UNESP – UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DOUTORADO EM ARTES VISUAIS Carolina Peres Imagem-experiência: uma abordagem do processo inventivo em fotografia em diálogo com Gilbert Simondon São Paulo 2020 UNESP – UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DOUTORADO EM ARTES VISUAIS Carolina Peres Imagem-experiência: uma abordagem do processo inventivo em fotografia em diálogo com Gilbert Simondon Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, do Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Artes Visuais sob a orientação da Profa Dra Rosângela da Silva Leote. São Paulo 2020 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio, convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp P437i Peres, Carolina, 1977- Imagem-experiência : uma abordagem do processo inventivo em fotografia em diálogo com Gilbert Simondon / Carolina Peres. - São Paulo, 2020. 212 f. : il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosângela da Silva Leote Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Imagens fotográficas. 2. Fotografia. 3. Individuação. I. Leote, Rosângela da Silva. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 779 (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) Carolina Peres Imagem-experiência: uma abordagem do processo inventivo em fotografia em diálogo com Gilbert Simondon Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, do Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Artes Visuais sob a orientação da Profa Dra Rosângela da Silva Leote. Banca Examinadora: _______________________________________ Profa. Dra. Rosângela da Silva Leote Presidente - Orientadora UNESP / Instituto de Artes ________________________________________ Prof. Dr. Pablo Rodríguez – CONICET ________________________________________ Prof. Dr. Gonzalo Sebastian Aguirre – Universidad de Buenos Aires ________________________________________ Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli – UNESP / Instituto de Artes ________________________________________ Prof. Dr. Fernando Luiz Fogliano – SENAC Data da Defesa: São Paulo, 7 de outubro de 2020. Agradecimentos À Rosângela Leote, pelo acolhimento desta pesquisa, os ensinamentos ao longo do percurso e pela atenção dedicada na orientação. A Pablo Rodríguez pelo generoso compartilhamento de seu conhecimento e pelas contribuições durante a banca de qualificação, as quais refletiram no desenvolvimento desta tese. À Rita Bredariolli, por seu olhar cuidadoso e indicações preciosas na qualificação, que muito ajudaram no encaminhamento de pontos importantes da pesquisa. A Gonzalo Aguirre, pela generosa receptividade e interesse em relação a esta pesquisa e por compartilhar o seu universo filosófico. Aos integrantes da banca pela disponibilidade em participar deste momento. À Lina Marcela Gil e Jorge Montoya, pelas importantes trocas que refletiram significativamente no meu processo. A Juan Manuel Heredia, pela disponibilidade em compartilhar sua pesquisa e abertura a diálogos sobre Simondon e a Thiago Novaes pelos intercâmbios e compartilhamentos. A Lincoln, meu companheiro, pelo apoio incondicional e parceria de vida em todos os momentos desta pesquisa, e à Maria Inês, minha mãe, pelo incentivo a seguir sempre em frente. À Maria Cecília e Luciana Marcassa; à querida amiga Hosana Celeste, pela amizade e trocas ao longo de todo esse tempo. A Tal Isaac Hadad, por compartilhar o processo de preparação de sua obra “Recital para um massagista” e aos participantes das ativações da obra pelas trocas e compartilhamento de suas experiências. Aos colegas do grupo Giip, pelas trocas e aprendizados e aos colegas do grupo cAt, especialmente Milton Sogabe e Fernando Fogliano. Ao PPG Artes da Unesp e aos funcionários do Instituto de Artes da Unesp. Resumo Esta tese busca ampliar a discussão sobre a experiência na invenção de imagens fotográficas, tendo como referência principal a obra do filósofo francês Gilbert Simondon. A pesquisa foi construída de modo transdutivo, em uma elaboração teórico-prática vinculada a um fazer poético, com enfoque no processo. A principal hipótese é a de um entendimento ampliado da noção de imagem em fotografia, que envolve aspectos mentais e concretos e uma relação horizontal da artista com a câmera fotográfica, esta um elemento não restrito à sua utilidade. Tem como base o processo inventivo em arte em analogia com a individuação simondoniana, de onde se ressaltam o movimento e o fluxo do pensamento, como pontos de apoio para a compreensão tanto da discussão sobre a imagem quanto da discussão da teoria do principal autor utilizado nesta pesquisa. A proposição do termo imagem- experiência, vinculado diretamente ao processo inventivo de imagens fotográficas, é sustentado pelas fases do ciclo da imagem de Simondon e utilizado para designar especificamente as imagens mentais existentes em um processo inventivo. O contexto da invenção é amparado pela discussão da técnica e da estética de Simondon, de onde se evidencia a experiência tecnoestética da artista como inventora de novos mundos pelo processo de invenção de imagens fotográficas. Apresenta um relato de uma experiência poética e o ensaio “Atravessamentos”, uma série de imagens cujo processo reverbera as principais questões levantadas ao longo da pesquisa, em um diálogo de reciprocidade entre a teoria e a prática. Palavras-chave: imagem-experiência; processo; individuação; invenção; tecnoestética. Abstract This thesis seeks to expand the discussion about the experience in the invention of photographic images, having as main reference the work of the French philosopher Gilbert Simondon. The research was built in a transductive way, in a theoretical and practical elaboration linked to a poetic practice, focusing on the process. The main hypothesis is that of an expanded understanding of the notion of image in photography, which involves mental and concrete aspects and a horizontal relationship between the artist and the camera as an element not restricted to its usefulness. It is based on the inventive process in art in analogy with the Simondonian individuation, from which the movement and flow of thought are highlighted, as support points for understanding both the discussion about the image and the discussion of the theory of the main author used in this research. The proposition of the term image-experience, directly linked to the inventive process of photographic images, is supported by the phases of Simondon's image cycle and used to specifically designate the existing mental images in an inventive process. The context of the invention is supported by the discussion of Simondon's technique and aesthetics, from which the artist's technoaesthetic experience as an inventor of new worlds is evidenced by the process of inventing photographic images. It presents an account of a poetic experience and the essay “Atravessamentos”, a series of images whose process reverberates the main questions raised during the research, in a reciprocal dialogue between theory and practice. Keywords: image-experience; process; individuation; invention; technoaesthetic. Resumen Esta tesis busca ampliar la discusión sobre la experiencia en la invención de imágenes fotográficas, teniendo como principal referencia la obra del filósofo francés Gilbert Simondon. La investigación se construyó de modo transductivo, en una elaboración teórica y práctica vinculada a una poética, con enfoque en el proceso. La hipótesis principal es una comprensión ampliada de la noción de imagen en la fotografía, que involucra aspectos mentales y concretos y una relación horizontal entre la artista y la cámara, que no se limita a su utilidad. Se basa en el proceso inventivo en el arte en analogía con la individuación simondoniana, de la que se destacan el movimiento y el flujo del pensamiento, como puntos de apoyo para comprender tanto la discusión sobre la imagen como la discusión de la teoría del autor principal utilizado en esta tesis. La proposición del término imagen- experiencia, directamente vinculado al proceso inventivo de imágenes fotográficas, se apoya en las fases del ciclo de la imagen de Simondon y se utiliza para designar específicamente imágenes mentales existentes en un proceso inventivo. El contexto de la invención está sostenido por la discusión de la técnica y la estética de Simondon, poniendo de relieve la experiencia tecnoestética de la artista como inventora de nuevos mundos por el proceso de invención de imágenes fotográficas. Presenta el relato de una experiencia poética y el ensayo “Atravessamentos”, una serie de imágenes cuyo proceso reverbera las principales cuestiones planteadas durante la investigación, en un diálogo de reciprocidad entre teoría y práctica. Palabras clave: imagen-experiencia; proceso; individuación; invención; tecnoestética. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Carolina Peres, Fonte, 2015. Fotografia. p. 14 Figura 2 – Arthur Omar, fotografias feitas a partir de uma reprodução de A garota com o brinco de pérola, 2012. Fonte: OMAR, 2014, p. 45-53. p. 44 Figura 3 – Johannes Vermeer, A garota com o brinco de pérola, 1665, óleo sobre tela, 44 x 39 cm. p. 44 Figura 4 – Waltercio Caldas. Los Velázquez, 1994. Pastel sobre papel, vidro semitransparente e moldura de madeira, 130 x 95 cm. p. 45 Figura 5 – Diego Velázquez, As meninas, 1656, óleo sobre tela, 318 x 276 cm. p. 45 Figura 6 – Relação entre as fases do ciclo da imagem e as fases da imagem-experiência, conforme proposição desta pesquisa. Fonte: Carolina Peres. p. 68 Figura 7 – Esquema que situa a imagem fotográfica concreta em relação ao ciclo da imagem e a invenção. Fonte: Carolina Peres. p. 71 Figura 8 – O ciclo da imagem e a relação com a imagem-experiência e a imagem-invenção, conforme proposição desta pesquisa. Fonte: Carolina Peres. p. 72 Figura 9 – Composição a partir de gráfico de Frederico Morais (1991), sobre o panorama das artes nos séculos XIX e XX, em relação à linha do tempo de Simondon (Fonte: Carolina Peres): essa aproximação oferece um panorama do contexto da arte em relação às principais produções de Gilbert Simondon. Cada publicação foi indicada levando em consideração o período de desenvolvimento de seus cursos e conferências, disponíveis atualmente em formato de livro. Inclui também os principais marcos em relação à invenção da fotografia citados no texto. p. 82 Figura 10 – Clichê para o livro Du mode d’existence des objets techniques (tubo eletrônico). Disponível em: . Acesso em: 23 mai. 2020. p. 87 Figura 11 – Cenas do documentário Simondon du désert. O documentário apresenta entrevistas com diversos estudiosos de Simondon. Os detalhes das imagens referem-se a trechos que permeiam os diálogos onde imagens de fábricas e objetos técnicos são exibidos em um tempo estendido, em diálogo com a própria teoria do autor. p. 88 Figura 12 – Evolução da realidade técnica (elemento, indivíduo e conjunto): esquema comparativo, baseado em Simondon, que mostra a mudança no tipo de relação estabelecida entre o ser humano e sua atividade, seja com uma ferramenta (parte superior) ou com uma máquina (parte inferior). Fonte: Carolina Peres. p. 94 Figura 13 – Câmera Pentax Honeywell, imagem retirada do manual da câmera. p. 99 Figura 14 – Fotografia de Todd Mclellan: câmera Pentax Honeywell desmontada. Disponível em: . Acesso em: 24 mai. 2020. p. 100 Figura 15 – Uma das polaroides de Tarkovsky. p. 105 Figura 16 – Uma câmera Polaroid concentra diversas etapas de um processo fotográfico. Fonte: Carolina Peres. p. 106 Figura 17 – Claudia Andujar, Sem título, 1974, da série Reahu. Galeria Claudia Andujar. Instituto Inhotim, 2015. p. 112 Figura 18 – Relação entre o pensamento de Simondon e leitura feita nesta tese sobre a tecnoestética e o processo inventivo. Fonte: Carolina Peres. p. 141 Figura 19 – Éttiene-Jules Marey, Vol de goéland, 1887. Cronofotografia sobre placa fixa. Paris, Collège de France. p. 145 Figura 20 – Carolina Peres, Fonte, 2015, fotografia. Fonte: arquivo pessoal. p. 152 Figura 21 – Carolina Peres, Movimentos breves, 2017, imagem digital em vídeo feita com câmera de celular. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 19. p. 153 Figura 22 – Carolina Peres, Movimentos breves, 2017, imagem digital em vídeo feita com câmera de celular. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 19. p. 154 Figura 23 – Desenhos e rascunhos como parte do processo. Fonte: arquivo pessoal. p. 155 Figura 24 – Caminhos da construção da tese elaborados em rascunho. Fonte: arquivo pessoal. p. 156 Figura 25 – Tal Isaac Hadad, Recital para um massagista, 2018, performance vocal reunindo um massagista e cantores convidados, realizada todos os dias durante o período da exposição (33ª Bienal de São Paulo), comissionada por Bienal de São Paulo. Foto: Carolina Peres. p. 166 Figura 26 – José Alberto de Almeida, Sem título, s.d., óleo sobre tela, 100 x 80 cm. p. 169 Figura 27 – Sofia Borges, O fulguroso ímpeto de José, 2018, impressão mineral em papel algodão (Obra em fluxo José Alberto de Almeida > Sofia Borges). p. 169 Figura 28 – Tal Isaac Hadad, Recital para um massagista, 2018, performance vocal reunindo um massagista e cantores convidados, realizada todos os dias durante o período da exposição (33ª Bienal de São Paulo), comissionada por Bienal de São Paulo. Foto: Carolina Peres. p. 171 Figura 29 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 176 Figura 30 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 177 Figura 31 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 178 Figura 32 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 179 Figura 33 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 180 Figura 34 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 181 Figura 35 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 182 Figura 36 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 183 Figura 37 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 184 Figura 38 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 185 Figura 39 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 186 Figura 40 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 187 Figura 41 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 188 Figura 42 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 189 Figura 43 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 190 Figura 44 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 191 Figura 45 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 192 Figura 46 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 193 Figura 47 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 194 Figura 48 – Carolina Peres, Atravessamentos, 2018, imagem digital (câmera de celular, sem pós-produção). p. 195 SUMÁRIO Introdução, p. 12 1. O percurso construtivo da invenção em arte e o processo de individuação 1.1 Considerações iniciais sobre a imagem fotográfica, p. 27 1.2 Pensamento processual, p. 30 2. Uma noção ampliada da imagem: imagem-experiência 2.1 Como pensar uma imagem-experiência, p. 53 2.2 A imagem em ciclos, p. 61 3. Arte como verbo: uma experiência tecnoestética 3.1 Sobre a técnica, a fotografia e Simondon, p. 79 3.2 Concretização do objeto técnico, p. 89 3.3 Elemento, indivíduo, conjunto, p. 92 3.4 O objeto técnico “câmera fotográfica”, p. 97 3.5 Artificialização, memória e cultura, p. 116 3.6 Artificializar para artificar, p. 123 4. Sobre uma experiência 4.1 Narrativa de um processo, p. 150 4.2 “Atravessamentos”, p. 175 Considerações finais, p. 196 Referências bibliográficas, p. 202 Anexo I, p. 209 12 INTRODUÇÃO 1 Há que se colocar um início, um meio, um fim, ainda que transitórios, marcos de um ponto específico no tempo e no espaço. O início aqui apresentado é consequência de um fim momentâneo da minha2 pesquisa de mestrado, que já indicava uma possibilidade de reinício: “a experiência não se encerra por aqui, apenas abre portas para um constante recomeço ou mesmo uma continuação.”3 Na referida pesquisa, apresentei uma discussão sobre o dispositivo fotográfico em três 1 Carolina Peres, Sem título, 2016, Fotografia. 2 Esta pesquisa contempla a experiência de processo da autora desta tese. Por esse motivo, a utilização da escrita em primeira pessoa nos trechos em que há uma menção direta à experiência se mostrou mais adequada aos relatos apresentados. Tais trechos encontram-se na introdução e no capítulo quatro. Essa escolha se apoia no entendimento de que a pesquisa em processos e procedimentos artísticos possui suas próprias especificidades que devem ser levadas em conta. Segundo Sandra Rey “é a experiência que autoriza o artista a ter um ponto de vista teórico diferenciado. Para um artista plástico, é como se as palavras estivessem encarnadas no trabalho e no próprio corpo. Suas análises terão esta vivência suplementar: sua confrontação pessoal com o processo de criação” (REY, 1996, p. 86, grifo da autora). 3 PERES, 2015, p. 102. 13 diferentes perspectivas, ou seja, histórica, filosófica e processual, evidenciando-o dentro do meu próprio processo inventivo, uma espécie de corpo técnico presente e fundamental no meu fazer artístico. Esse tema foi um desdobramento de uma inquietação pessoal em relação à câmera fotográfica, um objeto próprio da construção de uma imagem e, frequentemente, colocado em segundo plano nas reflexões mais profundas sobre fotografia. Parte da motivação em relação a esse assunto tinha origem na minha produção fotográfica da época, em que eu utilizava duas câmeras diferentes para a captura de um momento ou situação: a câmera de celular e a câmera DSLR.4 O que ocorria é que eu sempre buscava fotografar um acontecimento com dois dispositivos diferentes, não ao mesmo tempo, mas meu interesse estava nos resultados com essas duas câmeras. Meu olhar se voltou então para a câmera fotográfica e o modo como ela existe em um processo inventivo. Ainda no mestrado, o desenvolvimento de um tipo de pesquisa que aproxima a teoria e a prática foi fundamental para avançar, um meio de me redescobrir pesquisadora e artista e de fortalecer uma produção que se orienta conjuntamente numa espécie de retroalimentação. Uma reflexão que reverberou na produção poética, onde o tema permeado pela ideia de corpo – o meu corpo, o corpo da câmera, o corpo das pessoas nas fotografias – se fez presente no tratamento poético dado às imagens do trabalho “Fonte”5 (Figura 1). Tal trabalho, uma série fotográfica desenvolvida durante o mestrado, evidenciou também a ideia de ciclo, da fonte como um espaço de continuidade e constante nascimento de imagens, mostrando-me algo implícito naquele momento, mas que só com a pesquisa atual essa compreensão pôde vir à tona com mais profundidade. Ou seja, a elaboração cíclica já estava esboçada naquele momento, não apenas no trabalho poético, mas na pesquisa como um todo, e a ideia de processo conduzia um modo de pensar teórico-prático. 4 Sigla em inglês para Digital Single Lens Reflex. 5 As imagens estão disponíveis para consulta na dissertação da autora (PERES, 2015). 14 Figura 1 – Carolina Peres, Fonte, 2015. Fotografia. Ao mesmo tempo, tive um primeiro contato com a obra do filósofo e psicólogo francês Gilbert Simondon (1924-1989) durante o mestrado, autor que conduziu minhas questões a um caminho fértil, ampliando meu modo de ver a câmera fotográfica em um processo inventivo e mostrando vias de compreensão não restritas somente à técnica fotográfica. Sua visão sobre a tecnologia traz uma perspectiva muito mais orgânica do ser vivo em relação ao ser técnico, ao mesmo tempo em que afasta uma abordagem tecnofóbica. Tampouco se trata de um olhar deslumbrado, mas sim um modo de olhar que apresenta uma reflexão integradora da tecnologia com a humanidade. Ao longo do mestrado, pude desenvolver alguns pontos bem específicos da teoria do referido autor, com ênfase em sua abordagem sobre o modo de existência dos objetos técnicos. Caminho esse que se fez em sintonia com o próprio percurso da obra do autor, inicialmente conhecido pela sua filosofia da técnica em seu livro “Du mode d’existence des objets techniques”.6 Trata-se de uma tese complementar de grande importância, escrita para atender a exigência do sistema francês da época, que foi lançada em formato de livro no 6 SIMONDON, 2020b. 15 mesmo ano de sua defesa de doutorado, em 1958, e a primeira que veio ao conhecimento do público. Por esse motivo, Simondon ficou conhecido por muito tempo como o “filósofo da técnica”, apesar de sua obra envolver temas amplos. A tese principal, “L’Individuation à la lumière des notions de forme et d’information”, foi lançada em partes ao longo dos anos, até a sua primeira publicação completa em 2005:7 “L’Individu et sa genèse physico-biologique” em 1964 (primeira parte e início da segunda parte) e “L’Individuation psychique et collective” em 1989 (final da segunda parte).8 Justamente sua tese sobre a individuação é o ponto principal de sua produção e talvez uma espécie de obra fundamental que embasa todos os seus cursos, escritos, conferências, artigos e entrevistas publicados nos últimos anos, os quais compõem a sua obra, e também base para os textos que ainda permanecem inéditos nos dias de hoje.9 Devido ao interesse em relação à sua obra estar em constante crescimento, seja por meio de colóquios, estudos, cursos e pesquisas acadêmicas, publicações póstumas têm sido lançadas ao longo dos últimos anos. Referem-se a textos recuperados de arquivos, entrevistas e cursos dados pelo autor, publicados na forma de livros, a partir do esforço de organização de Nathalie Simondon, filósofa e filha do autor. Tais obras, assim como as de seus principais comentadores, têm sido traduzidas do francês para outros idiomas gradativamente, com destaque para as traduções ao espanhol na Argentina. No Brasil, o livro da individuação10 foi traduzido e lançado recentemente, assim como o livro sobre o modo de existência dos objetos técnicos,11 sendo as únicas obras completas disponíveis em português até o momento. 7 SIMONDON, 2020a. 8 O site organizado por Nathalie Simondon (acesso em: 25 de mai. 2020), fonte destes dados, contém informações biográficas, informações sobre as publicações do autor, além de disponibilizar alguns documentos como manuscritos, ilustrações, fotos e entrevistas. Não é foco desta pesquisa apresentar um histórico detalhado sobre a vida do autor, mas uma breve contextualização se faz importante para que o leitor não iniciado em Simondon possa encontrar alguns dados de referência para a leitura desta tese. Serão pontuados ao longo de todo o texto, na medida em que forem necessárias, informações complementares aos assuntos abordados. Vale observar que um importante trabalho de pesquisa foi desenvolvido por Juan Manuel Heredia (HEREDIA, 2017) onde é possível encontrar uma biografia mais detalhada a respeito do autor e análise mais aprofundada no item “Prolegómenos”; Também está disponível uma interessante análise biográfica no artigo de Vincent Bontems da revista EcoPós (BONTEMS, 2017). 9 É possível saber da existência de tais textos em escritos de comentadores que os referenciam (DOMINGUES, 2015, p. 287). Tratam-se de publicações de terceiros que tiveram acesso a textos inéditos, cujo acesso não foi possível ao longo desta pesquisa. 