TASSIANA CARLI ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: uma análise a partir da psicologia moral e das virtudes ASSIS 2018 TASSIANA CARLI ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: uma análise a partir da psicologia moral e das virtudes Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientador: Dr. Leonardo Lemos de Souza Bolsista: CAPES ASSIS 2018 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp C282e Carli, Tassiana Ensaio sobre a cegueira: uma análise a partir da psicolo- gia moral e das virtudes / Tassiana Carli. Assis, 2018. 157 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Dr. Leonardo Lemos de Souza 1. Psicologia e literatura. 2. Psicologia - Aspectos morais e éticos. 3.Virtude. 4. Piaget, Jean, 1896-1980. 5.Saramago, Jo- sé, 1922-2010. I. Título. CDD 150 869.3 AGRADECIMENTOS São muitas memórias a serem retomadas nesse espaço. Cada qual com sua peculiaridade, de alguma forma, me fez forte para a conclusão de mais uma travessia na vida. Iniciando pelo Dr. Nelson Pedro, grande incentivador dessa jornada maluca, meus agradecimentos por todo apoio e pelas horas infinitas de orientação, mesmo quando isso não lhe era mais obrigatório. Grata também por me possibilitar a construção de uma pesquisadora que, em suas palavras, quase o deixou louco com as angústias recorrentes e com o fato de ter iniciado sem saber noções básicas de como se montar uma dissertação. Agora já sei e, com certeza, não pararei por aqui. Ao Dr. Leonardo Lemos, obrigada por sempre me apoiar e amparar em minhas decisões, sejam elas na graduação ou na pós. Às integrantes da banca de qualificação e defesa, Professoras Doutoras Rita Melissa Lepre e Luciane Guimarães Batistella Bianchini, todo meu agradecimento pelo cuidado, pela disponibilidade e pelas recomendações que possibilitaram a expansão da pesquisa. Aos apoios institucionais, gostaria de agradecer a UNESP, FCL de Assis, meio para o qual pude retornar depois de tantos anos distante da academia e que me proporcionou diversas transformações. Agradeço também por ser um lugar apinhado de pessoas interessantes e que me fazem desenvolver a cada dia. À instituição de fomento CAPES, por proporcionar investimentos em pesquisas, e assim contribuir com o desenvolvimento científico. Graças a ela, também pude concluir com um pouco menos de “sufoco” esta etapa. Aos funcionários, incluindo os professores, e às pessoas da comunidade que me proporcionaram reflexões e, assim, de alguma forma, contribuíram para o meu trabalho, meu máximo respeito. À Vânia, bibliotecária, que me acolheu em uma manhã de muito nervosismo e não hesitou em me ajudar no que estava ao seu alcance. Nesse momento, não posso deixar de me voltar à minha família. Ao meu pai, Sidney (in memoriam), pois sei que estaria extremamente orgulhoso nesse momento e, provavelmente, contando, para a cidade e região de Assis (SP), que sua filha terminou o mestrado. Porém, quero acreditar que, de alguma forma, ele sabe disso e que, então, está comemorando como pode. Quem sabe não é da mesma forma? Espalhando a notícia aos quatro ventos e se enchendo de orgulho. Ele me fez falta nesse árduo caminho, inclusive por ser fonte de sabedoria, mesmo sabendo que esteve presente o tempo todo. Afinal, fui em parte tecida por ele. À minha mãe, Lucia, por acreditar em mim mais do que eu mesma e por tentar sempre me mostrar o quão capaz eu posso ser. Exemplo de mulher forte, independente e que me faz ter muito orgulho. Grata pelos “rangos” surpresas naqueles dias em que eu não tinha comido nem um ovo por falta de tempo. Ao Ieie, meu primeiro amor, toda minha gratidão por simplesmente tê-lo como irmão. Dono de uma atenção, cuidado e abraço que me fortalecem. Obrigada por estar comigo em todas as minhas escolhas. Binho, segundo amor, por todo acolhimento melhor impossível e por sempre ter uma solução adulta para os meus problemas. Por todo ouvido que me despendeu nesse processo e em todos os outros, meu muito obrigada. Helô, a caçulinha e meu terceiro amor, porém não menos importante, grata por ser minha inspiração, quando, talvez, devesse ser o contrário devido aos quase 11 anos que me colocam cronologicamente a sua frente. Agradeço por toda paciência e todo amor, mesmo quando eu já havia perdido a razão. Ah! E pelas traduções também, chiquitita! Não poderia deixar de mencionar minha cunhada, Reninha, que me acolhe tão bem em todos os nossos momentos juntas. Aproveito, então, para agradecer também a Dona Maria e ao seu João, avós paternos e a Dona Lourdes, avó materna, referências de amor eterno e de fortaleza. Cada qual com suas lutas que já enfrentaram na vida sempre me deram a certeza de que basta estar em movimento (ou mesmo mais paradinha, como a minha vovó Lourdes, minha segunda mãe) para que tudo aconteça. E a vida também se constitui de amizades...e que amizades! Ao meu super parceiro Rodney Costa, toda minha gratidão pela paciência, pelos auxílios “burocráticos” e pelas tardes regadas a orientações juntos. Ao Paulo Marinho, amigo de quase duas décadas, com quem tive o prazer de dividir