UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” CAMPUS DE SÃO PAULO - INSTITUTO DE ARTES O ENSINO DE ARTE-TEATRO POR UM ARTISTA EM FORMAÇÃO: OLHARES SOBRE SER PROFESSOR João Pedro Castro da Luz São Paulo 2021 2 JOÃO PEDRO CASTRO DA LUZ O ENSINO DE ARTE-TEATRO POR UM ARTISTA EM FORMAÇÃO: OLHARES SOBRE SER PROFESSOR Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho”, no campus de São Paulo, Instituto de Artes para o curso de Licenciatura em Arte-Teatro. Orientador Professor Doutor Pedro Haddad Martins São Paulo 2021 3 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. L979e Luz, João Pedro Castro da, 1995- O ensino de arte-teatro por um artista em formação : olhares sobre ser professor / João Pedro Castro da Luz. - São Paulo, 2022. 42 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Pedro Haddad Martins Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Arte-Teatro) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Educação artística (Ensino fundamental). 2. Jogos na educação artística. 3. Representação teatral. 4. Ensino. 5. Narrativas pessoais. I. Martins, Pedro Haddad. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 372.66 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 4 5 RESUMO Neste trabalho apresento uma reflexão teórico-prática a partir da minha experiência vivenciada durante o processo de graduação no curso de Licenciatura em Arte-Teatro da UNESP, no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), que inclui o planejamento e a atividade em aulas na escola pública. Objetiva-se pensar sobre as aulas de arte-teatro, e seus possíveis caminhos dentro da educação pública no Brasil, tomando-se como base, além de referências teóricas, um projeto desenvolvido com alunos do quarto ano do ensino fundamental, durante o primeiro semestre de 2019, em São Paulo, nas aulas curriculares de arte-teatro. O projeto que desenvolvi na escola é embasado por jogos teatrais principalmente, tendo como fundamentos teóricos o Sistema de jogos teatrais de Viola Spolin e principais referências Ingrid Koudela, Flávio Desgranges e Pedro Haddad Martins. Palavras-chave: Teatro, Arte-Teatro, Jogos teatrais, Pedagogia teatral. 6 ABSTRACT I present in this work a theoretical-practical reflection from the experience lived during my graduation process in the Licentiate of Art-Theatre course at UNESP, in the Institutional Scholarship Program for Teaching Initiation (PIBID), which includes planning and teaching activity in public school. The objective is to think about art- theater classes, and their possible paths within public education in Brazil, based on, in addition to theoretical references, a project developed with students from the fourth year of elementary school, first semester of 2019, in São Paulo, in the curricular art-theater classes. The project developed by the author at the school is mainly based on theatrical games, having as theoretical foundations the Spolin games system by Viola Spolin and main references Ingrid Koudela, Flávio Desgranges and Pedro Haddad Martins. Keywords: Theater, Art-Theatre, Theater games, Theater Pedagogy. 7 SUMÁRIO POR QUE ESTOU AQUI ______________________________________________________ 9 1. A ESCOLA E A TURMA __________________________________________________ 13 2. O JOGO ________________________________________________________________ 17 2.1. JOGOS _______________________________________________________________ 17 2.2.1. JOGO DRAMÁTICO __________________________________________________ 17 2.1.2. JOGO TEATRAL _____________________________________________________ 19 2.2. MAS...JOGO? _________________________________________________________ 21 3. A PRÁTICA DOS JOGOS _________________________________________________ 24 3.1. DETETIVE ___________________________________________________________ 24 3.2. ANOITECEU NA FLORESTA ____________________________________________ 29 3.3. CAUSA DA MORTE ____________________________________________________ 33 4. REFLEXÕES DE UM JOVEM PROFESSOR __________________________________ 36 4.1. SOBRE VIOLÊNCIA ___________________________________________________ 36 4.2. A ESCOLA PÚBLICA ___________________________________________________ 38 4.3. FIM DO SEMESTRE ____________________________________________________ 40 5. CONCLUSÃO: JÁ QUE ESTOU AQUI ______________________________________ 42 BIBLIOGRAFIA ____________________________________________________________ 44 8 LISTA DE IMAGENS Imagem 1 Bia e Eu em mais um dia na escola Izac Silvério ____________________ 12 Imagem 2 Beatriz, minha parceira do PIBID na frente da escola EE Izac Silvério ___ 13 Imagem 3 Izac Silverio, visão da quadra ___________________________________ 14 Imagem 4 Escola Estadual Izac Silvério ___________________________________ 14 Imagem 5 Partitura sonora, minha primeira aula no 4ºB _______________________ 15 Imagem 6 Caderno de uma aluna ________________________________________ 16 Imagem 7 Alunos escrevendo suas partituras sonoras _________________________ 16 Imagem 8 Explicação do exercício dos colchões _____________________________ 25 Imagem 9 Exercício dos Colchões em ação _________________________________ 26 Imagem 10 Detetive no Barco: momento em que uma das vítimas está sendo empurrada ___________________________________________________________________ 27 Imagem 11 Fim do jogo, detetive e vítimas venceram _________________________ 28 Imagem 12 Preparando a sala para o jogo __________________________________ 30 Imagem 13 Anoiteceu na Floresta ________________________________________ 31 Imagem 14 Última foto com os alunos que foram na última aula, para registrar o fim do semestre ____________________________________________________________ 40 9 POR QUE ESTOU AQUI Tive contato pela primeira vez com teatro dentro da igreja. Anne, a filha da pastora, era atriz e professora na Oficina dos Menestréis, um curso de teatro com o objetivo de ter montagem de teatro musical ao final, localizado no bairro da Aclimação em São Paulo. Anne dava-nos aula de teatro aos sábados, no ano de 2006, mesmo ano, em que tive teatro na escola municipal de ensino fundamental na qual estudei, EMEF João XXIII. A principal diferença entre as duas aulas de teatro que eu fazia na mesma época, eram seus objetivos, pois, na da igreja, tínhamos uma peça para apresentar no tempo determinado e a da escola, não tinha nenhuma montagem ou coisa do tipo planejada, apenas a vivência. O teatro na igreja durou três anos mais, na escola acabou no mesmo ano que começou. Em 2008, tive um professor de História, David, que me inspirou no ofício de dar aulas. O modo que ele ensinava me parecia tão único, tão comedido, tão preciso e didático, como uma peça teatral. Uma peça de teatro é um evento único no tempo, por mais tempo que esteja em cartaz, há uma magia que está ao redor do espetáculo no momento em que se assiste. Quem assiste “mergulha” na história que está sendo contada, ou nas sensações que estão sendo transmitidas. É uma viagem tão única, que quando se sai da sala de espetáculo, a realidade já não parece a mesma. Quando eu tinha aula com esse professor, a realidade se expandia e o entendimento das coisas mudavam de alguma forma. Ele era o que eu queria ser quando crescesse, alguém que pudesse inspirar e gerar mudança. Na época, cogitei ser um professor de história, já que eu não considerava as aulas de arte que eu tinha na época como algo realmente interessante. Meus professores de arte foram sempre muito convencionais, privilegiando os aspectos técnicos da arte visual, desenho, pintura, história da arte, o jeito correto de se pintar, desenhar, o que é esteticamente bonito, ao invés de desenvolver a criatividade na arte. Então, por muito tempo, acreditei que esse fosse o único modo de ensino de arte que cabia na escola. Uma arte comedida e regrada. Eu não desgostava dessas aulas, pois nunca senti como se eu estivesse sendo criativo e fazendo ‘arte’ realmente. Em 2015 entrei na Escola Superior de arte Célia Helena, onde cursei o bacharelado em teatro. Ali, mergulhei de cabeça no mundo da atuação convivendo com atores e trabalhadores do meio teatral. Tive acesso ao fazer teatro desde a fundação até a 10 realização de um espetáculo, mas na base daquilo tudo, sempre estavam os diretores/ educadores, nos guiando em nossas inseguranças até alcançarmos nossos objetivos, o que reavivou a sensação que eu tinha com o professor David, de história. Por isso, no ano de 2018, seguido à conclusão do bacharelado de teatro, entrei na UNESP, no curso de licenciatura em Arte-Teatro, para poder me habilitar como professor de