unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara – SP FERNANDA FERRARI RUIS SER MENINO E MENINA, PROFESSOR E PROFESSORA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: um entrelaçamento de vozes ARARAQUARA – S.P. 2015 FERNANDA FERRARI RUIS SER MENINO E MENINA, PROFESSOR E PROFESSORA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: um entrelaçamento de vozes Trabalho de Dissertação de Mestrado, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Sexual. Linha de pesquisa: Desenvolvimento, sexualidade e diversidade na formação de professores Orientadora: Profª Drª. Marcia Cristina Argenti Perez ARARAQUARA – S.P. 2015 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Ruis, Fernanda Ferrari Ser menino e menina, professor e professora na Educação Infantil: um entrelaçamento de vozes / Fernanda Ferrari Ruis — 2015 224 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Educação Sexual) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquista Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Marcia Cristina Argenti Perez 1. Relações de gênero. 2. Infância. 3. Docência. 4. Educação Infantil. 5. Educação Sexual. I. Título. FERNANDA FERRARI RUIS SER MENINO E MENINA, PROFESSOR E PROFESSORA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: um entrelaçamento de vozes Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Sexual. Linha de pesquisa: Desenvolvimento, sexualidade e diversidade na formação de professores Orientadora: Profª Drª. Marcia Cristina Argenti Perez Data da defesa: 18/09/2015 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof.ª Dr.ª Marcia Cristina Argenti Perez Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara Membro Titular: Prof.º Dr. Fábio Tadeu Reina Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Luciana Ponce Bellido Giraldi Fundação Carlos Chagas Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara À minha mãe e ao meu pai, Izabel e João Augusto, pelo amor incondicional. Às minhas queridas irmãs, Amanda e Bianca. Ao meu noivo Daniel. COM TODO MEU AMOR E GRATIDÃO Gosto muito de ler os agradecimentos das dissertações e teses. Acredito que revelam os sentimentos nutridos por pessoas especiais que estiveram ao lado, direta ou indiretamente, ao longo de mais uma etapa vencida. Agora me vejo no desempenho dessa tarefa. É chegado o momento de ser grata às pessoas que de alguma forma compartilharam e contribuíram para a realização deste estudo. Trago em meu coração pessoas especiais que trilharam comigo este caminho e pelas quais nutro um profundo sentimento de gratidão. Agradeço, assim, A Deus e a Nossa Senhora Aparecida, pelo dom da vida, por conceder sabedoria nas escolhas dos melhores caminhos, força para não desanimar e proteção para me amparar. À Professora Dra. Marcia Cristina Argenti Perez, orientadora querida, pela amizade, pela presença carinhosa em momentos importantes de minha vida e que, muitas vezes, extrapolaram o universo acadêmico. Pela paciência, confiança, dedicação, competência e, sobretudo, pelas orientações preciosas e fundamentais para a realização deste estudo. A você, minhas reais manifestações de admiração e respeito. Serei eternamente grata. À Professora Dra. Maria Betanea Platzer e ao Professor Dr. Fábio Tadeu Reina pela gentileza e por contribuírem para o aprimoramento deste trabalho na ocasião do exame de qualificação. Ao Professor Dr. Fábio Tadeu Reina e à Professora Dra. Luciana Ponce Bellido Giraldi por aceitarem participar da banca de defesa. Agradeço de modo especial, à Professora Dra. Andreza Marques de Castro Leão, pelo carinho, pela amizade e, sobretudo, pela confiança. Pelas ricas contribuições e sugestões que, certamente, foram de grande valia para a realização desta pesquisa. Registro meu carinho e admiração. Aos meus pais, Izabel e João Augusto, por nunca medirem esforços para que eu pudesse estudar. Pelos incentivos, pelas orações, pelas preocupações, pelo amor incondicional, pela compreensão e pela presença constante em minha vida. Por me ensinarem a seguir meus ideais com dedicação e coragem. Minhas referências! Às minhas queridas irmãs, Amanda e Bianca, pelo carinho, pelo apoio, pelo incentivo e por compreenderem as minhas ausências. Ao meu querido noivo, Daniel, que pacientemente acompanhou a construção deste trabalho e me amparou nos momentos de dúvidas e angústias. Obrigada pelo amor, cuidado, carinho e compreensão. À minha prima e amiga Cássia Adriana, pela torcida sincera pela finalização desta dissertação, pelo carinho, apoio e incentivo constantes. Obrigada por tudo! Aos meus avós, Aparecida e João Batista, avô Abílio (sempre presente), pelo amor e pelo apoio, em especial à minha avó Angelina, querida vó Nena (sempre presente em nossos corações), que acompanhou apenas o início desta labuta; obrigada pelas preocupações e orações e, sobretudo, por me ensinar a ter fé na vida. Aos meus familiares, primos, primas, tios, tias, cunhados, cunhadas, não poderia deixar de registrar o meu afeto. Obrigada pela solidariedade e por compreenderem a minha ausência em festinhas, reuniões, entre outros momentos. Ao Padre Batista, pelos momentos de escuta e pelas orações. Obrigada pelas palavras de conforto e de incentivo. À professora Carmen Pizzo Baccarin, por verter para o “bom português” o texto da versão final desta dissertação. Agradeço a ajuda e o carinho. “Quem tem um amigo, mesmo que um só, não importa onde se encontre, jamais sofrerá de solidão; poderá morrer de saudades, mas não estará só” (Almyr Klink). À minha querida amiga Beatriz de Moraes Salles Formigoni Cardinali, amiga amada, amizade mais verdadeira não há! É difícil encontrar palavras para lhe agradecer. Obrigada pelas orações, por estar sempre presente apesar da distância, pela atenção e carinho quando a procuro em minhas inquietações pessoais, intelectuais e profissionais e por compartilhar momentos de alegrias. Minha eterna gratidão a você, minha doce amiga. Às amigas da República Fada Verde: Ana Priscila Beloto, Beatriz de Moraes Salles Formigoni Cardinali, Carolina Modena da Silva, Caroline Castro Costa, Debora Furlan Rossini, Jessica Romanin Mattus, Mariana Pratt e Natália Corveloni Monteiro, minhas irmãs de coração, com quem tive a oportunidade de conviver diariamente em Araraquara e que, mesmo à distância, torceram por mim. Obrigada pelo crescimento proporcionado, apoio e amizade sincera. Às minhas queridas amigas, companheiras de orientação e estudo, Andréia Serrano Cayres Rapatão e Daniela Arroyo Fávero Moreira, que acompanharam de perto este processo tão sonhado e ao mesmo tempo tão árduo. Agradeço pelo carinho, pelo incentivo, pelas dúvidas compartilhadas e pelas valiosas trocas de experiências. Aos amigos e colegas da Pós-Graduação, em especial à Anne Kariny Lemos Rocha, à Alessandra Munhoz Lazdan, à Ana Márcia de Oliveira Carvalho, à Ana Carolina Pinheiro de Souza e à Débora Brandão Bertolini, por tornar a caminhada mais leve e alegre. Pelas trocas, conselhos, pelos bons momentos vivenciados ao longo desses dois anos de estudo. Aos amigos e colegas dos tempos da Graduação em Pedagogia, em especial à Alessandra Carvalho de Faria, pelo carinho, por acreditar que essa conquista seria possível, pelo incentivo constante, por toda a ajuda prestada e por ser um exemplo de vencedora. Muito obrigada! À Fabiana Aparecida Prenhaca Giacometti, Jussara Felipe e Anne Kariny Lemos Rocha, pelas caronas à Araraquara, pelos momentos de escuta e trocas. “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” (Antonie de Saint- Exupéry). A todos aqueles que me cativaram e que se deixaram cativar... Aos meus queridos alunos e alunas de ontem, hoje e sempre. Amo cada um de vocês. Que vocês possam crescer e viver em um mundo mais justo e menos desigual. A todas as meninas e meninos da escola Alfa, que carinhosamente me acolheram e mostraram seus diferentes jeitos de ser criança e de expressar o que pensam e sentem no dia a dia na instituição. A todas as professoras e membros da equipe escolar da escola Alfa, em especial à professora Valentina e ao professor Eduardo com quem permaneci por mais tempo, pela forma afetiva com que me receberam e pelas contribuições dadas para a realização desta pesquisa. A equipe diretiva da escola Alfa, que se mostrou prestativa e solidária e fez o possível para que a pesquisa de campo fosse realizada. De modo geral, é preciso destacar o afeto e a solidariedade das muitas pessoas, sem a ajuda das quais, a execução deste estudo teria sido impossível. A UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Araraquara, por me acolher e por ser responsável pelo meu crescimento intelectual. Quanto orgulho sinto por meu nome fazer parte da história do alunado dessa respeitável instituição de ensino. Aos professores da Pós-Graduação em Educação Sexual, pelas contribuições significativas para a minha formação. Em especial ao Professor Dr. Paulo Rennes Marçal Ribeiro, pela confiança, por compartilhar o seu conhecimento, contribuindo para a minha formação. Aos professores da Graduação em Pedagogia, especialmente ao Professor Dr. Mauro Carlos Romanatto, pelas dicas preciosas, pelo incentivo, por ser tão humano e carinhoso com os alunos e alunas. Aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação em Educação Sexual, por serem solícitos e pela gentileza nos auxílios prestados. Aos funcionários da Biblioteca da FCLAr, pela prontidão e pela competência em nos auxiliar. Com todos vocês, reparto a felicidade e a satisfação do trabalho concluído. O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos. Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque gostava de carregar água na peneira Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor! A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos. (Barros, 1999). Ruis, F. F. (2015). Ser menino e menina, professor e professora na Educação Infantil: um entrelaçamento de vozes. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara. RESUMO Considerando o gênero como uma construção histórica, cultural e social, o presente estudo objetivou investigar como as relações e representações de gênero são expressas por meninas e meninos, professor e professora no cotidiano de uma escola municipal de Educação Infantil. Porquanto, foram adotadas estratégias de investigação de abordagem qualitativa. Participaram da pesquisa duas turmas de alunos e alunas com idades variando entre quatro e seis anos, bem como o professor e a professora responsáveis pelas mesmas. A coleta de dados abarcou três momentos. Primeiramente o ambiente escolar, sua organização e funcionamento, constituíram o foco de observação, bem como as práticas adotadas pelos docentes e as interações com suas respectivas turmas. Em sequência, a ludicidade foi utilizada como estratégia, a fim de verificar e apreender as relações e representações de gênero reveladas por meninos e meninas. Por meio de entrevistas semiestruturadas, averiguamos os fundamentos e conhecimentos dos docentes acerca do conceito de gênero e como lidam com as relações de gênero expressas pelas crianças. Os dados foram analisados por meio da análise de conteúdo. O entrelaçamento das vozes dos sujeitos envolvidos nos revelaram diferentes modos de ser menino e menina, professor e professora, em suas interações no ambiente escolar, que ultrapassaram os padrões de feminino e de masculino esperados. A pesquisa apontou para lacunas na formação docente no que diz respeito às questões de gênero, diversidade sexual, sexualidade e Educação Sexual. Diante dos resultados alcançados, acreditamos que este estudo possa contribuir para que os professores e as professoras reflitam sobre suas práticas educativas, enxergando as crianças, ouvindo-as em suas necessidades, respeitando suas diferenças e preferências. Palavras-chave: Relações de Gênero. Infância. Docência. Educação. Educação Infantil. Educação Sexual. ABSTRACT Considering gender as a historical building, cultural and social, the present study aimed to investigate how the relations and representations of gender they are expressed by boys and girls and teachers in the daily life a municipal school of early childhood education. Were adopted strategies of research of qualitative approach. The research involved two classes of students, with ages ranging from four to six years, as well as the teachers responsible for the same. The data collection spanned three moments. The first the school environment, its organization and operation, they were the focus of observation. Just like the practices adopted by teachers and the interactions with their respective class of students. In sequence, the playfulness was used as strategy, in order to check and understand the relationships and representations of gender revealed by boys and girls. Through semi-structured interviews, we investigate the fundament and knowledge of the teachers about the concept of gender and how they deal with gender relations expressed by children. The data were analyzed by means of content analysis. The interweaving of voices of the subjects involved revealed different modes be boy and girl, teacher and teacher, in their interactions in the school environment that exceed the standards of female and male expected. In addition to times of conflicts, choices and desires. And yet, the research pointed to gaps in teacher education with respect to gender, sexual diversity, sexuality and Sex Education. Considering the results achieved, we believe that this study can contribute to the teachers reflect on their educational practices, seeing the children, listening to the them in their needs, respecting their differences and preferences. Keywords: Gender Relations. Children. Teachers. Education. Early Childhood Education. Sex Education. LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Descrição dos instrumentos de coleta de dados e respectivos sujeitos envolvidos.................................................................................................. 79 Quadro 2 – Descrição das etapas de coleta de dados, procedimentos metodológicos e respectivos sujeitos envolvidos............................................................... 81 Quadro 3 – Número de turmas por período.................................................................. 87 Quadro 4 – Dados da turma arco-íris (manhã) – Professor Eduardo............................ 88 Quadro 5 – Dados da turma rosa e azul (tarde) – Professora Valentina....................... 88 Quadro 6 – Dados do professor e da professora pesquisado/a..................................... 89 Quadro 7 – Categorias de análise................................................................................ 95 LISTA DE FOTOS Foto 1 – Área externa antes da pintura......................................................................... 83 Foto 2 – Área externa após a pintura............................................................................ 83 Foto 3 – Parque de areia antes da pintura..................................................................... 84 Foto 4 – Parque de areia após a pintura........................................................................ 84 Foto 5 – Sala de aula da turma rosa e azul................................................................... 85 Foto 6 – Sala de aula da turma arco-íris....................................................................... 86 Foto 7 – Separação dos calçados.................................................................................. 142 Foto 8 – Calçados das meninas..................................................................................... 142 Foto 9 – Calçados dos meninos e chinelo da Betina.................................................... 142 Foto 10 – Rapunzel fora da torre.................................................................................... 185 Foto 11 – Flor azul e flor laranja, árvore com maçã, borboleta, sol colorido, nuvens coloridas. Menina com blusa vermelha.......................................................... 186 Foto 12 – Flor................................................................................................................. 186 Foto 13 – Flor, cerca e muitas borboletas....................................................................... 187 Foto 14 – Atividade do Murilo: após varias tentavas o menino desenhou a Rapunzel.. 188 Foto 15 – Banheiro das meninas..................................................................................... 190 Foto 16 – Banheiro dos meninos.................................................................................... 190 Foto 17 – Uma das folhas de propaganda de brinquedos entregue para as crianças...... 191 Foto 18 – Atividade do Guilherme................................................................................. 192 Foto 19 – Atividade do Henrique................................................................................... 192 Foto 20 – Atividade da Isadora....................................................................................... 193 Foto 21 – Atividade da Elis............................................................................................ 193 Foto 22 – Atividade da Betina........................................................................................ 194 LISTA DE IMAGENS Imagem 1 – Desenho da escola.......................................................................... 19 Imagem 2 – Amigas pulando corda................................................................... 26 Imagem 3 – Boneca sereia Iara.......................................................................... 46 Imagem 4 – Pulando corda na chuva................................................................. 75 Imagem 5 – Brincando com boneca................................................................... 97 Imagem 6 – Meninas pulando corda.................................................................. 151 Imagem 7 – Meninas caracterizadas pela turma rosa e azul.............................. 174 Imagem 8 – Meninos caracterizados pela turma rosa e azul.............................. 177 Imagem 9 – Escolinha........................................................................................ 179 Imagem 10 – Pular corda..................................................................................... 180 Imagem 11 – Casinha e boneca........................................................................... 181 Imagem 12 – Cavalinho....................................................................................... 182 Imagem 13 – Elis brincando no parque............................................................... 183 Imagem 14 – Aviões, ônibus, tanque de guerra e carrinho.................................. 184 Imagem 15 – Festa de aniversário....................................................................... 201 Imagem 16 – Boneco........................................................................................... 206 Imagem 17 – Menino pulando corda................................................................... 214 Imagem 18 – Meninas pulando corda.................................................................. 223 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS MEC Ministério da Educação MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização AC Análise de Conteúdo SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................ 19 1 SEXUALIDADE, GÊNERO E EDUCAÇÃO SEXUAL: DELINEANDO CONCEITOS, ESTABELECENDO ARTICULAÇÕES................................................ 26 1.1 Sexualidade, Gênero e Educação Sexual: definindo conceitos............................. 27 1.1.1 Breve Histórico da Sexualidade a partir da Idade Média................................ 30 1.1.2 Um olhar para o gênero e a sexualidade................................................................. 33 1.2 Conceituando o gênero........................................................................................... 35 1.3 A Educação Sexual como meio de superação de disparidades de gênero.............. 37 1.3.1 Gênero, sexualidade e Educação Infantil: articulações necessárias................ 41 2 GÊNERO, DOCÊNCIA E INFÂNCIA......................................................................... 46 2.1 Professor, professora, tio ou tia: considerações sobre gênero e docência............................................................................................................................. 47 2.1.1 A feminização da docência............................................................................. 48 2.1.2 Afinal, basta ser mulher?................................................................................ 50 2.2 (Re)visitando a história da criança e da infância................................................... 52 2.3 Criança e infância: definindo conceitos.................................................................... 63 2.4 Atrelando gênero e infância................................................................................... 66 2.4.1 Pesquisas sobre gênero e infância: um panorama dos estudos....................... 68 3 METODOLOGIA.......................................................................................................... 75 3.1 Procedimentos metodológicos............................................................................... 78 3.2 Universo de Pesquisa............................................................................................ 81 3.3 Sujeitos de Pesquisa.............................................................................................. 87 3.4 Trajetória da pesquisa............................................................................................ 89 3.4.1 Descrição da coleta de dados......................................................................... 92 3.4.2 Ética da pesquisa............................................................................................ 94 3.4.3 Análise dos dados........................................................................................... 94 4 SER PROFESSOR E SER PROFESSORA NA EDUCAÇÃO INFANTIL.................. 97 4.1 Tornar-se professor e professora: trajetórias profissionais e primeiras experiências docentes........................................................................................................ 99 4.1.1 Eduardo, o professor...................................................................................... 99 4.1.2 Tem um homem na escola.............................................................................. 104 4.1.3 Valentina, a professora................................................................................... 114 4.2 “Ela é professora, Não é tia!”: o perfil do/a professor/a da Educação Infantil............................................................................................................................... 118 4.3 Bilhete pink não pode! Relações de gênero e trabalho docente..................................... 122 4.3.1 “Menino é assim, menina é assado”............................................................... 122 4.3.2 A organização do trabalho docente................................................................. 