novamente o espaço acadêmico – mas agora como pseudoadultos, e não mais dois jovenzinhos –, e por quem meu coração chega a transbordar por tanto companheirismo, mesmo em nossas longas ausências. Carol, companheira de tristezas, alegrias, amores e desencantos. Ah! Sem esquecer os dias infinitos de estudos juntas e das dezenas de garrafas de café. Foi também por ela que cheguei até aqui. E por falar em Carol, já aproveito para agradecer ao meu grupo Rolezeirxs de Assis (não nos julguem!), composto por pessoas tão queridas e especiais que me acompanharam na pós-graduação e fora dela também. Às minhas novas e nem tão novas companheiras que me acompanharam nesse trajeto: Renata, amiga que me acompanha há tantos anos, grata por todo amor, amizade e presença, mesmo que fiquemos tanto tempo sem nos ver. Dani, que me acompanha também desde 2008 e que, apesar de tantos anos sem nos encontrarmos pessoalmente, consegue me fazer sentir seu amor de longe. Mands, pela parceria de cada dia embaixo do mesmo teto e pelos diálogos que só me ampliaram, a ponto de me sentir gigante e, ao mesmo tempo, minúscula por ver o quanto há de ser feito nessa vida de militância. Obrigada também por me fazer refletir sobre meus privilégios e, assim, me transformar. Ferdinandes, por me mostrar a potência que existe em mim, aguentar meus choros e ser essa pessoa que dá vontade de levar pra casa (tanto é que levei!). Isa Ortiz, minha gêmea de 10 anos de diferença que me acolheu com tanto amor nessa loucura que é fazer uma segunda graduação juntamente com um mestrado. Já que é assim, não posso me esquecer dos “migues” da graduação que me orgulham e me sustentam nessa árdua caminhada. Grata por toda partilha, principalmente as de vida. Entre alguns nomes estão Felipe Arneiro, pela amizade desde o primeiro dia de aula, Sté, pelos dias de reflexão pelo campus, e meu trio de trabalho favorito (a Isa também está nessa, então seria quarteto), Luan, Jimmy e Bala. Aproveito para deixar minhas mais sinceras desculpas por ser extremamente chata nas produções em grupo. Vou tentar melhorar! Só mais um pouco, deixo registrada minha mais sincera admiração às “minas” fortes e potentes que encontro em sala de aula, pelo campus e pela vida. Ao meu grande amigo Ricardo Orso, companheiro de outra graduação e de tantos caminhos percorridos, só posso agradecer pela segurança que me transmite a ponto de me fazer acreditar que, mesmo que me faltassem todos os meus, eu ainda teria alguém por mim. Caio Russo, amigo poeta, mas nada sonhador! Grata pelas realidades expostas e por me fazer melhor para conseguir trilhar essa jornada. Andrey, pelas comidas, pelas séries, pelas músicas, pelos abraços e pelos conflitos que nos tornaram infinitamente mais fortes. Pelas discussões acadêmicas, pelas noites refletindo, pela vida bem vivida, pela sinceridade, pelo colo nas crises de produção e por me apoiar, na prática, para que esse trabalho fosse concluído. “Profe” Bruno El Joe, pelos ouvidos sempre bem dispostos e por ser minha referência de vida acadêmica e não acadêmica também. Aos meus amigos e às minhas amigas, que nem conhecem Assis, mas sempre estiveram do meu lado: Mayza, minha gaja; Jô, minha inspiração; Felipe Cilli, pelos lindos reencontros. Ao Pedro Fonseca, amigo agora um pouco distante, mas que teve grande importância no meu ingresso no mestrado. Como já disse, a gratidão é eterna! E a todos os demais que cruzaram meu caminho e contribuíram para que minha pesquisa tivesse chegado ao fim, sendo me apoiando, me dando um ombro pra chorar, me chamando pra comer, ou pra dar o famoso “rolê”, grata por todas as formas de amor. Não me perdoaria em deixar de fora meus companheiros de todos os dias, que aguentam meu estresse sem reclamar. Muito pelo contrário, quando me veem, me enchem de “lambeijos”. Nala (in memoriam), Koda, Ariel, filhos caninos e Luna, uma espécie de irmã canina. Por fim, agradeço a mim mesma, por ter resistido a noites sem dormir, dias sem conseguir comer, crises de tremedeira e respiração ofegante e a tanta dor de cabeça para poder ser, enfim, uma pesquisadora mestra e, assim, contribuir não só acadêmica, mas socialmente. CARLI, Tassiana. Ensaio sobre a cegueira: uma análise a partir da psicologia moral e das virtudes. 2018. 157 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2018. RESUMO A presente dissertação de mestrado consistiu em analisar os aspectos éticos e morais encontrados na obra Ensaio sobre a cegueira de José Saramago, principalmente em relação aos valores priorizados pela personagem denominada “mulher do médico”, tendo como referencial a psicologia moral piagetiana e a psicologia e filosofia das virtudes. A pesquisa foi do tipo documental. Os resultados apontaram que, enquanto a mulher do médico guiava-se pelo cultivo das virtudes e o uso da razão, agindo de maneira autônoma, a quase totalidade dos outros personagens procedeu pautada por uma moral heterônoma e por formas de glória, isto é, priorizavam valores como a beleza, a força física, o status social e o financeiro. Ademais, alguns tomaram a felicidade como