10 SIMONDON, 2020a. 11 Idem, 2020b. 16 Desse contato inicial com a teoria de Gilbert Simondon, pude perceber a existência de um campo muito mais amplo a ser explorado e, confirmando a fala de Vincent Bontems,12 ainda longe de se esgotar. Ao tomar conhecimento dos outros trabalhos do autor, percebi que havia perspectivas muito férteis em relação à imagem, à imaginação e invenção, à própria tecnologia e, sobretudo, aos seus estudos sobre a individuação, que se mostravam propícios ao desenvolvimento de uma investigação dedicada à imagem fotográfica dentro do campo das artes e dos processos inventivos. Com isso, surgiu o interesse em trabalhar, de modo mais aprofundado, tanto sua abordagem sobre a tecnologia, quanto outros aspectos de sua obra não desenvolvidos na pesquisa de mestrado, e que agora se amplificam nesta tese. Dessa forma, escolhi o trabalho de Simondon como referência principal do projeto de doutorado a fim de me aprofundar em seus conceitos e caminhar pela sua teoria, tendo por finalidade uma leitura muito específica do processo que envolve a invenção de imagens. Uma leitura que contemple a imagem concreta, como uma fotografia, por exemplo, as imagens mentais13 que permeiam um processo artístico antes de sua concretização e o papel da técnica para além de sua utilidade. Minha escolha se deu pela constatação de que sua teoria abre caminhos para uma reflexão mais ampla sobre a imagem fotográfica e pelo fato de não encontrar autores que desenvolvessem especificamente uma abordagem dessa natureza, diretamente relacionada à fotografia, no campo das artes, e aos processos inventivos. Grande parte dos trabalhos sobre a imagem fotográfica em arte se voltam à análise da imagem concretizada em um suporte, seja ele físico ou digital. A teoria do autor oferece um embasamento para construir uma leitura específica sobre a imagem no contexto mencionado. Assim sendo, o enfoque se dá na construção de um pensamento sobre a imagem em sua natureza ampliada, além de sua concretude, inserida em um processo inventivo. Os questionamentos presentes nesta pesquisa encontram em Simondon caminhos para pensar o que são essas imagens que permeiam o processo de invenção de uma fotografia e a relação que possuem com a tecnologia. A ênfase é no processo inventivo da artista, porém, a 12 BONTEMS, 2017, p. 44. 13 Será utilizada nesta tese, exclusivamente, a abordagem de Simondon sobre imagem mental em relação ao ciclo da imagem, a ser explicada e desenvolvida no capítulo dois. 17 imagem fotográfica como resultado desse processo faz parte da reflexão, pois não é possível falar de processo sem considerar a obra como parte dele. A hipótese aqui apresentada é de que é possível estabelecer uma relação entre a teoria de Simondon com o processo inventivo em arte, de modo a ampliar a reflexão acerca da experiência em um fazer artístico que resulta em imagens fotográficas. A utilização da teoria do autor possibilita uma leitura atualizada dos processos em fotografia, fornecendo um embasamento enriquecedor coerente com a imagem produzida na atualidade. Além disso, trata-se de uma contribuição importante ao campo da arte a realização de uma pesquisa que aproxima tais conceitos, a fim de ampliar a discussão do processo inventivo nessa área. Ao mesmo tempo, não se trata de restringir esta pesquisa ao pensamento do autor e a uma proposta de dissecar toda a sua obra buscando relações e origens de seu pensamento. Este seria um trabalho de outra natureza, não menos importante.14 O que proponho nesta investigação é uma leitura sob o ponto de vista de uma artista pesquisadora, em uma interpretação específica que tem como referência principal o fazer artístico em diálogo com a abordagem de Simondon, sem deixar de lado o cuidado que tal teoria solicita de qualquer um que se lança em um caminho como esse. Além disso, trata-se de uma leitura que proponho dentre tantas outras possíveis, sem a pretensão de esgotar o assunto relativo ao trabalho de Simondon em relação à fotografia. Muitos dos trechos da teoria de Simondon aqui usados, foram lidos dentro de uma perspectiva das artes, havendo uma transposição de sua proposta ao processo inventivo de imagens fotográficas. O pensamento do autor é muito propício a esse tipo de empreitada justamente por não se tratar de uma teoria que se solidifica sobre conceitos estáveis, por isso a necessidade de lançar- se na experiência para uma compreensão cuja natureza é da proximidade (entre o fazer e o pensar) e da organicidade. O caminho percorrido na elaboração desta pesquisa demonstrou que o estudo da teoria de Simondon se amplifica justamente no entrecruzamento dos vários temas abordados por ele, que são vinculados e fazem parte de um pensamento cuja base, sobretudo a individuação, é comum. 14 Como exemplo, podemos citar um importante trabalho desenvolvido por Ludovic Duhem (DUHEM, 2008) em sua tese em Filosofia, que aborda o ser pré-individual da obra de arte e o problema da estética em Simondon. 18 Considerando a complexidade de Simondon, busquei uma aproximação com o universo do autor e com pesquisadores que se dedicam a estudar sua obra, de modo a criar espaços de reflexão e de troca. Essa busca se deu em campo, sendo essa uma etapa importante para a construção desta tese. Para isso, conhecer esse contexto foi fundamental para avançar. Anterior ao desenvolvimento desta tese, o encontro “Informação, tecnicidade, individuação: a urgência do pensamento de Gilbert Simondon”, ocorrido em abril de 2012 na cidade de Campinas (UNICAMP), promovido pelo grupo CteMe,15 foi um evento importante e que veio a contribuir como fonte de pesquisa, 16 visto que os vídeos das palestras encontram-se disponíveis em um canal do YouTube. De modo geral, o que pude constatar é que há diversos pesquisadores de áreas distintas que se dedicam a estudar a obra de Simondon no Brasil, aplicando sua teoria aos mais diversos campos, porém com uma atuação mais esparsa, motivo pelo qual eventos dedicados ao autor são importantes para uma aproximação aos diversos contextos de pesquisa. Além disso, pesa o fato da tradução para o português dos livros do autor ser tardia, conforme já mencionado; antes disso, encontrava-se disponível apenas a introdução do livro sobre a individuação, nos “Cadernos de Subjetividade” da PUC,17 e a carta a Jacques Derrida,18 onde o autor discorre sobre a tecnoestética. No entanto, há uma movimentação significativa em torno da obra de Simondon na América Latina, sobretudo na Argentina e Colômbia. A ocorrência de uma série de atividades ao longo dos últimos anos tinha como origem o trabalho de um grupo de pesquisadores na Argentina,19 atualmente denominado “Reles”,20 responsável por 15 Grupo de Pesquisa CTeMe (Conhecimento, Tecnologia e Mercado), com sede no IFCH/UNICAMP desde maio de 2003. É coordenado por Laymert Garcia dos Santos (professor titular do DS/IFCH/UNICAMP), Márcio Barreto (FCA/UNICAMP), Marta M. Kanashiro (Labjor/UNICAMP) e Pedro P. Ferreira (DS/IFCH/UNICAMP). 16 Dados encontrados e acessados via internet, posterior ao acontecimento do evento. Disponível em: . Acesso em: 06 ago. 2020. 17 SIMONDON, 2003. 18 Idem, 1998. 19 Gonzalo Aguirre menciona como se deu a formação deste grupo em seu artigo “Inducación, invención y lectura transindividual: Gilbert Simondon a la luz de una experiencia de lectura grupal” (AGUIRRE, 2016). Além de Aguirre, merece destaque o trabalho do Prof. Dr. Pablo Rodríguez (Universidad de Buenos Aires), responsável pela primeira tradução para o espanhol, junto com Margarita Martínez, do livro “Du mode d’existence des l’objets techniques”, além de ter escrito o prólogo da primeira edição em espanhol de “La individuación a la luz de las nociones de forma y de información” (RODRÍGUEZ, 2009) e o prólogo da primeira edição em espanhol do livro de Muriel Combes sobre Gilbert Simondon, junto com Juan Manuel Heredia, “Simondon: una filosofía de lo transindividual” (COMBES, 2017). Importante mencionar também o trabalho desenvolvido na Colômbia por Jorge Montoya (MONTOYA SANTAMARÍA, 2019), primeiro autor a lançar um livro sobre Simondon na América Latina no ano de 2006 – disponível atualmente em uma nova edição – antes mesmo das traduções dos livros de Simondon em espanhol e Lina Marcela Gil, autora de livros sobre o autor (CONGOTE, 2016; 2019) e tradutora da obra “Sur la psychologie” (SIMONDON, 2019) para o espanhol. 20 Red Latinoamericana de Estudios Simondonianos. 19 disseminar o pensamento do filósofo na América Latina, em estreita conexão com o país de origem de Simondon e seus principais comentadores/pesquisadores. Por esse motivo, o contato com tais pesquisadores – pelas pesquisas de campo que realizei na cidade de Buenos Aires – e a participação nos colóquios ocorridos ao longo desta pesquisa foram fundamentais ao desenvolvimento desta tese, a fim de criar vias de acesso a outros estudiosos de Simondon e conhecer o modo como abordam a obra de tal autor em suas respectivas áreas, constituindo-se uma fonte importante de aprendizado e levantamento de material. Além disso, a pesquisa de campo me levou a compreender que havia uma espécie de rede que envolvia pesquisadores da Argentina, da Colômbia, do Chile, do Brasil, do Paraguai, da França, da Itália,21 que em parte era impulsionada pelo grupo argentino no que diz respeito aos eventos e publicações na América Latina. Ainda que o primeiro evento 22 sobre Simondon na América Latina tenha acontecido na cidade de Campinas, no Brasil, no ano de 2012,23 foi a atuação do grupo da Argentina que movimentou uma série de colóquios posteriores na cidade de Buenos Aires nos anos de 201324 e 2015,25 em 201626 em Santiago, no Chile, dossiês temáticos sobre o autor e a publicação de um livro intitulado “Amar a las máquinas”.27 Ao longo desta pesquisa, ocorreram dois colóquios no Brasil organizados em parceria com o referido grupo, mais especificamente com Rodríguez, dos quais participei como ouvinte, e que se constituíram também importantes como pesquisa de campo: o “III Colóquio Internacional Gilbert Simondon – Individuação e 21 Pablo Rodríguez e Julio Bezerra discorrem sobre esse universo simondoniano no Editorial da Revista Eco- Pós (2017). Ver também Rodríguez (2016b), “La transindividualidad de Simondon: la coyuntura latinoamericana entre la política, la técnica y la afectividad”, onde ele aborda alguns aspectos da “simondialización” e o alcance latinoamericano; e o prefácio, também de Rodríguez, em Simondon (2020b), onde há um panorama do alcance da obra de Simondon, incluindo o contexto francês. 22 Busquei uma aproximação com esse contexto latino-americano sem desconsiderar a existência de outros importantes acontecimentos e movimentação em torno da teoria de Simondon em diversos países de outros continentes. Cabe mencionar também a ocorrência do “Colloque de Cerisy”, ocorrido na França em agosto de 2013, sob a direção de Vincent Bontems. 23 Encontro “Informação, tecnicidade, individuação: a urgência do pensamento de Gilbert Simondon”, ocorrido em abril de 2012, na cidade de Campinas (UNICAMP), promovido pelo grupo CteMe. 24 “Colóquio Internacional Gilbert Simondon: Invitación a un nuevo pensamiento sobre las ciencias y las artes”, ocorrido na cidade de Buenos Aires em abril de 2013. 25 “II Colóquio Internacional Gilbert Simondon. Lo transindividual: técnica | estética | política”, ocorrido na cidade de Buenos Aires em abril de 2015. 26 “Colóquio Internacional Gilbert Simondon: Figuras de lo preindividual”, ocorrido na cidade de Santiago do Chile em novembro de 2016. 27 BLANCO; PARENTE; RODRÍGUEZ; VACCARI, 2015. 