Danytiele Cristina Fernandes de Paula TRANSPARÊNCIA E OPACIDADE NAS LÍNGUAS INDÍGENAS DA FAMÍLIA NADUHUP São José do Rio Preto 2019 Campus de São José do Rio Preto Danytiele Cristina Fernandes de Paula Transparência e opacidade nas línguas indígenas da família Naduhup Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Orientadora: Profª. Drª. Erotilde Goreti Pezatti São José do Rio Preto 2019 Danytiele Cristina Fernandes de Paula Transparência e opacidade nas línguas indígenas da família Naduhup Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Comissão Examinadora Profª. Drª. Erotilde Goreti Pezatti UNESP – São José do Rio Preto Orientadora Prof. Dr. Angel Humberto Corbera Mori IEL – UNICAMP – Campinas Profª. Drª. Cristina Martins Fargetti UNESP – Araraquara Profª. Drª. Marize Matos Dall’Aglio Hattnher UNESP – São José do Rio Preto Prof. Dr. Edson Rosa Francisco de Souza UNESP – São José do Rio Preto São José do Rio Preto 29 de agosto de 2019 A meus pais, que me ensinaram o respeito a todo ser. A meu namorado, que luta por um mundo igual. A todos que são resistência de diferentes maneiras. AGRADECIMENTOS Este trabalho encerra um longo caminho de pesquisa, de aprendizado e também de evolução e revolução em minha vida. Trilhar esse caminho seria impossível sem a presença de pessoas essenciais que permaneceram ao meu lado, às vezes me tomaram no colo e cruzaram esse caminho comigo. Primeiramente, agradeço a Deus, a força maior que move minha vida, ilumina meus passos, me cobre de bênçãos e de amor incondicional. Sei que Ele trabalhou em silêncio por mim, abriu portas, cruzou atalhos, moveu montanhas e tornou realidade o que era impossível aos meus olhos humanos. Agradeço aos meus pais, Donizeti e Aparecida, que tanto sofreram com minhas ausências, ansiedades, os tantos momentos de dor... mas igualmente, e ainda mais, se alegram com minhas vitórias e com cada pequeno passo conquistado. Eles me ajudaram a levantar, lutar e seguir, me fizeram e me forjaram como sou, me inspiraram e lutaram comigo e por mim todos os dias. Agradeço à minha querida “mãe acadêmica”, Profa. Dra. Erotilde Goreti Pezatti (Erô), por toda paciência, por todos os ensinamentos, por todo acolhimento e, especialmente, por acreditar e confiar no meu trabalho. Esse doutorado consagra anos de orientação sob sua luz e sua sabedoria e serei sempre grata por cada palavra e cada momento dividido a seu lado. Agradeço ao meu namorado, melhor amigo, esposo e auxiliar mágico, Guilherme, meu presente trazido do doutorado para a vida. Ele que me acolheu, me incentivou, me apoiou e amou nos piores momentos. Ele que divide comigo todos os planos de vida, me inspira a ser melhor todos os dias, me fez ver a vida com outros olhos e expandiu o significado de amor. Agradeço à minha avó, Regina, que nunca deixou de me abençoar, rezar por mim e me cuidar desde que eu era apenas uma menininha com medo de borboletas até hoje em que aprendi a voar. Agradeço à minha grande e amada Família por ser minha raiz, a base em que me construí. Em especial, agradeço aos meus primos e afilhados, Lara e André; meus tios e tias José Camargo, Dora, Cleonice, Elias, Francisco, Paula, José de Paula e Helena; e aos meus pais adotivos, Eliani e Carlos, por todo amor, todo cuidado e todas as expressões de mais puro carinho. Agradeço aos meus Amigos queridos, minha família escolhida e reafirmada todos os dias. Especialmente, agradeço à minha amiga e irmã, Tainara; meus amigos da infância para toda a vida, Luis Fernando, Renan e Robert; minhas queridas Cumadis Elaine e Ariane; meus amigos da faculdade para a vida, Christian e Isa; minhas amigas da Espanha para o mundo, Bárbara, Taísa e Noemí; meus amigos das montanhas, Alex e Sasha; e minha amiga francesa de alma brasileira Florence. Vocês me fizeram como sou. Agradeço ao meu coorientador, Prof. Dr. Daniel García Velasco, por ter aceitado me receber mais uma vez nas terras asturianas, por contribuir valorosamente para a pesquisa e, principalmente, por toda gentileza, carinho e acolhimento, fazendo de Oviedo minha casa. Agradeço à Profª. Drª. Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher, que me mostrou a tipologia e abriu caminho para essa tese e para o trabalho que é agora uma paixão de vida. Agradeço por todos os ensinamentos acadêmicos e de vida, por ser minha madrinha nesse percurso. Agradeço aos professores presentes na banca por terem aceitado gentilmente o convite, pela leitura atenta e pelas valiosas contribuições para a presente pesquisa. Agradeço aos colegas do Grupo de Pesquisa em Gramática Funcional (GPGF), pelas discussões, estudos e pesquisas na GDF que tanto contribuíram com o desenvolvimento desta pesquisa. Por fim, o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, à qual pela concessão das bolsas no país e no exterior, que possibilitaram o desenvolvimento da pesquisa. Two roads diverged in a wood, and I— I took the one less traveled by, And that has made all the difference. Robert Frost (1916) RESUMO A proposta principal deste trabalho foi investigar as relações de transparência e opacidade nas línguas indígenas da família Naduhup por meio de distintos fenômenos, como aposição, referência cruzada, acordo oracional etc., tomados como parâmetros para o estudo da transparência sob o aparato teórico da Gramática Discursivo-Funcional, desenvolvida por Hengeveld e Mackenzie (2008). Dessa forma, não apenas se assume uma perspectiva funcional, mas também uma nova abordagem desse fenômeno a partir do escopo da Gramática Discursivo-Funcional, que, graças à sua organização descendente de camadas, permite a definição da transparência considerando o alinhamento entre e dentro dos níveis de análise da teoria, o que representa uma inovação do conceito – tradicionalmente concebido como a relação entre forma e significado. A hipótese fundamental do trabalho é a de que as línguas de uma mesma família compartilham traços transparentes e/ou opacos de tal modo que se pode definir as características linguísticas fundamentais de uma família com base nesse compartilhamento. Desse modo, o objetivo geral consiste em averiguar como ocorre o compartilhamento dos traços de transparência/opacidade nas línguas da família Naduhup. Para tanto, utilizamos como corpus de análise quatro línguas indígenas – dâw, hup, yuhup e nadëb – descritas em gramáticas e teses constituindo uma amostra representativa da família Naduhup. As análises das línguas foram realizadas a partir dos critérios de opacidade definidos em Hengeveld (2011), Leufkens (2015) e Hengeveld e Leufkens (2018), afim de determinar as propriedades que são compartilhadas entre as línguas. Os resultados corroboram o pressuposto de que há compartilhamento de traços transparentes e opacos de modo que é possível definir as características das línguas que são parte da família e prever a presença de determinado fenômeno em uma língua a partir da observação desse fenômeno nas demais línguas da família. Dentre as características importantes observadas nas línguas da família Naduhup, destacamos, por exemplo, o sistema de negação composto por diferentes estratégias que atuam em distintas camadas dos níveis Interpessoal e Representacional; a ausência de marcação de gênero e de conjugação verbal; e o alinhamento semântico que caracteriza tais línguas como ativas, isto é, línguas que marcam a distinção entre argumentos Ativo e não-ativo (Inativo e Locativo). Desse modo, é possível alcançar uma caracterização geral sistemática das línguas indígenas da família Naduhup em termos dos traços de transparência/opacidade que mostra as relações que se estabelecem entre essas línguas e que também contribui para sua divulgação, bem como para estudos posteriores. Em âmbito maior, os resultados contribuem para o desenvolvimento da Gramática Discursivo-Funcional na medida em testa a hierarquia implicacional definida por Hengeveld (2011), Leufkens (2015) e Hengeveld e Leufkens (2018) para a ocorrência de traços transparentes nas línguas do mundo. Ademais, considerando a escassez de materiais a respeito das línguas indígenas e as dificuldades em delimitar as línguas que pertencem ou não a determinada família, esta pesquisa representa um novo aparato para auxiliar na elaboração de materiais, na delimitação de características de famílias linguísticas e também no desenvolvimento de pesquisas futuras. Palavras-chave: Transparência. Opacidade. Línguas indígenas. Família Naduhup. Gramática Discursivo-Funcional. ABSTRACT The main purpose of this research was to investigate the relations of transparency and opacity in the Naduhup family's native languages through different phenomena, such as apposition, cross-reference, clause agreement, etc., taken as parameters for the study of transparency under the grammar theoretical apparatus of Functional Discourse Grammar, developed by Hengeveld and Mackenzie (2008). Thus, not only is a functional perspective assumed, but also a new approach to this phenomenon from the scope of Functional Discourse Grammar, which, thanks to its descending layer organization, allows the definition of transparency considering the alignment between and within the levels of theory analysis, which represents a concept innovation - traditionally conceived as the relationship between form and meaning. The fundamental hypothesis of the paper is that the languages of the same family share transparent and/or opaque features such that the fundamental linguistic characteristics of a family can be defined based on this sharing. Thus, the overall objective is to ascertain how sharing of transparency/opacity traces occurs in the Naduhup family languages. For this, we used as corpus of analysis four indigenous languages - dâw, hup, yuhup and nadëb - described in grammars and theses constituting a representative sample of the Naduhup family. Language analyzes were performed using the opacity criteria defined in Hengeveld (2011), Leufkens (2015) and Hengeveld and Leufkens (2018), in order to determine the properties that are shared between languages. The results corroborate the assumption that there is sharing of transparent and opaque features so that it is possible to define the characteristics of the languages that are part of the family and predict the presence of a given phenomenon in one language from the observation of this phenomenon in the other languages of the family. Among the important features observed in the Naduhup family languages, we highlight, for example, the negation system composed of different strategies that act in different layers of the Interpersonal and Representational levels; the absence of gender marking and verbal conjugation; and the semantic alignment that characterizes such languages as active that is languages that mark the distinction between Actor and non- actor (Undergoer and Locative) arguments. In this way, it is possible to achieve a systematic general characterization of the Naduhup family's native languages in terms of the transparency/opacity traits that show the relationships that are established between these languages and which also contributes to their dissemination, as well as to further studies. More broadly, the results contribute to the development of Discursive-Functional Grammar by testing the implicational hierarchy defined by Hengeveld (2011), Leufkens (2015) and Hengeveld and Leufkens (2018) for the occurrence of transparent traces in world languages. Moreover, considering the scarcity of materials about native languages and the difficulties in delimiting the languages that belong or not to a certain family, this research represents a new apparatus to help in the elaboration of materials, the delimitation of language families and also in the development of future research. Keywords: Transparency. Opacity. Native languages. Naduhup family. Functional Discourse Grammar. LISTA DE ABREVIATURAS A ativo ABL ablativo ADV adverbial ADVREL adverbial relativizado AFF afetado ALL alativo APPL aplicativo ASP aspecto AUM