134 4.4 Compreensão do professor e da professora sobre gênero e infância e sobre seu papel como educador/a sexual........................................................................................... 138 4.4.1 Afinal, o que é gênero?................................................................................... 138 4.4.2 A Percepção do professor e da professora acerca das relações de gênero...... 141 4.4.3 Concepções acerca da infância....................................................................... 144 4.4.4 Gênero e sexualidade na Educação Infantil: relações entre meninos e meninas.............................................................................................................................. 145 5 SER MENINO E SER MENINA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: A VOZ DAS CRIANÇAS....................................................................................................................... 151 5.1 Ouvindo os meninos e as meninas........................................................................ 152 5.1.1 “Ele é terrível!”: Elis, a menina que não brinca com meninos....................... 153 5.1.2 “Homem não brinca de boneca!”: Henrique, entre o desejo e a norma......... 157 5.1.3 “Eu não brinco com os meninos. Só com as meninas”: Alice........................ 160 5.1.4 “Eu gosto de boneca”: Murilo, o menino que brinca com bonecas............... 163 5.2 Desvelando as relações de gênero entre meninos e meninas: analisando o brincar................................................................................................................................ 167 5.3 “Mulher é mulher e homem é homem!”: As representações de gênero expressas durante a roda de conversa I.............................................................................................. 169 5.3.1 Entre o rosa e o azul, entre calcinhas e cuecas............................................... 170 5.4 Expressões de gênero reveladas nos desenhos e nas falas de meninos e meninas: a roda de conversa II.......................................................................................... 178 5.5 Práticas docentes e expressões infantis: um entrelaçamento de vozes.................. 184 5.5.1 Para além da sala de aula................................................................................ 196 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 201 REFERÊNCIAS................................................................................................................ 206 APÊNDICES..................................................................................................................... 214 APÊNDICE A – AUTORIZAÇÃO APRESENTADA A DIRETORIA DA EDUCAÇÃO DO MUNICÍPIO........................................................................................ 215 APÊNDICE B – AUTORIZAÇÃO APRESENTADA A DIREÇÃO DA ESCOLA ALFA................................................................................................................................ 216 APÊNDICE C – AUTORIZAÇÃO APRESENTADA AOS RESPONSÁVEIS LEGAIS PELAS CRIANÇAS MATRICULADAS NAS TURMAS PESQUISADAS... 217 APÊNDICE D – ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA COM PROFESSOR E PROFESSORA...................................................................................... 218 APÊNDICE E – ROTEIRO DE ENTREVISTA COM CRIANÇAS DURANTE A HORA LÚDICA............................................................................................................... 221 APÊNDICE F – TERMO DE CONSENTIMENTO E AUTORIZAÇÃO APRESENTADO AOS DOCENTES................................................................................ 222 ANEXOS........................................................................................................................... 223 ANEXO A – MODELO DE SILHUETA UTILIZADA NA RODA DE CONVERSA I 224 19 INTRODUÇÃO Imagem 1. Desenho da escola. Desenho realizado por Henrique, 5 anos. 20 INTRODUÇÃO Diante da difícil tarefa de escrever, nada mais preciso do que iniciar este estudo apresentando o interesse que motivou a sua realização. A princípio, algumas situações vivenciadas enquanto aluna e estagiária do curso de Pedagogia direcionaram o meu olhar para as relações de gênero e poder existentes nas instituições nas quais estagiei. Inserida no contexto da Educação Infantil, durante o período de estágios, notei o quanto o ambiente escolar, desde muito cedo, é permeado por essas relações. O fato de as professoras - escrevo no feminino, pois não havia professores homens atuando na rede de ensino no ano em que o estágio foi realizado – considerarem o sexo como um critério de organização de brincadeiras, rotinas e práticas docentes era algo que me intrigava. Todavia, apesar da inquietação causada, simultaneamente, esses comportamentos e atitudes das docentes pareciam-me uma prática comum, sem tanta importância, talvez pelo fato de ter recebido uma educação muito próxima disso ao longo de minha escolarização, ou mesmo por me deixar levar pela visão simplista do senso comum. Fico surpresa ao escrever isso neste momento, uma vez que, considero a temática das relações de gênero extremante importante e a sua reflexão tão necessária no âmbito educacional de um modo geral. Mais tarde, ao retornar ao ambiente escolar, porém, desta vez como professora de uma turma de alunos e alunas com três anos de idade e recém-formada, deparei-me com novas experiências no universo da Educação Infantil. As situações envolvendo diferenciações entre meninos e meninas passaram a chamar ainda mais a minha atenção. Além disso, na contramão das práticas desiguais observadas, não percebia qualquer separação espontânea entre as crianças da minha turma, algo que levava a questionar até que ponto os desejos e as preferências das crianças estavam sendo respeitadas. Como professora, voltei o meu olhar para as crianças e passei a escutá-las. Neste contexto, uma situação que causou mais inquietação acerca das questões de gênero, foi quando uma aluna da turma de cinco anos se recusou a fazer aulas de ballet e demonstrou interesse em participar das aulas de futebol, algo permitido somente aos meninos. Também era comum ver colegas de trabalho relutando com alunos que queriam vestir fantasias de personagens femininos nos momentos de brincadeira. Durante conversas informais essas crianças eram tratadas como ―casos‖ a serem observados, tratados; a orientação sexual dessa menina e desses meninos era questionada com frequência. Essas questões me instigaram a buscar explicações plausíveis que permitissem uma compreensão desses comportamentos considerados como desvios, explicações que superassem o senso 21 comum. Portanto, o interesse pela pesquisa surgiu a partir de minhas próprias necessidades formativas. Estamos constantemente sendo ensinados a ser menino ou a ser menina, a ser homem ou a ser mulher, e isso ocorre através dos discursos hegemônicos oriundos dos diversos agentes de socialização. Essas padronizações muitas vezes nos levam a acreditar na existência de uma única forma de ser menino, de ser homem, e em uma única forma de ser menina, de ser mulher, bem como em uma única forma de vivenciar a sexualidade. Em vista disso, qualquer modo diferente de ser que não seja condizente com esses padrões é considerado como anormal, problemático, como um ―caso‖ ou mesmo como patológico. A família, a escola, os meios de comunicação, enfim, os diferentes agentes de socialização, reproduzem e acabam por reforçar as idealizações de feminino e de masculino, demonstrando certa dificuldade em abranger ou aceitar a diversidade das identidades de gênero. Consideramos que a sexualidade e o gênero não se limitam apenas às representações que as associam aos órgãos genitais; elas permeiam o pensamento e o sentimento, estão presentes no corpo, no olhar, no toque, na libido, nas mais diversas formas de relações entre os sujeitos. Assim, abrangem o corpo como um todo e se manifestam e se constituem no decorrer da vida. Destarte, entendemos o gênero como uma condição social pela qual os indivíduos são identificados como homens e mulheres, e a sexualidade como a forma cultural pela qual os sujeitos vivem seus desejos e prazeres corporais. Desse modo, sexualidade e gênero estão intrinsecamente vinculados (Finco, 2013b). Antes mesmo do nascimento, a sexualidade e, concomitantemente, as identidades de gênero, têm início e são constituídas, a princípio, no bojo familiar, por meio dos seus valores, pudores, conceitos e relações interpessoais (Silveira, 2010). Em seguida, recebem influências das mais diversas instâncias sociais, entre elas, a mídia televisa e a escola. De acordo com Guizzo (2005), as propagandas televisivas e demais anúncios imagéticos, além de objetivarem a venda dos produtos, buscam vender estilos de vida, apresentam padrões e uma visão de mundo socialmente desejáveis. Tais padrões são, muitas vezes, incorporados pelas crianças que, considerando-os como atributos naturais do ser humano, aprendem desde tenra idade modos idealizados de ser menina e de ser menino. Contudo, não podemos desconsiderar o fato de que as crianças são indivíduos ativos e, por isso, participam do processo de constituição de suas identidades. Conforme o enfoque da Psicologia Histórico-Cultural (Vigotski, 2007), a criança, por meio de suas interações e 22 relações sociais, se apropria do patrimônio historicamente acumulado e assim, das diferentes regras, valores e costumes. Neste sentido, acreditamos que a instituição de Educação Infantil, em especial, por se tratar de um espaço coletivo voltado à educação e ao convívio de crianças pequenas, deve ser um espaço propício para que se estabeleçam reflexões acerca do respeito à diversidade, bem como para favorecer a diversidade das infâncias (Finco, 2013b). Todavia, a escola muitas vezes reforça os estereótipos femininos e masculinos, os quais corroboram para a perpetuação do preconceito e do sexismo (Leão, 2012). A dicotomia homem e mulher, cada vez mais presente e precoce em nossa sociedade, exerce um papel significativo no modo como as crianças são educadas. Estamos vivendo um tempo marcado pela existência de uma diversidade de identidades; faz-se necessário nos atentarmos a isso (Louro, 2008). Nesta perspectiva, discorrer acerca das diferentes formas de ser menino e de ser menina é essencial para romper as dicotomias e padronizações feitas pela mídia, pela escola e pela sociedade em geral. A escolha do poema de autoria de Manoel de Barros (1999), ―O menino que carregava água na peneira‖, para abrir este estudo está justamente vinculada às nossas concepções e objetivos. O poema nos remete a diferentes formas de ser, de ser humano, de ser quem realmente desejamos, ou simplesmente quem conseguimos ser em nossa inteireza; mostra-nos as diferentes formas de ver, de olhar, de enxergar. Assim, esta pesquisa tem como propósito contribuir para que a escola de Educação Infantil seja vista como uma instituição capaz de sobrepujar estereótipos e binarismos referentes às questões de gênero. Consideramos a pré-escola como um espaço para fazer peraltagens, um espaço oportuno para descobrir e desenvolver as diferentes potencialidades. Um espaço para expressar-se, para experimentar, para vivenciar, para acertar, errar, criar, construir, chorar, sorrir, e sobretudo, aceitar e ser aceito! Estudos de Rosemberg (2001), Arce (2001), Vianna e Finco (2009), Silva e Luz (2010), Faria (2002), Ruis e Perez (2013a), entre outros, apontam para a escassez de pesquisas que abarquem a temática de gênero na Educação Infantil, dentre elas, poucas envolvem a infância e a criança. Portanto, as dificuldades apresentadas por profissionais da Educação Infantil, em especial pelos professores e pelas professoras, bem como pelas famílias, em lidar com as múltiplas identidades de gênero e manifestações sexuais das crianças, somadas à carência de estudos que abarquem as relações de gênero e infância no contexto da Educação Infantil, assinalam para a relevância do desenvolvimento desta pesquisa. 