sinônimo de hedonismo. Para a superação desse modelo de identidade heterônoma, por meio das atitudes da mulher do médico, o autor do romance defendeu o cultivo de virtudes, como a generosidade, a prudência, a compaixão, a coragem e a justiça. Ainda que não sejam consideradas virtudes, também notamos que, em certos momentos, ela foi movida pela solidariedade e pelo amor, este, o qual é, em síntese, todas as virtudes. Sendo assim, tendo por suporte o fato de ela ter sido a única que não ficou cega na obra analisada, consideramos tais excelências e o fato de ter agido autonomamente como os aspectos apontados pelo escritor para se superar o estado de heteronomia que, atualmente, encontram-se os indivíduos, ou seja, imersos em um quadro de cegueira branca. Palavras-chave: Psicologia ético/moral e das virtudes. Saramago. Ensaio sobre a cegueira. Jean Piaget. CARLI, Tassiana. Blindness: an analysis through moral and virtues psychology. 2018. 157 p. Dissertation (Masters in Psychology). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2018. ABSTRACT The present dissertation consisted of analyzing the moral aspects found in the novel Blindness, by José Saramago, mainly in relation to the character‟s doctor‟s wife values. We queried the moral psychology and the psychology and philosophy of the virtues as our reference. We developed the documentary research modality in the present study. The results pointed out that the doctor‟s wife was guided by the cultivation of the virtues besides she using the reason therefore in an autonomous way. The other characters in the majority of cases was guided by heteronomous way and by forms of glory, that is, they prioritized.the beauty, the physical strength, the social and financial status. In addition part of them considered the happiness as a hedonism synonymous. To overcome this model of heteronomous identity, through the attitudes of the doctor's wife, the author of the novel advocates the cultivation of virtues, such as generosity, prudence, compassion, courage and justice. We also noticed that she was supported by solidarity and love -the last one surpasses all virtues - although they are not considered virtues. Therefore, considering that the doctor‟s wife was the only one that was not blinded, we consider her excellences and her autonomous way pointed by the writer to overcome the currently heteronomy state. Keywords: Ethical/moral psychology and psychology of the virtues. Saramago. Blindness. Jean Piaget. S U M Á R I O 1 INTRODUÇÃO ................................................................................... 12 1.1 Apresentação ............................................................................... 13 1.2 Justificativas ................................................................................. 18 2 METODOLOGIA ................................................................................ 28 2.1 Modalidade de pesquisa .............................................................. 2.2 Processo....................................................................................... 29 29 3 REFERENCIAL TEÓRICO ................................................................ 31 3.1 A psicologia moral de Jean Piaget ............................................... 32 3.2 A psicologia das virtudes ............................................................. 38 3.3 Ética e virtude .............................................................................. 47 4 BIOGRAFIA: UM COMUNISTA APAIXONADO POR PILAR .......... 51 4.1 Antes de nascer ........................................................................... 52 4.2 Primeira infância .......................................................................... 57 4.3 Adolescência ................................................................................ 60 4.4 Adultícia ....................................................................................... 61 4.5 Vida de escritor ............................................................................ 66 4.6 Sua morte .................................................................................... 69 5 RESULTADOS E ANÁLISE .............................................................. 70 5.1 A mulher que não foi tomada pela cegueira ................................ 5.2 Referências à mulher do médico ................................................. 5.3 A ida do médico e de sua mulher para o manicômio e o contato com outras pessoas tomadas pela cegueira .................................. 5.4 A coletividade para a mulher do médico ...................................... 71 71 82 89 5.5 A mulher do médico e o papel dos intelectuais em sociedades complexas ...................................................................................... 92 5.6 A tentativa de estupro da rapariga de óculos escuros e as consequências ................................................................................... 94 5.7 A perda da identidade ................................................................. 