Arte, buscando entrar no ensino público, que foi de onde eu vim, para atingir e inspirar os alunos que menos tem chances de acesso à arte, como eu. Antes de 2015 eu, como aluno de uma escola pública, na periferia da cidade, não frequentava o teatro. Havia ido algumas vezes com a escola e poucas com a igreja. Achava que eu só poderia frequentar se fosse por intermédio dessas instituições. Então por todos aqueles anos, sempre me agarrei na felicidade que senti quando apresentei uma pantomima ensaiada por uma professora da sala de leitura, que já não lembro o nome, lá nos anos iniciais da escola, e uma encenação da “A História de Lily Brown”, de Edu Lobo e Chico Buarque, em 2006. No ano de 2019, na UNESP, tive a oportunidade de participar do PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência). Organizado em duas partes fundamentais: visitas semanais regulares às escolas da rede pública estadual, em duplas ou trios, para a realização de sequências didáticas junto com o professor da sala, na modalidade específica de arte; E as reuniões de coordenação, com a Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli, também semanais. Por conta da liberdade que tivemos no programa, buscamos criar sequências didáticas que propunham outros formatos de aula, buscando conteúdos próximos à realidade dos alunos, novas possibilidades de utilização dos espaços da sala, a prática e o conhecimento corporal, e a utilização não convencional de materiais disponíveis. Na maior parte, tentamos relacionar as sequências com as práticas que já estávamos em processo de aprendizado na faculdade, mas muitas dúvidas surgiam durante os processos, o que tornava a segunda parte do PIBID fundamental: a reunião semanal com a coordenadora do programa e nossos colegas. Nessa reunião, compartilhávamos nossas angústias e reflexões sobre as sequências que estávamos trabalhando. Pudemos ouvir experiências extremamente diferentes das nossas, mas que se relacionavam de forma fundamental com nossas 11 experiências em nosso dia a dia na sala. E por conta dessa reunião podíamos voltar com mais força e vontade para aplicar nossas sequências em sala. Porém, ser professor não é uma tarefa fácil, muitas coisas e inseguranças rondam a profissão. Como saber se está ou não escolhendo os caminhos pedagógicos corretos em seus planejamentos? Em uma aula “convencional” devemos aplicar jogos teatrais ou seguir o caminho do ensino das artes visuais, como eu vivenciei nas minhas aulas de arte? Estar na zona de conforto é seguir a cartilha das artes visuais, aplicando desenhos e pinturas e mantendo os alunos em suas carteiras sem ampliar seus horizontes? Sem instigar a criatividade, possibilitando que o processo artístico surja deles? Tratando-se de jogos, qualquer coisa é permitida? Tantos questionamentos que rondam, que decidi escrever esse TCC buscando refletir e me debruçar mais sobre tais questões. Por conta do PIBID, tive a incrível oportunidade de aprender, na prática, o ensino de arte em uma escola, sem nem ter concluído a minha formação. Então pude, através da experiência, aprender mais sobre como se dá todo o processo de ensino da arte e, até hoje, enquanto estou aqui escrevendo essa pequena parte da vivência que tive como estagiário, continuo aprendendo e por isso sinto que tudo o que vivenciei e refleti não deve parar em mim e por isso que, ainda estando aqui, protegido nos braços de uma universidade pública em um curso de licenciatura, sinto-me na obrigação de compartilhar um pouco dessa experiência e reflexão para que de alguma forma eu possa inspirar e instigar a outros jovens, que venham a ler, a seguir em frente em favor de uma educação pública de qualidade, para que não seja apenas um privilégio de alguns, mas a normalidade de todos. 12 Imagem 1 Bia e Eu em mais um dia na escola Izac Silvério Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 13 1. A ESCOLA E A TURMA Pude acompanhar, com meus colegas da faculdade e professores em sala de aula, duas escolas com contextos muito diferentes entre si. A primeira, Escola Estadual Canuto do Val, com aulas para alunos de ensino fundamental (anos finais), onde acompanhei um professor de Arte em um Sétimo Ano. E a segunda, acompanhado por uma professora de arte, com alunos do quarto e primeiro ano, na escola Estadual Izac Silvério. Porém, me aprofundarei mais na escola Izac Silvério, pois foi onde pude aplicar as sequências didáticas de forma mais ativa e de onde as minhas maiores dúvidas, sobre o ensinar arte e ofício, surgiram. Iniciamos na escola dia 11 de fevereiro de 2019, localizada no Jardim Virginia Bianca, Zona Norte, uma região que eu não tive muito contato anteriormente, pois hábito na região oeste de São Paulo. O ambiente escolar é arejado e inundado pela luz solar, o que deixa as cores pintadas nas paredes com uma vibração empolgante. Mas, apesar disso, a escola ainda tem muitas grades, como é comum nas escolas públicas do estado, só que facilmente as grades que poderiam oprimir quem circula pelo espaço, são esquecidas, graças à vivacidade que as crianças reverberam. Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz. 2019 Imagem 2 Beatriz, minha parceira do PIBID na frente da escola EE Izac Silvério Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz. 2019 14 O 4ºB (Quarto ano “B”), foi a turma que estagiamos, acompanhados da professora de arte, Rosângela. Ela nos deu muita liberdade, já que estava participando do PIBID há algum tempo, sendo bem aberta às nossas sugestões. Além disso, o professor regente não ficava na sala enquanto nós propúnhamos nossas atividades, o que ampliava ainda mais nossos limites nos 50 minutos de aula. Outro ponto importante para a nossa liberdade de aplicação das sequências didáticas, é que o 4ºB tinha duas aulas de arte por semana, então, a professora Rosangela nos cedia uma das aulas para Imagem 3 Izac Silverio, visão da quadra Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 Imagem 4 Escola Estadual Izac Silvério Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 15 nós e a outra, que ocorria em outro dia, ela seguia com a matéria prevista em seu plano de aula. Essa turma já tinha trabalhado com jogos teatrais com outra dupla do PIBID no ano anterior, pelo que nos foi contado. Mas, o que deu para perceber é que a dinâmica da aula de arte, mesmo com o PIBID há tanto tempo na escola, ainda era igual à de quando eu estudava, ou seja, voltada para as artes visuais, principalmente porque foi a formação da professora de arte que acompanhávamos. Então, para evidenciar que a aula obtinha resultados, já que em artes visuais os trabalhos produzidos são um resultado palpável, a professora tirava fotos, para depois mostrar à coordenadora da escola e não ser cobrada por não haver “dado conteúdo”. Outra coisa que notei é que se precisasse de alguma coisa extra aula, como ensaios para festa junina ou semana cultural, a aula de arte era usada, o que aparentava que as aulas de arte não eram “necessárias” ou “fundamentais” no plano pedagógico escolar, já que não é uma matéria que “repete”. Quando eu estudava, a aula de arte era uma aula que eu achava muito legal de se ter, apesar do professor não ser lá dos mais amigáveis, era uma matéria que eu me sentia livre, e na minha escola não me recordo de ser interrompida para ensaios de apresentações ou coisas parecidas, mas também não sentia que era uma matéria considerada essencial para o plano pedagógico escolar, era só mais uma matéria. Imagem 5 Partitura sonora, minha primeira aula no 4ºB Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 16 De início, como na escola trabalhávamos com duas turmas, eu e minha dupla de trabalho decidimos que cada um proporia atividades para uma turma. Eu ao quarto e ela ao primeiro ano da escola. Com o quarto ano, iniciamos com sequências relacionadas à música, ritmo e partituras, pois a professora já pediu para trazermos propostas na aula seguinte à que iniciamos. Como não sabíamos direito o que era ou não permitido, eu planejei coisas simples, iniciando com percussão corporal e uma breve conversa sobre o ocorrido. Utilizei-me dos meus conhecimentos musicais para a aplicação desses exercícios. Pudemos reparar que a sala trabalhava bem as propostas que trazíamos, mas quando tinham que falar sobre suas experiências, tinham uma enorme dificuldade de desenvolver. O que me motivou a trabalhar mais em cima de jogos teatrais, já que era o que eu aprendia contemporaneamente na faculdade e por isso, era mais palpável na nossa vivência e talvez pudesse ajudar de algum modo, no desenvolvimento das crianças, nessa questão de se soltarem mais para expor suas ideias sem medo. Imagem 7 Alunos escrevendo suas partituras sonoras Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 Imagem 6 Caderno de uma aluna Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 17 2. O JOGO 2.1.JOGOS Antes de Falar dos jogos aplicados na turma, é importante explanar o conceito por trás das definições dos jogos para que ao decorrer a leitura não se confundam os termos e facilite o entendimento do que está sendo explicado e como ocorreu cada jogo de forma simples e fácil. Basicamente, os termos principais são Jogo Dramático e Jogo teatral, que a princípio podem ser facilmente confundidos com um mesmo conceito, mas que são termos que delimitam campos diferentes de jogos. Isso será especificado a seguir. 