23 Consideramos de fundamental importância a realização de pesquisas abrangendo as questões de gênero na infância como forma de contribuir para que os conhecimentos trabalhados nas instituições pré-escolares estejam adequados à realidade e às necessidades das crianças. Tendo em vista essas premissas, partimos do pressuposto de que a sexualidade e o gênero são construídos histórica e culturalmente por meio das relações sociais e, por isso, estão em constante processo de transformação. E, sobretudo, partimos da concepção de criança como indivíduo capaz, portador de história e produtor de cultura, ativo e crítico de seu tempo, como indivíduo dotado de potencialidades. OBJETIVO GERAL Diante do exposto, o objetivo central desta pesquisa consiste em investigar as relações e representações de gênero expressas por meninos e meninas, professor e professora, como atores sociais, no cotidiano de uma escola municipal de Educação Infantil, localizada em uma cidade do interior paulista. OBJETIVOS ESPECÍFICOS - Analisar a organização da instituição pesquisada e as práticas cotidianas adotadas: se considera o sexo como um critério para a organização e utilização dos tempos e espaços; - Averiguar as práticas educativas adotadas pelo professor e pela professora frente às questões de gênero, se há uma intencionalidade neste sentido; - Apreender as representações de gênero reveladas por meninos e meninas em suas interações no ambiente escolar da Educação Infantil – em situações lúdicas propostas e previamente planejadas pela pesquisadora –, ouvindo as crianças; - Verificar as construções, os fundamentos e os conhecimentos sobre gênero nos quais se apoia o professor e a professora de cada turma para lidar com as relações de gênero na infância; - Entrelaçar as vozes dos diferentes sujeitos envolvidos, ou seja, meninos e meninas, professor e professora, bem como suas práticas em relação a gênero. Em concomitância com os objetivos supracitados, nesta pesquisa voltamos o nosso olhar para a constituição dos gêneros no cotidiano de uma pré-escola e evidenciamos o processo de produção e reprodução do feminino e do masculino em seu interior, a fim de 24 descortinar as diferentes formas de ser professor e ser professora, ser menino e ser menina na Educação Infantil. Ao abordar como ocorre a constituição dos gêneros nas diferentes instâncias, indissociavelmente, nos remetemos à constituição da sexualidade e às práticas de Educação Sexual implícitas nesses processos de construção. Frente ao exposto, a pesquisa está apresentada da seguinte forma: Na primeira seção, ―Sexualidade, gênero e Educação Sexual: delineando conceitos, estabelecendo articulações‖, apresentamos uma reflexão teórica acerca dos conceitos de sexualidade, gênero e Educação Sexual, como conceitos sociais e culturais historicamente construídos, buscando estabelecer articulações entre os mesmos. Visamos tecer uma discussão sobre as relações de gênero, ressaltando a importância de pensarmos esse tema no âmbito da educação escolar, em especial, da Educação Infantil, na constituição de identidades femininas e masculinas, nas práticas docentes e nas expressões de meninos e meninas. Na segunda seção, intitulada ―Gênero, docência e infância‖, arrolamos sobre as questões de gênero envolvendo a docência e o seu processo de feminização. Adentramos brevemente na história da infância e da criança como forma de compreender os conceitos de criança e infância empregados nesta pesquisa. Assim, nos apoiamos na visão defendida pela Sociologia da Infância e pela Psicologia Histórico-Cultural, na qual não existe apenas uma infância e criança universal, mas infâncias e crianças, sendo esses conceitos construídos ao longo da história por meio de processos sociais e culturais. Traçamos um panorama dos estudos que vêm sendo desenvolvidos na área da Educação e que relacionam gênero e infância. Na terceira seção apresentamos os procedimentos teórico-metodológicos da pesquisa, realizada em uma escola municipal de Educação Infantil, envolvendo duas turmas de alunos e alunas com idade entre quatro e seis anos e o professor e a professora responsáveis pelas mesmas. Descrevemos brevemente a instituição de ensino pesquisada, o espaço físico, os sujeitos da pesquisa, a trajetória percorrida, bem como os instrumentos utilizados na coleta de dados, o levantamento, a organização e as formas de análises dos dados. Para a realização deste estudo, adotamos estratégias de investigação de caráter qualitativo, de cunho etnográfico. Buscamos a contribuição dos referenciais teóricos da Sociologia da Infância e da Psicologia Histórico-Cultural que nos auxiliaram a compreender as interações entre meninos e meninas, entre professores e professoras, considerando a criança como ator social e participante ativo da sociedade. 25 Na quarta seção, sob o título ―Ser professor e ser professora na Educação Infantil‖, apresentamos algumas características do professor e da professora pesquisados por meio de elementos que apreendemos em suas narrativas acerca de suas trajetórias profissionais. Além disso, destacamos alguns momentos relevantes de suas histórias de vida e profissional como a opção pela formação em Pedagogia, a escolha pela carreira de educador/a infantil e as primeiras experiências docentes. Ainda nesta seção, buscamos compreender como o/a docente organiza sua prática pedagógica, se há uma intencionalidade ou não em dispensar um tratamento diferenciado para meninas e meninos, se percebem diferenças na personalidade infantil e se possuem expectativas quanto aos modos de ser menina e ser menino em suas práticas cotidianas. As concepções do professor e da professora acerca do gênero e da infância, bem como sobre o seu papel na condição de educador/a sexual também foi algo investigado. Na quinta seção, ―Ser menino e ser menina na Educação Infantil: a voz das crianças‖, caracterizamos as crianças pesquisadas. Dedicamo-nos ao estudo das narrativas de quatro crianças em especial. O critério de escolha se deu pelo fato de essas crianças, dois meninos e duas meninas, permanecerem na escola em período integral e por serem alunos e alunas em comum do professor e da professora investigado/a. Procuramos apreender suas preferências, seus desejos e suas necessidades no que diz respeito às relações de gênero e à maneira como se relacionam e interagem com seus pares e com os adultos, em distintos momentos e espaços, especialmente no contexto escolar, mas também fora dele. Também analisamos as expressões de meninos e meninas das turmas investigadas em relação ao gênero, por meio de diferentes linguagens como desenhos infantis, oralidade e ludicidade. E entrelaçamos as vozes dos sujeitos envolvidos – meninos e meninas, professor e professora. Demonstramos que, embora sejam exercidas práticas de controle, meninas e meninos encontram espaços na rotina escolar para atingir seus desejos. Por fim, apresentamos as considerações finais esboçando algumas possíveis contribuições, haja vista que o nosso propósito no presente estudo é que seus resultados possam contribuir para que professores e professoras reflitam sobre suas práticas educativas com relação às questões de gênero, enxergando as crianças, ouvindo-as em suas necessidades, respeitando suas diferenças e preferências. Assim, procuramos abrir espaço para novas pesquisas que se debrucem sobre a temática. 26 1 SEXUALIDADE, GÊNERO E EDUCAÇÃO SEXUAL: DELINEANDO CONCEITOS, ESTABELECENDO ARTICULAÇÕES Imagem 2. Amigas pulando corda. Desenho realizado por Sofia, 6 anos 27 1 SEXUALIDADE, GÊNERO E EDUCAÇÃO SEXUAL: DELINEANDO CONCEITOS, ESTABELECENDO ARTICULAÇÕES Nesta primeira seção apresentamos os conceitos de sexualidade, gênero e Educação Sexual sob os quais este estudo repousa. Para tanto, no primeiro tópico, explanamos brevemente a história da sexualidade humana ocidental a partir do período que corresponde à Idade Média com a finalidade de compreender o conceito de sexualidade como uma construção histórica, social e cultural. Direcionamos o nosso olhar para o gênero e para a sexualidade. Abordamos as dificuldades nas quais esbarramos ao tratar da sexualidade e gênero nos dias de hoje, uma vez que ainda são considerados assuntos velados. Ressaltamos a importância de desconstruir a visão simplista, pautada no determinismo biológico, bem como de superar as disparidades de gênero. Os estudos de gênero têm contribuído para essa desconstrução, pois questionam os padrões sociais reforçados socialmente, assunto que abordamos ao longo do segundo tópico, no qual, nos dedicamos ao conceito de gênero que sustenta essa pesquisa. Discorremos acerca de seu surgimento, traçando sua contextualização histórica. Apontamos a escola como uma importante instância social capaz de contribuir para mitigar as relações de gênero e poder existentes em nossa sociedade, por meio da promoção de uma Educação Sexual emancipatória. Em vista disso, no terceiro tópico, discutimos o papel da escola, a sua função social e o seu compromisso em abordar e problematizar as questões de gênero e sexualidade. Por fim, no quarto tópico, defendemos que essas questões devem ser abordadas desde a Educação Infantil, por se tratar de um espaço atravessado por relações de gênero e poder. 1.1 Sexualidade, Gênero e Educação Sexual: definindo conceitos Apesar de ser um fenômeno anterior ao surgimento do ser humano, as discussões acerca da sexualidade têm se intensificado somente a partir das primeiras décadas do século XIX (Leão, 2012). O conceito de sexualidade tal como entendemos hoje, ou seja, como uma construção histórica, social e cultural, foi usado no século XIX com a finalidade de se referir aos saberes sexuais decorrentes dos estudos a respeito dos significados das práticas sexuais que foram construídas histórica e culturalmente (Maia, 2010). 