96 5.8 A chegada da comida .................................................................. 99 5.9 A morte do ladrão e o seu enterro ............................................. 104 5.10 A beleza e a cegueira ................................................................ 109 5.11 O velho cego de um olho e as notícias do mundo extramuros .. 110 5.12 A selvageria e o horror ............................................................... 115 5.13 A coragem decorrente do desespero ......................................... 118 5.14 O médico e a rapariga dos óculos escuros ................................ 122 5.15 Início dos estupros...................................................................... 5.16 A saída do manicômio ............................................................... 129 131 5.17 Os cegos tomados pela cegueira branca voltam a enxergar ..... 136 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 144 REFERÊNCIAS ................................................................................. 150 12 1 INTRODUÇÃO 13 1.1 Apresentação O interesse em realizar estudo sobre a obra Ensaio sobre a cegueira, escrita pelo prêmio Nobel de literatura José Saramago (1922-2010), publicada em 1995, decorreu, inicialmente, das possíveis relações entre literatura e psicologia. Nesse caso, referimo-nos especialmente à psicologia ético/moral, construída por Piaget (1932/1994; 1964/1973) e a das virtudes, sistematizada por Yves de La Taille (1998, 2000, 2002a, 2002b, 2002c, 2006, 2009). A possibilidade de se realizar investigações psicológicas sobre obras literárias é possível, embora ainda apresente lacunas, segundo o emérito filósofo e psicólogo Dante Moreira Leite (1927-1976). Nesse sentido, não pretendemos conciliar as duas áreas de conhecimento, mesmo porque nos julgamos desprovidos de conhecimentos para realizar tal feito. Apenas propomos a análise psicológica de uma personagem da mencionada obra literária. De qualquer maneira, a partir das reflexões desenvolvidas pelo referido estudioso, fizemos considerações sobre a relação entre psicologia e literatura. A nossa intenção, com isso, foi a de defender a realização do nosso estudo, a saber: analisar os aspectos éticos/morais da obra de Saramago (1995), especialmente os valores encontrados na personagem “a mulher do médico”. A princípio, ressaltamos que a relação entre as duas referidas áreas de saber, segundo Leite (1965/1977), nem sempre foi considerada plausível. De um lado, havia sociólogos e psicólogos que reduziam a definição de arte à mera manifestação de fatores sociais e/ou psicológicos. Estes tendiam a explicar a literatura – um fenômeno artístico – basicamente de três formas. Primeira: tendo como parâmetro o marxismo (BOTTOMORE, s.d./2001), sociólogos e psicólogos sociais tendiam a compreender a literatura como uma decorrência da infraestrutura econômica. Dessa forma, ela seria mera expressão dessa base – a superestrutura. A nosso ver, essa interpretação é equivocada ou incompleta até para o próprio marxismo. Amparamo-nos, para fazer essa afirmação, no trecho a seguir: [Infraestrutura] Conceito que no marxismo designa numa sociedade sua estrutura econômica, ou seja, as relações econômicas de produção e as contradições delas decorrentes. A infraestrutura, sendo a base material da sociedade, determina a superestrutura, isto é, a ordem política, jurídica, cultural, educacional, etc. dessa sociedade; porém, essa relação não deve 14 ser vista de forma mecânica, mas dialética, já que a superestrutura, por sua vez, influencia também a infraestrutura, assegurando sua manutenção e reprodução, ou podendo levar a modificações nela. (JAPIASSU; MARCONDES, 1989, p. 133, itálicos nossos) Para nós, um caso representativo é o do escritor russo F. M. Dostoiévski (1821-1881). Em Crime e castigo (1866/1998), observamos que as condições objetivas de vida acabaram por levar o personagem Raskólnikova a cometer várias atrocidades, como assassinato e roubo. Mesmo o citado escritor só produziu tal obra porque vivia em condições de miséria impostas pelo status quo da Rússia czarista. Isso o fazia contar com a produção de folhetins para os jornais visando garantir sua sobrevivência. Contudo, se adotarmos essa análise – os aspectos idiossincráticos, referentes ao autor –, acabamos por deixar de lado outros que foram influenciadores de seus escritos. Afinal, outras pessoas submetidas às mesmas condições não produziram obras dessa envergadura. Outros estudiosos concebiam as obras literárias, assim como outras produções imateriais de um modo geral, como resultantes das percepções1. Isso significa, então, que a literatura, por exemplo, seria meramente produto do meio. Essa noção está intimamente ligada à filosofia empirista, para a qual os comportamentos e as ideias são decorrentes dos sentidos. Suponhamos que a mente é, como dissemos, um papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer ideias; como ela é suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra, da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado. (LOCKE, 1690/1999, p. 57) Nesse caso, o sujeito