2.2.1. JOGO DRAMÁTICO Jogo dramático, apesar de ser fácil deduzir-se do que se trata, não tem uma definição tão precisa, isso porque depende da perspectiva teórica usada para tal explanação, sendo possíveis “Dramatic Play”, de origem inglesa e “Jeu Dramatique”, de origem francesa. Mas ambos com radical no grego “drama”, que designa ação. Apesar das origens, a aplicação do jogo dramático, não necessariamente segue os padrões definidos, como o Sistema de Jogos Teatrais da Viola Spolin, como veremos adiante, como explica Desgranges: O Jogo Dramático apresenta-se enquanto prática que, apesar de organizada teoricamente por vários educadores, não se estrutura enquanto um sistema fechado, autoral, ficando a cargo do próprio coordenador elaborar uma sistematização para o trabalho com o grupo. O que demanda maior cuidado para que o professor não se perca na proposição de exercícios aleatórios que não se configurem enquanto processo efetivo de aprendizagem, já que não há, habitualmente, uma progressão apontada, um delineamento a priori das etapas possíveis a serem percorridas durante o processo de investigação. (DESGRANGES, 2006, Pág.107-108) Peter Slade, em seu livro “Child Drama”, de 1954, explana de forma aprofundada o conceito de jogo dramático infantil, que ganhou esse nome no Brasil, graças à tradução de um livro introdutório ao “Child Drama” ou Drama Infantil, que não é, portanto, equivalente ao jogo dramático do qual Desgranges se refere, pois está mais relacionado com o jogo natural da criança, o “dramatic play” ou a brincadeira, que se trata de uma brincadeira de faz de conta e não uma encenação teatral, onde os 18 brincantes agem como se fossem outras pessoas, animais ou coisas. No jogo dramático infantil, Peter Slade busca fazer com que os alunos brinquem, sem a preocupação do fazer teatral. Sua proposta pedagógica conduz à passagem gradual e cuidadosa do faz de conta infantil ao "teatro de proscênio”, já na adolescência. Nas fases iniciais todos jogam simultaneamente, condição básica para garantir a autenticidade infantil: pouco a pouco o olhar externo vai sendo introduzido e o jogo dramático vai ganhando complexidade. Ao professor, "aliado amoroso", "gula bondoso e suave, cabe uma intervenção peculiar. Ele suscita a manifestação do jogo dramático. faz perguntas relativas à situação lúdica, conta histórias a serem dramatizadas, atribui papéis, propõe situações fictícias, solicita contribuições dos jogadores e joga junto com o grupo. Espera-se dele que alimente o jogo dramático infantil, eventualmente sugerindo o que fazer, mas deixando que as crianças e jovens descubram como fazer. E ele o fio condutor central da experiência;(KOUDELA, ET AL. 2015, p. 105) Já “Jeu dramatique”, possui um objetivo focado que é a tomada de consciência dos mecanismos fundamentais do teatro através das improvisações coletivas de acordo com o tema escolhido previamente e a liberação corporal e emotiva no jogo para a vida privada dos participantes. Sendo Léon Chancerel o nome conhecido que fundamentou essa prática nos anos de 1930, na França. Para Chancerel, a realização do objetivo de escapar à mercantilização e ao cabotinismo, tão presentes no teatro, implica que o educador parta do jogo, essa "disposição natural da infância", e a empregue para propiciar aos jovens "desenvolver seu senso artístico, seu espírito de observação, seu sentido social, seu corpo e seu espírito". O coletivo ganha papel central; evitar o palco, experimentando jogar em todos os lugares que se apresentarem, passa a ser um dos princípios da ação pedagógica. Exercícios de equilíbrio, flexibilidade, ritmo, conduzidos através de instruções que geram ficção, se transformam em jogos dramáticos. Mais tarde, à medida que as crianças crescem, temas e enredos passam a ser propostos: porto de pesca, praça, par tida do trem, quermesse, além de contos, lendas, fábulas, passagens históricas, são alguns exemplos. (KOUDELA, ET AL. 2015, p. 106) Ambos os pensamentos sobre o jogo teatral encontraram casa nas práticas brasileiras e por isso a dificuldade tão grande de definição do que é cada um, pois possuem distinções entre si, que podem gerar confusão: O mesmo termo, portanto, "jogo dramático”, recobre, conforme verificamos, diferentes visões do fenômeno teatral. Os autores que o entendem como correspondente em língua portuguesa do dramatic play privilegiam a noção de dramatização, conexa ao ideário da livre expressão. Uma visão, em última análise, datada de teatro faz com que haja tendência, nesse caso, de que essa arte não seja aceita como referência para a instauração de um processo pedagógico. Quando o jogo dramático é empregado como correspondente ao termo cunhado pelos franceses, o quadro se modifica e o fazer teatral passa a 19 ser visto como prática que carrega em seu bojo contribuições singulares para o desenvolvimento do ser humano. (KOUDELA, ET AL. 2015, p. 106-107) 2.1.2. JOGO TEATRAL O jogo teatral é também um conceito bem amplo, pois pode designar ideias distintas, como o jogo de cena em um espetáculo teatral ou à qualidade lúdica do teatro. Popularmente, pode determinar também qualquer jogo que tenha como objetivo o teatro. Porém, no caso da pedagogia do teatro, a definição mais conhecida está atrelada ao sistema de Viola Spolin, que é um sistema pautado em jogos regrados, dos mais variados, com focos específicos a serem desenvolvidos através da interação entre os jogadores e do condutor dos jogos, geralmente o professor: Spolin, tomando por base os jogos de regras, cria um sistema de exercícios para o treinamento do teatro, com o objetivo inicial de libertar a atuação de crianças e amadores de comportamentos rígidos e mecânicos em cena. Este sistema de atuação, calcado em jogos de improvisação, tem o intuito de estimular o participante a construir um conhecimento próprio acerca da linguagem teatral, através de um método em que o indivíduo, junto com o grupo, aprende a partir da experimentação cênica e da análise crítica do que foi realizado. Os participantes do processo, assim, elaboram coletivamente conceitos acerca das suas atuações e da sua compreensão da linguagem teatral (DESGRANGES, 2006, Pág. 110) E Desgranges explica mais: Calcado no conceito dos jogos de regras, o sistema descarta a presença de um professor autoritário, que detém o saber, e propõe uma dinâmica educacional em que o grupo faz do jogo um procedimento prazeroso de aprendizado. O foco de investigação está claramente definido em cada um dos exercícios, oferecendo bases tanto para a criação quanto a análise das cenas, tirando do coordenador a exclusividade de definir a pertinência ou não das realizações dos jogadores. O grupo trabalha em conjunto, o professor participa e coordena o processo (DESGRANGES, 2006, Pág. 110) “O processo de aprendizagem dá-se a partir da resolução de problemas de atuação, apresentados pelo coordenador, para que os integrantes dos grupos elaborem suas respostas próprias” (DESGRANGES, Pág. 111), assim, os jogadores vão resolvendo problemas e novos desafios são dados pelo coordenador, possibilitando o trabalho de diversos elementos da linguagem teatral. Qualquer jogo digno de ser jogado é altamente social e propõe intrinsecamente um problema a ser solucionado - um ponto objetivo com o qual cada indivíduo deve se envolver, seja para atingir o gol ou para acertar uma moeda num copo. 20 Deve haver acordo de grupo sobre as regras do jogo e interação que se dirige em direção ao objetivo para que o jogo possa acontecer. Os jogadores tornam- se ágeis, alerta, prontos e desejosos de novos lances ao responderem aos diversos acontecimentos acidentais simultaneamente. A capacidade pessoal para se envolver com os problemas do jogo e o esforço dispendido para lidar com os múltiplos estímulos que ele o