28 Adentrando mais ao assunto, diversos estudiosos afirmam que o conceito de sexualidade é amplo (Maia, Heredero, Ribeiro & Bedin, 2010, p.27). Nesta direção, Chauí (1984), na perspectiva da Filosofia da Educação, em sua obra Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida, propõe que a sexualidade seja compreendida sob um ponto de vista mais abrangente [...] como atmosfera difusa e profunda que envolve toda nossa vida (nossas relações com os outros, com nosso corpo e o alheio, com objetos e situações que nos agradam ou desagradam, nossas esperanças, nossos medos, sonhos, reais e imaginários, conscientes e inconscientes). Como dimensão simbólica (individual e cultural) que articula nosso corpo e nossa psique, suas máscaras, disfarces, astúcias e angústias (p.30). Foucault (1988) defende que para entender a sexualidade em sua complexidade, é preciso percebê-la como um produto das relações de poder que ocorrem entre homens e mulheres, professores/as e alunos/as, pais e filhos/as, etc. Logo, afirma que a sexualidade é o nome de que se dá um ―dispositivo histórico‖. De modo que define como dispositivo: Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas (...) o dito e o não-dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (Foucault, 1993, p.244). Para Weeks (1999), a sexualidade está relacionada tanto ―com as nossas crenças, ideologias e imaginações quanto com o nosso corpo físico‖ (p.38). O mesmo autor destaca que ―a melhor maneira de se compreender a sexualidade é como um ‗construto social‘‖, ou seja, há que ―se ver a sexualidade como um fenômeno social e histórico‖ (p.38). Corroborando com Weeks (1999), Louro (1999) admoesta que a sexualidade é construída historicamente; no entanto, pontua que sua construção se dá ―a partir de discursos que normatizam, que regulam, que instauram saberes e que produzem ―verdades‖‖ [destaque no original] (pp.11-12). Louro (1999) expressa ainda que a sexualidade é considerada por muitos como algo que homens e mulheres possuem naturalmente. E esclarece que a aceitação dessa ideia torna sem sentido a argumentação a respeito de sua dimensão social e política ou a respeito de seu caráter construído. A concepção de que a sexualidade seria algo dado naturalmente, algo inerente ao ser humano, geralmente está alicerçada no corpo e na suposição de que todos vivenciam os corpos da mesma forma, ou seja, universalmente, sem distinções. Contudo, a referida autora afirma que a sexualidade envolve fantasias, símbolos, rituais, linguagens, 29 representações etc., processos plurais e culturais. Segundo a estudiosa, é por meio desses processos culturais que definimos o que é – ou não – natural; produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, conseqüentemente, as tornamos históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros – feminino ou masculino – nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade – das formas de expressar os desejos e prazeres – também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade (Louro, 1999, p.11). Ao longo dos séculos, foi sendo construída a visão do senso comum que se tem de sexualidade na contemporaneidade como algo negativo, pecaminoso e privado (Leão, 2012). O mesmo pode ser observado com relação à constituição das identidades de gênero, tendo em vista que as sociedades modernas ocidentais estabeleceram características universais de masculinidade e feminilidade a partir de aspectos biológicos. Dessa forma, a normalização das diferenças entre homens e mulheres acarretou na concepção de que existe um modo de ser feminino e um modo de ser masculino, ou seja, de que há comportamentos, gestos, posturas físicas, falas, atividades e funções consideradas adequadas para homens ou mulheres (Finco, 2013a). De acordo com Finco (2013a), os comportamentos e as preferências de meninos e meninas, homens e mulheres, não são simples características provenientes do corpo biológico, mas frutos de construções sociais e históricas. Ao examinar suas causas, encontraremos suas origens em reações automáticas, em pequenos gestos cotidianos — cujos motivos e objetivos nos escapam — que repetimos sem ter consciência de seu significado, porque os interiorizamos no processo educacional. São preconceitos que não resistem à razão nem aos novos tempos e que continuamos a considerar verdades intocáveis, nos costumes e nas regras inflexíveis (Finco, 2013a, pp.173-174). Neste sentido, Leão (2012) aponta que para compreender a sexualidade na contemporaneidade, é necessário retomar a sua história, sua evolução social, sendo possível, a partir de um resgate histórico, elucidar as origens das práticas e os tabus sexuais existentes e que persistem em nossa sociedade. E ainda, é possível observar ―os dispositivos que contribuíram para a discussão das relações de gênero, e sua relevância‖ (Leão, 2012, p.23). Em vista disso, no tópico subsequente faremos uma breve exposição da história da sexualidade no ocidente, elencando os principais acontecimentos referentes ao assunto a partir da Idade Média. 30 1.1.1 Breve Histórico da Sexualidade a partir da Idade Média A sexualidade nem sempre foi vista da mesma forma. Desse modo, se adentrarmos mais na história, notaremos que, de acordo com cada época, recebeu diferentes significações, sendo influenciada por toda uma estrutura social, histórica e cultural, que institui valores e normas, dando novos contornos ao entendimento e às maneiras de se vivenciar a sexualidade (Garcia, 2005). A fim de que possamos compreender os mitos e tabus que envolvem a sexualidade e contribuem para que se tenha uma visão equivocada do sexo como algo perigoso, impuro e velado, e dentro disso, entender as relações de gênero, discorreremos brevemente sobre alguns momentos que marcaram a história da sexualidade. É importante destacar que não pretendemos, e nem é o nosso objetivo neste estudo, esgotar o assunto, tendo em vista a grande complexidade que envolve a temática. Concordamos com Louro (1997) ao expressar que: Somente uma abordagem histórica nos permitirá perceber como se engendram as forças que produziram o que consideramos hoje, as ―verdades‖ sobre a sexualidade e os gêneros. Uma abordagem histórica é também fundamental para que possamos questionar e ousar transformar arranjos sociais perversos e desiguais (p.37). Assim, iniciamos a nossa explanação a partir do período que corresponde ao início da Idade Média. Vale destacar que, até o surgimento do cristianismo, havia uma tolerância às práticas sexuais livres em todas as civilizações. No entanto, a partir da Idade Média, influenciada pela Igreja, a sexualidade passou a ser limitada e adquiriu novos contornos. Este período foi marcado pelo estabelecimento de normas e preceitos acerca da sexualidade por parte da igreja, que por sua vez, passou a disseminar o ideal do celibato e da virgindade sob o temor do castigo eterno. O prazer sexual passou a ser severamente censurado, de modo que o sexo era aceito somente dentro do casamento para fins de procriação (Leão, 2012). Conforme Nunes (1987), na Idade Média foi construída uma visão extremamente rígida e negativa da sexualidade. Novas mudanças ocorreram com o advento da sociedade moderna. A nova sociedade passou a se basear no trabalho. Desse modo era necessário dispensar as energias para o trabalho, motivo pelo qual a repressão da sexualidade continuou a ser exercida (Nunes, 1987). Neste período, as desigualdades entre homens e mulheres aumentaram devido à disseminação 31 da ideia da esposa como propriedade do marido e responsável pelo cuidado dos filhos e filhas, emergindo um novo conceito de família: a família nuclear. Os comportamentos sexuais dos sujeitos começaram a ser influenciados pela medicina, por meio de estratégias de educação moral e sexual. Neste cenário surgiu o higienismo, restringindo a sexualidade, porém não mais associada à visão do pecado, mas pelo viés das doenças sexualmente transmissíveis. Dessa forma, na contramão da igreja, a medicina instigou o discurso acerca do sexo (Leão, 2012). Para Foucault (1988), o discurso do sexo atuava como um dispositivo de controle sobre a vida dos indivíduos. Como bem explana este autor, desde o século XVIII, a produção dos discursos científicos sobre o sexo recaiu na defesa de que todas as formas e as práticas sexuais que não tivessem por finalidade a reprodução deveriam ser tratadas como sendo irregulares e anormais. Tais práticas passaram a ser identificadas como desvios sexuais e tornaram-se alvo de controle através de práticas médicas, de moralistas, autoridades cristãs e instituições estatais, que discursavam a respeito dos usos dos prazeres sexuais e de suas consequências patológicas. Apesar disso, esse discurso não era considerado como repressão, uma vez que, o fato se ouvir falar com frequência sobre sexo causava nas pessoas uma falsa sensação de liberdade e autonomia sobre as formas de experienciar o prazer e o desejo. Os novos contornos dados à sexualidade seguiam o modelo de uma moralidade castradora e puritana, que atingiu o seu auge na época da Rainha Vitória, a Era Vitoriana, na Inglaterra, no século XIX. Em contrapartida, o mesmo afirma que, por meio da confissão e da análise clínica, adentrava-se na intimidade dos sujeitos, vindo a conhecer como eles vivenciavam o seu corpo e seus prazeres, o que poderia ser compreendido como uma estratégia de controle e normalização das atividades sexuais desses indivíduos. Sobre esse assunto, Weeks (1999) destaca: Foucault aponta quatro unidades estratégicas que ligam, desde o século XVIII, uma variedade de práticas sociais e técnicas de poder. Juntas, elas formam mecanismos específicos de conhecimento e poder centrados no sexo. Elas têm a ver com a sexualidade das mulheres; a sexualidade das crianças; o controle do comportamento procriativo; e a demarcação de perversões sexuais como problemas de patologia individual (pp.51-52). Nunes (1987) admoesta que no século XIX, com as mudanças promovidas pelo capitalismo devido ao advento da sociedade do consumo, uma porção de acontecimentos e revoluções do pensamento, a partir das ideias de Darwin, Freud e Marx, acarretou em uma nova compreensão da sexualidade. Este autor destaca que o capitalismo, no século XX, 32 impulsionou um grande progresso nas comunicações, nesse período explodiram vários movimentos de contestação como o dos grupos feministas, negros, jovens, homossexuais, hippie e rock. A luta pela liberação sexual estava entre os ideais desses movimentos. Algo que foi rapidamente incorporado pelo consumo capitalista. Entretanto, o sistema capitalista introduziu um prazer mecanizado, uma vez que permitiu apenas quantitativamente a compensação da sexualidade reprimida ao longo dos séculos, não possibilitando que a sexualidade fosse vivenciada qualitativamente, ou seja, de forma humanizada e afetiva. Sobre esse período, Figueiró (2001) expõe que o sexo passou a ser discutido publicamente, marcando o início da modernização da vida sexual. A mesma destaca que a medicina começou a se preocupar com os indivíduos, com as suas vontades sobre o seu corpo e acerca da concepção. Entretanto, explicita que as ideias higienistas não foram completamente eliminadas, de modo que ainda é possível encontrar seus resquícios no século XXI. De acordo com Leão (2012), um exemplo disso é a concepção de infância assexuada, pura e não-erotizada que ainda persiste. Segundo Assolini (2009), ainda impera uma ambiguidade no que diz respeito à sexualidade, uma vez que nunca se falou com tanta intensidade sobre sexo; entretanto, a falta de intimidade e a desinformação acerca do assunto persistem. Sobre essa ambiguidade, Foucault (1988) explicita que toda a repressão se dá através de dispositivos de saber/poder, ou seja, para que se exerça um controle sobre a sexualidade é preciso estimular que se fale sobre ela, pois para o mesmo, é necessário conhecer para controlar. Ao retomar fatos da história da sexualidade e compará-los com o contexto atual, Nunes (1987) aponta que na sociedade contemporânea, a família se baseia em um discurso religioso e higienista acerca da sexualidade, enquanto o Estado, que exerce o controle das escolas, possui uma visão mais técnica do que moralista, ou seja, se mostra mais preocupado com as questões biológicas, demográficas, políticas e profissionais. Conforme Garcia (2005), a nossa sociedade, estabelece para homens e mulheres, desde o nascimento, um processo de educação de acordo com as normas sociais que são definidas pelo modo de produção vigente, pela parcela hegemônica da sociedade. Acrescenta que essa perspectiva está presente não apenas no contexto educacional, mas em primeiro lugar, aparece inserida nos espaços informais de vivência das pessoas, assunto sobre o qual discorreremos no próximo tópico. 