aumentador AUX auxiliar BEN beneficiário C comitativo CAUS causativo COLL coletivo COND condicional CONJ conjunção CONJT conjuntivizador COOP cooperativo DAT dativo DECL declarativo DEF definido DEM demonstrativo DEP dependente DIR direção DIS.M distância média do centro dêitico DISTR distributivo DST.CNTR contraste – passado distante DUR durativo DYN dinâmico EMPH enfático EMPH.CO coordenador enfático EMPH.NEG ênfase de negação ESS essivo EV evidencial EXCL exclusivo F feminino FACT factual FOC foco FORM formativo FUT futuro FUT.E futuro estratégico (dâw) FUT.CONTR futuro contrastivo HAB habitual ILAT ilativo IMP imperativo IND indivíduo INDF indefinido INDIC indicativo INCH incoativo INFER inferencial INS instrumento INTENS intensificador INTER ilocução interrogativa INTR intransitivador ITER iterativo ITG demonstrativo intangível L locativo LOC lugar M masculino MOD modal NEG negação NEG.EX negação existencial (hup) NEG.CONTR contraste negativo NMLZ nominalizador NONIND não-indicativo NONREF não-referencial NONREF.EMPH enfático não-referencial NONVIS evidencial não-visual OBJ objeto OBL oblíquo PFV perfectivo PL plural POL polidez POSS possessivo PRED predicado/predicativo PROG progressivo PROH proibitivo PRX.CONTR contraste proximativo PST passado PST.DST passado distante (hup) PST.REC passado recente (yuhup) PUNCT pontual REFL reflexivo REL relativizador REP reportativo RESP respeito REST restritivo SEQ sequencial SIM simultâneo SG singular SPEC específico TAG enfático (hup) TEL télico TOP tópico TR marca de transitividade U inativo VENT ventivo SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 16 2 CAPÍTULO I: DA ICONICIDADE À TRANSPARÊNCIA 20 2.1 Da arbitrariedade à iconicidade 21 2.1.1 Iconicidade 26 2.1.2 Isomorfismo e Homomorfismo 32 3 CAPÍTULO II: TRANSPARÊNCIA NA GRAMÁTICA DISCURSIVO-FUNCIONAL 36 3.1 Gramática Discursivo Funcional 36 3.2 O conceito de transparência na Gramática Discursivo-Funcional 45 3.3 Categorias de Opacidade 48 4 CAPÍTULO III: METODOLOGIA 51 4.1 Material 52 4.2 Percurso metodológico 54 4.2.1 Critérios de opacidade 54 4.2.1.1 Interpessoal – Representacional 58 4.2.1.2 Interpessoal/Representacional – Morfossintático 62 4.2.1.3 Nível Morfossintático 72 4.3 Hipótese 79 5 CAPÍTULO IV: LÍNGUAS INDÍGENAS – FAMÍLIA NADUHUP 82 5.1 Características linguísticas 86 5.2 Pesquisas e estudos sobre a família Naduhup 89 6 CAPÍTULO V: TRANSPARÊNCIA NAS LÍNGUAS DA FAMÍLIA NADUHUP 91 6.1 Aposição 91 6.2 Referência cruzada 96 6.3 Relações gramaticais 103 6.4 Concordância de número 118 6.5 Concordância de negação 135 6.6 Descontinuidade 166 6.7 Expletivos 179 6.8 Gênero gramatical 188 6.9 Acordo no sintagma 195 6.10 Acordo na oração 208 6.11 Cópia de tempo 209 7 CONCLUSÕES 219 REFERÊNCIAS 227 16 1. INTRODUÇÃO Antiga é a discussão a respeito da iconicidade das línguas. Saussure (1977[1916]), nos primeiros estudos e pesquisas sobre a linguagem, preconiza que a língua é arbitrária, ou seja, o significante não reflete seu significado. No entanto, autores como Haiman (1980, 1985) defendem que, ao contrário, algo na forma dos signos reflete sim a nossa visão acerca da realidade. Em consonância, considerando a língua em sua função comunicativa, as teorias funcionalistas defendem que as formas da língua estão relacionadas a uma função/significado. De modo mais amplo, a expectativa é de que as línguas exibam uma relação sistemática de um-para-um entre forma e significado, sendo, portanto, transparentes. No entanto, no uso, diversos fatores, como ambiguidade, descontinuidade, fusão, concordância etc., fazem com que essa relação seja quebrada, tornando as línguas mais opacas (cf. LEUFKENS, 2015). Cabe notar que transparência aqui não é o mesmo que simplicidade, ou seja, as línguas podem ser complexas e, ao mesmo tempo, transparentes ou vice-versa. Slobin (1977) mostra, por exemplo, que a morfologia do turco é altamente complexa, no sentido de que é fortemente aglutinante, muito regular, e evita formas homófonas, o que permite, no entanto, uma forte relação de um-para-um entre morfemas e unidades semânticas, sendo, por isso, altamente transparente. No âmbito dos estudos tipológicos, como os de Hengeveld (2011b), é possível constatar que as línguas diferem em seu grau de transparência, isto é, podem ser consideradas mais ou menos transparentes de acordo com o conjunto de traços opacos que apresenta. No entanto, todas as línguas apresentam opacidade e transparência em certa medida. De acordo com o autor, línguas mais prototipicamente transparentes, por exemplo, apresentam algum traço não transparente em sua fonologia ou mesmo casos de redundância entre unidades semânticas e morfossintáticas. Considerando essa gradação entre as línguas e os traços de opacidade, é possível afirmar que a distribuição desses traços transparentes/opacos não é aleatória, mas que, ao contrário, há uma ordem implicacional entre eles. Apesar de ser um tema tão promissor em diferentes áreas (estudos diacrônicos, tipológicos, de aquisição da linguagem, ensino e aprendizagem de língua estrangeira, etc.), a questão da transparência tem recebido pouca atenção da linguística, especialmente pela difusão da ideia de que todas as línguas são igualmente difíceis de se processar, não 17 havendo distinções relevantes entre a transparência e o processamento linguístico. Além disso, as pesquisas realizadas a esse respeito consideram uma só língua ou então um conjunto tipológico de línguas variado, com diferentes famílias de diferentes distâncias geográficas e genéticas. Nesse contexto, em busca de respostas a respeito da relação de transparência entre as línguas, focando suas similaridades e distinções, esta pesquisa apresenta um estudo pioneiro das relações de transparência e opacidade nas línguas indígenas de uma única família, a saber, a família Naduhup. Segundo Seki (1999, p. 258), estima-se que ainda são faladas no Brasil cerca de 180 línguas indígenas por, aproximadamente, 155.000 falantes, considerando que, desde a chegada dos portugueses, mais de 1.000 línguas já se perderam sem haver sequer um estudo sobre elas. Contrariamente, dados do censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), apontam para 274 línguas indígenas faladas por 305 etnias diferentes. O que esses dados discrepantes revelam é a dificuldade justamente em precisar o número de falantes e o número de línguas. Por vezes, para cálculos como esses são considerados censos que analisam o total de habitantes e não de falantes das línguas – a comunidade Kuyawi, por exemplo, é constituída por um grupo de aproximadamente 150 pessoais, das quais apenas vinte são falantes da língua kuyawi. Além disso, como veremos, a classificação das línguas indígenas é uma questão complexa e que, muitas vezes, desconsidera os próprios falantes, de modo que o cálculo das línguas registradas não representa a realidade das que são faladas. Como o próprio IBGE admite, “há ainda a necessidade de estudos linguísticos e antropológicos mais aprofundados, pois algumas línguas declaradas podem ser variações de uma mesma língua, assim como algumas etnias também se constituem em subgrupos ou segmentos de uma mesma etnia” (IBGE, Censo Demográfico, 2010). A partir da década de 1980, houve um crescimento de pesquisas e pesquisadores interessados no estudo das línguas indígenas; no entanto, a maioria desses trabalhos não passa de uma descrição pautada em alguns aspectos da língua, não fornecendo, assim, uma descrição completa, que permita um estudo tipológico. Desse modo, poucas são as gramáticas disponíveis com descrições completas e detalhadas o suficiente sobre as línguas, o que dificulta pesquisas na área. Nesse complexo contexto, Seki (2000, p. 245) destaca que o estudo com línguas indígenas apresenta duas contribuições fundamentais: a científica e a social. Do ponto de vista científico, é fundamental compreender a natureza e a diversidade das línguas, confirmando hipóteses e explicando fenômenos até então desconsiderados. Já no aspecto 18 social, trabalhar com línguas indígenas é também trabalhar com línguas minoritárias, contribuindo para a sua preservação e/ou revitalização. Esta tese, portanto, é pautada nesses valores, buscando dar luz a fenômenos desconsiderados e contribuindo para a divulgação de análises de línguas indígenas sob o aporte da Gramática Discursivo-Funcional. A partir de uma seleção mais ampla entre diferentes famílias de línguas indígenas, chegamos à seleção final da família Naduhup, considerando os materiais disponíveis com descrições o mais completas possível, mas também tendo em conta que poucos estudos com enfoque tipológico foram realizados a respeito das línguas dessa família. A escassez de trabalhos tipológicos comprova-se pelas inúmeras controvérsias quanto à classificação das línguas que compõem a família dada a incipiência do material existente. Estudos anteriores, como Martins (2004, p. 6-7), por exemplo, distinguem sete grupos principais integrantes da família Naduhup: Nadëb, Kuyawi, Dâw, Hupda (Hup), Yuhup, Kakua e Nukak. Em contrapartida, estudos recentes (cf. EPPS e BOLAÑOS, 2017) apontam que as línguas Kakua e Nukak, na verdade, não têm relação genética com a família Naduhup. Portanto, das línguas restantes, a amostra selecionada contempla quatro línguas: dâw, hup, yuhup e nadëb. Para tanto, baseamo-nos em quatro obras principais: Fonologia e gramática do Dâw (MARTINS, 2004); Grammar of Hup (EPPS, 2005); Les structures élémentaires du Yuhup Makú, langue de l’Amazonie colombienne: Morphologie et Syntaxe (OSPINA BOZZI, 2002) e A negação e outros tópicos da gramática Nadëb (WEIR, 1984). A escolha desses materiais considera a abrangência das descrições realizadas de modo que seja possível analisar critérios que envolvem os mais variados fenômenos nas línguas. Nesse contexto, o pressuposto inicial da pesquisa, baseado nos estudos tipológicos anteriores sobre a transparência, era o de que línguas de uma mesma família compartilham traços, porém, com divergências, o que permitiria, por exemplo, estabelecer uma hierarquia implicacional de ocorrência desses traços dentro da própria família. No entanto, com as análises dos dados, constatamos a impossibilidade de se estabelecer uma hierarquia implicacional pelo fato de que as línguas de uma mesma família parecem não divergir nos traços opacos e transparentes que apresentam. Dessa maneira, considerando que as línguas de uma mesma família compartilham traços de transparência/opacidade, a hipótese em que se assenta a pesquisa é, portanto, a de que é possível predizer se uma língua é ou não parte da família a partir da observação de como esses traços se comportam nessas línguas. Os resultados da pesquisa, em um plano mais amplo, por se tratar de um estudo que envolve distintos critérios pragmáticos, semânticos, morfossintáticos e fonológicos, contribuem para o debate de diferentes características das línguas indígenas da família Naduhup, ainda 19 pouco estudadas e discutidas entre as línguas do mundo, inclusive sob uma visão funcionalista. Portanto, as análises aqui empreendidas podem ainda contribuir para o estudo das línguas indígenas e para o estabelecimento do papel da transparência na variação delas. Assim sendo, por meio de um exercício tipológico, objetivamos também colaborar para a difusão e propagação de análises das línguas da família Naduhup, especialmente pelo viés de uma teoria funcionalista, resultando, de maneira ampla, em maior visibilidade. Ademais, a pesquisa também contribui para o desenvolvimento da teoria que a sustenta, a Gramática Discursivo-Funcional (GDF), pois se presta como subsídio para a discussão e evolução da concepção de transparência e seus critérios, bem como da própria teoria e sua aplicabilidade no estudo das línguas do mundo, além de ser ferramenta para a concepção de futuros materiais que permitam a divulgação e a proposição de novas pesquisas para as línguas indígenas.1 Para tanto, esta tese está dividida em cinco capítulos. No capítulo I – Da iconicidade à transparência, traçamos um breve panorama do percurso dos estudos linguísticos pelos conceitos de iconicidade, arbitrariedade e isomorfismo até a transparência, considerando diferentes perspectivas. Já no capítulo II – Transparência na Gramática Discursivo- Funcional, expomos a teoria da Gramática Discursivo-Funcional, tal como apresentada por Hengeveld e Mackenzie (2008), tendo como foco principal a concepção de transparência defendida pela teoria. O capítulo III – Metodologia apresenta o percurso metodológico, o corpus e os critérios de opacidade empregados nas análises. O capítulo IV – Línguas indígenas da família Naduhup faz um breve resumo das principais características culturais, sociais e linguísticas das línguas da família Naduhup, bem como discute as controvérsias acerca da sua denominação e delimitação das línguas que são de fato parte da família. Por fim, o capítulo V – Transparência nas línguas da família Naduhup apresenta as análises dos critérios de opacidade em cada uma das línguas do corpus – dâw, hup, yuhup e nadëb. As conclusões são, então, apresentadas, considerando as análises, a comparação entre as línguas, as hipóteses iniciais e os objetivos traçados para a pesquisa. 