interesse público. Com caráter de autoridade, inclui a organização da Administração, a polícia, a desapropriação e a tutela dos indivíduos ante os atos da Administração. A atividade social, com predomínio do caráter de prestação de serviços úteis ao atendimento de necessidades dos indivíduos, visa aos fins de bem-estar e progresso social, destacando-se, as atuações, nos setores de saúde, agricultura e educação62. A maioria dos doutrinadores, contudo, indica a classificação formulada pelo espanhol Jordana de Pozas63, que apresenta três modalidades de ativ