20 Inovação”,28 ocorrido no Museu do Amanhã, na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2017, e o “IV Colóquio Internacional Gilbert Simondon – Os sentidos da Individuação”,29 ocorrido na USP, em São Paulo, no ano de 2018. Por fim, o último colóquio ocorrido na cidade de Medellín, Colômbia, em 2019, “IV Colóquio Internacional Gilbert Simondon – Individuación, Formación y Tecnología”, ocasião em que apresentei um trecho desta pesquisa. Ainda assim, a existência dessa rede e de uma série de fontes a respeito do autor não é de fácil conhecimento a pesquisadores no campo das artes. O acesso a todo esse universo de Simondon foi possível após a realização de uma profunda pesquisa em outras áreas do conhecimento, incluindo a pesquisa de campo e as consequentes leituras da obra do autor e de seus comentadores. O fato de eu não ter me restringido apenas às referências bibliográficas de Simondon é porque considerei importante todo o contexto desenvolvido após o fim de sua produção. Muitos autores que vieram posteriormente a se dedicar à sua obra, trouxeram elementos e análises muito significativas à abordagem do autor e constituem referências fundamentais dentro do universo simondoniano. Por outro lado, importante mencionar que, apesar de haver um número crescente de pesquisadores que se voltam à obra de Simondon, há uma diversidade de estudos em distintas áreas do conhecimento, sendo que muitos deles se distanciam da abordagem desta tese. Isso se deve ao fato de ser uma obra que contempla conhecimentos muito abrangentes. Apesar de muitos desses trabalhos serem relevantes, nem todos possuem conexão direta com o tema aqui tratado, motivo pelo qual não são mencionados. No que diz respeito à pesquisa de campo envolvendo a parte prática, houve um encaminhamento para a produção de ensaios fotográficos, visitas a exposições em São Paulo e Buenos Aires, processos criativos coletivos vivenciados nos grupos GIIP30 e cAt31 e acompanhamento do processo de outros artistas. Dos processos 28 Organizado por: Luiz Alberto Oliveira (Museu do Amanhã), Fernanda Bruno (MediaLab.UFRJ), Fernando Fragozo (PPGF/UFRJ), Pablo Rodríguez (UBA, Argentina) e Pedro Ferreira (Unicamp). 29 Organizado por: Profa. Silvana de Souza Ramos (USP), Prof. Pablo Rodríguez (Universidade de Buenos Aires), Maria Fernanda Novo (Doutora UNICAMP) e Lucas Paolo Vilalta (Mestre USP). 30 Grupo de pesquisa GIIP (Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia), grupo certificado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP e pelo Cnpq, desde 2010. Liderado pela Profa. Dra. Rosangela da Silva Leote e pela Profa. Dra. Fernanda Carolina Armando Duarte (vice). 21 coletivos que participei, as obras “Sopro”32 e “Toque”,33 produzidas pelo grupo cAt, contribuíram significativamente para esta pesquisa, pois além da elaboração prática em grupo e todo o rico aprendizado vindo dessa experiência, funcionaram como laboratórios para uma compreensão mais aprofundada sobre alguns aspectos da teoria simondoniana e a natureza dos objetos técnicos. Ainda que não fosse trabalho do grupo o estudo da obra de Simondon, pude fazer individualmente uma relação com os meus estudos sobre o autor34 e compreender ao longo da elaboração dessas obras o significado da interação e interferência em objetos tecnológicos, que, nesses casos, foram desconstruídos pelo grupo. O reaproveitamento de motores de computador e vibradores de celular para fins artísticos adquiriram uma funcionalidade diferente da prevista originalmente; o mesmo ocorreu com a utilização de pastilhas Peltier35 como recurso de elaboração poética através de uma nova configuração; o aprendizado de caminhos para uma autonomia na interação com o objeto técnico, incluindo o uso de soldas, multímetros, a construção de um ladrão de joule, entre outros, são exemplos de uma atividade de criação coletiva em que estes elementos passaram a fazer parte do meu universo e inevitavelmente comecei a refletir sobre as conexões com o pensamento de Simondon. As atividades artísticas desenvolvidas no grupo GIIP contribuíram para esta pesquisa por serem atividades onde também trabalhei coletivamente e pude agregar conhecimento com experiências sobre o fazer artístico. Complementando esta trajetória prática, o acompanhamento do processo de preparação da obra “Recital para um massagista”, do artista francês Tal Isaac Hadad, serviu como uma experiência fundamental para a reflexão de questões presentes nesta tese. Pude observar um processo artístico de outro artista e perceber uma forte conexão com o tema aqui desenvolvido. A ativação da obra ao longo da 33ª Bienal de São Paulo – “Afinidades Afetivas”, dentro do espaço curatorial da artista brasileira Sofia 31 Grupo de pesquisa cAt (ciência/ARTE/tecnologia), grupo certificado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP e pelo Cnpq, desde 2009. Liderado pelo Prof. Dr. Milton Terumitsu Sogabe e pelo Prof. Dr. Fernando Luiz Fogliano (vice). 32 Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2019. 33 Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2019. 34 PERES, 2018, p. 227. 35 Pastilha termoelétrica feita de cerâmica que se baseia no contraste de temperatura para geração de energia. 22 Borges, também fez parte deste estudo, assim como a exploração do contexto da curadoria da artista. Assim, esta tese se apoia sobre uma proposta de leitura da obra de Simondon e um tipo muito específico de fazer acadêmico, o qual conjuga a reflexão teórica com a prática, em um pensamento voltado ao processo. A elaboração para compreender este tipo de abordagem foi se configurando ao longo da pesquisa, sendo necessário estabelecer um modo de trabalho que conduzisse saberes muito diversos em um curso comum: o estudo da imagem, dentro de um escopo da fotografia, sustentada por uma abordagem de processo em arte e o estudo da teoria de Simondon. Uma pergunta se mostrou relevante para delimitar este tratamento: como ler Gilbert Simondon? Isso porque, ao ler este autor, um campo muito vasto se abre e o entusiasmo muitas vezes toma conta. A familiarização com a leitura leva tempo. Consequentemente, a necessidade de um repertório mais amplo de conhecimento para a compreensão de seus conceitos evidencia-se à medida em que há um avanço nos estudos, visto que, no meu caso específico, o campo em que desenvolvo esta pesquisa não se encontra dentro de uma perspectiva da filosofia ou mesmo da psicologia, e sim das artes. Diz respeito ao fato de adentrar no mundo da filosofia sem necessariamente ter familiaridade com diálogos filosóficos implícitos no texto: uma filosofia que evoca este universo de maneira muito particular, muitas vezes fugindo do convencional e de pensamentos estabelecidos pela tradição filosófica. Somado a isso, a necessidade de considerar a abrangência da obra de Simondon e sua própria disponibilidade em abarcar conceitos da física, da biologia, da tecnologia, da cibernética, da psicologia e da própria filosofia para a construção de um pensamento original e pertinente ao contexto em que vivemos. Esta multiplicidade de saberes reverbera inclusive em um interesse amplo, conforme já mencionado, vindo de pesquisadores de áreas diversas, em vias de crescimento. Conforme bem observa Pablo Rodríguez,36 esse interesse encontra sintonia na atualidade com possibilidades de estudo muito amplas, e ganha especial sentido na filosofia contemporânea. 36 “A teoria simondoniana da individuação, sua filosofia da técnica e até seu pensamento sobre a imagem cobre uma realidade vastíssima de realidades e campos. (...) Quase não existe terreno em que o pensamento de Simondon não tenha sido explorado nos últimos 20 anos: da física até a antropologia, da arquitetura até as ciências sociais, da biologia até o teatro, da estética até a engenharia, de correntes filosóficas opostas até a bioarte, Simondon convoca a qualquer ordem de conhecimento e de experimentação” (RODRÍGUEZ, 2019, p. 6, tradução nossa). 23 Do ponto de vista da leitura e a necessidade de abarcar todo esse contexto, fica a constatação de que esse mundo amplo oscila em momentos que por vezes escapa e, na maioria das vezes, acolhe. É como estar constantemente nadando na confluência de dois rios, um familiar e outro desconhecido, mas que, à medida em que me deixo levar nesse trajeto, me sinto em um caminho fluido e que me conduz naturalmente no fluxo das águas. É estar neste entre37 de pensamentos: um mundo permeável. O final da trajetória desses rios, que se unem em algum ponto, é o oceano, um oceano infinito em possibilidades. Em outras palavras, significa ter uma abertura a esta interdisciplinaridade e dialogar com o próprio universo do autor, seguindo com a sensação da não possibilidade de esgotar o conhecimento, de conviver com o pensamento em constante elaboração, postura que provavelmente seja a mais coerente em relação ao que Simondon diz. É muito difícil adentrar no universo de Simondon e não testemunhar nenhuma modificação nos modos de pensar a vida e a própria pesquisa. A menos que a leitura seja superficial e distanciada, do contrário, é inevitável acompanhar as individuações constantes que permeiam esse processo e direcionar a atenção ao próprio fazer. A arte, por sua vez, em sua capacidade de acolhimento de conhecimentos distintos e visões de mundo aparentemente distantes, se contamina e se amplia, afirmando-se em uma existência dinâmica, em constante troca e composição com o universo ao seu redor, sendo capaz de encontrar ressonância em conhecimentos diversos. Consequentemente, a experiência de leitura e a experiência de processo desembocam na invenção de um novo texto: a experiência na escrita. Como falar de imagens mentais relacionadas à experiência? Como falar da experiência sabendo que a experiência em si não encontra equivalente senão nela mesma? Como não deixar que a prática se torne uma ilustração da teoria e a teoria uma ilustração da prática? Para isso, foi necessário buscar uma linguagem que contemplasse essa multiplicidade de saberes permeáveis, que caminham pelos entre lugares, sem no entanto se afastar do universo que é o da arte propriamente dita, campo em que se desenvolve esta tese. No contexto aqui apresentado, o conjunto leitura-experiência- 37 Importante observar que essa característica do entre é evidenciada por Lina Marcela Gil Congote, em sua abordagem sobre o autor no campo da psicologia, como condição primordial para o entendimento de Simondon: “o entre toma uma preponderância por ser um conceito (uma intuição?) sem o qual não poderia compreender-se a obra de Simondon” (CONGOTE, 2016, p. 19, tradução nossa). Essa constatação entra em sintonia com as proposições aqui indicadas, ainda que os contextos sejam diferentes. 