é tomado como um ser passivo. Por conseguinte, a arte seria apenas um meio para expressão de determinadas condições ambientais. Novamente, encontramos a ideia de que a subjetividade não influencia nas obras literárias. Todavia, diferentemente da primeira concepção – a marxista – que 1 Para os empiristas, “nossos conhecimentos começam com a experiência dos sentidos, isto é, com as sensações [decorrentes do ambiente externo]. Os objetos exteriores excitam nossos órgãos dos sentidos e vemos cores, sentimos sabores e odores, ouvimos sons, sentimos a diferença entre o áspero e o liso, o quente e o frio, etc. As sensações se reúnem e formam uma percepção; ou seja, percebemos uma única coisa ou um único objeto que nos chegou por meio de várias e diferentes sensações. Assim, vejo uma cor vermelha e uma forma arredondada, aspiro um perfume adocicado, sinto a maciez e digo: “Percebo uma rosa”. A “rosa” é o resultado da reunião de várias sensações diferentes num único objeto de percepção” (CHAUÍ, 2000, p. 88). 15 entende o sujeito como produto e produtor de sua história, aqui praticamente desaparece a individualidade. Terceiro: há, ainda, os que consideram tais obras como resultado do processo de sublimação. Grosso modo, tal mecanismo é o nome dado por Freud para designar o processo por meio do qual são realizadas as produções humanas, como a literatura (LAPLANCHE; PONTALIS, 1967/1988). À primeira vista, tais produções não parecem ter relação com a sexualidade. Entretanto, para Freud, “o seu elemento propulsor [está] na força da pulsão sexual” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1967/1988, p. 638). Nesse sentido, a literatura seria consequência do processo sublimatório. Parece-nos, contudo, que, se o indivíduo é levado em consideração, o social não é problematizado; sem contar que a obra de arte seria apenas resultante de fatores inconscientes. Por outra via, críticos de literatura não admitiam a análise de uma obra se não fosse segundo os próprios parâmetros literários, ou seja, em conceitos que não correspondessem à própria arte. Como afirmou Leite (1965/1977, p. 15), resguardavam “o estudo literário como a única forma de compreender a literatura”. Dissonante às duas proposições expostas, Leite (1965/1977) considerou “inaceitáveis” os argumentos apresentados em defesa dos pontos de vista, tanto sociológico e psicológico quanto crítico literário. Ora, como se poderia explicar o fato de obras, igualmente decorrentes da superestrutura, das percepções e da sublimação, não carregarem consigo manifestações literárias, se são esses fatores que usualmente, para sociólogos e psicólogos, definem a expressão artística? Por outro lado, mesmo considerando parcialmente correta a teoria de que “o valor de uma obra literária independe de suas suposições extraliterárias” (LEITE, 1965/1977, p. 16), como é possível desprezar elementos que compõem a acepção da obra, como os sociais, por exemplo? Infere-se, dessa forma, que as relações entre psicologia e literatura, em nossa opinião, são dialógicas; portanto não opostas, como parecem defender alguns estudiosos das áreas sociológica, psicológica e literária. Com o passar do tempo, todavia, até mesmo os críticos literários começaram a discernir e a valorizar a importância de se reconhecer a análise de obras literárias a partir da ciência e/ou de outras perspectivas. Ainda assim, esses críticos mantinham o receio de que tais obras fossem, por exemplo, reduzidas a fórmulas matemáticas, como concebia a ciência a partir do século XVII. 16 Por esse prisma, devemos reconhecer a ruptura do sujeito contemporâneo em relação a determinadas inclinações sociais que marcam épocas e envolvem os indivíduos praticamente de forma automática. A esse respeito, Leite (1965/1977) cita a religião e as ciências naturais. Para o referido pesquisador, o novo saber hegemônico é o psicológico. Este nos possibilita realizar análises e interpretações acerca do indivíduo consigo e com os outros. A explicação psicológica da arte é apenas um caso [...] em que se procura uma forma de compreensão a partir de características do indivíduo. Fundamentalmente essa necessidade de explicação é uma consequência da vida social: à medida que o homem perde a crença em forças sobrenaturais ou na determinação hereditária de características individuais, precisa encontrar outras explicações para elas. (LEITE, 1965/1977, p. 19) O crítico literário e pesquisador Antonio Candido (1918-2017) argumentou em sentido semelhante – embora voltado principalmente à questão sociológica. Ele fez isso quando afirmou que a análise literária deve levar em consideração alguns elementos apresentados pela tessitura da obra. Por exemplo, a estrutura social, os valores e as técnicas de comunicação (CANDIDO, 1965/2000). A estrutura social corresponde à posição socialmente marcada do artista e às características do grupo receptor. Por sua vez, os valores dizem respeito ao que o artista quer colocar em evidência e problematizar, assim como indicar quais devem ser seguidos. Já as técnicas de comunicação dizem respeito às formas