33 1.1.2 Um olhar para o gênero e a sexualidade A sexualidade ainda é tratada como um assunto velado, proibido, não apenas no contexto escolar, mas também no âmbito familiar e, portanto, abordá-la se torna, muitas vezes, um desafio para pais e educadores. Esta dificuldade do adulto em abordar esse assunto, principalmente com crianças pequenas, está alicerçada, em grande parte, em nossa cultura, uma vez que não somos educados para viver a sexualidade de forma prazerosa e afetiva. O olhar para a história da sexualidade nos permitiu constatar que aspectos da religião e do movimento higienista contribuíram para este comportamento, na medida em que as condutas sexuais sofreram (e ainda sofrem), constantes influências dessas concepções, induzindo as famílias a adotarem estratégias de repressão sexual. Neste sentido, a sexualidade ainda é cercada por tabus e, quando as crianças apresentam questões sobre o assunto, muitos adultos ficam sem respostas, embaraçados, justamente por considerarem a sexualidade a partir do ponto de vista da educação que receberam e de suas experiências pessoais, carregadas de elementos repressores. Leão (2012) ressalta que o fato de o adulto demonstrar certo receio no trato com este tema com as crianças em vez de auxiliá-las, pode, na verdade, contribuir para que elas elaborem uma visão negativa e equivocada sobre a sexualidade, podendo acarretar em danos posteriores ao desenvolvimento delas. Isto posto, podemos inferir que todos somos educados sexualmente na família, nas escolas, nas igrejas, nos locais públicos, pela mídia, em todos os espaços de convivência permeados por experiências sexuais e de gênero para serem aprendidas, usufruídas, trocadas ou ignoradas (Garcia, 2005). E essa Educação Sexual ocorre de maneira informal, ou seja, através das relações sociais que direcionam o ser humano no decorrer do seu desenvolvimento, em relação a valores e concepções vinculados à manifestação da própria sexualidade e à de outros. Este tipo de educação possui um caráter não intencional e é fruto do processo cultural e contínuo que é construído ao longo da vida (Ribeiro, 1990). Werebe (1998) explicita que: A educação sexual, num sentido amplo, processo global, não intencional, sempre existiu, em todas as civilizações, no decurso da história da humanidade, de maneira consciente ou não, com objetivos claros ou não, assumindo características variadas, segundo a época e as culturas (p.139). 34 A família é considerada a primeira instância social responsável pela aprendizagem da criança acerca do mundo adulto, incluindo as questões que envolvem gênero e sexualidade, pois é no âmbito familiar ―que a criança entra em contato com os modelos de homem e mulher e constrói sua visão de relacionamento entre os mesmos‖ (Garcia, 2005, não paginado). Esses modelos de masculino e feminino apresentados às crianças, na maioria das vezes contribuem para que se estabeleçam formas fixas, binárias e universais de práticas eróticas e sexuais dos corpos. As disparidades entre homens e mulheres e, consequentemente, as condutas adequadas a cada sexo, como associar às mulheres a função de mães e esposas, por exemplo, são justificadas e estabelecidas de acordo com as características biológicas (Cabiceira, 2008). A respeito dessas concepções pautadas em aspectos biológicos, Louro (1997) critica que o argumento de que homens e mulheres são biologicamente distintos e que a relação entre ambos decorre dessa distinção, que é complementar e na qual cada um deve desempenhar um papel determinado secularmente, acaba por ter caráter de argumento final, irrecorrível. Seja no âmbito do senso comum, seja revestido por uma linguagem ―científica‖, a distinção biológica, ou melhor, a distinção sexual serve para compreender – e justificar – a desigualdade social (p.20). No tocante à apropriação dos modelos, esta autora aponta que a ideia do senso comum de que as crianças aprendem como ser menina e como ser menino ao se enquadrarem nos papéis estipulados socialmente, pode ser simplista, uma vez que os sujeitos constituem suas identidades por meio das relações sociais. Assim, explicita que o gênero faz parte da identidade dos indivíduos de modo que ―transcende o mero desempenho de papéis‖ (Louro, 1997, p.25). Desse modo, as produções das diferenças de gênero são construídas conforme os arranjos sociais e o momento histórico vigente, bem como pelos discursos, símbolos, ideologias, práticas e representações que colaboram para que as identidades vão se constituindo. As identidades não são fixas, mas são plurais, contraditórias e estão em constante processo de transformação (Week, 1999). Frente ao exposto, consideramos que é preciso desconstruir a visão do senso comum de que o determinismo biológico serve para explicar as disparidades entre homens e mulheres como sendo algo natural. E os estudos de gênero têm contribuído para isso, uma vez que levantam questionamentos acerca dos padrões sociais presentes em nossa sociedade, assunto que abordaremos com mais profundidade no próximo tópico. 35 1.2 Conceituando o gênero Os estudos de gênero são decorrentes das transformações sociais e políticas ocorridas a partir da década de 1960 e têm sua origem no âmbito do movimento feminista, na tentativa de dar respostas às desigualdades existentes entre homens e mulheres que, por sua vez eram pautadas no determinismo biológico. No tocante ao movimento feminista e, consequentemente, ao surgimento do conceito de gênero, Meyer (2003) explicita que tal movimento desdobra-se em três ondas: a primeira está relacionada ao sufragismo, que lutava pela conquista política das mulheres, para que o direito de voto se estendesse a todos, além de outras reivindicações como igualdade, melhores condições de trabalho e direito à educação. No final da década de 1960, a segunda onda deste movimento se volta para os estudos acadêmicos. Conforme Meyer (2003), esses estudos deram visibilidade à mulher, de modo que denunciavam o sexismo e a opressão existentes nas relações de trabalho e nas práticas educativas, colocando em evidência as condições de vida da mulher na sociedade. Já a terceira onda do movimento feminista está relacionada à utilização do conceito de gênero como uma categoria de análise histórica. De acordo com Louro (1997), esse conceito emerge do esforço de romper com as distinções entre homens e mulheres baseadas no sexo, como um fenômeno natural, biológico e imutável, passando a defender seu caráter histórico. No entanto, importa ressaltar que no Brasil, apenas no final dos anos de 1980 é que as feministas passaram a utilizar o termo gênero (Louro, 1997). Assim como nos países anglo- saxões, a introdução dos estudos de gênero no país esteve vinculada ao movimento feminista e a outros movimentos sociais e políticos impulsionados por jovens, estudantes, negros, chamados de ―minorias‖ sexuais e étnicas (Louro, 2008). Embora o conceito de gênero seja amplo e utilizado por diferentes autores/as e estudiosos/as das mais diversas áreas, para efeitos desta investigação, nos apoiaremos no conceito de gênero apresentado nos estudos de Joan Scott (1995). Essa pesquisadora reforça que o uso do termo gênero é recente e que apareceu entre as feministas americanas ―que queriam enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo‖ (Scott, 1995, p.72). A utilização deste termo marcou uma rejeição ao determinismo biológico implícito na palavra sexo. Deste modo, pretendia-se demonstrar que as diferenças entre homens e mulheres não eram naturais, mas eram constituídas em um processo histórico, social, cultural e político. 36 Nas palavras de Meyer (2003), o termo gênero enfatiza o processo de construção das diferenças entre homens e mulheres, tanto através da sociedade e da cultura, com suas instituições, normas, leis, símbolos e políticas, bem como por meio da linguagem, uma vez que o conceito de gênero aporta-se não apenas aos papéis sociais, mas também às distintas instituições e práticas sociais. Nesta perspectiva, Louro (1997) expõe que este termo assinala as construções sociais de caráter plural, ou seja, não universais e mutáveis de homens e mulheres. Para a mesma, o conceito de gênero surge da necessidade de se contrapor à ideia de que as diferenças entre homens e mulheres estariam ancoradas no sexo, enquanto características físicas e biológicas do corpo. De acordo com a definição de Scott (1995), gênero pode ser compreendido como ―um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos‖ (p.86), bem como consiste em um primeiro modo de significar as relações de poder. Ademais, ao considerar gênero como uma categoria de análise, Scott (1995) emprega em seu discurso o sentido de que vai além da simples descrição, propondo a análise das relações entre os sexos a partir de sistemas culturais, que por sua vez, são marcados pelas relações de poder. Sendo assim, o conceito de gênero na condição de categoria teórica abarca um conhecimento amplo a respeito das diferenças sexuais, de modo que permite decodificar o sentido e entender como as relações entre homens e mulheres são produzidas pelas distintas culturas e sociedades. Portanto, ao passo que as diferenças sexuais biológicas são naturais e imutáveis, as concepções e representações de masculinidade e de feminilidade são mutáveis, de forma que variam conforme uma determinada cultura, sociedade e contexto histórico (Scott, 1995, Louro, 1997, 1999). A respeito do processo de construção do gênero, Louro (1997) salienta que Ao aceitarmos que a construção do gênero é histórica e se faz incessantemente, estamos entendendo que as relações entre homens e mulheres, os discursos e as representações dessas relações estão em constante mudança. Isso supõe que as identidades de gênero estão continuamente se transformando (p.35). Vale destacar, como bem expressa Meyer (2003), que o conceito de gênero não se restringe apenas ao estudo das condições de vida das mulheres, mas, sobretudo, evidencia a necessidade de se ponderar as relações de poder entre homens e mulheres, a cultura e a sociedade. 37 Leão (2012) ressalta que tecer considerações acerca das questões de gênero inevitavelmente traz à pauta as relações de poder, e abarcar a sexualidade também leva a tratar destas questões, uma vez que o modo como os indivíduos se percebem como sujeitos sexuais está ligado com a forma como se entendem enquanto homens e mulheres. Louro (1997) complementa que ―na instituição das diferenças estão implicadas relações de poder‖ (p.84). Frente às considerações expostas podemos inferir que gênero e poder são construções recíprocas. Nesta direção, Foucault (1988) explicita que as relações de poder estão presentes nas diferentes instâncias sociais. Leão (2012) afirma que a escola, enquanto importante instância social, é atravessada por estas relações. Esta autora acrescenta: Pensando nas relações de gênero, especificamente, esta instituição pode sobrepujar os modelos hegemônicos que visam à perpetuação dos estigmas sociais. Um modo disso ocorrer é abordar dentro do trabalho de orientação sexual tais relações, desvelando os embates de força que existem na sociedade, e as possibilidades de rupturas e de transformação (Leão, 2012, p.56). Tendo em vista que a escola pode contribuir para mitigar essas relações de poder, no tópico a seguir vamos nos ater ao papel da escola, à sua função social e seu compromisso em abordar/problematizar as questões de gênero e sexualidade. 