1 Cabe lembrar ainda que esta pesquisa relaciona-se ao projeto desenvolvido pelo Grupo de Pesquisas em Gramática Funcional (GPGF), sediado no Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE – UNESP), São José do Rio Preto, nos anos de 2015 e 2016, sob a temática da transparência na Gramática Discursivo Funcional, utilizando como corpus diferentes línguas indígenas. 20 CAPÍTULO I DA ICONICIDADE À TRANSPARÊNCIA Para compreender o conceito de transparência, especialmente dentro da Gramática Discursivo-Funcional, é necessário tratar da sua relação íntima com as noções de iconicidade, isomorfismo e homomorfismo, bem como da visão de outras teorias a respeito desses fenômenos. Dessa forma, o objetivo desse capítulo é realizar uma breve revisão da literatura linguística, desses conceitos para chegarmos à definição de transparência na visão funcionalista, mais especificamente, na Gramática Discursivo- Funcional. A conexão entre significado e forma é tão antiga quanto a própria história da linguagem ou da escrita. Como destaca Bolinger (2012, p. 217, tradução nossa), as primeiras formas de comunicação devem ter sido imitativas. O uso de pictogramas para transmitir mensagens muito antes do desenvolvimento de símbolos e alfabetos – para não mencionar a universalidade do gesto imitativo e expressivo – parece tão natural que só podemos supor um estágio primitivo em que os sons eram relacionados ao sentido.2 Fato é que, desde as primeiras reflexões sobre a linguagem, questiona-se a relação possível entre significado e forma, a arbitrariedade dos signos em oposição à iconicidade. Platão, com o diálogo Crátilo, no século IV a.C., já discute se a representação linguística tem por base um sistema de signos arbitrários ou se as palavras têm uma relação intrínseca e motivada com as coisas que significam. Na obra, os interlocutores Crátilo, Hermógenes e Sócrates apresentam e discutem as diferentes visões a respeito do tema: Crátilo defende a relação motivada e natural entre o mundo e a língua; Hermógenes defende, por outro lado, que a língua é imotivada e convencional, não havendo assim transparência (entendida aqui como similaridade entre a forma linguística e seu significado no mundo exterior); ao passo que Sócrates media o diálogo e faz uma ponte entre esses diferentes pontos de vista (cf. PLATÃO, 1963). 2 Tradução do original: “[…] the first forms of communication must have been imitative. The use of pictograms to convey messages long before the development of syllabaries and alphabets - not to mention the universality of imitative and expressive gesture - seems so natural that we can only suppose a primitive stage in which sounds were related to sense.” 21 Séculos depois, Saussure (1977[1916]) transforma os caminhos do estudo da linguagem ao discutir a natureza da língua e do signo linguístico, estabelecendo dicotomias que delimitam o objeto da linguística enquanto ciência. Dentre suas postulações está o princípio da arbitrariedade do signo, segundo o qual “o laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então, visto que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: o signo linguístico é arbitrário” (1977, p. 81, grifo nosso). Em sentido contrário, o princípio da iconicidade diz respeito ao caráter previsível do significado a partir da forma. Desse modo, a estrutura da língua reflete, em certa medida, a estrutura da realidade, do mundo e da experiência do falante, sendo possível prever o conteúdo por meio da forma, o que poderia ser comprovado pela existência de universais linguísticos, que seriam reflexos das nossas percepções comuns sobre o mundo. O princípio da iconicidade tem sido discutido mais detalhadamente por diversas teorias e autores, como Haiman (1985), Givón (1985), Croft (2003), Haspelmath (2008) e muitos outros. Ligada a este princípio está a noção de transparência, visto que também diz respeito às relações entre forma e significado. Trataremos, então, do percurso entre a arbitrariedade e a iconicidade, detalhando as questões brevemente apresentadas até aqui, de forma a compreender como a discussão linguística em torno desses conceitos culmina na definição de transparência que é empregada nas análises da presente pesquisa. 2.1 Da arbitrariedade à iconicidade Considerados como divisor de águas nas pesquisas sobre a linguagem, os estudos de Saussure (1977[1916]) fazem surgir o estruturalismo e redefinem o olhar sobre as línguas. Dentre as dicotomias instauradas pelo autor, estão os conceitos de langue e parole. De acordo com Saussure (1977, p. 22-23), a língua (langue) constitui o sistema linguístico, estrutural, que é empregado por determinada comunidade, sendo, desse modo, social, coletiva e compartilhada. A fala (parole), por outro lado, é individual, sendo a realização particular da língua feita por cada indivíduo. Compreendendo assim a fala como assistemática, o pesquisador propõe que o objeto de estudo da linguística é a língua, visto que somente fenômenos sistemáticos podem ser analisados pela ciência. Assim sendo, o olhar do pesquisador recai apenas sobre fatos do sistema da língua, da gramática 22 e, consequentemente, da estrutura, decisão que impacta no que será definido por ele como arbitrariedade do signo linguístico. Saussure conceitua, então, o signo linguístico como a junção entre significante, forma ou imagem acústica, e o significado, sentido. É com base nessa definição que o autor postula o Princípio da Arbitrariedade ao afirmar que o signo linguístico é arbitrário, ou seja, “o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade” (SAUSSURE, 1977, p. 83, grifo do autor). Nessa perspectiva, não há nada na forma ou na imagem acústica que nos remeta ao significado de determinado signo, visto que o significado seria estabelecido por convenção de acordo com as regras e usos de determinada língua. A estrutura gramatical das línguas é, portanto, considerada como um sistema autônomo regido por leis internas inerentes ao próprio sistema, sem relação com motivações de ordem externa (cf. MARTELOTTA, 2010, p. 53). Assim, para Saussure, o significado de formas como “mar”, “céu”, “casa” etc. não está relacionado com sua materialidade, isto é, não há nada na sequência “m-a-r”, “c-é- u” ou “c-a-s-a” que nos leve à imagem do significado, sendo possível a expressão deles por outras sequências, como de fato ocorre se considerarmos diferentes línguas: sea, sky e house, respectivamente, em inglês; mer, ciel e maison, em francês. Esse conceito de língua como arbitrária vai embasar as teorias formalistas posteriores, como o gerativismo de Chomsky, segundo o qual, “[...] nossa interpretação do mundo é baseada em parte em sistemas representacionais que derivam da estrutura da própria mente e não espelha em qualquer direção a forma das coisas no mundo externo [...]”3 (CHOMSKY, 1981, p. 03, apud GIVÓN, 1985, p. 191, tradução nossa). Desse modo, Chomsky nega qualquer relação entre o mundo externo e o sistema linguístico, o que permeia toda a proposta teórica gerativa. Para as teorias estruturalistas, então, “a iconicidade é uma anomalia”4 (DU BOIS, 1985, p. 343, tradução nossa) e a arbitrariedade é necessária, pois quebra a conexão entre o signo e o mundo externo de modo a manter a integridade do sistema linguístico como autônomo. Assumir a iconicidade seria, assim, assumir que o sistema não é autônomo e que a língua precisa ser vista também em sua relação externa, em seu uso, o que é proposto posteriormente pelas teorias funcionalistas. 3 Tradução do original: “[...] our interpretation of the world is based in part on representational systems that derive from the structure of the mind itself and do not mirror in any direction the form of things in the external world […]”. 4 Tradução do original: “[...] iconicity is an anomaly [...]”. 23 Saussure reconhece, no entanto, casos específicos das línguas que denomina como fenômenos de arbitrariedade relativa, isto é, ocorrências em que a forma é, em certa medida, motivada. Para ilustrar tais ocorrências, o autor usa os números vinte e dezenove, considerando vinte como totalmente imotivado e, portanto, um signo de arbitrariedade absoluta, ao passo que dezenove é parcialmente motivado, visto que se constitui de dois termos dez e nove, sendo um signo de arbitrariedade relativa (cf. SAUSSURE, 1977, p. 152-155). Cabe aqui destacar que Saussure trata da motivação em nível de sistema da língua, já que considera esse sistema como autônomo. Dito de outro modo, o signo que é relativamente motivado o é em relação à sua composição a partir de outros signos do próprio sistema, ou seja, não se trata de uma motivação externa de modo a considerar a relação entre o significante e o mundo exterior, mas de uma motivação interna na relação do signo com outros signos, que pode ser de ordem fonética, morfológica ou mesmo semântica. Nessa perspectiva, o pesquisador admite que “não existe língua em que nada seja motivado” (SAUSSURE, 1977, p. 154), havendo, então, a necessidade de certa motivação para que se mantenha a ordem e a regularidade do sistema5. A esse respeito, Du Bois (1985, p. 344) denomina a motivação aqui tratada por Saussure como motivação interna, ou seja, aquela que “depende de fatos arbitrários internos ao sistema da língua”. Por outro lado, casos como o das onomatopeias – palavras que buscam imitar em sua estrutura o som daquilo que designam –, podem ser chamados de motivação externa, visto que há um elemento externo (som) que leva à forma. Saussure, assim como outros estruturalistas, ao considerar a língua como autônoma, tem em conta apenas as motivações internas como parte necessária de seus estudos. Contrariamente ao postulado por Saussure, o princípio da iconicidade, defendido por diferentes pesquisadores, determina que algo na forma, na estrutura da língua reflete nossa percepção da realidade, das entidades, estados, eventos etc. e essa percepção é representada na língua (cf. GIVÓN, 1985, p. 191). Nesse sentido, Givón (1985) afirma que a iconicidade é a correspondência, ou mesmo dependência, entre forma e significado no sistema gramatical das línguas. Um dos exemplos clássicos para este princípio é o caso 5 Interessante notar que a manutenção da ordem e regularidade do sistema, como postula Saussure, está também relacionada ao Princípio da Economia Linguística, segundo o qual as línguas se equilibram entre duas forças contrárias: as necessidades de preencher lacunas da gramática e de eliminar aspectos que sejam redundantes, complexos ou desnecessários. Em outras palavras, as línguas vão se tornando mais relativamente motivadas na medida em que se tornam mais dinâmicas com o intuito de melhor cumprirem as necessidades comunicativas. Uma língua puramente arbitrária não é, dessa maneira, econômica, mas altamente complexa, o que prejudica seus objetivos comunicativos. Assim, se há a carência de um novo signo para designar um novo significante, o sistema se rearranja de modo a gerar esse novo signo a partir dos já existentes ao invés de criar novos puramente arbitrários. 