de transmissão. Vidas secas (1938/2003) do escritor Graciliano Ramos (1892-1953) é um exemplo típico. O autor alagoano, tendo convivido com a seca que assolava o sertão do Nordeste, retratou em sua obra todo o sofrimento de uma família de retirantes nordestinos devido à seca intermitente da região. Assim, buscou informar o estado precário em que viviam as pessoas da época, pois elas eram obrigadas a mudarem- se cada vez que a seca dominava o lugar em que estavam. Os personagens foram apresentados de forma áspera, condizente com o ambiente em que viviam, tomado pela seca e pela exploração dos detentores do poder, promovendo, como consequência, a desumanização, a coisificação e o processo de animalização do homem. Em Fabiano (personagem principal), observamos esses aspectos, a ponto de o próprio se considerar um bicho, devido à sua condição miserável e à falta de 17 habilidade com as palavras, já que era um homem sem instruções, o que o fazia “grunhir” vocábulos. Mesmo a estética da obra é marcada pelo contexto em exposição. Ramos (1938/2003) utilizou, por exemplo, o discurso indireto livre para ressaltar as mazelas sociais. Em outras palavras, se apoiou na falta de linearidade da narrativa como analogia ao nomadismo das personagens, que se dá por fragmentação temporal e espacial e o pouco uso de adjetivos, com a finalidade de revelar a aspereza do ambiente e suas influências sobre os sujeitos que se encontram ali. Em síntese, [...] a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-se segundo os padrões da sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio [os dois últimos são característicos das técnicas de comunicação]. (CANDIDO, 1965/2000, p. 20) Salientamos que, mesmo sendo social o foco de análise literária de Candido (1965/2000), em nossa opinião, igualmente, é inteiramente truísta o envolvimento da literatura com a psicologia – assim como o era, para o referido autor, em relação à sociologia. Isso ocorre porque a psicologia se preocupa com o indivíduo, elemento fundamental da sociedade. Nesse sentido, observamos a indissociável relação entre o social, o psicológico e o literário. Em outros termos, a literatura, por vezes, fala mais do nosso tempo e da psicologia humana do que as ciências que se destinam ao estudo da sociedade e do indivíduo. Acrescente-se, a essa posição, as considerações de Leite (1965/1977, p. 20): [...] a nossa literatura tem sido vista [...] sob seu aspecto “social”, isso se deve ao fato de apresentar quase exclusivamente o aspecto mais superficial ou aparente de nossa vida coletiva. Sempre que o escritor ultrapassa essa camada de aparências, vê-se a necessidade, não apenas de uma análise histórica ou sociológica, mas também da perspectiva psicológica. Pode-se, todavia, perceber a psicologia em uma obra literária à medida que a posição social do artista e o tema são, em parte, determinados pelo próprio sujeito e, ao produzi-la, o literato acaba por emitir regras de conduta (filosofia moral) e evidenciar uma subjetividade ou várias (psicologia). Por conseguinte, pensamos que a obra de arte oferece indícios sobre a concepção de homem e de mundo defendida pelo artista (portanto, ela propõe uma filosofia), faz análise do momento presente 18 (sociologia) e dos seus personagens/tipos (psicologia). Como afirmou o psicólogo Yves de La Taille (1956-), ao fazer considerações sobre a obra O juízo moral na criança (1932/1994) do emérito epistemólogo e psicólogo Jean Piaget (1896-1980): “não basta que a Sociologia explique a guerra; é também preciso explicar o guerreiro [e suas produções, como a literatura]” (LA TAILLE, 1994, p. 20). Diante do exposto, analisamos o aspecto ético/moral expresso na obra Ensaio sobre a cegueira, publicada em 1995, do escritor e prêmio Nobel de literatura José Saramago (1922-2010), mais especificamente em relação aos valores encontrados na personagem denominada “mulher do médico” – a única que não foi tomada pela cegueira branca. São nossas hipóteses: a) a obra aponta os valores considerados válidos e que têm funcionado como reguladores morais e éticos; b) denuncia, por meio de certos valores, os efeitos da sociedade pós- industrial; c) e oferece caminhos, por meio de algumas virtudes, à superação desse quadro de cegueira branca que, a nosso ver, tem tomado todas as sociedades, sobremaneira, as do mundo Ocidental. 