1.3 A Educação Sexual como meio de superação de disparidades de gênero A educação, conforme Demerval Saviani (2007) em sua obra intitulada Escola e democracia, é concebida como produção do saber, ou seja, como produção de ideias, atitudes, valores e conceitos diversos. A educação tem o papel de proporcionar aos seres humanos o acesso aos elementos culturais que necessitam para constituírem sua humanidade, ou seja, considera que por meio da educação o indivíduo se humaniza. ―Isto porque, o homem não se faz homem naturalmente; ele não nasce sabendo ser homem, vale dizer, ele não nasce sabendo sentir, pensar, avaliar, agir‖ (Saviani, 2008, p.7). Para tanto, é preciso aprender, o que acarreta no trabalho educativo. Assim, afirma que A natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica. Consequentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens (Saviani, 2008, p.7). 38 A partir dessa concepção mais ampla de educação, Saviani (2008) elucida que a função social da escola norteia-se pelo princípio do trabalho educativo, no entanto, considera que a educação não se restringe apenas ao âmbito escolar, mas que se faz presente nos diversos espaços da sociedade, manifestando-se ao longo da vida dos indivíduos de diferentes formas. Desse modo, diante de tal posição de que todos os espaços educam, cabe à escola a responsabilidade de transmissão e assimilação do saber sistematizado, a partir do qual se define a peculiaridade da educação escolar. Conforme o autor, a escola tem uma função especificamente educativa. Saviani (2008) declara que a necessidade de existência da escola está vinculada, essencialmente, à exigência, por parte das novas gerações, de apropriação do conhecimento sistematizado. Dessa forma, aponta que ―a escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber‖ (p.15). Nesta direção, o referido autor destaca que a educação não se reduz ao ensino, portanto, a escola é vista como o local institucionalizado onde se desenvolve o processo educativo. Assim, a apropriação dos conhecimentos produzidos ao longo da história pela humanidade não acontece de maneira imediata, mas em decorrência de um processo de mediação, através das relações estabelecidas entre as pessoas e com a cultura. Em síntese, para este estudioso, a educação escolar, de acordo com a perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica, deve possibilitar: a) Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações, bem como as tendências atuais de transformação. b) Conversão do saber objetivo em saber escolar, de modo que se torne assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares. c) Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua produção, bem como as tendências de sua transformação (Saviani, 2008, p.9). Porquanto, como bem expressa Saviani (1991), é necessário ―tornar o homem cada vez mais capaz de conhecer os elementos de sua situação para intervir nela transformando-a no sentido de ampliação da liberdade, da comunicação e colaboração entre os homens‖ (p.41). Ao agir, o homem é capaz de antecipar idealmente os resultados de suas ações. Em relação a uma ação educativa intencional, a apropriação da cultura produzida ao longo da história é vista com condição necessária ao desenvolvimento humano. 39 Levando em consideração a função social da escola e a concepção de educação expressa nos estudos de Saviani (2008), acreditamos que esta instituição deve proporcionar o acesso ao saber sexual, abordar os assuntos relacionados à sexualidade e a constituição dos gêneros, na medida em que se permita refletir sobre esse conhecimento. Sendo que é evidente o papel da escola na disseminação deste saber desde a Educação Infantil. Conforme Leão (2009), a escola, ao exercer a sua função social, possibilita aos alunos e alunas um ensino de qualidade, o qual preza pelas disciplinas tradicionais, objetivando a formação, informação e reflexão dos discentes, no que se refere ao conhecimento já produzido pela humanidade. ―Dentro disso, a sexualidade se insere, haja vista que ela apresenta uma história a qual está atrelada a própria existência humana‖ (Leão, 2009, p.50). Refletindo acerca deste assunto, Leão (2009) expressa que a sexualidade está vinculada ao saber elaborado pela humanidade historicamente, em seus aspectos fisiológicos, antropológicos, históricos e sociológicos, sendo assim, é função da escola, enquanto importante instância social, transmitir este conhecimento. Para a citada autora, ―o sentido da educação escolar é possibilitar aos alunos a assimilação dos produtos culturais da ação humana, o que subentende abranger a sexualidade, como direito do aluno ter acesso a este saber, e dever da escola o fazer‖ (Leão, 2009, p.90). Todavia, esta estudiosa denuncia que a escola, embasada em padrões culturais que consideram a sexualidade como assunto restrito ao privado, ignora o dever de trabalhar com a Educação Sexual, afirmando que este trabalho não lhe compete. Desse modo, quando se abre para abordar o assunto, o faz pelo viés da repressão, e não da prevenção, deixando de assumir a sua função de agente de reflexão. É importante ressaltar que neste estudo utilizamos o termo Educação Sexual1, ao nos referirmos as possíveis intervenções educacionais na sexualidade. De acordo com Dinis e Asinelli-Luz (2007): Um trabalho de educação sexual significa problematizar a sexualidade, não no sentido de encará-la como problema a ser resolvido, mas de questionar as evidências, apresentar um leque de conhecimentos para que a sexualidade seja compreendida com um aspecto predominantemente histórico-cultural, e para que os discursos normativos que regem as construções de nossas imagens do masculino e do feminino, bem como as diversas imagens de ter prazer com o próprio corpo e/ ou com o corpo do/a outro/a sejam desconstruídos, permitindo novas vivências acerca da sexualidade (p.82). 1 Para mais esclarecimentos acerca das terminologias e conceitos utilizados por diferentes acadêmicos, consultar: Figueiró, M. N. D. (1996). Educação Sexual: problemas de conceituação e terminologias básicas adotadas na produção acadêmico-científica brasileira. 40 Isto posto, Pupo (2007) aponta que é necessário levar para o interior da escola discussões sobre os papéis impostos aos gêneros pela sociedade, para que os indivíduos que dela fazem parte percebam que os comportamentos não são inatas e nem naturais, mas que foram construídas socialmente ao longo dos séculos. Dessa forma, terá a possibilidade de apontar novas direções para romper com as hierarquias e dicotomias entre homens e mulheres. Essa autora pondera ainda, que o fato de a escola não abarcar as diferenças de gênero, corrobora para que persista na propagação dos modelos tradicionais que normalizam as relações entre homens e mulheres. Dessa maneira, defende que através da denúncia das concepções e de atitudes sexistas existentes na sociedade, a instituição escolar pode tomar para si o papel de enfrentar e suscitar mudanças nesses tipos de pensamentos sociais. Destarte, a sexualidade se faz presente no contexto escolar, de modo que esse espaço é atravessado por concepções de masculinidade e feminilidade, não sendo possível que ignorá- las ou negá-las, porquanto, esses fatores remetem à necessidade de abrangência da Educação Sexual. Como bem expressa Figueiró (2009), Educação Sexual tem a ver com o direito de toda pessoa de receber informações sobre o corpo, a sexualidade e o relacionamento sexual e, também, com o direito de ter várias oportunidades para expressar sentimentos, rever seus tabus, aprender, refletir e debater para formar sua própria opinião, seus próprios valores sobre tudo que é ligado ao sexo. (p.163). Ademais, Leão (2012) profere que é preciso que haja a inserção do trabalho de Educação Sexual na escola, bem como a inclusão das questões relativas às relações de gênero, de forma que este trabalho, realizado na escola como espaço profícuo para abranger tais relações, representa um importante e expressivo passo para a concretização de ações objetivas no combate da desinformação, discriminação e das desigualdades de gênero, principalmente, se esta ação educativa formal oportunizar aos alunos e alunas, professores e professoras, um ambiente de problematização e contextualização das práticas consolidadas historicamente, de disciplinamento dos indivíduos. É importante ressaltar que esta educação no contexto escolar diz respeito ao trabalho formal e organizado para a promoção da discussão da sexualidade e das questões de gênero, tendo em vista o trabalho de informar e refletir. Neste sentido, Ribeiro (1990) explicita que a Educação Sexual objetiva dar novos significados às informações e valores que as pessoas vão 41 incorporando ao longo de suas vidas, de modo a auxiliar na formação de opinião e promover mudanças de valores cristalizados. Para Leão (2012), As disparidades existentes nas relações de gênero é um dos fatores que justifica a necessidade da inserção da orientação sexual na escola, sobretudo, porque pode representar um espaço de romper com o binarismo infligido na sociedade quanto ao masculino e o feminino, auxiliando na elaboração das identidades d@s alun@s (p.53). Isto posto, consideramos que a escola deve se conscientizar de sua importância no processo de constituição das identidades, assim, deve estar preparada para abordar a Educação Sexual e, por conseguinte, as questões de gênero, sobretudo porque é um espaço que pode contribuir de modo significativo para mitigar as desigualdades, as normas excludentes e preconceituosas e descontruir os tabus que persistem em nossa sociedade quanto às relações de gênero (Leão, 2012). Porquanto, A possibilidade de vivenciar a diversidade das relações afetivas e sociais provocada pela educação sexual contribui para a compreensão e uma experimentação de novas possibilidades do exercício da alteridade em contextos mais amplos que os familiares, e é dessa forma que ―o indivíduo se humaniza quando a cultura impregna a biologia, e um novo ser, assim redefinido, se eleva como pessoa‖ (Brasil, 1994, p. 11). E essa deve ser, por fim, a principal justificativa para que o tema seja discutido e trabalhado na escola e nos cursos de formação docente (Dinis & Asinelli- Luz, 2007, p.85). Por esse motivo, acreditamos que o trabalho de Educação Sexual deve ser iniciado desde a mais tenra idade, ou seja, desde a Educação Infantil, passando pelas diferentes etapas de ensino até chegar ao ensino superior. Frente ao exposto, no próximo tópico trataremos da importância de se abordar as questões de gênero desde a Educação Infantil, uma vez que se trata de um espaço permeado por relações de gênero e poder. 