24 escrita evoca o todo, onde cada termo se assume como símbolo um do outro, na medida em que ocorrem em tempos diferentes. Importante dizer que esta tese busca compreender o processo inventivo em relação ao ser que conduz esse processo. No entanto, trata-se apenas de um foco de análise que foi aqui delimitado para o estudo proposto, o que não significa considerar que a artista seja dotada de uma capacidade especial, mas sim alguém que tem na elaboração poética sua práxis, e um propósito de promover novas existências pela arte. Ao mesmo tempo, a figura da artista estabelece uma relação simbiótica com a figura da pesquisadora, sendo que em muitos momentos fica difícil delimitar com precisão esses limites (se é que existem de fato). Esse fazer vincula-se a vários pontos da obra de Simondon, nos aspectos físicos, biológicos, psíquicos e coletivos, para compreender um acontecimento específico referente à invenção da imagem fotográfica. Diante desse contexto, a metodologia de pesquisa se apoiou em pesquisa documental, de campo e experimental em uma abordagem teórica e prática; de caráter analógico, é também transdutiva, pois cria bases que se ampliam para a construção do pensamento, sustentadas por um gérmen inicial. Por se tratar de uma linha em processos e procedimentos artísticos, considerei como parte do desenvolvimento a produção de cadernos de estudos, esboços de ideias em papéis, inicialmente voltados ao processo artístico, que acabaram fazendo parte de alguns trechos da tese. No entanto, pouco a pouco esse recurso se mostrou indissociável do estudo teórico e um forte recurso de compreensão e aprofundamento da pesquisa como um todo. Com isso, criei uma espécie de “diário de bordo” não- linear que acompanhou simultaneamente o pensamento prático e teórico, trazendo mais um indício da natureza processual desta pesquisa. As elaborações sobre as leituras passavam por experimentações que visavam levantar possibilidades de entendimento não dissociadas do processo de elaboração prática. A teoria de Simondon se mistura com imagens pessoais de arquivo, imagens coletadas de fontes diversas, experimentação com transparências que criam camadas em sobreposição de texto: um material importante de elaboração teórica e poética. A proposta de desenvolver estudos práticos esteve presente desde o início desta pesquisa. Sendo uma investigação que propôs um diálogo entre a reflexão teórica e o fazer em arte, foi importante também delimitar um modo de trabalho. A escolha 25 se deu pela produção de ensaios como estímulo de um processo. Prestar atenção ao próprio fazer e ao conhecimento em ação é um ponto fundamental no desenvolvimento desta tese, e a pesquisa prática potencializa essa investigação. Tendo em vista estas considerações iniciais, foi necessário escolher alguns pontos da teoria de Simondon para o desenvolvimento desta tese, que serão apresentados ao longo dos capítulos. De modo geral serão construídos em camadas, sendo um a base para a compreensão do seguinte, e assim sucessivamente. No capítulo um, a ênfase será na relação entre o processo inventivo em arte e a individuação. A escolha por iniciar a tese por essa via se dá justamente pelo fato desses pontos se constituírem como base ao tema aqui desenvolvido. A ideia de processo está presente na teoria da individuação assim como no percurso construtivo que leva à invenção de uma obra. As duas vias percorridas, a via teórica e a via prática, são discutidas em função do movimento, característica evidenciada neste capítulo que estará presente em toda a pesquisa. Para que seja possível entender a abordagem sobre imagem que será desenvolvida ao longo desta tese, há uma breve introdução sobre o modo como a fotografia é concebida nesta pesquisa e o vínculo com o processo inventivo, foco da análise aqui apresentada. Desse vínculo, a evidência de um contexto diretamente relacionado à abordagem do processo em arte e alguns dos principais aspectos da teoria da individuação de Simondon, de modo a oferecer elementos à discussão que se seguirá. Assim como a individuação de Gilbert Simondon percorre todo o pensamento do autor, nesse capítulo ela também oferece a base ao que será abordado nos capítulos seguintes. Ainda que o aprofundamento na individuação não seja o assunto principal desta tese, ela permeia toda a discussão que se seguirá nos demais capítulos, sendo que, ao longo de todo o texto será constantemente evocada na medida em que se solicita sua evidência. No capítulo dois, o termo imagem-experiência é proposto em referência ao contexto do processo que antecede a invenção de uma fotografia, com base no ciclo da imagem de Simondon e em estreita relação com as fases desse ciclo, as quais remetem à experiência. O significado do termo, bem como utilizações anteriores a esta tese e o entendimento específico trabalhado nesta pesquisa são desenvolvidos ao longo do capítulo. Envolto em uma discussão que levanta questões sobre como 26 falar de imagens mentais e da própria experiência, apresenta os principais pontos do ciclo da imagem do referido autor em suas três etapas – imagem motora, imagem intra-perceptiva, imagem-lembrança / símbolo – para uma compreensão e encaminhamento da natureza da imagem discutida nesta tese – a imagem- experiência – que, por sua vez, é considerada em três fases: pré-experiência, experiência e pós-experiência. O capítulo três é um desdobramento da discussão iniciada no capítulo dois, e se abre pelo tema da técnica, em um entendimento mais amplo, não restrito à sua utilidade, expondo uma conexão horizontal e indissociável da produção de imagens. Ou seja, a discussão sobre a imagem aqui apresentada está diretamente relacionada aos objetos que em parte são responsáveis pela sua existência, conforme Simondon: o objeto técnico, o objeto estético e o objeto artístico. Dessa relação, se encaminham para uma abordagem tecnoestética de forma a conduzir o leitor a outro ponto importante do capítulo: a fase mágica primitiva em referência ao mesmo autor. Além disso, incorpora a noção de artificação, de Ellen Dissanayake, em relação ao pensamento de Simondon, complementando a discussão desenvolvida neste capítulo. Há uma delimitação em torno da ideia da artista como alguém que viabiliza a existência de mundos e realidades possíveis pelo fazer em arte. Se ampara em toda a discussão desenvolvida até aqui e cria uma via de acesso à reflexão sobre a experiência prática e poética. O capítulo quatro se apoia em todo o percurso teórico desenvolvido para uma narrativa sobre uma experiência, ao mesmo tempo em que evidencia o quanto a elaboração desse processo foi também responsável por toda a trajetória apresentada. É o ponto onde os elementos teóricos trabalhados na tese são retomados pela experiência do meu processo e onde se verifica a permeabilidade entre o desenvolvimento teórico e o prático antes da invenção de imagens concretas. A experiência desse processo resulta no ensaio fotográfico “Atravessamentos”, fruto da investigação prática apresentada, exposto neste capítulo. 27 1. O PERCURSO CONSTRUTIVO DA INVENÇÃO EM ARTE E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO 38 1.1 Considerações iniciais sobre a imagem fotográfica A fotografia na atualidade não se restringe mais a uma concepção reduzida ao puramente fotográfico. Ao longo de sua existência, muitas transformações ocorreram no âmbito da técnica, da linguagem e do tratamento poético, sendo responsáveis por mudar a relação do ser humano com a imagem. As imagens inicialmente estáticas, passaram a assumir propostas e interferências de diversas naturezas. Com a incorporação do vídeo em câmeras digitais e câmeras de celular, por exemplo, novas possibilidades de investigação inventiva ficaram mais acessíveis, e estas novas ferramentas de captura da imagem se somaram às já existentes. Como decorrência desse cenário, a imagem fotográfica se deslocou para um campo híbrido, conforme aponta Antonio Fatorelli, ou seja, um campo onde “as fotografias se expandem, animam-se, comportando configurações imprevistas, em 38 Carolina Peres, Sem título, 2010/2017, Intervenção com desenho em fotografia. 28 manifesta indiferença às convenções tradicionalmente associadas ao meio.”39 As fronteiras entre as linguagens40 (seja fotografia, vídeo, cinema etc.), que antes caracterizavam uma técnica específica, não são mais da ordem da delimitação, mas se constituem de uma porosidade, evidenciando uma flexibilidade maior de estudo e, também, de experimentação artística. Este cenário atual, que contempla o trânsito entre as linguagens não é novo, visto que as contaminações entre os meios fotográficos e cinematográficos sempre existiram. É o que diz Fatorelli sobre esta “influência recíproca entre as imagens fixas e as imagens em movimento”,41 identificada em trabalhos de fotógrafos e cineastas no decorrer da história da fotografia e do cinema desde seus primórdios, onde é possível verificar “uma dinâmica de assimilações e de contágios entre os dispositivos imagéticos que viria a ser posteriormente ampliada pela videoarte e pelos formatos emergentes das imagens digitais”,42 que hoje ecoa em trabalhos de inúmeros artistas situados nessa confluência entre o que é estático e o que está em movimento. As reflexões aqui apresentadas flertam com esse cruzamento de linguagens, sendo consequência, também, de um olhar sempre voltado a investigar a natureza do processo inventivo, em constante movimento e transformação. A elaboração teórica, desenvolvida nesta pesquisa, se aproxima da experiência de processo, evidenciando, assim, a importância da experimentação em função de uma reflexão sobre o fazer em arte. Revelam, além disso, uma inquietação em relação à natureza das imagens, de onde se busca ampliar o olhar de análise para um lugar muito mais vasto que aquele restrito à imagem concreta. As imagens, além de concretas, se constituem em processos mentais que se relacionam diretamente com ações corporais, com a experiência e com a memória, de onde é possível investigar um contexto abrangente e interligado a uma rede complexa, em conexão com o movimento inventivo em que se originam. Diante desse cenário, evidencia-se o olhar voltado ao acontecimento e aos diversos elementos que compõem o processo inventivo que conduz a existência de uma fotografia propriamente dita – entendendo a fotografia como um objeto artístico, para usar um vocabulário mais 39 FATORELLI, 2013, p. 7. 40 Muitos trabalhos na atualidade são difíceis de serem categorizados ao assumirem características híbridas e de mistura de linguagens. 41 FATORELLI, 2013, p. 24. 42 Ibidem, p. 24. 29 próximo de Simondon – em conexão com um pensamento em constante construção e elaboração, permeado também por imagens, que em alguns momentos podem assumir uma força própria nem sempre controlada pelo inventor. Tendo em vista este contexto, a imagem fotográfica é aqui contemplada como um tipo de imagem. De modo geral, quando se fala de uma fotografia, a abordagem se dá em relação a uma imagem concreta, acabada e distanciada da experiência de um processo inventivo de quem a produziu. Esse pensamento é pertinente e pode ser utilizado para uma análise específica sobre um determinado trabalho artístico ou mesmo sobre o meio e o contexto. Muitos autores se dedicaram a escrever sobre a natureza da imagem fotográfica, como Laura Gonzáles Flores,43 por exemplo, que problematiza as diversas definições e entendimentos sobre a fotografia num contexto bem amplo, os quais revelam modos de abordagem que se modificam ao longo do tempo por estarem vinculados, cada um, às questões de uma época específica. De modo geral, dirigem-se à fotografia como um objeto a ser analisado. E, de fato, no momento que uma obra de arte ganha existência, seja ela uma fotografia ou outra linguagem artística, a tendência é que seja analisada como um objeto, ainda que em conexão com seu inventor em função da autoria, mas não necessariamente vinculada ao processo que a gerou. Simondon menciona o desprendimento do objeto em relação ao seu inventor como uma consequência natural e necessária, um ponto importante de sua teoria sobre a invenção. Para ele, para que se complete um processo de invenção de maneira formal, é necessário que haja a produção de um objeto ou obra passível de ser desvinculada do sujeito que a inventou e que possa ser “posta em comum”.44 Por objeto inventado, o autor entende como todos os objetos produzidos em domínios diversos, enfatizando os objetos no âmbito da técnica e no das artes. A participação cumulativa, ou seja, todas as interações e informações posteriores que se agregam ao objeto, ocorre justamente por haver uma inserção em um contexto que o acolhe e o compõe. O objeto criado é precisamente um elemento do real organizado como destacável, porque foi produzido segundo um código contido em uma cultura que permite utilizá-lo longe do lugar e do tempo de sua criação.45 43 FLORES, 2011. 44 SIMONDON, 2008, p. 163, tradução nossa. 45 Ibidem, p. 164. 