1.2 Justificativas A nossa pretensão em analisar a citada obra começou a tomar forma, além do que dissertamos acerca da defesa do diálogo entre literatura e psicologia, a partir do nosso exercício profissional como docentes há mais de sete anos nos Ensinos Fundamental e Médio (em escolas públicas e privadas). Observamos, durante esse período, que os alunos não apresentavam interesse pelo aprendizado de conteúdos relacionados à língua portuguesa, principalmente quando se tratava da leitura de obras consideradas clássicas. Diante disso, indagamo-nos acerca dos motivos desse desinteresse. Inicialmente, pensamos tratar-se do fato de os clássicos referenciarem contextos distantes dos vividos por nossos alunos, além de a linguagem empregada geralmente estar, do mesmo modo, distante da usualmente empregada por eles. Consideramos, então, a possibilidade de apresentar-lhes obras mais atuais e que tivessem uma linguagem (comunicação) considerada mais fácil. Apresentamos, 19 assim, Admirável mundo novo (1932/2007) do escritor inglês Aldous Huxley (1894- 1963). A referida produção apresenta um mundo futurístico em que as pessoas são criadas em laboratório, condicionadas psicologicamente e divididas em “castas”. As estratificações sociais são marcadas por indivíduos homogêneos, feitos para atender às necessidades sociais. Os Alfas, pertencentes à classe superior, são responsáveis por funções de direção e administração, por exemplo. Os Betas, classe abaixo, por funções técnicas, como Lenina Crowne, vacinadora, e Fanny Crowne, embriologista. Na classe inferior, encontram-se os Gamas, Deltas e Ípsilons, que apenas executam tarefas manuais. O condicionamento visa à estruturação de uma sociedade em que uma minoria detém o poder e o conhecimento; portanto, controladora de todos os outros indivíduos. Inicialmente, notamos que, para os estudantes, a obra não trazia nada além do que lhes era mostrado explicitamente, ou seja, não passava de uma ficção que retratava uma sociedade imaginária [não seria “já existente”?]. Devido a isso, foi considerada cansativa e desprovida de elementos que promovessem o interesse pela leitura. Em seguida, lhe propusemos a sua releitura, agora pautada em outros elementos. Expusemos a importância de se considerar a posição do artista na composição da obra, apontando, sob a ótica de Candido (1965/2000), que a obra é produzida pelo sujeito, o qual está profundamente imerso nos ideais e valores de sua época. Como cita o referido estudioso, “a obra exige necessariamente a presença do artista criador” (CANDIDO, 1965/2000, p. 23). Dessa forma, podemos verificar que o fato de Huxley ter vivido, como denomina o historiador Eric Hobsbawn (1917-2012) (1995), em uma era catastrófica – quando defensores dos regimes políticos totalitários (nazismo, fascismo e stalinismo) assumiram o poder, e, consequentemente, resultaram-se guerras e destruições – fê-lo provavelmente inquieto psicologicamente e, por conseguinte, acabou manifestando a sua crítica por intermédio da obra, sobretudo acerca do receio da perda da liberdade e da individualidade. A partir desses elementos, pedimos que eles refletissem sobre formas de controle já adotadas pela sociedade atual, sem as pessoas se darem conta desse aspecto. Como todos tinham e gostavam de lidar com as novas mídias, pedimos que refletissem sobre os efeitos delas em suas vidas. Um dos estudantes chegou a 20 mencionar que perdera a oportunidade de emprego porque os recrutadores acessaram sua página do Facebook e tiveram contato com conteúdos e imagens de que eles não gostaram. Diante disso, inclusive, ele chegou a se sentir vigiado. Na sequência, também pela inclinação de Candido (1965/2000), apresentamos aos alunos a formação da obra, especificamente em relação ao seu conteúdo – construído por influências, principalmente, de valores sociais. Por exemplo, em Admirável mundo novo (HUXLEY, 1932/2007), verificamos a revelação de uma insatisfação – não apenas individual (a do artista), mas coletiva (a da sociedade) – por estar em jogo a liberdade. Destarte, concordamos com o citado autor quando enfatiza a importância da experiência cotidiana do indivíduo para a inspiração, principalmente, quando esta advém de um objeto considerado valoroso pelo grupo. Por fim, ressaltamos o público como outro elemento a ser considerado para a criação literária. Mais uma vez pela visão de Candido (1965/2000), apontamos as mudanças ocorridas nas criações das comunidades primitivas às atuais. As primeiras não permitiam a segregação visível entre artista e público. Manifestavam- se em sociedades com pequenos números de indivíduos, em que havia uma estreita ligação da expressão artística com os outros aspectos da vida social, o que propiciava a participação do coletivo em manifestações das artes (canto, dança, representação teatral, entre outros). Já as produções atuais agem em uma sociedade diferente, com um contingente maior de pessoas, promovendo o “surgimento” de variados públicos e possibilitando a plena distinção entre criador e receptor. Constatamos que há entre eles um ciclo que resulta na obra. Em outras palavras, o artista direciona a criação a um segmento do grupo receptor, e este “decide o destino da obra, ao interessar-se por ela e nela fixar a atenção” (CANDIDO, 1965/2000, p. 31). Ademais, o público age determinantemente sobre o artista. É o caso de escritores que reformulam o modo de escrever, ou mesmo passam a se concentrar em outros gêneros para atender as exigências de seus leitores. Para indicar o “surgimento” da aceitação pública de uma obra, apontamos um fator influente: os próprios padrões sociais. Por isso, voltamo-nos às redes sociais e debatemos a respeito de frases que, equivocadamente, apresentam como autores pessoas célebres. A necessidade de se “mostrar” conhecedor, e não