1.3.1 Gênero, sexualidade e Educação Infantil: articulações necessárias As relações de gênero e poder estão presentes nos processos de socialização de crianças pequenas e são carregadas de estratégias dirigidas ao controle e à normalização dos desejos e das expressões corporais. Desse modo, nas práticas rotineiras da Educação Infantil, nos pequenos gestos, são exercidas formas de controle disciplinar diretamente relacionadas à 42 demarcação das diferenças entre masculino e feminino, bem como ao reforço de características físicas e comportamentos esperados para cada sexo (Finco, 2013b). Corroborando com Finco (2013b), Louro (1997) aponta que a escola, por fazer parte de uma sociedade que discrimina, desempenha um papel importante na construção das identidades sexuais e de gênero, uma vez que produz e reproduz desigualdades de gênero, etnia, raça. Logo, defende que a escola se constitui em um espaço generificado. Acerca da função social da escola, essa estudiosa afirma que o processo de ensino e aprendizagem é atravessado por normas e imposições sutis que legitimam e reiteram a constituição das identidades sexuais e de gênero. O disciplinamento do corpo por esta instituição ocorre de forma discreta e constante, com a finalidade de formar homens e mulheres capazes de conviver em harmonia com o grupo social a que pertencem. Assim, ―pela afirmação ou pelo silenciamento, nos espaços reconhecidos e públicos ou nos cantos escondidos e privados, é exercida uma pedagogia da sexualidade‖ (Louro, 1999, p.31). Nesse sentido, a introjeção de padrões considerados adequados a meninas e meninos por meio de normas, rotinas, usos do tempo e do espaço escolar é vista como algo natural, sendo tão pouco questionada, colaborando para que as práticas e comportamentos sexistas sejam difundidas e cristalizadas no interior das escolas. Em contrapartida, Louro (1997) pontua que devemos ―desconfiar do que é tomado como natural‖ (p.63). E complementa sua afirmação enfatizando que é preciso observar os modos como são construídas e reconstruídas as representações sexuais e de gênero, bem como a posição de normalidade e a posição de diferença, e os significados que lhes são atribuídos. Porquanto, é necessário averiguar a função da educação no processo de ―socialização de meninas e meninos, realizada pela instituição de Educação Infantil e questionar sobre os processos da construção desta diferenciação. É preciso que estejamos atentos em promover uma prática educativa não discriminatória desde a primeira infância‖ (Finco, 2010, p.52). Visto que, desde a mais tenra idade, a criança vivencia as experiências de gênero. Sobre a diferença estabelecida entre feminino e masculino, Louro (2008) destaca que ―não é natural, mas sim naturalizada. A diferença é produzida através de processos discursivos e culturais. A diferença é ensinada‖ (p.22). Desta maneira, é importante ponderar acerca das relações de gênero no contexto da Educação Infantil, uma vez que, este ambiente é marcado pela diversidade de sujeitos com experiências de vida e realidades específicas. A Educação Infantil consiste em um universo com características particulares, voltadas às crianças pequenas. Possui ―uma formatação com espaços, tempos, organizações e práticas 43 construídos no seio das intensas relações entre crianças e entre crianças e adultos‖ (Vianna & Finco, 2009, p.271). Neste ambiente, meninos e meninas passam uma grande quantidade de tempo em contato uns com os/as outros/as, em uma relação singular. Neste espaço da sociedade vivemos as mais distintas relações de poder: gênero, classe, idade e, lógico, étnicas. Ainda estão para serem melhor e mais estudadas e investigadas as relações no contexto da creche onde confrontam-se adultos – entre eles, professor/a, diretora, cozinheira, guarda, pai, mãe, secretário/a de educação, prefeito/a, vereador/a, etc. –; confrontam-se crianças, entre elas: menino, menina, mais velha, mais nova, negra, branca, judia, com necessidades especiais, pobre, rica, de classe média, católica, umbandista, atéia, ―café com leite‖, ―quatro olhos‖, etc); e confrontam-se adultos e crianças – a professora e as meninas, a professora e os meninos, o professor (percentual bastante baixo, mas existente e com tendência a lento crescimento) e os meninos, o professor e as meninas, o professor e a mãe da menina... (Faria, 2006, p.285). Esta etapa marca a primeira experiência discente da criança, bem como o início do seu processo de aprendizagem social, ao conviverem pela primeira vez num grupo social mais amplo, em uma instituição com características distintas das do meio familiar (Vianna & Finco, 2009, Finco, 2010). Sobre a experiência de meninos e meninas na Educação Infantil, Vianna e Finco (2009) afirmam que pode ser considerada como um rito de passagem contemporâneo que antecipa a escolarização, por meio da qual se produzem habilidades. O minucioso processo de feminilização e masculinização dos corpos, presente no controle dos sentimentos, no movimento corporal, no desenvolvimento das habilidades e dos modelos cognitivos de meninos e meninas está relacionado à força das expectativas que nossa sociedade e nossa cultura carregam. Esse processo reflete-se nos tipos de brinquedos que lhes são permitidos e disponibilizados: para que as crianças ―aprendam‖, de maneira muito prazerosa e mascarada, a comportar-se como ―verdadeiros‖ meninos e meninas (pp.272-273). A pré-escola não é um ambiente neutro, na verdade avigora na prática pedagógica as identidades sexuais e de gênero, fazendo com que os/as alunos/as assimilem o que é ser menino e o que é ser menina (Leão, 2012). Em algumas situações a separação entre os gêneros acontece espontaneamente, quando a professora ou professor não reflete sobre sua influência nas relações de meninas e meninos, organizando brincadeiras ou atividades de forma a favorecer o sexismo. Homens e mulheres adultos educam crianças definindo em seus corpos diferenças de gênero. As características físicas e os comportamentos esperados para meninos e meninas são reforçados, às vezes inconscientemente, nos pequenos gestos e práticas do dia-a-dia na Educação Infantil. O que é valorizado para a menina não é, muitas vezes, apreciado para o menino, e vice-versa (Finco, 2010, p.122). 44 Por outro lado, apesar de muitas vezes a prática não ser intencional, não significa que ela seja uma prática neutra, ―é importante ressaltar a necessidade das práticas regidas por uma intencionalidade educativa, visto que a não interferência, ou seja, a neutralidade não garante o favorecimento de algo e/ou de algum propósito, enfim de um objetivo‖ (Sayão, 2003, p.37). Assim, as práticas educativas também produzem e reproduzem as concepções sociais de gênero. Souza, (2006) apresenta diversas práticas educativas adotadas por professoras, observadas no espaço escolar. Deste modo pontua que A educação que ocorre nas instituições escolares contribui para a formação de uma identidade de gênero nas crianças, levando-as a comportarem-se como alunos ou alunas. Na escola, as situações de ensino-aprendizagem, o discurso educacional e a prática pedagógica condicionam as interações que acontecem entre os sexos, modelando perfis sexuais e esculpindo uma mentalidade que atribui características diferenciadas para cada sexo (Souza, 2006, p.22). Ao investigar as relações de gênero em uma escola de Educação Infantil, Finco (2010) aponta que a cultura escolar institui tempo e lugar para as brincadeiras, limitando o brincar e constituindo-o em uma prática educativa. E ressalta que As brincadeiras na educação infantil podem estar servindo, por meio de estratégias sutis, como um recurso para a produção de relações desiguais de gênero. A brincadeira não é vista simplesmente como um contexto no qual a interação ocorre, mas como um fenômeno que tanto produz como é produzido por relações de poder e gênero (Finco, 2010, p.134). A escolha dos brinquedos também perpassa as questões de gênero e são influenciadas pela maneira como os adultos disponibilizam e dirigem os brinquedos às crianças. É muito frequente meninos e meninas, em suas brincadeiras demonstrarem comportamentos não apropriados para seu sexo, o que causa preocupação e dúvidas para os/as profissionais da Educação Infantil (Finco, 2004, 2010). O corpo docente, por sua vez, em determinadas situações, se sente despreparado para lidar com as relações expressas pelas crianças, na maioria das vezes, pelo fato de que não teve uma formação específica para isso. Neste sentido, é necessário por parte do/a professor/a uma compreensão de que é a partir de discursos, atitudes, do dito e não dito que perpassam as relações sociais, que as representações sexuais e de gênero são construídas e reconstruídas. Sendo o seu trabalho de extrema importância nessa construção. É importante ressaltar que tal papel cabe a toda a escola, uma vez que, é responsável pela educação e cuidado diário de seus alunos e alunas. Na concepção de Leão e Ribeiro (2011), 45 [...] A escola, por ser uma das principais Instâncias sociais que a criança permanece, deve contribuir para sobrepujar tais estereótipos. Contudo, muitas vezes ela acaba disseminando-o, sendo que isso ocorre: pelas filas distintas para cada gênero; brinquedos diferentes para os meninos e para as meninas; das cores das portas dos banheiros; pelo tratamento distinto dispensado às crianças de acordo com o gênero ‐ meninas são acalentadas quando choram, já os meninos são censurados ‐ por não dar espaço às perguntas de cunho sexual, entre outros modos (pp.267-268). Dessa forma, o espaço escolar também consiste em um importante meio de promoção da diferença entre meninos e meninas. Finco (2010) ressalta que os banheiros são espaços de simbologias para a investigação das relações de gênero e sexualidade no contexto escolar. ―A arquitetura, o planejamento e os usos dos banheiros sugerem reflexões que articulam gênero, sexualidade, corpo e educação‖ (p.120). De acordo com Leão (2012), ―o ambiente escolar na realidade reforça os estereótipos femininos e masculinos, os quais auxiliam na perpetuação do preconceito, do sexismo e da discriminação na sociedade‖ (p.23). Assim, é imprescindível refletir sobre as práticas e mecanismos presentes na educação de meninos e meninas, adotados para a introjeção de conceitos e modelos relacionados ao gênero, bem como de que forma as diferenças de gênero são inscritas em seus corpos, como normatizam, regulam e controlam seus comportamentos, atitudes, etc. Sobre esta questão, Louro (1997) relata que embora haja abordagens voltadas a um olhar crítico sobre as relações de gênero, alguns/as professores/as ainda atuam com uma expectativa de interesses e desempenhos distintos entre os grupos de alunos/as. Nesta direção, importa olhar para as práticas educativas adotadas por professoras e professores da Educação Infantil. Olhar para elas consiste em repensar o modelo da educação voltada para as crianças de zero a seis anos e analisar os estudos de uma Pedagogia voltada para a Educação Infantil; possibilita a constituição de um espaço de escuta, de respeito às suas especificidades, de valorização da cultura construída pela criança, nas suas diferenças, ouvindo-a, compreendendo-a para garantir-lhe o direito de ser criança (Finco, 2010, p.54). Ademais, conforme explícito por Faria (2006), ―a superação da desigualdade com certeza passa pela educação desde a infância em espaços coletivos na esfera pública convivendo com as diferenças‖ (p.18). 46 2 GÊNERO, DOCÊNCIA E INFÂNCIA Imagem 3. Boneca sereia Iara. Desenho realizado por Vinícius, 4 anos. 47 2 GÊNERO, DOCÊNCIA E INFÂNCIA Nesta seção o nosso principal objetivo consiste em estabelecer uma articulação entre gênero, docência e infância. Para tanto, inicialmente abordamos as questões de gênero envolvendo a docência e o seu processo de feminização. Voltamos o nosso olhar ao fato naturalizado de se vincular a imagem da mulher ao papel de educadora de crianças pequenas, resquício de práticas sociais e culturais construídas ao longo da história. Em seguida, no segundo tópico, discorremos acerca da história da infância e da criança, na qual a figura feminina também aparece relacionada a espaços restritos como o lar e ao cuidado das crianças. Além disso, o resgate histórico proporciona uma compreensão dos fatores que contribuíram para a construção dos conceitos de infância e criança os quais nos pautamos ao longo deste estudo. Desse modo, no terceiro tópico, definimos os conceitos de infância e a criança como uma construção histórica, social e cultural, ou seja, como algo que ultrapassa a concepção de uma fase da vida ou de seu desenvolvimento biológico. Isto posto, nos apoiamos na visão de infância e criança defendida pela Sociologia da Infância, nos ancorando nos estudos de Corsaro (2011) e pelo referencial da Psicologia Histórico-Cultural (Vigotski, 2007), ou seja, da criança enquanto