24 das onomatopeias, como tique-taque para designar o barulho de um relógio, ou miau para se referir ao som emitido por gatos. A questão da iconicidade ganha luz e novos desdobramentos a partir das teorias funcionalistas e cognitivas, visto que consideram a situação real de comunicação e a língua inserida em contexto social de uso. A língua passa, então, a não ser mais considerada apenas como sistema autônomo, mas em sua função social, o que implica, necessariamente, na ampliação das noções de arbitrariedade e iconicidade. A língua é analisada, então, em sua dinamicidade, adaptando-se aos diferentes contextos de uso e, portanto, fica difícil pensar em um signo imotivado, seja por forças internas ou externas. Em uma perspectiva funcionalista extrema, por exemplo, pode-se pensar que todos os fatos sintáticos, considerados autônomos pela visão estruturalista, são, na verdade, o resultado transparente de metas funcionais do falante (cf. DU BOIS, 1985, p. 345). A esse respeito, Martelotta (2010, p. 81) afirma que “o que muitas vezes ocorre com as palavras aparentemente imotivadas ou arbitrárias, ou seja, aquelas cujo sentido não pode ser previsto a partir de sua estrutura, é que sua motivação se perde com o tempo”. Por diferentes motivações que competem entre si, as línguas mudam para cumprir seus objetivos comunicativos e, nesse processo, a motivação original de determinada palavra pode, aparentemente, desaparecer, o que não significa que ela seja totalmente imotivada. A perspectiva funcionalista amplia então o conceito de iconicidade de uma relação biunívoca entre significado/função e forma para as relações que se estabelecem na oração, na sentença, no discurso. Exemplo dessa ampliação é o princípio da Iconicidade tal como concebido pela Gramática Discursivo-Funcional. De acordo com esse princípio, a ordenação dos constituintes reflete, em certa medida, a ordem da realidade: a ordem em que Movimentos e Atos Discursivos, no Nível Interpessoal, e Proposições e Episódios, no Nível Representacional, são formulados corresponde à ordem em que eles são expressos. Essa possibilidade, de acordo com Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 283), sugere que há uma ordem na experiência física e mental (no Componente Contextual) que deve ser refletida nas camadas mais altas dos níveis Interpessoal e Representacional. Observa-se, portanto, que não se trata mais apenas do nível da palavra, ou seja, da correspondência estrita entre significado/função e sua forma, mas, em um nível mais amplo, da relação entre a estrutura da língua, de suas unidades maiores, com a estrutura do pensamento, da realidade, dos acontecimentos no mundo exterior. 25 Desse modo, é possível afirmar que se busca, nos condicionamentos cognitivos e discursivos particulares de cada momento da interação, as explicações que justifiquem a forma da expressão linguística utilizada. No entanto, é importante compreender que, para a GDF, esse princípio da iconicidade não é um universal absoluto, nem mesmo uma regra categórica, mas sim uma preferência ou tendência do falante ao fazer uso do repertório linguístico de uma determinada língua, afetando assim a expressão linguística de modo a refletir a realidade. O que essa tendência nos mostra é “que há mais de motivação ou iconicidade nas línguas do que se poderia inicialmente imaginar” (MARTELOTTA, 2010, p. 77). Dessa forma, com essa mudança de paradigma e, consequentemente, do que se considera como iconicidade ou arbitrariedade, concluímos que o sistema da língua é mais icônico do que arbitrário (ainda que não se possa negar completamente a existência de alguma arbitrariedade), já que há motivações de diferentes ordens que pressionam o sistema linguístico a todo momento para se atingirem os objetivos comunicativos. Bolinger (2012, p. 24-25, tradução nossa) estabelece, nesse tocante, uma espécie de paradoxo da arbitrariedade: O curioso sobre o equilíbrio entre arbitrariedade e seu oposto é que, dada a linguagem (ou qualquer outra coisa) como um fato da vida, grande parte da arbitrariedade desaparece. [...] A língua inglesa parece indesculpavelmente arbitrária para o falante do francês, mas é um mundo para si mesma, e dentro desse mundo existem incontáveis relações mais ou menos evidentes. [...] Quase nada sobre a língua é arbitrário no sentido de que algumas pessoas, em alguma ocasião, se sentaram e decidiram inventá-la [...]. Praticamente tudo na língua tem uma origem não arbitrária. Algumas coisas evoluem para maior arbitrariedade, outras para menos.6 A consideração de que a arbitrariedade é um fato da vida é justamente o que faz dela algo quase inexistente no sentido de que torna todas as coisas motivadas de alguma maneira. Na língua, não é diferente. Mesmo os fenômenos mais imotivados têm algo de icônico em sua origem ou mesmo nas mudanças que a língua sofreu ao longo dos anos 6 Tradução do original: “The curious thing about the balance between arbitrariness and its opposite is that, given language (or anything else) as a fact of life, much of the arbitrariness falls away. […] The English language seems inexcusably arbitrary to the speaker of French, yet it is a world to itself, and within that world there are countless more or less self-evident relationships. […] Almost nothing about language is arbitrary in the sense that some person sat down on some occasion and decided to invent it […] Virtually everything in language has a non-arbitrary origin. Some things evolve toward greater arbitrariness, others toward less.” 26 de uso. A língua é então esse equilíbrio entre motivado e imotivado, arbitrário e icônico, assim como a vida o é. Tomando, a partir dessas considerações, a perspectiva da análise linguística, concordamos com Martelotta (2010, p. 77) que as noções de arbitrariedade e de motivação (ou iconicidade) não são exclusivas, ou seja, não constituem antônimos, mas antes visões diferentes de um mesmo fenômeno. A noção de arbitrariedade observa exclusivamente a relação existente entre o som e o sentido da palavra, já a noção de motivação ou iconicidade leva em conta o fato de o falante, de algum modo, fazer corresponder a forma da palavra com o significado que ela expressa. Dessa maneira, não há razão para se considerar a arbitrariedade e a iconicidade como polos opostos necessariamente excludentes, mas como visões diferentes de um mesmo fenômeno ou mesmo como fenômenos presentes em todas as línguas. Ainda que não haja uma correspondência exata entre arbitrariedade e opacidade ou iconicidade e transparência, conforme veremos, é esperado que toda língua apresente certo grau de opacidade assim como certo grau de arbitrariedade. A existência da iconicidade em fenômenos da língua não impede que determinados fenômenos sejam arbitrários em certa medida. Assim, nos parece necessário considerar as duas visões, como é necessário considerar que as línguas apresentam simultaneamente transparência e opacidade em suas gramáticas. 2.1.1 Iconicidade Já na Antiguidade, os filósofos estóicos argumentavam que, pelo menos, as primeiras palavras da língua imitaram a natureza por meio de onomatopeias, que foram consideradas relevante para as primeiras definições de iconicidade. No entanto, apesar de se tratar de uma discussão antiga, esse fenômeno foi considerado, por muito tempo, marginal nos estudos linguísticos. Apenas a partir do século XIX, pesquisas sobre a iconicidade ou arbitrariedade das línguas ganham luz por meio de análises em diferentes níveis sob diferentes escopos teóricos. No entanto, são as teorias funcionalistas que, de fato, vão se debruçar sobre a relação entre a forma da expressão linguística e sua relação com o mundo externo. 27 As diferentes análises e concepções teóricas resultaram também em diferentes definições de iconicidade. Bolinger (1977), por exemplo, leva o conceito de iconicidade ao extremo, postulando que a condição natural da língua é preservar uma forma para um sentido e vice-versa. O autor denomina essa correspondência biunívoca de um-para-um entre forma e função como isomorfismo, noção intimamente ligada ao conceito de transparência concebido pela GDF, conforme veremos adiante. Na visão de Bolinger (1977), portanto, não existem duas formas em uma língua com exatamente o mesmo significado e toda forma é necessariamente motivada. Givón, por sua vez, também relaciona iconicidade e isomorfismo ao propor que “[...] um sentido razoável de iconicidade deve pressupor a noção de ‘isomorfismo’, de modo que um código icônico é ‘um código construído isomorficamente’”7 (GIVÓN, 1985, p. 188, tradução nossa). Dito de outro modo, “[...] o isomorfismo não é nem motivação nem explicação de iconicidade, mas sim uma parte necessária de sua definição”8 (GIVÓN, 1985, p. 188, tradução nossa). Assim, tanto Bolinger (1977) quanto Givón (1985) consideram a iconicidade como a correspondência entre forma e função de tal modo que se estabeleça uma relação de um-para-um entre elas. Com base nesse postulado, Givón (1985) define princípios de iconicidade, todos permeados pelo que o autor chama de “metaprincípio”, segundo o qual, “todas as outras coisas sendo iguais, uma experiência codificada é mais fácil de armazenar, recuperar e comunicar se o código é maximamente isomórfico à experiência”9 (GIVÓN, 1985, p. 189, grifo do autor, tradução nossa). Enquanto princípio, não podemos afirmar que essa seja uma regra, mas uma tendência das línguas de facilitar a comunicação por meio de um código cuja estrutura seja reflexo da estrutura da realidade. Como veremos nas análises, nem sempre é esse o caso devido a outras motivações (contextuais, fonológicas etc.) que competem com a transparência das línguas. Haiman (1980; 1985), por sua vez, defende a separação entre isomorfismo e motivação. Para o autor, a relação biunívoca entre forma e significado estabelecida pelo isomorfismo é difícil de ser considerada, visto que, muitas vezes, esse não é o caso nas línguas. Haiman (1980; 1985) prefere, então, tratar de motivações icônicas, a saber, o 7 Tradução do original: “[…] a reasonable sense of ‘iconicity’ must presuppose the notion of ‘isomorphism’, so that an iconic code is ‘an isomorphically constructed code’”. 8 Tradução do original: “[…] isomorphism is neither motivation nor explanation of iconicity, but rather a necessary part of its definition.” 9 Tradução do original: “All other things being equal, a coded experience is easier to store, retrieve, and communicate if the code is maximally isomorphic to the experience.” 