30 Esse objeto pode ser uma fotografia que, depois de inventada, segue o seu caminho conquistando um lugar na cultura, assumindo outros significados e, muitas vezes, passando por transformações. Perpetua um pensamento e também abre caminhos para novas associações. Essa é uma etapa posterior à sua invenção, há que se dizer, uma etapa que pode ser compreendida como a perpetuação da “vida” nas suas mais variadas manifestações. Não à toa, Simondon cita na sequência o poeta Horácio, “non omnis moriar”, ou “não morrerei por inteiro”, 46 indicando a permanência de uma intenção humana na existência de um objeto, ou, em outras palavras, um desejo do inventor de produzir algo de si que permaneça neste mundo, a amplificação da existência do ser humano em um objeto. Porém, um objeto inventado nunca se limitará aos domínios de seu inventor. No caso da fotografia como obra artística, por exemplo, ela estará sempre aberta a novas leituras, interferências e diálogos, seja por meio de estudos de outros artistas, pesquisadores e críticos de arte, ou mesmo pela interação com o público. Contudo, até uma fotografia ser inventada, há um caminho anterior que evidencia muito das etapas do processo inventivo e o modo de construção de um projeto poético de uma obra. Nessa perspectiva, o olhar voltado ao processo permite um acesso inicial ao tema da imagem fotográfica e o contexto que a origina, ponto principal desta tese, dentro de um campo que a contém: o da arte propriamente dita. 1.2 Pensamento processual47 Muriel Combes, em seu livro sobre o filósofo francês Gilbert Simondon, afirma que, “para compreender a individuação, é preciso voltar-se ao processo, dentro do qual um princípio pode ser não só posto em prática senão também constituído.”48 Partindo dessa observação, e, na tentativa de compreender essa operação desde o campo das artes, surgem as seguintes perguntas: é possível estabelecer um paralelo entre a ideia de processo presente na individuação e o processo de invenção em arte? Ou, ainda, podemos conduzir um pensamento em que a arte seja 46 Ibidem, grifo do autor. 47 A discussão voltada ao processo, no caso desta pesquisa, refere-se ao processo para invenção de uma obra de arte, diferente das obras em que o resultado é o próprio processo. Isso pode ocorrer, porém, não é este o foco desta tese. O que se busca aqui é destacar as nuances de um processo que são tão importantes quanto a obra. A sequência da tese é toda baseada nessa proposta, seja em relação à imagem ou em relação à técnica e à estética. 48 COMBES, 2017, p. 27, tradução nossa. 31 tratada como uma individuação? Essa perspectiva e primeiro ponto aqui abordado se amplifica nas diversas possibilidades de individuação que Simondon apresenta em sua tese, seja ela física, biológica, psíquica e coletiva, e que aqui ecoa tanto no processo inventivo da artista49 quanto nos objetos que ela produz. Para o autor, um objeto tem o seu processo de individuação, assim como tem o vivente50. Ainda que não do mesmo modo – a individuação desse objeto é mais simples e finita e a do vivente não cessa enquanto houver vida – as individuações estão presentes em diversos domínios. O reconhecimento de um caráter inventivo na teoria simondoniana abre caminhos para identificar nos processos artísticos vias de acesso a pontos importantes dessa teoria. Considerando o contexto desta tese, há um entendimento de que a prática em arte deve ser pensada em conjunto com a reflexão teórica. Convém destacar também uma questão importante, presente nas pesquisas acadêmicas voltadas ao processo, que se leva em consideração nesta tese: existe uma linha tênue entre a articulação teórica e a prática em arte, a qual deve ser permeável a um diálogo constante. Além disso, a prática não assume a função de uma demonstração da teoria, pois os potenciais de análise seriam diminuídos, quando, ao contrário, eles nunca se esgotam. Em contrapartida, a teoria também não deve ser utilizada como modelo classificatório para o que se faz na prática, senão para construir bases importantes para uma evolução do pensamento. Esses princípios são relevantes e se fazem presentes na discussão aqui exposta, motivo pelo qual devem sempre ser 49 Por se tratar de uma pesquisa teórico-prática que considera a experiência da autora como base para a reflexão desta tese, utilizaremos a palavra artista no feminino, em referência a esta prática. 50 Nota sobre as traduções de Simondon: utiliza-se nesta tese as palavras vivente e vivo, ambas “vivant” em francês, de acordo com o uso de Simondon, com base nas traduções disponíveis em português. Nos textos do autor há essas duas possibilidades de tradução e referem-se a particularidades da abordagem de Simondon sobre a individuação. Não serão aprofundadas aqui para não incorrer em uma simplificação de um pensamento demasiado complexo, visto que não é o foco desta tese. De modo geral, é importante observar que a escrita de Simondon indica características de seu pensamento, possuindo também um caráter processual. De acordo com Combes, Simondon buscou um jeito próprio de indicar a processualidade, já que no francês não há modos de conjugação que indiquem uma ação em acontecimento – “como a forma inglesa “ing” que indica uma ação ‘em trânsito’ de cumprir-se” (COMBES, 2017, p. 27, grifo da autora, tradução nossa) –, levando-o a inventar um estilo próprio “para introduzir o dinamismo no pensamento” (Ibidem). Por esse motivo que nos textos do autor há um uso frequente de frases curtas unidas por ponto e vírgula, estilo adotado por Combes também. Sobre esse assunto, ver comentário de Thomas LaMarre (2019). A escrita de Simondon possui sutilezas que, ao ser traduzida para outras línguas, sofre modificações. Cada tradutor estabelece um critério, sendo importante, em cada caso, notas explicativas. É o caso das palavras “relation” e “rapport”, que possuem também usos específicos em Simondon, sendo traduzidas no português como “relação” e “nexo”, conforme especificação do tradutor (ver SIMONDON, 2020a, p. 7). Já na versão em português do livro sobre o modo de existência dos objetos técnicos (SIMONDON, 2020b), foi verificado nesta pesquisa que o ponto e vírgula foi substituído por ponto final em muitos casos, sem um esclarecimento acerca da tradução. No caso de Simondon, trata-se de uma mudança significativa, visto que tal pontuação faz parte do seu estilo de escrita, conforme mencionado acima. 32 lembrados. Isto se deve ao fato de que a arte e, mais especificamente, os processos e procedimentos artísticos situam-se num campo movediço, repleto de possibilidades reflexivas e em constante transformação. No entanto, a busca por particularidades acerca desse universo não deve restringí-lo. Uma teoria que dialogue com essa postura sempre se faz necessária, e, de fato, há várias abordagens e teóricos que trabalham conteúdos relacionados ao processo inventivo. A obra de Simondon contribui de maneira fundamental para ampliar as perspectivas investigativas nas artes e nos processos de invenção. Assim, falar sobre o processo inventivo em arte e o processo de individuação de Simondon não significa fazer uma comparação como tal e qual, muito menos uma classificação. Mesmo porque essa postura estaria no sentido contrário à própria ideia de Simondon, quem elabora uma teoria onde a individuação não tem coerência se for tratada como um modelo rígido e delimitado. Desse modo, esta pesquisa se sustenta na ideia de analogia pela identidade das relações operatórias, 51 ou seja, a operação da individuação e a operação do processo inventivo, para a construção desse diálogo.52 Para Simondon, somente será possível captar a individuação “pela individuação do conhecimento”,53 e, por esse motivo, há uma maior coerência se estimularmos o pensamento em direção às ações de um processo. É do próprio significado da palavra processo que vem à tona a ideia de ação, de dinamismo, de movimento, sendo justamente esse o entendimento que mais fortalece a proposta de Simondon. Esse viés sobre a individuação é enfatizado por Gonzalo Aguirre, quem diz que “só se pode participar dela prestando atenção à individuação do pensamento, a qual seria realmente análoga à individuação de qualquer outro ser distinto do pensamento”.54 A teoria materializada em um livro oferece apenas uma ideia da individuação, é o conhecimento em ação que mais se aproxima da individuação propriamente dita, pois para conhecê-la é preciso percebê-la em seu acontecimento. Podemos constatar isso quando Simondon diz: “não podemos, no sentido habitual do termo, conhecer a individuação; podemos 51 SIMONDON, 2020a, p. 563. 52 Simondon utiliza como referência o método analógico empregado por Platão que se baseia em “transportar uma operação de pensamento aprendida e experimentada sobre uma estrutura particular conhecida (por exemplo, a que serve para definir o pescador de linha no Sofista) a outra estrutura particular desconhecida e que é objeto de pesquisa (a estrutura do sofista no Sofista)” (SIMONDON, 2020a, p.564, grifo do autor). Significa que a analogia se dá pela identidade das operações e não pela estrutura dos termos. 53 Ibidem, p. 35, grifo do autor. 54 AGUIRRE, 2015, p. 179, tradução nossa. 33 somente individuar, individuar-nos e individuar em nós”.55 Pascal Chabot evidencia essa vertente de Simondon de uma maneira muito clara, onde é possível identificar o perfil de um filósofo que, não à toa, tem alcançado um reconhecimento justamente por apresentar um diálogo apropriado ao contexto em que vivemos, às incertezas e às contradições da contemporaneidade: Simondon buscou uma filosofia que pudesse considerar a evolução. Uma filosofia que fosse flexível e móvel, como o processo do próprio devir; uma filosofia que seguisse a gênese das coisas. Ele tinha aversão a princípios: leis fixas, fundamentais. A evolução não segue um curso predeterminado; é um processo. A investigação filosófica do processo do devir requer uma certa modéstia. É relativamente fácil falar de princípios, os quais são estáveis e bem definidos, mas descrever um processo de evolução demanda a flexibilidade de um contorcionista. Processos de evolução desafiam rótulos linguísticos. (...) Simondon está mais interessado nesse processo transformativo que em identidades nominais. Ele é um filósofo de gênese. Em cada ordem de realidade, ele desafia noções de identidade e substância. Ele apresenta uma “doutrina” baseada em uma ideia: o indivíduo não é uma substância, mas o resultado de um processo de individuação.56 Essa imagem da “flexibilidade de um contorcionista” é muito interessante para pensar uma característica de elasticidade, onde é possível captar nuances não estáticas do processo e de uma teoria que não se guia por um pensamento categorizado. Revela também que há que se considerar uma maleabilidade em estabelecer relações de algo em pleno acontecimento, ou seja, o processo de individuação. Nesse mesmo raciocínio, o que se sustenta nesta tese é que o processo inventivo em arte também assume essa característica, de onde não se apreende nada que seja estático, principalmente se a própria artista se encontra envolvida em um fazer artístico e busca compreender reflexivamente sua produção, sem o distanciamento de sua vivência em curso. Da mesma forma, a compreensão da teoria de Simondon requer uma postura flexível, uma vez que ele questiona diversos princípios filosóficos até então tidos como referência norteadora. 55 SIMONDON, 2020a, p. 35, grifo do autor. 56 CHABOT, 2013, p. 73, grifo do autor, tradução nossa. 