provoca, determinam a extensão desse crescimento. (SPOLIN, 2008, p. 5) Buscamos nos utilizar dos jogos teatrais de Viola Spolin nas aulas para que os alunos pudessem compreender mais a respeito do que é fazer teatro e para que pudessem se soltar mais em suas relações sociais escolares, já que tinham vergonha de expor suas opiniões e pensamentos para a turma, por medo do que os colegas poderiam dizer. Esse medo de se expor se refletia em todas as atividades que eram propostas para que os alunos fossem criativos, o que era prejudicial para a dinâmica da aula e para os próprios estudantes. Os Spolin games foram desenvolvidos como uma metodologia com o fito de ensinar a linguagem artística do teatro a crianças, jovens e atores interessados no teatro improvisacional. Através do processo de jogos e da solução de problemas de atuação, as habilidades, a disciplina e as convenções do teatro podem ser aprendidas. Os Spolin games são ao mesmo tempo atividades lúdicas e exercícios teatrais que formam a base para uma abordagem alternativa de ensino e aprendizagem. ((KOUDELA, ET AL. 2015, p. 109) Assim sendo, os jogos teatrais do sistema da Viola Spolin, foram desenvolvidos com o objetivo do ensino do teatro, possuindo uma metodologia completa que o compõe. Porém, como nosso tempo em sala de aula, e para aplicação de forma mais elaborada, era escasso, decidimos não nos aprofundarmos no sistema, utilizando também outros jogos de regras que não estão atrelados a ele para tentar chegar ao objetivo que definimos no início das aulas. Portanto, com cada conceito definido, ao longo do texto, toda vez que me referenciar ao jogo teatral, será ao sistema de jogos teatrais da Viola Spolin. 21 2.2. MAS...JOGO? Xadrez é um jogo de estratégia que simula uma guerra medieval. Os soldados da linha de frente tentam invadir o território inimigo e são dizimados no caminho, às vezes um consegue chegar do outro lado e é recompensado por isso, mas se o estrategista não for bom o suficiente, todo um reino é derrotado pelo inimigo. Antes de conhecer o teatro, tive contato com o Xadrez. Esse joguinho despertou em mim um espírito competitivo que carrego em jogos teatrais. Por isso, quando penso em jogo, me vem a dinâmica desse jogo e, então, não há distinção, para mim, da vivacidade que há em uma cena teatral (ou o jogar em cena), pois em ambos, existem infinitas possibilidades e modos como as ações se alavancam à um desfecho. O jogo de xadrez é um jogo competitivo jogado com dois jogadores, um contra o outro, portanto não é coletivo, então, muitos aspectos dos jogos teatrais não se encaixam ou se aplicam ao xadrez, como o aprendizado coletivo através do processo, próprio dos jogos teatrais. Mesmo assim, farei o paralelo para explicar melhor o que é o jogo, porque a dinâmica enxadrista me é mais visual para poder explicar o porquê da utilização dos jogos. O jogo implica num problema a ser resolvido, como no exemplo do xadrez, cujo objetivo é derrotar o inimigo derrubando o rei adversário. O objetivo, vivifica o jogo, pois os participantes se entregam pelo objetivo em comum, seja uma competição coletiva, seja individual. Ter um objetivo, gera um engajamento que estimula os participantes a chegarem a uma conclusão satisfatória. Porém, um objetivo em comum, não é tudo o que um jogo necessita, senão xadrez seria quem derruba o rei adversário mais rápido. Ao invés disso, parte fundamental em qualquer jogo, são suas limitações: As regras. Sejam extremamente elaboradas, sejam simplórias, todo jogo necessita de regras: As regras estabelecidas entre os jogadores determinam uma relação de parceria, que implica observação de determinadas leis que asseguram reciprocidade dos meios empregados para ganhar. Há, portanto, acordo de grupo sobre as regras do jogo e interação, que ocorre a partir da busca de um objetivo comum (KOUDELA, 1984, p.47). 22 O jogo abre possibilidade para que todos os participantes possam cumprir seus objetivos para chegarem a uma resolução de forma criativa, mesmo que essa forma seja não seguindo as regras acordadas no início, e que, mesmo haja ganhadores e/ou perdedores, todos tenham vivenciado de forma potente a experiência: A reformulação do princípio que a regra estabelece não parte de um sujeito individualmente, mas é passível de transformação se ela for a expressão da vontade geral. A relação autoritária percebe a regra como lei. Na instituição lúdica, a regra pressupõe processo de interação. O sentido de cooperação leva ao declínio do misticismo da regra quando ela não aparece como lei exterior, mas como o resultado de uma decisão livre porque mutuamente consentida. Evidentemente, cooperação e respeito mútuo são formas de equilíbrio ideais, que só se realizam através de conflito e exercício da democracia. O consentimento mútuo, o acordo de grupo determina as possibilidades de variação da regra (KOUDELA, 1984, p.49). Viola Spolin diz: A ingenuidade e a inventividade aparecem para solucionar quaisquer crises que o jogo apresente, pois está subentendido que durante o jogo o jogador é livre para alcançar seu objetivo da maneira que escolher, desde que obedeça às regras do jogo, ele pode balançar, ficar de ponta-cabeça, ou até voar. De fato, toda maneira nova ou extraordinária de jogar é aceita e aplaudida por seus companheiros de jogo. (SPOLIN, 2008, p. 4-5) A regra, não é um conceito limitante, mas libertador. Pois ela dá parâmetros para que o jogo tenha todas as possibilidades que caibam dentro das regras. Outra coisa importante num jogo é sua finitude. Quando um jogo inicia, os jogadores sabem que ele vai terminar. Por que o jogo, como uma boa história, tem um início, um meio e fim. O meio pode se desdobrar bastante, mas inevitavelmente ele terá um fim. Chega uma hora em que não há mais peças para mover, findando as possibilidades. O fato de ser dinâmico faz com que o jogo termine em seu ápice, e quando não está dinâmico, os jogadores sentem e buscam o seu fim. Ainda falando sobre jogo, mas não diretamente atrelado ao sistema de jogos teatrais de Viola Spolin, mas sobre o jogo como fenômeno antropológico e cultural, Huizinga diz: E há, diretamente ligada à sua limitação no tempo, uma outra característica interessante do jogo, a de se fixar imediatamente como fenômeno cultural. Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece como uma criação nova do espírito, um tesouro a ser conservado pela memória. É transmitido, toma-se tradição. Pode ser repetido a qualquer momento, quer seja "jogo infantil" ou jogo de xadrez, ou em períodos determinados, como um mistério. Uma de suas qualidades fundamentais reside nesta capacidade de repetição (HUIZINGA, 2007, p.11). 23 O ser humano convive com jogos em seu dia a dia. Sejam jogos reais, como videogames, tabuleiros e afins, quanto jogos sociais, jogos de poder, romances e outros. Mas sempre jogos. Por conta disso, no processo de aprendizado da arte teatral, na qual muitas vezes constrói-se a realidade além do cotidiano, é tão importante a presença dos jogos. 24 3. A PRÁTICA DOS JOGOS 3.1. DETETIVE Tive uma matéria no curso de Arte-teatro, no Instituto de artes, ministrada pelo Professor Pedro Haddad, chamada “prática de ensino das artes cênicas” no mesmo ano em que eu tive onde praticar o ensino, no PIBID. Uma das aulas que tive com o professor Pedro, foi sobre “Detetive no Barco”, jogo esse que está presente detalhadamente em sua tese de doutorado. Por conta dessa aula, no dia 13 de maio de 2019, seguimos a sequência ensinada por ele. Nosso foco principal era explicar os conceitos teatrais “quem”, “o que” e “onde” utilizados por Viola Spolin, assim como explica Flávio Desgranges: Spolin opta por denominar os aspectos da linguagem teatral se valendo dos termos ONDE, QUEM e O QUE, em vez de utilizar os termos tradicionais - espaço, personagem e ação dramática - visando, assim, possibilitar que os participantes lancem um olhar novo para estes elementos próprios da arte teatral, deixando de lado os conceitos que trazem consigo um peso, uma carga, que pode inibir a ação espontânea. A autora propõe, também, dessa maneira, que o grupo construa um conhecimento pessoal dos elementos da cena, desprovido de convenções e verdades preestabelecidas (DESGRANGES, 2006, P.112) O primeiro jogo da sequência é o detetive convencional – já cheguei a jogá-lo dentro da igreja, de tão popular –, onde um assassino mata suas vítimas apenas com uma piscadela. Os participantes ficam de olhos fechados e o condutor seleciona um para ser o assassino e outro para ser o detetive, os demais participantes são vítimas que, um pouco depois de verem a piscadela do assassino, devem gritar “morri” e cair no chão, ficando lá até o fim do jogo. O assassino só não pode piscar para o detetive, pois se isso ocorrer, o detetive diz “preso em nome da lei” e o jogo termina. O assassino só vence se sobrarem ele e o detetive no fim, nesse jogo somente o assassino ou o detetive podem vencer. 