28 reflexo da realidade de algum modo na estrutura da língua, sem que esse reflexo implique necessariamente na relação estrita entre forma e significado, como postulam visões mais radicais. Em concordância com essa visão mais moderada, Langendonk (2007, p. 395), define a iconicidade na língua como estando relacionada ao modo como a forma de um signo linguístico reflete seu referente. Essa visão é mais ponderada no sentido de que não estabelece uma relação de correspondência biunívoca, como propõem Bolinger (1977) e Givón (1985), e também mais genérica, visto que a forma do signo pode se relacionar de diferentes modos com seu referente, como discutiremos a seguir. Leufkens (2015, p. 22-23), valendo-se das diferentes visões acerca da iconicidade, afirma que ela pode ser interpretada, então, de duas maneiras: em sentido mais restrito e em sentido mais amplo. Em sentido mais restrito, a iconicidade se refere à previsibilidade de um significado a partir de sua forma, ou seja, se uma forma é icônica, pode-se inferir seu significado (ou parte dele) a partir do seu som ou da forma. Este é, por exemplo, o caso das onomatopeias, já citadas aqui, como toc toc para imitar o som de batidas, ou cocoricó para imitar o canto de um galo. É interessante observar que, nesse sentido, muitas vezes iconicidade e transparência são tratadas como sinônimos, isto é, se for possível depreender o significado a partir da forma, a relação é transparente, o que não é o caso na concepção de transparência defendida pela GDF. A maioria das formas linguísticas, no entanto, não é icônica, porque a relação entre a forma e os seus significados é, em grande parte, arbitrária, convencionalizada, isto é, o significado é dado pelo uso interacional/social de determinada forma, não havendo necessariamente a correspondência desta com seu significado. Podemos tomar como exemplo a forma cachorro: ainda que nada na forma tenha relação com o animal designado, por convenção social, todos temos uma imagem mental de cachorro que é evocada no momento da enunciação desta forma. Em sentido mais amplo, a iconicidade pode ser referida como “iconicidade diagramática” ou “iconicidade de motivação”, tal como definida em Haiman (1980). Segundo o autor (1980, p. 515, tradução nossa), “a estrutura da língua reflete diretamente algum aspecto da estrutura da realidade”10, ou seja, não é necessário que a forma reflita exatamente o significado, mas ela pode, de alguma maneira, refletir a estrutura da realidade. Assim considerada, a iconicidade pode ser subdivida em tipos, como o faz 10 Tradução do original: “[...] the structure of language directly reflects some aspect of the structure of reality.” 29 Neves (1997), tendo em conta a estrutura da realidade que é refletida pela estrutura da língua. Portanto, com base em estudos como de Haiman (1983, 1985) a respeito da iconicidade diagramática – que trata do arranjo dos signos linguísticos de modo a refletir aspectos da realidade –, Neves (1997, p. 107-108) apresenta os seguintes tipos de iconicidade: i) Iconicidade de quantidade: “maior quantidade de matéria fônica deve corresponder a maior quantidade de informação” (NEVES, 1997, p. 107); ii) Iconicidade de distância (ou de proximidade): “a distância linguística entre expressões corresponde à distância conceptual existente entre elas” (NEVES, 1997, p. 107), ou seja, quanto mais dois conceitos são próximos funcional ou semanticamente, mais provável que eles sejam expressos em proximidade; iii) Iconicidade de independência: “a separação linguística de uma expressão corresponde à independência conceptual do objeto ou evento que a expressão representa” (NEVES, 1997, p. 107-108); iv) Iconicidade de ordenação: “o grau de importância atribuído aos conteúdos de um texto pelo falante, numa determinada situação de interação, determina a ordenação das formas” (NEVES, 1997, p. 108); v) Iconicidade de complexidade: “a forma plural é maior que a singular, a superlativa é maior que a normal, etc.” (NEVES, 1997, p. 108); vi) Iconicidade de categorização: “sujeitos tendem a correlacionar com agentes, objetos com pacientes, etc.” (NEVES, 1997, p. 108). Em termos práticos, tomando como exemplo a Iconidade de complexidade, quando a expressão linguística faz referência a vários objetos, tal expressão se apresentará no plural e, espera-se, por consequência, que seja selecionada uma palavra mais longa do que aquela que se refere a um único objeto no singular, como, em inglês, apple (maçã) – apples (maçãs), watch (relógio) – whatches (relógios). Entretanto, essa afirmação é contestável, pois há vários casos de línguas em que o tamanho do item linguístico não está diretamente relacionado à quantidade. Este é o caso, por exemplo, do “plural irregular” em inglês, em que, como observamos, o plural de alguns itens é expresso por itens de mesmo tamanho: tooth (dente) – teeth (dentes); foot (pé) – feet (pés), man (homem) – men (homens), woman (mulher) – women (mulheres), etc. Givón (1985, p. 198), tratando desse mesmo tipo, afirma que esse fenômeno se manifesta ainda em outras áreas da linguagem se considerarmos, por exemplo, que as palavras lexicais são 30 geralmente maiores que os morfemas gramaticais, e claramente mais complexas semanticamente; os pronomes são geralmente menores que os substantivos, e mais genéricos de forma semântica; etc. Já a Iconicidade de ordenação prediz que o conteúdo com maior grau de importância ocupa posições de maior saliência na ordenação da estrutura linguística, como a posição inicial; ou ainda que eventos que acontecem em uma determinada ordem na estrutura da realidade também são expressos linguisticamente na mesma ordem, de modo tal que a estrutura morfossintática reflita a pragmática e a semântica diretamente. Como mencionado anteriormente, esse fenômeno é reconhecido pela GDF como o Princípio de Iconicidade que rege o Nível Morfossintático. Mais especificamente, de acordo com esse princípio, a sequência de ordenação nas camadas mais altas (níveis Interpessoal e Representacional) é refletida na ordenação do Nível Morfossintático. Dito de outro modo, há uma ordenação da experiência física e mental que é refletida nos níveis mais altos e, consequentemente, também refletida na codificação morfossintática (cf. HENGEVELD; MACKENZIE, 2008, p. 283-285). No entanto, a ordenação icônica de uma expressão linguística pode ser alterada por motivações variadas, como fatores pragmáticos, semânticos ou mesmo morfossintáticos. Não cabe aqui discutir cada um dos tipos de iconicidade definidos por Neves (1997), mas sim destacar que esses tipos atuam em diferentes níveis de expressão linguística. Os exemplos de Iconicidade de complexidade referem-se ao nível da palavra, modificando-a (acrescentando ou alterando a raiz). A Iconicidade de quantidade, por exemplo, pode-se referir ao nível da palavra (palavras compostas), ao nível do sintagma (sintagmas nominais ou verbais complexos com presença de operadores e modificadores) ou mesmo ao nível da oração (orações compostas por subordinação). A Iconicidade de ordenação atua ainda em níveis mais altos, tendo em conta que se refere à expressão da ordem de eventos ou mesmo da importância de determinada informação dentro da organização estrutural da língua. Portanto, a visão mais ampla de iconicidade dada, principalmente, por teorias funcionalistas é fundamental para a definição de transparência que, como veremos, está assentada em diferentes níveis tais como concebidos pela GDF. É importante ainda considerar que forças internas (fonológicas, sintáticas, semânticas etc.) e externas (pragmáticas, contextuais etc.) interagem no sistema da língua, de modo que esses diferentes tipos de iconicidade podem competir entre si, assim como competir com outros princípios linguísticos ou mesmo com motivações de ordem contextual. Essa ideia de competição entre diferentes motivações é, como atestaremos no 31 estudo da transparência, crucial para entender por que as línguas se tornam opacas quando o esperado seria um alto grau de transparência. Como destaca Givón (1985, p. 189), a experiência seria mais fácil de comunicar se a estrutura da língua fosse isomórfica com a estrutura da realidade, o que nos leva a uma esperada iconicidade. No entanto, considerando as motivações que competem entre si, a iconicidade pode ser apagada, por exemplo, por questões de economia linguística, visto que um código altamente icônico (sem sinônimos, por exemplo) não seria tão econômico em termos de comunicação. Por fim, é importante salientar, nessa discussão, que, assim como Leufkens (2015, p. 23, tradução nossa), concebemos a transparência, tal como postulada pela GDF, como o “número de significados expressos por formas e não à previsibilidade do significado a partir da forma”11 e vice-versa, como em algumas concepções de iconicidade tratadas até aqui. Ou seja, a concepção de transparência da GDF aproxima-se das definições de Givón (1985) e Bolinger (1977), ao relacionarem a iconicidade com o isomorfismo, estabelecendo a relação de um-para-um entre forma e significado. Dessa maneira, como enfatiza Givón (1985, p. 189), a codificação icônica pode ser estabelecida em diferentes níveis – léxico, proposicional, discursivo etc. –, o que é exatamente a proposta da GDF: analisar a transparência não apenas como a relação de um-para-um entre significado e forma, mas entre e dentro dos diferentes níveis de análise linguística. A respeito dos diferentes níveis, Givón observa que pode haver certa consciência dos falantes com relação ao reconhecimento da presença da iconicidade. Desse modo, é esperado que “os falantes sejam mais conscientes das iconicidades de nível léxico, muito menos conscientes das iconicidades de nível proposicional, e menos conscientes das complexas relações abstratas de isomorfismo que se manifestam na codificação de funções discursivas-pragmáticas”12 (GIVÓN, 1985, p. 190, tradução nossa). O autor lembra ainda que quando confrontados com relações aparentemente arbitrárias entre código e codificado, nós nos esforçamos para descobrir, interpretar e impor alguma medida de iconicidade. Assim, tentamos lembrar a magia que torna muito mais fácil codificar, armazenar, recuperar e comunicar a experiência dentro do tempo finito e dos meios neurais finitos, a 11 Tradução do original: “[...] transparency relates to the number of meanings expressed by forms and not to the predictability of meaning from form.” 12 Tradução do original: “[…] speakers are most conscious of lexical-level iconicities, much less conscious of propositional-level iconicities, and least conscious of the complex, abstract isomorphism relations that manifest themselves in the coding of discourse-pragmatic functions.” 32 magia do código não arbitrário, do isomorfismo e da iconicidade13 (GIVÓN, 1985, p. 215, tradução nossa). Portanto, ainda que a tendência seja a do apagamento das relações entre significado e forma de acordo com a frequência de uso, Givón (1985) adverte que sempre buscaremos impor alguma iconicidade às relações da língua, de modo a tornar o processo de formulação mais adequado em termos de economia e de esforço mental. A seguir, trataremos mais detalhadamente do conceito de isomorfismo, bem como do de homomorfismo, de modo a associá-los com a transparência, buscando refazer o seguinte percurso: da noção de iconicidade à relação de um-para-um do isomorfismo e, por fim, à transparência. 2.1.2 Isomorfismo e Homomorfismo O termo “um-para-um” (ou relação biunívoca), utilizado por Givón (1985) para a definição da iconicidade e por Leufkens (2015) e pela GDF para a definição de transparência, é uma referência às noções algébricas de isomorfismo e homomorfismo. Leufkens (2015), em um resumo desses conceitos, afirma que o homomorfismo ocorre quando as unidades de algum conjunto são estruturalmente idênticas às unidades de outro conjunto, e o isomorfismo, quando o homomorfismo é bidirecional entre os conjuntos (LEUFKENS, 2015, p. 24), o que sugere biunivocidade. Linguisticamente, o isomorfismo ocorre quando as unidades em um nível de organização, como por exemplo o nível semântico, sempre correspondem ao mesmo número de unidades de outro nível, como por exemplo o nível morfossintático. Dito de outro modo, o isomorfismo é definido como a correspondência de um-para-um entre significado e forma. Nesse sentido, fenômenos como sinônimos e homônimos constituem violações a essa correspondência, já que tratam de uma correspondência entre muitos- para-um – mais de uma forma (palavra) para o mesmo significado – e um-para-muitos – uma mesma forma para muitos significados. Desse modo, é esperado que duas estruturas sintáticas diferentes apresentem estruturas semânticas distintas também. 13 Tradução do original: “When confronted with seemingly arbitrary relations between code and coded, we strive to discover, construe and impose some measure of iconicity. We thus try to recall the magic that makes it so much easier to code, store, retrieve and communicate experience within finite time and finite neural means, the magic of the non-arbitrary code, of isomorphism and of iconicity.” 