34 De uma maneira mais ampla, e que soa como uma reverberação do que se apresenta aqui, este encaminhamento indica uma possível aproximação ao que diz Pablo Rodríguez 57 no prólogo da primeira edição do livro de Simondon em espanhol, “La individuación a la luz de las nociones de forma y de información”. Em sua análise, ele indica que Simondon se lança em uma zona obscura do pensamento ocidental, através de uma série de bifurcações. Destas bifurcações, uma em particular dialoga com a reflexão aqui apresentada, ou seja, aquela em que ele especifica que corresponde à imagem do pensamento, que se torna, um pensamento sem imagem. Segundo ele, “pensar é estar atento ao devir, para o qual não existe imagem.”58 E o devir, para Simondon, “é dimensão do ser, modo de resolução de uma incompatibilidade inicial rica em potenciais” 59 que se faz presente no processo de individuação. Retomando Rodríguez, O pensamento deve ser fiel a esse devir e captar o movimento não de modo objetivo, para dizer a verdade do que ocorre, senão como simples participação no que o mundo é, e não no que necessitamos que seja. E isto não deveria ser entendido como um etéreo “deixar- se fluir”, senão exatamente o contrário, como aquele que funde pensamento e ação. Colocar-se fora do devir para descrevê-lo é perder a única característica do devir que merece ser descrita. Interpretar, ao contrário, que o devir é uma corrente na qual não intervém vontade alguma é ingênuo e estéril. Portanto, mais que falar do devir, temos que ser capazes de um pensamento do devir, ou de um devir pensante. Assim, liberado da imposição de uma autoimagem, o pensamento se volta contemporâneo de seu próprio movimento.60 A aproximação à reflexão de Rodríguez se dá justamente por encontrar ressonância nesta característica de elasticidade, movimento e do reconhecimento de uma postura do estar dentro de um processo atentando ao devir. É deste lugar que se investiga esta abordagem processual, evitando qualquer tipo de classificação ou hierarquia. Mais do que buscar a descrição de um movimento que acontece na vida em suas diversas temporalidades, a atenção deve ser direcionada a esse pensamento em fluxo em suas diversas camadas. 57 RODRÍGUEZ, 2009. 58 Ibidem, p. 14, tradução nossa. 59 SIMONDON, 2020a, p. 17. 60 RODRÍGUEZ, 2009, p. 14, grifo do autor, itálico nosso, tradução nossa. 35 A individuação pensada da maneira como propõe Simondon, só foi possível depois do conhecimento da metaestabilidade, 61 termo que possui origem na termodinâmica e “define um sistema não com base em sua ‘forma’ estável, mas em relação à energia potencial envolvida em seu equilíbrio precário mas ainda duradouro.”62 Até então, o que se conhecia era o equilíbrio estável, no qual não existe o devir por conter um nível de energia potencial muito baixo. Essa influência de um determinado tipo de equilíbrio na produção de conhecimento teórico é apontada por Liliana da Escóssia como um fator importante no estabelecimento de um olhar voltado ao processo, pois todas as teorias que partem da noção de equilíbrio estável não conseguem lidar de maneira processual com a questão da relação forma-matéria, todo-parte, pois subtraem das relações justamente a sua operatividade, ou seja, sua capacidade de acionar regimes e trocas significativas de informações que caracterizam os processos de individuação.63 Ampliando esse entendimento, Muriel Combes64 esclarece que Simondon se vale, assim, de noções da termodinâmica para desenvolver um pensamento sobre o ser com maior clareza e precisão. E o ser, para Simondon, é um ser de fases, que tem no seu pré-individual uma energia potencial que pode despertar o processo de individuação. Assim, o autor entende que esse ser se compõe do pré-individual, do individual e do transindividual, com características bem específicas em cada fase. Segundo Vincent Bontems, podem ser compreendidas desse modo: a fase pré-individual – a saber, seu vínculo (emocional) com sua natureza viva –, a fase individual – sua unidade psicossomática – e a fase transindividual, com a qual seus pensamentos e ações se integram ao âmago da cultura.65 O ser não é sinônimo de indivíduo, não se trata disso, visto que “a unidade e a identidade só se aplicam a uma das fases do ser, posterior à operação de 61 Segundo Simondon, “os Antigos só conheciam a instabilidade e a estabilidade, o movimento e o repouso, não conheciam clara e objetivamente a metaestabilidade” (SIMONDON, 2020a, p. 18), motivo pelo qual o autor menciona que essa noção não poderia ser vinculada à individuação anteriormente ao conhecimento da metaestabilidade. 62 BARDIN, 2015, p. 5, grifo do autor, tradução nossa. 63 ESCÓSSIA, 2012, p. 24. 64 COMBES, 2017, p. 28. 65 BONTEMS, 2017, p. 34. 36 individuação”.66 O que Simondon diz é que o ser é “mais que unidade e mais que identidade”,67 ele contém potencialidades, “porque tudo o que ele é existe como uma reserva de devir”68 e por isso ele sempre está em excesso em relação a si mesmo. Desde um enfoque baseado em uma ontogênese,69 que privilegia um olhar em relação ao ser em desenvolvimento enquanto espécie, associado ao seu devir, a energia potencial do ser pré-individual, em sua metaestabilidade, indica potencialidades de transformação desse ser nas fases subsequentes, em um processo contínuo. De um sistema físico se diz que está em equilíbrio metaestável (ou falso equilíbrio) quando a menor modificação dos parâmetros do sistema (pressão, temperatura, etc.) basta para romper tal equilíbrio.70 A metaestabilidade torna-se, assim, apropriada para pensar a ideia de movimento aqui discutida, pois é justamente nessa noção onde se convergem “a noção de energia potencial de um sistema, a noção de ordem e a de aumento da entropia, a noção de informação de um sistema.” 71 É da termodinâmica também que Simondon se apropria da noção de defasagem, a qual designa “a mudança de estado de um sistema”72 e que “se converte, na filosofia de Simondon, no nome do devir.”73 Ao considerar o devir como dimensão do ser, Simondon aponta que o ser possui uma capacidade de “se defasar relativamente a si mesmo, de se resolver enquanto se defasa”,74 indicando um sistema tenso. Tem-se aqui um processo pensado em sua mobilidade, onde se acercam noções que parecem estar em um trânsito constante. Tais noções não se restringem aos seres de maneira isolada, ao contrário, revelam uma conexão com o coletivo. Segundo o autor, 66 SIMONDON, 2020a, p. 17. 67 Ibidem, p. 19. 68 COMBES, 2017, p. 28, tradução nossa. 69 “A palavra ontogênese ganha todo o seu sentido se, em vez de lhe concedermos o sentido, restrito e derivado, de ‘gênese do indivíduo’ (em oposição a uma gênese mais vasta, por exemplo, a da espécie), fizermos com que ela designe o caráter de devir do ser, aquilo por que o ser devém enquanto é, como ser. A oposição do ser e do devir só pode ser válida no interior de certa doutrina que supõe que o próprio modelo do ser é a substância.” (SIMONDON, 2020a, p. 16, grifo do autor). 70 COMBES, 2017, p. 28, tradução nossa. 71 SIMONDON, 2020a, p. 18. 72 COMBES, 2017, p. 29, tradução nossa. 73 Ibidem. 74 SIMONDON, 2020a, p. 16. 37 É preciso que o ser possa apelar, nele e fora dele, a uma realidade ainda não individuada: essa realidade é o que ele contém de informação relativa a um real pré-individual: é essa carga que é o princípio do transindividual; ela comunica diretamente com as outras realidades pré-individuais contidas nos outros indivíduos, como as malhas de uma rede comunicam umas com as outras, cada uma se ultrapassando na malha seguinte. Participando de uma realidade ativa, na qual ele é apenas uma malha, o ser individuado age no coletivo: a ação é essa troca em rede entre os indivíduos de um coletivo, troca que cria a ressonância interna do sistema assim formado. O grupo pode ser considerado como substância relativamente ao indivíduo, mas de um jeito inexato. Com efeito, o grupo é alcançado a partir da carga de realidade pré-individual de cada um dos indivíduos agrupados; não são os indivíduos que o grupo incorpora diretamente, mas suas cargas de realidade pré- individual: é por isso, e não enquanto indivíduos individuados, que os seres são compreendidos na relação transindividual.75 Dado que a individuação simondoniana76 considera os seres em seus modos de existência, é natural identificar em diversas situações o processo em pleno acontecimento. Não seria diferente nas artes, motivo pelo qual se considera importante investigar essa aproximação. Com isso, verifica-se uma analogia que permite estabelecer uma relação entre ambas operações, de onde é possível constatar que o processo inventivo se trata de uma individuação.77 O movimento, por sua vez, está atrelado a esses pensamentos aqui apresentados, onde o caminho se faz no sentido dessa fusão do pensamento à ação, como bem observou Rodríguez. 78 Percebe-se que, do mesmo modo, esse aspecto é essencial à abordagem sobre o processo inventivo em arte, sendo possível uma aproximação ao que evidencia Cecilia Salles em seus estudos sobre processos de criação, “uma perspectiva processual que se ocupa dos fenômenos em sua mobilidade”.79 Salles apresenta um olhar sobre a arte que, da mesma forma, não é estático, ou seja, necessita de uma atenção voltada ao acontecimento em seu fluxo. 75 Ibidem, p. 327. 76 Importante observar que a individuação de Simondon assume característica específicas que diferem da abordagem de outros autores que tratam do assunto. 77 Aqui é importante considerar a análise de Muriel Combes sobre a teoria de Simondon e o conceito de analogia. Segundo a autora, “tratamos sempre com casos de individuação singulares, o qual implica a tarefa de uma teoria global da individuação. A solução para sair desta dificuldade consiste em constituir um paradigma.” (COMBES, 2017, p. 39, grifo da autora, tradução nossa). A questão se abre para o paradigma físico, onde o pensamento solicitado é transdutivo, de onde se transporta a operação para outros domínios. 78 RODRÍGUEZ, 2009, p. 14. 79 SALLES, 2006, p. 169. 38 Cabe lembrar um aspecto importante em relação ao contexto apresentado, isto é, a menção à palavra arte e ao campo ao qual ela pertence expõe um universo muito vasto e fértil, um lugar onde as possibilidades de reflexão são amplas e inesgotáveis, sujeitas a distintos pontos de vista. A delimitação de uma análise onde a obra de arte é o ponto de partida estabelece um tipo de abordagem que pode ser a obra a partir de seu contexto histórico ou suas características particulares enquanto objeto. Esse modo de pensar a obra de arte pressupõe um distanciamento, um olhar de fora que considera preferencialmente a obra de arte como algo finalizado. Se, por um lado, esta escolha pode ser interessante para uma compreensão de um contexto ou de certas características específicas do trabalho artístico, por outro, pode ser um tanto limitada por não evidenciar a complexidade de um processo que levou à sua invenção, mostrando-se um caminho perigoso se vinculada a interpretações muito rígidas, em consonância com a própria ideia de acabamento que diminui a potência da obra em si. Consequentemente, o mesmo se dá com uma imagem fotográfica, que carrega em sua existência acontecimentos anteriores fundamentais para sua constituição como imagem concreta. Desse modo, a especificação desse contexto revela distintas possibilidades de encaminhamento de uma pesquisa no campo das artes, por isso a relevância em compreender suas especificidades. Segundo Sandra Rey, a pesquisa em Poéticas Visuais pressupõe parâmetros metodológicos que se diferenciam não só da pesquisa científica, ou da pesquisa na área social, como até mesmo da pesquisa sobre arte, pensada como produto final. A pesquisa em Poéticas Visuais constitui-se numa modalidade específica de pesquisa com particularidades muito próprias ao seu próprio campo. A pesquisa em arte vai encontrar seu respaldo teórico na poïetica, que propõe-se como uma ciência e filosofia da criação, levando em conta as condutas que instauram a obra. 80 Torna-se inevitável aqui uma aproximação dessa ideia de uma obra acabada à crítica que Simondon faz ao modelo substancialista, o qual considera a realidade do ser como um indivíduo fechado, como uma unidade, e ao modelo hilemórfico,81 80 REY, 1996, p. 83. 81 O hilemorfismo, teoria de origem aristotélica, vem de uma palavra composta pela junção de hylê (matéria) e morphê (forma), que concebe o ser como a junção entre forma e matéria. Nessa concepção, a forma age de modo a determinar a essência de uma matéria passiva a este controle. 