25 O jogo de detetive fez com que eu propusesse uma sequência de jogos para que ficasse claro para os alunos-atores a transposição de um jogo sem aparente objetivo teatral para um jogo em que eles percebessem estar fazendo teatro, entendendo que, mesmo o jogo "menos" teatral contém elementos teatrais, que são usados para a construção do último jogo, posteriormente. (MARTINS, 2017, p. 184) Após esse jogo, ainda seguindo a sequência do professor, com três colchonetes, dois onde todos os alunos deveriam ficar em cima e outro que usariam para se movimentar. O objetivo era chegar ao outro lado com pelo menos sete alunos (em uma sala de mais ou menos treze) movendo apenas um colchonete. Quem tocasse no chão com qualquer parte do corpo saia do jogo. O combinado é que eu não falo quem encostou no chão, apenas indico que eles precisam começar de novo. O objetivo como professor é que eles consigam se organizar do jeito deles para cumprir a tarefa. Por isso o tempo dado é sempre suficiente, quando percebo que eles se organizaram, que criaram a própria estratégia e estão envolvidos, mesmo que passem um pouco do tempo estipulado, digo que conseguiram. (MARTINS, 2017, p. 185) Imagem 8 Explicação do exercício dos colchões Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 26 O terceiro Jogo foi “Detetive no barco”, que é uma junção do primeiro e segundo jogo, com dois assassinos e dois detetives. O assassino deve matar as vítimas as empurrando para fora do barco, já que, quem encostar na água morre imediatamente. Só que o assassino precisa disfarçar, fingir que empurrou sem querer, que se desequilibrou, pois se perceberem quem é, além do detetive acusá-lo, as vítimas também não ficarão mais ao seu lado. O detetive, como no outro jogo, quando descobrir quem é o assassino, deve dizer "preso em nome da lei", se ele acertar, ganha o jogo. Se errar, automaticamente é "arremessado" para fora do barco e o jogo continua. (MARTINS, 2017, p. 185) O objetivo do jogo continua sendo o maior número de pessoas chegarem ao outro lado, mas se o assassino derrubar todos os participantes, ele vence sozinho. Ao contrário do detetive convencional, nesse jogo, todos podem vencer, inclusive as vítimas, que vencem quando o assassino cai do barco ou quando chegam com grande parte da “tripulação” ao outro lado da sala. Com o 4ºB, percebemos que os alunos da turma agiam de forma muito individual, e quando não agiam sozinhos, era sempre em grupos de meninos e meninas. Assim, as meninas não queriam ficar próximas dos meninos e vice-versa. Essa divisão na turma, fez com que detetive no barco e os jogos anteriores, tenham acabado demorando mais que o previsto, já que eles são jogos coletivos. Imagem 9 Exercício dos Colchões em ação Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 27 O jogo anterior ao detetive no barco foi o mais complicado, pois dei as orientações e regras do jogo, sem revelar que eles deveriam trabalhar em conjunto para chegar ao outro lado, inclusive a regra de ter uma grande maioria no fim era com o intuito de que eles percebessem que se tratava de um trabalho em equipe, ou seja, explanei parcialmente as regras, o que mostra como não deixar claras as regras desde o início dificultaram o processo. Com isso, cada um tentou agir por conta própria, então, eles jogaram o colchão na frente para avançar, mas deixaramo grupo de trás sem poder se mexer e ficaram também sem se mexer, alguns alunos gritavam o que era necessário ser feito para que os outros obedecessem e isso gerava confusão, principalmente entre os que queriam mandar mais. Nesses momentos, tive que intervir e dar dicas para que os estudantes entendessem que o jogo era coletivo e não era tão complicado de se chegar no outro lado. Lembro claramente da expressão de um aluno que captou o objetivo do jogo, logo após a minha dica e tentou de diversas formas fazer com que os outros entendessem também, mas não foi escutado por pelo menos umas três tentativas. Grande parte da aula serviu para que eles entendessem como jogar o jogo intermediário, mas concluído esse, pudemos jogar tranquilos o detetive no barco, pois eles já tinham entendido a dinâmica a partir dos jogos anteriores. Jogamos duas vezes o Imagem 10 Detetive no Barco: momento em que uma das vítimas está sendo empurrada Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 28 jogo e depois restou um tempinho para trazer os conceitos de “Quem, O que e Onde”, recorrente nos jogos teatrais de Viola Spolin. Expliquei, após arrumarmos a sala, que os jogos que tínhamos jogado tinham conceitos importantes para o teatro e depois disse quais eram. E para cada um, pedi para que os alunos relacionassem com os jogos: “Quem eram os personagens? Quais?” perguntei. “Detetive” disseram uns, “Assassino” responderam outros. “E as vítimas?”, eu perguntei. “Também” responderam. “O que era o que aconteceu e ‘o onde’, onde acontece”. À medida que o grupo vai compreendendo e respondendo aos problemas com resoluções cênicas próprias e criativas, o coordenador da atividade propõe novos desafios, mais complexos, levando o grupo a explorar os diversos aspectos da encenação, trabalhando os vários elementos da linguagem teatral, que vão sendo vez a vez selecionados como foco de investigação, tais como: a percepção espacial e cenográfica (ONDE), aqueles que se referem à construção de personagens (QUEM), e o desenvolvimento da ação dramática (O QUE). (DESGRANGES, 2006, P.111) Uma pena não termos mais tempo para nos aprofundar nas questões surgidas na aula, os alunos ficaram eufóricos com a experiência, falando sobre o jogo, perguntando se jogaríamos novamente e bastante agitados. Imagem 11 Fim do jogo, detetive e vítimas venceram Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 29 3.2. ANOITECEU NA FLORESTA Aprendemos através da experiência e ninguém ensina nada a ninguém. Isto é válido tanto para a criança que se movimenta inicialmente chutando o ar, engatinhando e depois andando, como para o cientista com suas equações. (SPOLIN, 2008, p. 3) Na aula do dia 20 de maio de 2019 propusemos o jogo “Anoiteceu na floresta”, ainda pensando na abordagem do teatro de “Quem, O que e Onde”, seguindo a sequência de “Detetive no Barco”. Conheci o jogo em um encontro de jovens da igreja. Na época, eu não passava de uma criancinha, mas a dinâmica do jogo, como as pessoas se exaltavam e se entregavam ao jogo e o jeito como o jogo junta pessoas de várias idades diferentes, me fascinou. Por isso, pensando que seria uma forma de trabalhar o conceito de personagens decidi usar esse jogo. Conhecido também como “Cidade Dorme”, aqui no Brasil, originalmente “Werewolf” ou “Máfia”, foi criado por Dimitry Davidoff em 1986, enquanto estudante de psicologia da Universidade Estadual de Moscou dando aulas particulares à alunos do ensino médio, apenas como experimento para testar a mente dos alunos. O jogo é ambientado em uma aldeia que é aterrorizada por lobisomens. Cada jogador recebe um personagem aleatoriamente: Aldeão, Lobisomem (ou lobo), Caçador, Feiticeira (ou fada) e narrador. O jogo é conduzido pelo narrador, que na aula, eu fazia esse papel. Quando o narrador diz "anoiteceu na floresta", todos os jogadores devem fechar os olhos. O narrador segue a narração conduzindo os lobisomens, geralmente são dois, a abrir os olhos e escolherem, em silêncio, uma vítima, o objetivo dos lobisomens é matar todos os personagens que não são Lobos. Quando os Lobos dormem, é a vez do Caçador acordar, seu objetivo é descobrir silenciosamente quem são os lobos, então, ele aponta uma pessoa que ache que possa ser um Lobo, o narrador revela se a pessoa escolhida é ou não um lobo. E por fim, a feiticeira acorda para salvar ou não a pessoa que os Lobos escolheram matar, mas ela só pode usar seu poder uma vez no jogo inteiro. Quando o narrador diz “amanheceu na floresta” duas possibilidades surgem: um aldeão morreu ou ninguém morreu. E a partir disso, para se livrarem dos Lobos, os Aldeões (com os Lobisomens infiltrados) discutem entre si para jogar uma pessoa na fogueira. No fim da rodada um dos jogadores sai do jogo, mas ainda tem a sua chance 30 de defesa, podendo acusar outros jogadores, inventando motivos que o fazem não ser um lobisomem e afins, se o escolhido