33 Nessa perspectiva, não há, por exemplo, sinônimos perfeitos, visto que qualquer alteração na forma implicaria em alteração de sentido também. Bloomfield (1984, p. 145), ainda que em uma visão mais estruturalista, defende exatamente a ideia de que duas formas com diferentes significados não são exatamente idênticas, considerando que, se há mudança na forma, consequentemente, há mudança no significado. Nessa perspectiva, construções de voz ativa e passiva, como (1) e (2), respectivamente, não apresentam exatamente o mesmo significado: (1) Guilherme escreveu o livro. (2) O livro foi escrito por Guilherme. Cabe observar que o conteúdo semântico das duas orações parece ser o mesmo, no entanto, deve-se considerar que mudanças na estrutura refletem mudanças semânticas e pragmáticas, revelando, por exemplo, diferentes pontos de vistas sobre o qual o evento é relatado, diferentes graus de comprometimento, diferentes marcas enfáticas etc. Assim a diferença na forma reflete diferenças de função comunicativa. Conforme discussão empreendida na seção anterior, Givón (1985, p. 188) define o isomorfismo como uma conexão não arbitrária, motivada, entre o código (estrutura) e o significado (função) na língua. Nesse sentido, a concepção de iconicidade deve presumir a noção de isomorfismo, tanto que um código icônico é um código construído isomorficamente. Para o autor, o isomorfismo não é a motivação ou a explicação para a iconicidade, mas uma parte necessária de sua definição. Contudo, nesse sentido, nem isomorfismo nem iconicidade são o mesmo que transparência tal como concebidos pela GDF. Haiman (1980, 1983, 1985), por sua vez, discute vários tipos de iconicidade e defende que o isomorfismo é um deles, definindo-o, de fato, como a correspondência um- para-um, o que, para Leufkens (2015), é o mesmo que transparência. Para Haiman (1985), interessa a compreensão dos processos de sinonímia e homonímia, de modo que seu trabalho é voltado para a definição de isomorfismo a partir da busca por respostas para esses fenômenos nas línguas. Ainda segundo Haiman (1985), há uma correlação inversa entre a transparência e a economia. Em casos, por exemplo, nos quais há mudança morfofonológica a partir da análise para a síntese, ocorre um apagamento das relações um-para-um entre o significado e a forma primitivas. Dessa maneira, o autor busca explicar esses fenômenos da língua 34 como resultado do conflito entre transparência e economia. Givón (1985), por outro lado, afirma que a motivação econômica é o principal mecanismo que molda o aumento da representação icônica em uma língua e não está necessariamente em oposição à transparência. Ainda de acordo com Givón (1985, p. 197, grifo do autor, tradução nossa), questões como essa “não são, portanto, simples, mas complexas, envolvendo não a frequência de texto per se, mas sim o tempo de processamento e o esforço mental gasto pelos usuários de linguagem”.14 Discussões como essas defendem explicitamente a posição de que fatores extralinguísticos, tais como a economia, competem uns com os outros, resultando na seleção de formas linguísticas ideais. A discussão a respeito dos conceitos de isomorfismo e homomorfismo é complexa e permeada por questões matemáticas e linguísticas nas quais não nos aprofundaremos. Observamos, por fim, que os estudos antigos sobre a arbitrariedade e a iconicidade foram a porta de entrada para a compreensão da transparência das línguas e sua consequente contribuição em diversos estudos linguísticos. Importante destacar que o conceito de transparência, assim como tantos outros nos estudos linguísticos, varia de acordo com a teoria e a abordagem utilizadas. Algumas teorias funcionalistas mais radicais postulam que a forma final de toda e qualquer expressão linguística é motivada por princípios pragmáticos ou semânticos, como citado anteriormente. Por sua vez, funcionalistas mais moderados postulam a existência de formas autônomas, ou seja, de processos de codificação sintática, morfológica e fonológica não necessariamente ativados por nenhum tipo de motivação pragmática ou semântica. É essa posição moderada que a GDF assume, admitindo a existência de formas sem motivação pragmática ou semântica. Para a GDF, portanto, a transparência é entendida como o mapeamento biunívoco entre função e forma, considerando as unidades dos níveis de análise postulados pela teoria. Conforme mencionado anteriormente, é esperado que as línguas apresentem certo grau de transparência, mas também é verdade que não há uma língua totalmente transparente, visto que a transparência é constantemente violada por motivações externas e internas da língua, como combinações, redundâncias e reduções de formas das unidades linguísticas. Desse modo, a perspectiva tomada por este trabalho é a de que as línguas apresentam iconicidade e arbitrariedade assim como apresentam transparência e 14 Tradução do original: “[…] are thus not simple but complex, involving not text-frequency per se but rather processing time and mental effort expended by language users.” 35 opacidade simultaneamente. Não há uma língua que seja totalmente icônica assim como não há uma língua que seja totalmente transparente porque, de modo simples, as línguas sofrem constantemente pressões de motivações externas e internas para que sejam cada vez mais econômicas e velozes de modo que as relações icônicas/isomórficas são quebradas para atender aos objetivos comunicativos. Ainda é importante dizer que consideramos que a iconicidade/isomorfismo, assim como a transparência, ocorre em todos os níveis de análise linguística, havendo o estabelecimento de relações entre significado e forma em níveis sintático, semântico, fonológico e pragmático. Como veremos no próximo capítulo, Transparência na Gramática Discursivo- Funcional, a concepção de transparência assumida pela teoria é mais ampla do que as concepções de iconicidade que consideram apenas a relação entre função e forma, mas muito se assemelha à concepção de isomorfismo como relação de um-para-um que pode se estabelecer nos diferentes níveis de análise. Justamente nesse ponto é que a teoria da GDF se mostra inovadora enquanto aparato para conceber a transparência nas/entre as línguas devido ao modelo descendente de camadas, em que é possível analisar as relações de um-para-um entre e dentro dos níveis pragmático, semântico, morfossintático e fonológico. 36 CAPÍTULO II TRANSPARÊNCIA NA GRAMÁTICA DISCURSIVO-FUNCIONAL O funcionalismo centra-se primordialmente na função comunicativa da língua, ou seja, a língua é concebida como um instrumento de interação social entre seres humanos, tendo por principal função o estabelecimento da comunicação. Essa premissa implica, essencialmente, em um ponto de vista no qual a pragmática é o componente mais abrangente, dentro do qual estão a semântica e a sintaxe, sendo esta última dependente da semântica, que, por sua vez, é subordinada à pragmática. Outra implicação é entender as expressões linguísticas em circunstâncias efetivas de interação verbal, sendo, então, suas propriedades codeterminadas pela informação contextual e situacional. Dentro do escopo dos estudos funcionalistas, este trabalho toma como aparato a Gramática Discursivo-Funcional desenvolvida por Hengeveld e Mackenzie (2008). Trata-se de uma teoria de gramática de arquitetura modular, com uma organização de cima para baixo, ou seja, do discurso para a forma das expressões linguísticas, pois considera que a construção dessas expressões se inicia na intenção do falante e termina na articulação, sendo, por isso, uma teoria voltada para o falante e para a produção. Tomar como aparato teórico uma teoria funcional e, mais que isso, uma teoria de arquitetura modular com estrutura trans-sistêmica nos possibilita realizar uma análise centrada nas informações pragmáticas e semânticas que motivam a morfossintaxe de forma abrangente. De modo mais específico, considerar a transparência a partir de uma arquitetura modular dividida em níveis e camadas permite um olhar inovador para o fenômeno, de modo a tratar das relações de transparência e opacidade de forma ampla, passando por todos os níveis de análise. 3.1 Gramática Discursivo-Funcional A Gramática Discursivo-Funcional (GDF), conforme proposta por Hengeveld e Mackenzie (2008), é definida como o componente gramatical de uma teoria mais abrangente da interação verbal, que interage com componentes não linguísticos do processo de comunicação. Desse modo, a teoria contempla o princípio de adequação tipológica, já que fornece um conjunto de primitivos pragmáticos, semânticos, morfossintáticos e fonológicos (cf. LEUFKENS, 2015, p. 2) estruturados em camadas. 37 O modelo geral apresenta, como mostra a Figura 1, os Componentes Gramatical (centro), Conceitual (topo), Contextual (direita) e de Saída (embaixo). Com uma organização modular, a orientação seguida é descendente (top down), iniciando na intenção comunicativa do falante, no Componente Conceitual; passando pelo Componente Gramatical, em que são formuladas e codificadas as informações; e terminando na articulação, no Componente de Saída, que gera as expressões acústicas ou de sinais com base nas informações recebidas do Componente Gramatical. O Componente Contextual, por sua vez, contém a descrição do contexto, do cenário em que o evento de fala ocorre, além das relações sociais implicadas neste evento e que são relevantes para os processos gramaticais realizados no Componente Gramatical. Figura 1 – Layout geral da GDF Fonte: adaptado de HENGEVELD; MACKENZIE, 2008, p. 13 O Componente Gramatical é baseado em uma abordagem funcional da linguagem a partir da organização descendente em que os níveis mais altos governam os níveis mais baixos, prevalecendo a pragmática e a intenção comunicativa do falante sobre a morfossintaxe. Portanto, quatro níveis interatuantes de organização são distinguidos na seguinte ordem hierárquica: Nível Interpessoal, Nível Representacional, Nível Morfossintático e Nível Fonológico. Na Figura 2, que apresenta o modelo gramatical 38 detalhado, estão representadas as operações de Formulação e Codificação (elipses), os primitivos usados nessas operações (quadrados) e os níveis produzidos (retângulos): Figura 2 – Layout geral da GDF Fonte: adaptado de HENGEVELD; MACKENZIE, 2008, p. 13 A operação de Formulação converte as informações do Componente Conceitual (intenção comunicativa) em representações pragmáticas e semânticas nos níveis Interpessoal e Representacional, respectivamente. Como destacam Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 12), as regras utilizadas no processo de Formulação são específicas para cada língua, ou seja, representações conceituais similares podem receber diferentes representações pragmáticas e semânticas. No entanto, é certo que todas as línguas fazem uso de um conjunto de primitivos que contém moldes, lexemas e operadores no processo de Formulação. 