39 onde o indivíduo é gerado pela união de uma forma e uma matéria.82 O grande erro, segundo Simondon, tanto no modelo substancialista quanto no hilemórfico, é pensar a individuação depois de um indivíduo já constituído, quando, ao contrário, devemos “conhecer o indivíduo pela individuação muito mais do que a individuação a partir do indivíduo”.83 Combes faz uma observação importante em relação à escolha de Simondon pelas palavras “pela” e “a partir de”, uma oposição “que expressa, desde um ponto de vista lexical toda a distância que separa um pensamento processual de um pensamento do fundamento”. 84 Deste modo, a relação estabelecida nesta tese entre o processo da artista e a obra de arte é direta e se aproxima de uma discussão que não considera a obra como um objeto único, de onde seriam evidenciados estudos comunicativos. 85 A noção da obra como objeto único é restritiva no contexto da arte na atualidade, tanto em relação ao objeto artístico quanto ao artista inventor. Considerando a obra também em sua própria existência, não seria adequado caracterizá-la com base no modelo substancialista ou no modelo hilemórfico, seja como objeto acabado e sacralizado ou como resultado do encontro de forma e matéria, de onde é pensada sua individuação. Ainda que seja diverso o tratamento dado a estes dois termos,86 vale destacar a ideia de junção, presente na origem da história da estética: “a forma se acrescenta ao conteúdo, vindo-lhe de fora e, por isso, permanecendo-lhe exterior”.87 Para estar em sintonia com a abordagem de Simondon, é necessário compreender que esse pensamento certamente carrega resquícios de um pensamento substancialista e hilemórfico. E pontos como este merecem ser esclarecidos para uma melhor compreensão do pensamento de Simondon. Um exemplo interessante é o longo trecho em que Simondon descreve minuciosamente o percurso da argila transformando-se em tijolo. 88 O que ele chama de operação técnica de aquisição da forma não se define simplesmente pelo encontro da forma com a matéria, estes são apenas dois pontos de uma operação 82 SIMONDON, 2020a, p. 13. 83 Ibidem, p. 16, grifo do autor. 84 COMBES, 2017, p. 27, tradução nossa. 85 SALLES, 2006, p. 13. 86 PAREYSON, 1997, p. 55. 87 Ibidem, p. 56. 88 SIMONDON, 2020a, p. 40. 40 muito mais extensa, ou seja, um processo, que une duas realidades de domínios diferentes. Em seu exemplo, o preparo da argila e a construção do molde dependem de uma mediação. Há uma cadeia ampla que envolve etapas desde a preparação da matéria bruta argila, sua retirada do pântano, considerando o exemplo de Simondon, bem como o trabalho para que adquira consistência, e a construção do molde para que a argila adquira uma forma. As propriedades coloidais da argila são essenciais para que haja uma propensão à individuação desse objeto onde suas moléculas se colocam em comunicação veiculando energia; ao tempo em que o molde modula a distribuição dessa energia, funcionando como um limite a essa operação e desempenhando “um papel informante ao exercer forças sem trabalho, forças que limitam a atualização da energia potencial da qual a matéria é momentaneamente portadora.”89 Simondon nomeia como “ressonância interna” o estado de tomada de forma da argila pelas suas características de plasticidade. Assim, a operação técnica de aquisição de forma conduz um regime energético e evidencia uma ação e não simplesmente a relação direta entre forma- matéria do esquema hilemórfico. Tal regime energético contém um aspecto importante que percorre a teoria da individuação de Simondon. Ao criticar o modo como é tratada a individuação segundo o substancialismo e o hilemorfismo, o autor recorre a outra solução: “as noções de substância, de forma e de matéria são substituídas pelas noções mais fundamentais de informação primeira, de ressonância interna, de potencial energético, de ordens de grandeza.” 90 É nesse ponto que entra a noção de informação (oriunda da cibernética) no lugar da noção de forma (Gestalt),91 pois, para Simondon, “o materialismo não leva em conta a informação.” 92 Nesse contexto, Ivan Domingues identifica a necessidade de Simondon de criar um novo léxico: “ao fim e ao cabo, aquilo que se precisa é de uma teoria das operações, incidindo sobre matéria e forma [in-form-ação], e protagonizada como uma energética e uma dinâmica, não como uma morfologia e uma estática”.93 89 Ibidem, p. 45. 90 Ibidem, p. 28. 91 Este é um aspecto da Gestalt criticado por Simondon por ela considerar a estabilidade da forma. 92 SIMONDON, 2020a, p. 230. 93 DOMINGUES, 2015, p. 293, grifo do autor. 41 Assim, o objeto artístico não deve ser visto simplesmente pela relação entre forma e conteúdo para daí pensar seu processo, sua essência. É possível que tais concepções tenham sido de alguma forma responsáveis por estabelecer um tipo de entendimento da obra de arte em tempos passados, porém, hoje não são mais capazes de responder às questões presentes na arte atual. Por esse motivo, essa associação é pertinente, sendo um ponto fundamental para avançar nessa reflexão. Pascal Chabot se utiliza de uma imagem interessante que pode ser utilizada aqui para ampliar a compreensão do assunto. O autor toma emprestado um exemplo de outra natureza para encaminhar uma compreensão mais apropriada, como o símbolo do yin-yang.94 Neste caso, o encontro de duas dimensões se evidencia em um símbolo que denota movimento, sempre em busca de um ponto de equilíbrio, que não é estático, o qual indica a existência de uma troca constante entre indivíduo e meio. Chabot, ao apresentar esse exemplo, retoma o fundamento do esquema hilemórfico e observa que o próprio hilemorfismo tem por base a referência dos trabalhos dos artesãos com a matéria, porém, dentro de uma concepção criticada por Simondon. E continua com o exemplo da escultura, que, se fosse considerada pela via hilemórfica, seria o resultado “de uma imposição da forma pela mente do artista no mármore.”95 Simondon aponta limitações nesses esquemas, em uma reflexão que oferece recursos para pensar o objeto artístico ou mesmo a artista em seu processo, com o intuito de se compreender o assunto de maneira mais abrangente. Muito mais que um simples resultado de um encontro entre forma e conteúdo, o que está entre um e outro se faz importante. Assim, o que se afirma nesta tese, é que não é a partir de um ponto específico, uma obra por exemplo, que se dá o conhecimento do processo artístico, mas sim pelo percurso construtivo repleto de elementos que induzem ao conhecimento do processo. As escolhas, as transformações, as redes de pensamento, a percepção, a memória, o movimento inventivo, o contato com a cultura são apenas alguns dos elementos presentes no processo que permitem um conhecimento de uma trajetória cujo ponto de início e de fim não se conhece e tampouco importam. São os atravessamentos do processo, na artista, pela artista, em relação à artista que se deve levar em conta. 94 CHABOT, 2013, p. 77. 95 Ibidem, p. 78. 42 Assumindo um caminho oposto às ideias mais tradicionais em arte que refletem um pensamento de outra época, a investigação da obra de arte ocorre aqui em uma perspectiva do inacabamento, diretamente vinculada ao processo inventivo que a gerou, sob o ponto de vista da artista inventora. Retomando a afirmação de Combes, 96 sobre a necessidade de “voltar-se ao processo” para conhecer a individuação, é possível afirmar também que, para compreender a obra artística, é preciso voltar-se ao processo, onde a obra sempre se constituirá dentro desse inacabamento, seja em relação ao processo da artista quanto em relação ao espectador que entra em contato com tal objeto. Importante ressaltar que o olhar processual pode ser adotado por alguém de fora, ou seja, alguém que não participou da invenção propriamente dita e que irá entrar em contato com os diversos elementos do processo artístico de determinado artista, ou pela própria artista, que busca (re)conhecer sua trajetória e seu percurso inventivo. Trata-se também de um olhar muito presente nas pesquisas de artistas que entram na academia e voltam-se à sua própria produção para a construção de um conhecimento atrelado a esse tipo de fazer. O que não se constitui como uma regra e depende do tipo da abordagem adotada. Salles descreve com clareza esse pensamento do inacabado, conduzindo a reflexão para um contexto mais amplo, que é o da própria existência da obra de arte. Segundo a autora, O artista lida com sua obra em estado de contínuo inacabamento, o que é experienciado como insatisfação. No entanto, a incompletude traz consigo também valor dinâmico, na medida em que gera busca que se materializa nesse processo aproximativo, na construção de uma obra específica e na criação de outras obras, mais outras e mais outras. O objeto dito acabado pertence, portanto, a um processo inacabado. Não se trata de uma desvalorização da obra entregue ao público, mas da dessacralização dessa como final e única forma possível.97 Há que se frisar aqui que, quando Salles diz “objeto acabado”, não é propriamente um objeto que se encerra no momento em que se dá por finalizado em determinada etapa do processo, trata-se de um fim momentâneo. Trazendo para o contexto aqui apresentado, a obra em sua individuação se desprende de seu inventor para 96 COMBES, 2017, p. 27. 97 SALLES, 2006, p. 21, grifo nosso. 43 participar de outros processos de individuação, em outro espaço-tempo. A artista, por sua vez, continua sua trajetória dentro de seu percurso poético. Retomando a questão do transindividual, evidencia-se aqui outro ponto da teoria de Simondon que diz respeito à invenção de objetos. Segundo ele, “o processo de criação de objetos aparece em diversos domínios, mas é particularmente nítido, ao menos para nossas civilizações, no domínio das técnicas e no das artes”. 98 O objeto artístico, considerando as várias linguagens e possibilidades artísticas, assume uma universalidade e uma atemporalidade e ganha um significado próprio na cultura (e segue proporcionando novas individuações). Sua permanência será relevante enquanto corresponder aos códigos culturais, mesmo que distante no espaço e no tempo dos quais se originou. Simondon traz esse caráter de virtualidade presente nas obras ou objetos inventados (de diversas naturezas), sujeitos a novas incorporações, leituras e interferências. Ao aproximar a ideia do autor à discussão levantada neste capítulo, é possível constatar que as obras de arte que permaneceram ao longo de anos e séculos são exemplos que evidenciam esse aspecto. É o caso de artistas pouco reconhecidos em seu tempo e que hoje possuem um valor de mercado elevado, como o pintor holandês Vincent Van Gogh, por exemplo. Desse modo, a ideia de um inacabamento percorre tanto o pensamento da artista quanto a trajetória da obra no contato com o público e, consequentemente, o contexto cultural, onde ambos se fazem, se transformam e se desdobram em seus processos de individuação. Ou, ainda, uma obra pode funcionar como propulsora a novas invenções e obras, como no exemplo das fotografias de Arthur Omar (Figura 2). “A garota do brinco de pérolas”, de Johannes Vermeer (Figura 3), ganha o movimento do olhar do artista99 e se transporta para uma outra dimensão temporal carregada de emoções, segundo Omar. 98 SIMONDON, 2008, p. 164, tradução nossa. 99 OMAR, 2014, p. 39. 44 Figura 2 – Arthur Omar, fotografias feitas a partir de uma reprodução de A garota com o brinco de pérola, 2012. Fonte: OMAR, 2014, p. 45-53. Figura 3 – Johannes Vermeer, A garota com o brinco de pérola, 1665, óleo sobre tela, 44 x 39 cm. Um outro exemplo dessa natureza, a obra “Los Velázquez”, de Waltercio Caldas (Figura 4): o artista realiza um trabalho na imagem da pintura “As meninas” (Figura 5), do pintor espanhol Diego Ve