para ir à fogueira for um lobisomem, este deve mentir o suficiente para que ninguém ache que ele é quem é. Da mesma forma, se o Caçador souber que ele é ele, fará de tudo para convencer o restante do grupo de que sabe a verdade e que eles devem fazer o que diz. Os Lobisomens ganham o jogo se acabarem com todos os aldeões e caçador sem serem descobertos e os Aldeões se conseguirem fazer os lobos infiltrados irem para a fogueira. Preparamos a sala para que o jogo acontecesse e reparamos que os alunos estavam animados para a nossa proposta da semana. Explicamos aos alunos as regras do jogo e como era cada personagem e sua importância, ressaltando que todos os personagens eram importantes e decisivos no decorrer do jogo. Explicamos também que os conceitos da aula anterior ainda se mantinham, pois tinha o “onde”, que é a aldeia em uma floresta, “quem”, que são todos os participantes e o “o que” que é o acontecimento e contexto da história. Como é um jogo complexo, houve a dúvida se a sala de quarto ano conseguiria ou não o jogar, mas por outro lado, como professor, eu queria que os alunos fossem desafiados e se sentissem impelidos a resolver os problemas do jogo. O jogo, se tivesse decorrido como o esperado, também seria forte na interação dos alunos entre si e na colocação das ideias deles ‘protegidos’ pelos personagens que viriam a ser. Imagem 13 Anoiteceu na Floresta Imagem 12 Preparando a sala para o jogo Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 31 Mas a experiência se mostrou muito complicada com um aluno específico, pois, para o jogo dar certo, era necessário que os participantes fechassem os olhos nos momentos necessários e, para esse aluno, isso não aconteceu. Ele estava sempre olhando e, logo em seguida, revelando quem era o que. Como ainda estávamos no começo do jogo nós tentamos recomeçar mais uma vez, porém esse problema persistiu, e por conta do pouco tempo de aula, não conseguimos terminar o jogo, o que fez a turma ficar brava com esse colega por ter atrapalhado o andamento do jogo. No fim, apesar de não ter funcionado o jogo em si, foi interessante ver que a turma estava disposta a jogar e fazer o jogo dar certo e por isso se juntaram para falar que o amigo estava atrapalhando. Ou seja, a dificuldade, que não havíamos cogitado, mas que se mostrou decisiva, foi a duração da aula, pois, o fato de ser uma aula curta, não proporcionou aos alunos um aprofundamento na dinâmica do jogo. Não os fez sentir a mesma emoção que eu senti na primeira vez que o joguei, ou em diversas outras vezes que tive a oportunidade de praticá-lo com outras pessoas. Assim como Viola Spolin diz, não houve o momento da explosão que liberta: Através da espontaneidade somos reformados em nós mesmos. A espontaneidade cria uma explosão que por um momento nos liberta de quadros de referência estáticos, da memória sufocada por velhos fatos e informações, de teorias não digeridas e técnicas que são na realidade descobertas de outros. A espontaneidade é um momento de liberdade pessoal quando estamos frente a frente com a realidade e a vemos, a exploramos e agimos em conformidade com ela. Nessa realidade, as nossas mínimas partes funcionam como um todo Imagem 13 Anoiteceu na Floresta Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 32 orgânico. É o momento de descoberta, da experiência, da expressão criativa. (SPOLIN, 2008, p. 4) Nós conversamos com a sala sobre que tinha acontecido para o jogo não funcionar, e o acontecido fez com que as crianças não tivessem medo de expor as suas opiniões, como era costumeiro, o que foi, de certa forma um saldo positivo no dia e pudemos perceber como aquela conversa fez com que o aluno tenha se arrependido. Decidimos futuramente regressar nesse jogo, mas por conta da preparação e ensaios para a festa junina, não houve oportunidade para retornarmos a ele. Apesar de não termos concluído a atividade com sucesso, acredito que a turma aprendeu que para que as atividades em grupo funcionem, principalmente o teatro, é necessário que o grupo esteja em consonância, ou seja todos trabalhando em prol de um mesmo objetivo. 33 3.3. CAUSA DA MORTE Na aula do dia 17 de junho de 2019, a primeira aula pós festa Junina, fomos surpreendidos com o fato de ser a última aula do semestre. O planejado era que nessa aula traríamos “Anoiteceu na Floresta”, mas para chegar ao nosso objetivo inicial, que era de que os alunos tivessem um contato mais aproximado do teatro como forma, pensando em fazer uma cena de teatro, decidimos fazer um jogo com um cunho mais próximo ao desejado. Esse também foi um jogo aprendido nas aulas de “Prática de Ensino das Artes Cênicas” com o professor Pedro: A Causa da Morte. As regras desse jogo são bem simples. A sala é dividida em grupos e deve pensar nas cenas que apresentarão aos outros grupos. As cenas devem fazer sentido e todos os personagens devem morrer no final. Cada personagem morre no seu momento, ou seja, não podem morrer dois personagens ou mais no mesmo momento. E cada personagem deve morrer de uma forma única e diferente dos demais. No fim, os espectadores devem saber a causa da morte de cada personagem. É importante que os alunos na plateia também tenham seu objetivo e foco, para que não dispersem por ser uma cena que não é a deles, pois a plateia também é jogadora: Propor problemas para resolver problemas, esta é, pois, a norma básica do sistema de Jogos Teatrais, em que a definição do problema cria, por um lado, um ponto de concentração único e claro para o grupo, tanto para os jogadores em cena quanto para os que observam, e, por outro, organiza um esquema de jogo em que não há uma única resposta possível, e nem certo ou errado. Existem sim infinitas possibilidades a serem experimentadas, o que deixa o grupo todo envolvido na criação de resoluções cabíveis, nunca definitivas. Trabalhar em função do foco estimula, portanto, uma ação conjunta. (DESGRANGES, 2006, P.114) Assim, o jogo trabalha, de modo geral, a construção da narrativa dos alunos, comunicação e cooperação, além da mudança de foco entre ações da cena. Dividimos a turma em três grupos para a elaboração das cenas, após a explicação do que seria feito. O que foi legal nessa aula é que pudemos usar o pátio, então saímos da sala de aula, que não nos daria a oportunidade de trabalhar em grupos separados. Os grupos foram divididos de forma aleatória, mas buscando misturar meninos e meninas, já que era comum que eles não se misturassem. Cada grupo ficou com um orientador, um com a professora de arte, um comigo e outro com minha colega 34 de PIBID. A minha ideia inicial era que os alunos fossem autônomos e criassem a cena sem interferência, para que sentissem o gosto da criação. O grupo, a partir da experiência, criará uma maneira particular de se apropriar da linguagem teatral. Isto porque os jogadores não partem em busca de algo, de uma verdade cênica previamente construída, mas partem em direção à produção de conhecimentos sobre teatro (DESGRANGES, 2006, P.115) Como eu que tive esta aula anteriormente, para mim era natural o processo de condução do jogo, então o grupo que estava comigo, criou a cena deles, não sem grandes dificuldades, mas foram eles que pensaram em tudo, como cada personagem morreria, onde estavam, quem eram e qual a história que queriam contar na cena. Eu estava apenas servindo de apoio, pois eu lhes disse que quem deveria criar a cena e determinar o que fariam era eles, minhas orientações estavam mais ligadas com a questão de tempo, ou seja, se já estavam discutindo por um tempo determinado eu falava para eles começarem a ensaiar a cena que ficaria mais fácil de resolver as problemáticas surgidas, ou quando estavam pensando em coisas muito mirabolantes, eu os orientava a seguir um caminho mais simples. A linguagem teatral não é apresentada pelo coordenador como algo pronto, acabado, algo que o professor, que sabe, vai transmitir para os alunos, que não sabem. Ao contrário disso, é apresentada uma linguagem em construção permanente, sempre apta a ser inventada e reinventada. Com isso, busca-se manter o diálogo permanente entre teatro e mundo lá fora, tendo em vista que a linguagem teatral pode e precisa ser constantemente revista em sua busca de representação da vida, cabendo aos participantes investigarem e construírem signos cênicos que deem conta efetiva da vida na contemporaneidade (DESGRANGES, 2006, P.117) Os grupos acompanhados pela professora de arte e minha colega de faculdade, que não tiveram contato anterior com o processo do jogo, seguiram o caminho da direção das cenas, ou seja, os alunos eram conduzidos pelo olhar de cena delas, quem eram os personagens, como a cena acontecia e quando cada coisa acontecia. Não há problema nesse processo de criação, mas na minha concepção de ensino de arte, os alunos precisam ser autônomos em sua criação e exercitar a sua imaginação, porque, quando as ideias não vêm deles, eles acabam não se sentindo parte do processo, o que os faz se afastar do processo artístico de criação. Eu passei pelo local de ensaio dos outros grupos, então pude ver como cada grupo estava trabalhando. 