39 Os moldes definem as possíveis combinações de elementos de uma certa língua, que, apesar de terem um caráter específico para cada língua, apresentam certo grau de previsibilidade com base em hierarquias tipologicamente válidas. A valência quantitativa e qualitativa é um dos exemplos de moldes que podem ser aplicados nos níveis Interpessoal e Representacional. Já os lexemas são definidos como as unidades independentes que são associadas aos moldes, ou seja, os moldes são selecionados primeiramente e depois os lexemas são inseridos, refletindo a escolha que o Falante tem de descrever uma mesma unidade por meio de variados lexemas com diferentes denotações e conotações. No Nível Interpessoal, interjeições, nomes próprios e expressões performativas são exemplos de aplicação de lexemas. Por fim, os operadores representam expressões gramaticais de conteúdos pragmáticos e semânticos, como, por exemplo, o operador reportativo que atua no Nível Interpessoal, ou o operador de tempo no Nível Representacional (cf. HENGEVELD; MACKENZIE, 2008, p. 19-20). De mesmo modo, nos níveis Morfossintático e Fonológico, a operação de Codificação converte as informações recebidas dos níveis Interpessoal e Representacional em estruturas gramaticais e fonológicas também por meio do uso de primitivos. No Nível Morfossintático, o conjunto de primitivos contém Padrões, Morfemas gramaticais e Operadores morfossintáticos. Dessa forma, este nível é organizado com base em padrões para expressões linguísticas, orações, sintagmas e palavras. Assim como acontece com os moldes da operação de Formulação, os padrões também apresentam especificações para cada língua, no entanto, é possível comprovar a existência de generalizações previsíveis baseadas em um número determinado de parâmetros tipológicos. Os morfemas gramaticais são, por sua vez, elementos imodificáveis, como auxiliares, partículas e afixos, introduzidos na configuração morfossintática de cada camada desse nível. Semelhante aos operadores da Formulação, os operadores morfossintáticos são estratégias gramaticais que operam em uma camada específica (cf. HENGEVELD; MACKENZIE, 2008, p. 20-21). No Nível Fonológico, a operação de Codificação faz uso de outro conjunto de primitivos composto por Padrões, Formas supletivas e Operadores fonológicos. Assim como o Morfossintático, este nível está organizado com base em padrões por enunciado, frases entoacionais, frases fonológicas, palavras fonológicas, pés e sílabas. Após a seleção dos padrões, as formas supletivas são introduzidas correspondendo às formas finais dos morfemas e operadores gramaticais introduzidos no nível anterior. Os operadores fonológicos antecipam, ao final, aspectos articulatórios, sendo responsáveis pela 40 entonação, acento e tom, representando assim propriedades fonológicas que operam sobre as unidades deste nível (cf. HENGEVELD; MACKENZIE, 2008, p. 21-22). Os quatro níveis de representação do Componente Gramatical têm sua estrutura própria, mas são igualmente organizados hierarquicamente em camadas. Cada camada é composta, obrigatoriamente, por um Núcleo (H), que pode ser, opcionalmente, restringido por um Modificador (s), especificado por um Operador (π) ou marcado por uma Função (Ф) específica. Enquanto os núcleos e os modificadores representam estratégias lexicais da língua, os operadores e as funções são estratégias gramaticais. Cabe ressaltar que as camadas de cada nível não são entendidas como universais, isto é, uma camada só será considerada se for relevante para explicar a estrutura gramatical de uma determinada língua. Assim, a estrutura geral de cada camada dentro dos níveis pode ser representada como segue, em que v1 representa a variável da camada: (3) (π v1: [núcleo (v1)Ф]: [σ (v1)Ф])Ф No Nível Interpessoal (NI), todas as unidades relevantes de comportamento comunicativo são formalizadas em termos de sua função comunicativa, ou seja, este nível lida com todos os aspectos formais de uma unidade linguística que refletem seu papel na interação entre falante e ouvinte. A unidade de análise hierarquicamente mais alta nesse nível é o Movimento (M), que representa uma contribuição autônoma para a interação em desenvolvimento, já que exige ou é ele próprio uma reação. Um Movimento pode conter um ou mais Atos Discursivos (A), reconhecidos como a menor unidade de análise do comportamento comunicativo. Um Ato Discursivo consiste, então, em uma Ilocução (F), um ou mais Participantes do ato de fala (P) e o Conteúdo Comunicado (C) apresentado pelo falante em sua comunicação com o ouvinte. O Conteúdo Comunicado, por sua vez, pode conter um número variável de Subatos Atributivos (T), que evocam uma propriedade, e Subatos Referenciais (R), que evocam um referente. Dessa forma, a estrutura completa do Nível Interpessoal é representada como em (4): (4) (M1: [(A1: [(F1) (P1)S (P2)A (C1: [(T1) (R1)] (C1))] (A1))] (M1)) Se considerarmos, como exemplo, a pergunta Você vai ao cinema amanhã?, temos a seguinte representação: 41 (5) Você vai ao cinema amanhã? (M1: [(A1: [(F1: INTER (F1)) (P1)S (P2)A (C1: [(T1) (T2) (+id +sp R1: -S +A (R1)) (+id +sp R2)] (C1))] (A1))] (M1)) No Nível Interpessoal, a representação consiste, então, de um único Movimento (M), composto por um Ato Discursivo (A), que, por sua vez, é composto por uma Ilocução Interrogativa (F), dois participantes (P) – Falante (S) e Ouvinte (A) – e Conteúdo Comunicado (C). Dentro do Conteúdo Comunicado encontramos dois Subatos de Atribuição (T), evocando a propriedade ir (T1) e amanhã (T2); e dois Subatos de Referência (R), evocando as entidades descritas como você (R1) e cinema (R2). A entidade você é analisada como a combinação das características [-S +A], indicando que estamos lidando com uma referência ao Ouvinte, ao passo que a entidade cinema é indicada, neste nível, apenas como [+identificado] e [+específico], mostrando que se trata de uma entidade reconhecida pelos participantes envolvidos na interação. No Nível Representacional (NR), descrevem-se as unidades linguísticas em termos de sua categoria semântica. Desse modo, enquanto o Nível Interpessoal trata da evocação, o Representacional lida com a denotação. As camadas desse nível são, então, definidas em termos das categorias semânticas que elas designam. Os Conteúdos Proposicionais (p), unidades mais altas do Nível Representacional, são construtos mentais, como conhecimentos, crenças, esperanças. O Conteúdo Proposicional pode conter um ou mais Episódios (ep), que são conjuntos de Estados-de-coisas tematicamente coerentes, no sentido de que apresentam unidade ou continuidade de Tempo, Lugar e Indivíduos. Estados-de-coisas (e) incluem eventos e estados que são caracterizados pela possibilidade de serem localizados no tempo e avaliados em termos de seu estatuto factual. Um Estado- de-coisas se caracteriza por uma Propriedade Configuracional (f), que constitui o inventário de moldes de predicação relevantes numa língua e tem natureza composicional, contendo uma combinação de unidades semânticas que não estão em relação hierárquica entre si, como Indivíduos (x), Propriedades Lexicais (f), Lugar (l), Tempo (t), Maneira (m), Razão (r) e Quantidade (q). Dadas as camadas, a estrutura completa do Nível Representacional pode ser expressa como em (6): (6) (p1: [(ep1: [(e1: [(f1: [(f1) (x1) ...] (f1))] (e1))] (ep1))] (p1)) 42 O exemplo dado em (5) tem, portanto, a seguinte representação no Nível Representacional: (5) Você vai ao cinema amanhã? (p1: (pres ep1: [(e1: [(f1: [(f1: irV) (1 Sx1)A (l1: cinema)] (f1))] ((e1))] (t1: amanhã) (ep1)) Primeiramente, é preciso destacar que o que é representado no Nível Representacional corresponde à informação contida no núcleo configuracional do Conteúdo Comunicado (NI).15 Essa informação é agora analisada como um Conteúdo Proposicional (p), que consiste em um único Episódio (ep), especificado pelo operador de tempo presente. O núcleo deste Episódio é o Estado-de-Coisas (e), por sua vez, composto de uma Propriedade Configuracional (f) contendo a propriedade ir e os argumentos Ativo você e Locativo cinema. O argumento Ativo corresponde a um Indivíduo (x) e o argumento Locativo corresponde a uma Locação (l). Por fim, há a especificação de Tempo (t) - amanhã. O Nível Morfossintático (NM) trata dos aspectos estruturais de uma unidade linguística. Juntamente com o Nível Fonológico, cuida da codificação das distinções interpessoais e representacionais. Dessa maneira, a tarefa deste nível é tomar o duplo input dos níveis Interpessoal e Representacional e fazer emergir uma única representação estrutural que será convertida em estrutura fonológica no próximo nível e, finalmente, será articulada no Componente de Saída. Em vista dessa função, muito do que ocorre no Nível Morfossintático é funcionalmente motivado: princípios de ordenação são motivados pelos princípios de Iconicidade, de Integridade de Domínio e de Estabilidade Funcional. Entretanto, deve-se levar em conta que esse nível tem seus próprios princípios de organização, que podem não ser funcionalmente motivados. A camada mais alta do Nível Morfossintático é a Expressão Linguística (EL), ou seja, qualquer conjunto de pelo menos uma unidade morfossintática; se houver mais de uma unidade dentro da EL, elas terão as mesmas propriedades morfossintáticas. As unidades que se combinam para formar a EL são: Orações (Cl), compostas por uma configuração de um ou mais Sintagmas e possivelmente de Palavras (gramaticais), caracterizando-se por um padrão de ordenação e também por expressões morfológicas de conectividade (regência e concordância); Sintagmas (Xp), que tem como núcleo um item 15 Acerca da representação em cada um dos níveis da GDF, conferir Keizer (2015). 43 lexical vindo do NI ou NR; e Palavras (Xw), por sua vez, formadas por radicais (Xs) e afixos (Aff). A estrutura completa do Nível Morfossintático, então, é como segue: (7) (Le1: [(Cl1: [(Xp1: [(Xw1: [(Xs1) (Aff1)] (Xw1))] (Xp1))] (Cl1))] (Le1)) Considerando o exemplo dado em (5), as representações nos níveis Interpessoal e Representacional são o input para representação morfossintática: (5) Você vai ao cinema amanhã? (Le1: [(Cl1: [(Np1: [(Nw1: você)] (Np1)) (Vp1: [(Vw1: ir)] (Vp1)) (Adpp1: [(Adpw1: a) (Np2: [(Gw1: o) (Nw2: cinema)] (Np2))] (Adpp1)) (Advp1): [(Advw1: amanhã)] (Advp1)) (Cl1))] (Le1)) O Conteúdo Comunicado no NI, analisado como Conteúdo Proposicional no NR, constitui uma Expressão Linguística (Le) composta de uma única Oração (Cl), que, por sua vez, é composta por quatro diferentes Sintagmas. O sintagma nominal (Np) tem como núcleo, e único constituinte, a palavra nominal você. De mesmo modo, o sintagma verbal é composto apenas pelo núcleo, a palavra verbal ir. O sintagma adposicional (Adpp) apresenta uma estrutura um pouco mais complexa, sendo decomposto em uma palavra adposicional (preposição a) e um novo sintagma nominal, composto pela palavra gramatical o e pelo núcleo nominal cinema. Por fim, o sintagma adverbial (Advp) é também composto apenas pelo núcleo, a palavra adverbial amanhã. O Nível Fonológico (NF), por fim, é responsável pelos aspectos de codificação que não ocorrem no Nível Morfossintático. Ele recebe o input – alguns já na forma fonêmica – dos outros três níveis e provê o input para o Componente de Saída. Enquanto este último lida com questões relacionadas à frequência, intensidade, duração, o Nível Fonológico – sendo gramatical – é “digital”, e contém representações de fonemas que são baseadas em oposições fonológicas binárias. Em outras palavras, o Nível Fonológico não mostra a “melodia” da Frase Entonacional, mas fornece um número de indicações de cada camada que o Componente de Saída converte em um resultado uniforme e fluente. Para tanto, este nível é composto por Enunciado (U), maior extensão de fala abrangida pelo NF, separado por pausas mais substanciais, dispõe de paratons (distinções de tom) que ajudam a marcar o limite do grupo de uma Frase Entonacional (IP). Esta, por sua vez, é caracterizada por um núcleo, um movimento de tom localizado em uma ou mais Sílabas, que é essencial na sua interpretação como um todo. A Frase Fonológica (PP) é constituída 44 por uma Sílaba que é mais fortemente acentuada do que as outras, a Sílaba Nuclear, que é a localização primária de queda ou elevação dentro da Frase Entonacional. A Palavra Fonológica (PW) estabelece relação entre o número de segmentos, traços prosódicos e o domínio de regras fonológicas, e contém Sílabas (S), que se agrupam em Pés (F). Por fim, a estrutura integral do NF é dada em (8): (8) (U1: [(IP1: [(PP1: [(PW1: [(F1: [(S1)n] (F1))] (PW1))] (PP1))] (IP1))] (U1)) Ainda considerando o exemplo em (5), as representações nos três níveis mais altos são codificadas no Nível Fonológico conforme a seguinte representação16: (5) Você vai ao cinema amanhã? (U1: [(rIP1: [(PP1: [(PW1: /vo’se/)] (PP1)) (PP2: [(PW2: /vaɪ/)] (PP2)) (PP3: [(PW3: /ɑʊ/) (PW4: /si’nema/)] (PP3)) (PP4: [(PW5: /amɐ’ɲɐ̃/)] (PP4)) (IP1))] (U1)) A Expressão Linguística no NM é aqui então expressa em um único Enunciado (U) composto por uma única Frase Entonacional (IP), que é especificada pelo operador ascendente (r), característico da Ilocução Interrogativa. A Frase Entonacional é composta, por sua vez, por quatro Frases Fonológicas (PP), marcadas por uma sílaba que é mais fortemente acentuada. A primeira Frase Fonológica é composta pela Palavra Fonológica (PW1): /vo’se/. A segunda Frase Fonológica é também formada por uma só Palavra Fonológica (PW2): /vaɪ/. A terceira Frase Fonológica, mais complexa, é composta por duas Palavras Fonológicas: /ɑʊ/ e /si’nema/. Por fim, a terceira Frase é composta apenas pelo núcleo, uma única Palavra Fonológica: /amɐ’ɲɐ̃/. Conforme veremos na próxima seção, a divisão em níveis e em camadas que são interatuantes é fator decisivo para a compreensão da transparência tal como concebida pela GDF, de modo que as camadas mais altas estabelecem relações com as camadas mais baixas. É importante notar, no entanto, que uma mensagem transmitida pelo falante não precisa, obrigatoriamente, passar por todos os níveis de organização linguística previstos. Dado que os níveis são interatuantes, é possível que uma unidade vinda do Componente Conceitual, passe pelo Nível Interpessoal e seja diretamente codificada no Nível 16 Optamos por não detalhar a representação do Nível Fonológico nas camadas do Pé (F) e Sílaba (S), tendo em conta que não são necessárias para as análises e para os propósitos aqui pretendidos. 