35 Após o ensaio todos se juntaram, ainda no pátio, para a apresentação das cenas no esquema de palco e plateia. Cada grupo por sua vez se apresentou e, ao final, eu perguntava para a plateia do que cada um, na cena, tinha morrido. No momento de se apresentar foi uma confusão, já que era uma mistura de vergonha com não seguir o que foi planejado, e como o horário da aula era limitado, não dava para fazer os alunos repetirem as cenas, então não deu para saber direito o que foi proposto. Na hora de se apresentarem, os três grupos não se preocuparam com a plateia, ao contrário, eles aceleravam o processo da cena para que acabassem a cena depressa, o que fez com que as cenas acontecessem de forma atropelada e bagunçada, ou quando isso não acontecia, as causas das mortes não ficavam claras. Os alunos não tiveram uma extensa experiência de trabalho teatral para poderem entender o que estavam fazendo em cena, como eu disse, esse foi o primeiro contato com uma cena de teatro e, somente o fato de os alunos participarem dessa empreitada valeu todo o esforço e, apesar de tudo, os alunos se divertiram na realização da cena e o objetivo de fazê-los experimentar também foi cumprido. Somente a questão da autonomia que não conseguimos fazê-los trabalhar de forma mais efetiva, já que não tivemos tempo hábil de trabalho a condução de um processo que se encaminhasse nesse sentido: menos de um semestre, uma aula por semana de menos de uma hora por aula, seria um trabalho impossível. 36 4. REFLEXÕES DE UM JOVEM PROFESSOR Dar aula é um trabalho árduo. Tem todo um processo de planejamento para que as aulas sejam conduzidas por um determinado caminho, pensamos no que deve ser dito, como deve ser dito e quais os objetivos que chegaremos, para quando chega o momento tudo sair completamente diferente do esperado. Às vezes isso te frustra, as vezes isso anima. Mas é sempre uma experiência única. 4.1. SOBRE VIOLÊNCIA Os três jogos que escolhi destacar foram jogos muito complicados, na execução sem dúvida, mas principalmente no planejamento prévio. Uma coisa que eu e minha colega de PIBID discutimos é sobre os termos contidos nos jogos (assassinato, matar, morrer), eles instigam os alunos a agirem de forma violenta? Uma ação sugerida pela minha colega é amenizar os termos, usando “devorar” ao invés de “matar”, para os Lobisomens. E amenizar termos com cunho mais violentos nos jogos. No momento eu o fiz para não gerar mais confusão, mas eu não acredito que usar os termos vá influenciar de alguma forma o dia a dia dos alunos, ou induzi-los a algo do tipo. Chegamos, assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica, intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida "corrente" nem vida "real". Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida "real" para uma esfera temporária de atividade com orientação própria. Toda criança sabe perfeitamente quando está "só fazendo de conta" ou quando está "só brincando (HUIZINGA, 2007,p.10) Para Huizinga, os jogadores são livres, pois não se trata de vida real. Os jogadores sabem que aquilo que estão fazendo, não se trata de realidade. E não apenas durante jogos, quando eu estou na rua parado e observando as coisas, muitas possibilidades surgem na minha imaginação: Quando o ônibus está passando pela ponte e eu observo o mundo de cima, penso em como meus movimentos ninja me salvariam de um possível acidente. Penso olhando para os passageiros o que eles têm passado para aparentarem dessa ou daquela forma. Milhares de possibilidades surgem, apenas com o trabalho da imaginação. Não é diferente quando se propõe outras atividades, fora do cotidiano dessas crianças. Ao invés de prejudicial, penso que é muito saudável. Pedro Haddad diz em sua tese: 37 Jogo detetive desde que sou criança. A simulação de assassinatos, investigação, prisões, coloca jogo no terreno escancarado da teatralidade, em que se é o que não se é na vida real. Eis o lugar onde podemos fazer o que não fazemos. A dinâmica promove a interação entre os alunos-atores por meio de um universo ficcional, mediada por um clima saudável de tensão, em que se pode "morrer" a qualquer momento e que instaura, inclusive, uma outra realidade, poética, com alunos-atores concentradamente olhando-se nos olhos. (MARTINS, 2017, p. 183) Em nossas rodas de conversas no fim da aula, além dos diversos momentos de silêncio, as discussões com os alunos nunca envolveram nada sobre os termos ou como as palavras foram fortes ou violentas, mas sim como se divertiram nos jogos, como cada um se comportou durante e o que acharam. Então, somente com as aulas poderíamos ter chegado à mesma conclusão. 38 4.2. A ESCOLA PÚBLICA Existe um projeto para a deterioração do ensino público no Brasil, um grande exemplo disso é a escola pública estadual de São Paulo, a cada ano que passa, seus profissionais perdem mais e mais direitos, faltam funcionários que estejam lá para fazer a diferença na vida dos alunos, já que grande parte não possui um vínculo efetivo de trabalho, mas de contrato, o que não garante muitos dos direitos que poderiam ter e, ainda precariza o ensino nas escolas e consequente a aprendizagem dos alunos. A deterioração do ensino não está apenas na escola de ensino fundamental e médio do estado, mas também na universidade pública, como é o exemplo da Unesp. Muito dessa deterioração tem a ver com o sistema político no estado de São Paulo que mantém o partido PSDB no poder por vinte e quatro anos (vinte e oito hoje), o que faz com que não haja uma real competição para assegurar um mínimo possível de benefícios ao estado. Atuando na escola pública estadual por um ano e meio, claro que de forma abreviada, pois estava apenas como estagiário, então não participei de todo o processo pedagógico e burocrático por trás do ensino da escola, pude perceber que está tudo muito precarizado estruturalmente, os professores e funcionários estão infelizes e sem muita perspectiva. Um dos professores que acompanhei, que é efetivo no seu cargo, ou seja, concursado, disse que estava prestes a pedir sua exoneração, já que não tinha sentido continuar por mais tempo naquele sistema de ensino, se ele já ganhava muito mais com os trabalhos paralelos aos educacionais. Além do mais, no estado, falta o momento para o planejamento das aulas, já que eles têm que administrar muitas turmas e aulas por semana. Um exemplo disso é o próprio quarto ano que retrato aqui, eles tinham duas aulas de arte por semana, sendo uma na segunda e uma na terça. Cada uma com cinquenta minutos, que precisavam ser bem pensadas para 30 alunos na turma. Imagina isso multiplicado por uma quantidade muito maior? Além de tudo isso, existe um grande trânsito de alunos na escola, um dia os alunos estão lá, no outro foram transferidos e novos chegaram, e então eles precisam ser incluídos em uma dinâmica já estabelecida. Isso é muito comum, os alunos não iniciam e terminam seus ciclos nas mesmas escolas, então, como saber o que é o melhor para cada um deles é uma missão praticamente impossível. 39 Além de tudo isso, as aulas de arte são vistas como mera distração para os alunos, não como uma aula essencial para o desenvolvimento do ser humano, então pelo que observei, não era inclusa no projeto pedagógico da escola, inclusive os professores regentes não tinham muito contato conosco, a não ser se fosse para reclamar de alguma coisa, como deixar os alunos agitados após o fim da aula. Ainda assim, era necessário que se fosse apresentado algum resultado, e por isso a professora estava sempre com um celular na mão registrando o que era feito nas aulas, para certificar que algo era produzido, já que no caderno de arte, não usávamos folhas para a realização das atividades. Além do mais, quando era necessário, as aulas de arte junto com as de educação física eram usadas para ensaio de apresentações em eventos, que não faziam parte do projeto de ensino da disciplina e consequentemente, os professores de arte eram os responsáveis pela decoração da escola. Ainda assim, nos meus tempos de escola, no quarto ano (que na época era terceira série) eu nem mesmo tinha um professor específico de arte no ensino regular, o que mostra que, mesmo com a precariedade atual no ensino, muito já foi avançado. Além do mais, a escola municipal em que eu estudava era vista como um modelo, então, em comparação às outras, eu estava em um lugar de privilégio pelo tanto de aprendizado que tive naqueles anos. O que posso afirmar sem medo, é que o que ainda segura a escola pública é paixão pelo ensino e a necessidade do trabalho dos funcionários. 40 4.3. FIM DO SEMESTRE Eu demorava duas horas para chegar à escola Izac Silvério, o PIBID trabalhava com três escolas estaduais, sendo duas com ensino médio e fundamental II e essa com fundamental I. Eu passava mais tempo no caminho para a escola, que na própria escola, mas não me era menos gratificante o tempo que eu passava lá ministrando aulas. Mesmo sem, muitas vezes saber o que fazer. Não consegui decorar todos os nomes de alunos e muitas vezes eu os trocava entre si. Mas ainda assim, cada um tinha sua energia própria e especial que contribuía nas aulas. No fim do semestre eu fiquei na dúvida se deveria trocar de escola para conhecer uma nova experiência ou deveria ficar para participar do semestre seguinte com aqueles alunos. Não tínhamos trabalhado tudo o que planejamos, mas também não sabíamos se deveríamos ou não começar a trabalhar algo novo no semestre seguinte, se fôssemos continuar. Um professor não tem a escolha se vai ou não continuar com uma turma no meio do semestre, por isso me era tão difícil deixar aqueles alunos, já que apesar de todos os problemas que surgiram no semestre, ver que os alunos se sentiam felizes com uma proposta de aula fora do lhes era convencional, valia. Imagem 14 Última foto com os alunos que foram na última aula, para registrar o fim do semestre Arquivo pessoal. Foto de João Pedro Luz/Beatriz Duarte. 2019 41 Na última aula, tivemos a oportunidade de perguntar aos alunos o que tínhamos trabalhado na aula naquele semestre, o que eles lembravam e o que gostaram. O que eu esperava era que ninguém respondesse ou não lembrasse de das vivências que propomos, mas para nossa surpresa eles lembraram de muitas coisas, dos jogos que fizemos, os que pude me aprofundar aqui e os outros que não me aprofundei, dos conceitos de “o que, quem e onde”, no jogo detetive no barco, como gostariam de voltar a jogar anoiteceu na floresta, e dessa vez terminar o que começaram, como foram divertidas as aulas de arte naquele semestre e que esperavam que voltássemos no semestre seguinte, pois ficariam com saudade. A abertura que tiveram para contar o que sentiam já foi um grande avanço em relação a como se expressavam quando os conhecemos. Saber que algo ficou neles me confortou. Não podemos controlar a experiência que os outros terão, mas ter a oportunidade de tentar aplicar algo que traga aprendizagem é gratificante e vale o esforço. Decidi que voltaria no semestre seguinte, pois havia muitas coisas que eu queria poder me debruçar em relação a jogos e outras linguagens da arte, principalmente a teatral, mas por enquanto bastam as experiências relatadas. 42 5. CONCLUSÃO: JÁ QUE ESTOU AQUI Em 2019, quando dei aulas em uma escola pública, eu não fazia ideia de que o mundo seria, no ano seguinte, assolado por uma pandemia. Não sabia que eu teria que, por grande parte do tempo, ficar preso em casa. Não sabia que metade do meu curso deixaria de ser presencial e eu não iria mais encontrar nenhum dos meus colegas de universidade. No ano de 2019, eu não imaginava que estava sendo privilegiado por poder aprender na prática a licenciatura em arte. Eu poderia contar muitas das experiências que vivenciei em um ano e meio e de PIBID, como a dificuldade de se dar aula para um primeiro ano, mas eu decidi me focar no quarto ano, que foi onde eu pude me utilizar da experiência que eu tive na minha vida e das aulas que eu estava tendo, que coincidentemente se encaixavam com o que eu precisava no processo de ensino e aprendizagem que eu tive naquele primeiro semestre de 2019. Com o quarto ano eu tive cinquenta minutos semanais para dar o meu melhor na aula e busquei o ensino do teatro como alicerce, apesar disso, não acredito que aquelas poucas aulas fizeram uma mudança tão grande no cotidiano dos alunos, era preciso muito mais tempo e intensidade para tal. Duvido também que eles tenham entendido que em algum momento estivessem fazendo teatro nas aulas de arte. Me entristece pensar nessa realidade, por que dificilmente eles irão em busca de aprender mais sobre o que é fazer teatro ao longo de seus anos escolares e depois disso menos ainda. Pensando assim, o ensino de teatro no ensino público regular é possível atualmente? Não, não no esquema de aula que eu pude ministrar, uma aula corrida de cinquenta minutos por semana, com trinta alunos, que durante o ano tem que ter o suficiente, ou pinceladas, de cada uma das linguagens básicas da arte, não permite as condições necessárias para um ensino teatral que seja relevante, mas ainda dá para gerar a curiosidade e instigar os alunos a buscarem entender melhor o que é o teatro através da experiência. Mas sempre lembrando que se a aula não for viva, se a estrutura escolar não contribuir para uma melhor experiência e os objetivos das aulas não forem claros para os alunos, vai ser apenas mais uma aula de recreação e descanso, onde eles participarão apenas por ser diferente das demais. 43 No primeiro semestre de 2019, nós não conseguimos apresentar o teatro, pelo qual nos apaixonamos, aos alunos. Muitas coisas contribuíram para que não pudéssemos, mas em toda aula que buscamos trazer como foco o teatro, tentamos ao máximo mostrar que aquilo estava relacionado com o teatro, mesmo que não parecesse de cara. Talvez, se eu fosse o professor de arte na escola, eu pudesse trabalhar de forma mais ativa para que aqueles alunos tivessem um acesso mais aprofundado ao teatro, talvez eu pudesse criar projetos extra aula focados em fazer teatro e talvez não, porque provavelmente eu teria o incentivo necessário para poder desenvolver o projeto ou me empenhar como eu queria. Ainda assim, acho que, naquele pouco tempo, eu consegui trazer alguns momentos de alívio aos alunos com os jogos teatrais, o que nem de longe é o suficiente para um bom ensino do teatro ou pelo menos que os incentive na busca de um aprofundamento nessa arte, mas talvez esses momentos gerem uma memória afetiva que desperte alguma busca futura a eles. Inclusive tinha uma aluna que toda aula perguntava sobre questões relacionadas à arte, o que dava alguma esperança de que estávamos fazendo alguma diferença. Hoje, 2021, mesmo em meio à pandemia, eu me sinto mais preparado e maduro para ministrar uma aula, talvez se eu não tivesse vivido a experiência do PIBID, isso não teria acontecido, ou aconteceria de forma mais dolorosa. Hoje eu sei que não existem caminhos pedagógicos corretos, mas que é uma busca constante. Muitas vezes a escola não vai me amparar nas necessidades que terei para poder ensinar aos alunos e terei que ter força para persistir no caminho. Além de que nessa minha constante busca, eu provavelmente vou errar muitas vezes e não chegar em conclusão alguma. Os jogos me desenvolveram como aluno. E a aplicação de jogos me desenvolveu como professor. É um Ciclo. Desejo poder influenciar como me influenciaram e cada vez mais me aprofundar da arte de ensinar e da Arte. 44 BIBLIOGRAFIA DESGRANGES, Flávio. A Pedagogia Do Teatro: Provocação E Dialogismo. São Paulo: Editora Hucitec: Edições Mandacaru, 2006. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O Jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007. KOUDELA, Ingrid. Jogos Teatrais. São Paulo: Perspectiva,2006. KOUDELA, Ingrid Dormien; ALMEIDA JUNIOR, José Simões de; COUTINHO, Eduardo Tessari; et al. Léxico de pedagogia do teatro. São Paulo: Perspectiva: SP escola de teatro, 2015. MARTINS, Pedro Haddad. O Metateatro Como Instrumento Para A Formação Teatral De Alunos-Atores Entre 08 E 12 Anos. Campinas: 2011. Dissertação (Mestrado Artes da Cena) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas. MARTINS, Pedro Haddad. Pedagogia Em Performance: Uma Abordagem Do Ensino De Teatro Na Escola Básica. São Paulo, P.H. Martins, 2017. Tese (Doutorado) – Programa De Pós-Graduação De Artes Da Cena – Escola De Comunicação E Artes – Universidade de São Paulo. PAVIS, PATRICC. Dicionário De Teatro. São Paulo: Perspectiva,2008. SLADE, Peter. O Jogo Dramático Infantil. São Paulo, Summus, 1978. SPOLIN, Viola. Improvisação Para O Teatro. São Paulo: Perspectiva,2008.