45 Fonológico, como ocorre, por exemplo, com as interjeições, Atos que não apresentam conteúdo semântico ou codificação morfossintática. 3.2 O conceito de transparência na Gramática Discursivo-Funcional Conforme a discussão realizada no Capítulo 1 – Da Iconicidade à Transparência, observamos que o conceito de transparência é tratado por algumas teorias em consonância com a ideia de iconicidade, ou seja, como uma correspondência estrita de um-para-um entre significado e forma. A Gramática Discursivo-Funcional oferece a possibilidade de ampliar esse conceito, lançando um novo olhar sobre a ideia da transparência linguística, permitindo, graças ao seu modelo descendente de camadas, o mapeamento entre e dentro dos níveis da gramática, culminando, assim, em uma definição ampla de transparência a partir da observação de diferentes fenômenos nas línguas. Para a compreensão do conceito de transparência na GDF, é importante esclarecer, primeiramente, o que a teoria considera por significado e forma. Como destaca Leufkens (2015, p. 12), uma unidade de significado pode ser entendida como qualquer unidade, ou primitivo, dos níveis mais altos, portanto, dos níveis Interpessoal e Representacional, justamente porque eles tratam das unidades pragmáticas e semânticas. Cabe ressaltar, no entanto, que são entendidas como unidades as informações pragmáticas e semânticas que apresentam codificação linguística, considerando-se que a gramática analisa apenas estruturas linguísticas e, assim, unidades de significado que se referem a algo codificado dentro da estrutura da língua. Do mesmo modo, como esclarece a autora (2015, p. 12), as unidades de forma são unidades dos níveis mais baixos, isto é, dos níveis Morfossintático e Fonológico, que tratam da codificação das unidades de significado em unidades formais, estruturas morfossintáticas e fonológicas. Assim, a proposta da GDF expande as noções de forma e significado, dividindo-as em níveis e, consequentemente, expande o leque de possibilidades para o estabelecimento de relações entre essas unidades. Ainda de acordo com Leufkens (2015), considerando, portanto, que as unidades de significado correspondem aos níveis mais altos e as unidades de forma, aos níveis mais baixos, uma definição primeira de transparência na GDF poderia então ser delineada como a relação de um-para-um entre os níveis mais altos (NI e NR) e os níveis mais baixos (NM e NF), havendo assim uma correspondência entre a contraparte pragmática/semântica e a morfossintática/fonológica. Contudo, visto que o modelo da GDF prevê quatro níveis de análise que são interatuantes, ou seja, todos os níveis 46 interagem uns com os outros, abre-se a possibilidade de interfaces significado-forma, significado-significado e forma-forma. Dessa maneira, na GDF, as relações de transparência podem ser aplicadas tanto entre os níveis quanto dentro deles. A teoria apresenta, então, uma possibilidade de análise inovadora: a transparência deixa de ser definida apenas como um mapeamento de um-para-um entre significado e forma, passando para a exigência de um mapeamento de um-para-um entre os quatro níveis de análise e também dentro deles (como veremos no caso do NM e do NF). Portanto, como afirma Leufkens (2015, p. 13, tradução nossa), “a transparência é obtida então quando uma unidade de um dos níveis de organização linguística corresponde a uma unidade nos outros níveis de organização”17, como ilustra a Figura 3: Figura 3 – Interação entre e dentro dos níveis gramaticais Fonte: adaptado de HENGEVELD; LEUFKENS, 2018, p. 4 Observamos, por conseguinte, que todos os níveis e camadas, conforme apresentados na seção 2.1, são considerados para uma concepção mais precisa do fenômeno da transparência. Dessa forma, a transparência ou a opacidade são classificadas em termos das operações que são aplicadas entre e dentro dos níveis e que causam sua existência. Entre os níveis, a transparência está relacionada com o mapeamento das camadas de um nível para outro, como indicam as setas, em ordem descendente de organização, na Figura 3. Assim, como mostramos nas representações na seção anterior, um Conteúdo Comunicado (NI) pode, por exemplo, corresponder a um Conteúdo Proposicional (NR), a uma Oração (NM) e a uma Frase Entonacional (NF). É importante ressaltar, no entanto, que, assim como não é necessário que uma mensagem passe por 17 Tradução do original: “Transparency obtains when one unit at one level of linguistic organization corresponds to one unit at all other levels of organization.” 47 todos os níveis de análise, não é necessário que uma unidade tenha correspondentes em todos os níveis. Portanto, de acordo com Leufkens (2015), a relação de transparência e/ou de opacidade é vista considerando o mapeamento um-para-um nas interfaces possíveis entre os quatro níveis e suas combinações: NI-NR, NI-NM, NI-NF, NR-NM, NR-NF, NM-NF. A violação dessa relação de um-para-um, estabelecida entre os níveis, ocasiona divergências de pareamento, o que leva à opacidade. Dentro dos níveis Morfossintático e Fonológico também é possível estabelecer relações de transparência ou de opacidade, visto que esses níveis comportam uma série de operações para a codificação das estruturas com base nas informações formuladas nos níveis mais altos, Interpessoal e Representacional. Algumas dessas operações, representadas por meio do símbolo ↻ na Figura 3, adicionam elementos ou propriedades às estruturas sem que haja uma motivação nos níveis mais altos, o que Leufkens (2015) chama de forma baseada na forma. Ou seja, há a inserção de uma forma que não apresenta motivação nos níveis Interpessoal e/ou Representacional, não têm material pragmático ou semântico, sendo, portanto, uma forma sem significado, contribuindo para a opacidade da língua (cf. HENGEVELD; LEUFKENS, 2018, p. 17). Exemplos claros desse processo são a inserção de elementos expletivos no Nível Morfossintático e a ocorrência de degeminação no Nível Fonológico. Em consonância com Leufkens (2015, p. 14), ressaltamos que a transparência não é um conceito binário, mas uma noção gradual. As línguas são analisadas como tendo um grau de transparência e não como sendo simplesmente transparentes ou não- transparentes. Parte-se do pressuposto de que toda língua viola o princípio da transparência em algum ponto de sua gramática ou léxico e, portanto, deve-se investigar a transparência medindo seu grau a partir das propriedades não-transparentes (opacas) que a língua apresenta. Mais especificamente, o pressuposto de que as línguas da mesma família compartilham traços transparentes e/ou opacos, a proposta aqui é investigar como esse compartilhamento ocorre, contribuindo para a definição das características das línguas que compõem uma família, no caso, a família Naduhup, com base na análise das propriedades transparentes e opacas nas línguas. Assim como Leufkens (2015), propomos a análise da transparência a partir dos traços opacos, tendo em vista que, como será discutido no capítulo de Metodologia, os traços transparentes envolvem a ausência de certos fenômenos, sendo, obviamente, impossível contá-los. Dessa maneira, a 48 investigação se centra nas categorias de opacidade tal como definidas por Hengeveld (2011a; 2011b), Leufkens (2015) e Hengeveld e Leufkens (2018). 3.3 Categorias de Opacidade Leufkens (2015, p. 16) afirma que a relação de um-para-um entre os níveis da gramática pode ser violada de diferentes maneiras e elenca cinco tipos possíveis: quatro violações das relações entre os níveis, a saber, um-para-nulo, nulo-para-um, muitos- para-um e um-para-muitos; e uma violação de integridade de domínio, mais precisamente, uma relação de descontinuidade. A relação de um-para-nulo diz respeito a elementos dos níveis mais altos, pragmáticos e semânticos, que não são codificados, ou seja, não são audíveis ou visíveis na produção final, como é o caso de argumentos subentendidos, operadores fonologicamente vazios e categorias vazias. Leufkens (2015, p. 17) destaca que a existência desses é, muitas vezes, hipotética e apenas teoricamente motivada, o que faz com que as teorias linguísticas apresentem divergências quanto ao tratamento dessas unidades: a gramática gerativa, por exemplo, considera operadores fonologicamente vazios em suas análises empíricas, enquanto teorias funcionalistas, como a GDF, consideram que a existência desses elementos invisíveis pode ser falseada, sendo teoricamente indesejáveis nas análises. Dessa forma, ainda que essa seja uma relação claramente opaca, a autora opta por não a considerar em seu estudo dada a impossibilidade de determinar objetivamente a existência desses elementos. Em consonância, a presente pesquisa também desconsidera essa categoria. Por sua vez, a relação de nulo-para-um, ao contrário da relação anterior, diz respeito a formas nos níveis mais baixos, ou seja, morfossintáticas e fonológicas, que não são motivadas ou não estão relacionadas a unidades nos níveis mais altos. Dito de outro modo, essas formas não apresentam material pragmático e semântico, mas são o resultado de processos ou da aplicação de regras próprias da codificação morfossintática e fonológica. Exemplo dessas regras é o uso de expletivos, elementos vazios que são inseridos para satisfazer a uma regra morfossintática, como a de que sempre deve haver um sujeito na sentença. Este sujeito vazio não apresenta, então, referente e conteúdo semântico, ou seja, trata-se de um sujeito morfossintático que não está relacionado a um Subato Referencial ou a um Indivíduo (cf. LEUFKENS, 2015). 49 Como mencionado anteriormente, Leufkens (2015, p. 18) nomeia essa categoria de forma baseada na forma (form-based-form) e assinala que estes são casos prototípicos com alto grau de sintaticidade ou fonologicidade, isto é, fenômenos em que não há, justamente, motivação pragmática ou semântica. A autora destaca ainda que o termo sintaticidade, bem como fonologicidade, é empregado por ela como o grau em que formas e regras são motivadas por questões morfossintáticas. A partir desse ponto de vista, considerando funcionalmente a língua como um todo, Leufkens (2015) afirma, então, que línguas com um baixo grau de sintaticidade e fonologicidade apresentam, ao contrário, um alto grau de semanticidade ou pragmaticidade. O terceiro tipo de violação elencado por Leufkens (2015, p. 18) envolve relações de um-para-muitos, isto é, relações em que uma unidade de significado é expressa por múltiplas formas. Esse tipo de violação é chamado, então, de redundância, visto que uma das formas é redundante, desnecessária e, como tal, não acrescenta informação adicional relevante. A redundância pode ser obrigatória no caso de ambos elementos estarem obrigatoriamente p