propriamente ser, para ser socialmente reconhecido, a fim de que o indivíduo se sinta parte do 21 todo, faz com que esse tipo de erro se propague. Como afirma Candido (1965/2000, p. 32), “[...] mesmo quando pensamos ser nós mesmos, somos públicos, pertencemos a uma massa cujas reações obedecem a condicionantes do momento e do meio”. A esse propósito – tema estudado por Bruckner (2000), Costa (1985, 1989), La Taille (1998, 2009), Pedro-Silva (2006), entre outros – o poema Eu, etiqueta de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) é exemplar: Em minha calça está grudado um nome Que não é meu de batismo ou de cartório Um nome... estranho Meu blusão traz lembrete de bebida Que jamais pus na boca, nessa vida, Em minha camiseta, a marca de cigarro Que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produtos Que nunca experimentei Mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido De alguma coisa não provada Por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, Minha gravata e cinto e escova e pente, Meu copo, minha xícara, Minha toalha de banho e sabonete, Meu isso, meu aquilo. Desde a cabeça ao bico dos sapatos, São mensagens, Letras falantes, Gritos visuais, Ordens de uso, abuso, reincidências. Costume, hábito, premência, Indispensabilidade, E fazem de mim homem-anúncio itinerante, Escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É duro andar na moda, ainda que a moda Seja negar minha identidade, Trocá-lo por mil, açambarcando Todas as marcas registradas, Todos os logotipos do mercado. Com que inocência demito-me de ser Eu que antes era e me sabia Tão diverso de outros, tão mim mesmo, Ser pensante sentinte e solitário Com outros seres diversos e conscientes De sua humana, invencível condição. Agora sou anúncio Ora vulgar ora bizarro. Em língua nacional ou em qualquer língua (Qualquer, principalmente.) E nisto me comprazo, tiro glória De minha anulação. Não sou – vê lá – anúncio contratado. 22 Eu é que mimosamente pago Para anunciar, para vender Em bares festas praias pérgulas piscinas, E bem à vista exibo esta etiqueta Global no corpo que desiste De ser veste e sandália de uma essência Tão viva, independente, Que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, Minhas idiossincrasias tão pessoais, Tão minhas que no rosto se espelhavam E cada gesto, cada olhar, Cada vinco da roupa Sou gravado de forma universal, Saio da estamparia, não de casa, Da vitrine me tiram, recolocam, Objeto pulsante mas objeto Que se oferece como signo de outros Objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso De ser não eu, mar artigo industrial, Peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é Coisa. Eu sou a Coisa, coisamente. (ANDRADE, 1984/2015, p. 53-55) Com a segunda leitura, focada em tais elementos, notamos uma nova construção de conhecimentos por parte dos estudantes. Julgamos ter oferecido a eles estímulos que os levaram a se sentirem receptivos à leitura de outras obras literárias, fator que também nos impulsionou a seguir com as nossas indagações acerca da relação entre literatura e psicologia. Mesmo assim, apesar do aumento do interesse pela leitura, não notamos mudanças em suas condutas; sequer na forma de pensar. Eles continuavam a emitir opiniões baseadas no senso comum e/ou preconceituosas sobre temáticas da vida atual – descriminalização do aborto e das drogas leves, homossexualidade, sexismo, etnia, entre outras. Além disso, permaneciam priorizando formas de glória (beleza, prestígio social e dinheiro) e considerando démodé aqueles que defendiam valores como honestidade, justiça, lealdade, generosidade, doçura, humildade, bom senso, entre outras virtudes. Diante disso, começamos a questionar sobre o que poderia ser feito – por intermédio da literatura – para que eles começassem a problematizar tais valores. Afinal, assim como alguns autores, consideramos que estamos a viver uma crise moral e ética. É o que podemos depreender, por exemplo, das reflexões de Zygmunt Bauman (1925-2017) em várias de suas obras (1997, 1998, 2000, 2003, 2006, 23 2007). Com a intenção de fazer com que os citados estudantes repensassem sobre seus atos e julgamentos éticos/morais, aconselhamos nova releitura. Tendo como alicerce a obra de Huxley (1932/2007), nesse momento, guiamo-los a refletir sobre as consequências do demasiado individualismo, preponderante hoje, e como isso tem tornado o sujeito ausente em sua identidade moral de valores vitais à sociedade, como a justiça. Desse modo, notamos algumas mudanças de opinião, aspecto que nos motivou a prosseguir nos nossos questionamentos. Uma vez finalizado o trabalho com os estudantes, tivemos a percepção de ter elevado a importância de outros valores não associados às formas de glória. Os adolescentes, objetos dessa intervenção, a nosso ver, encontravam-se profundamente arraigados por preconceitos (por exemplo, a submissão feminina) e apresentando postura narcísica (egoísta) e, por conseguinte, mostrando-se refratários à expansão e à modificação de suas posições e de seus argumentos. Outro motivo que nos levou a propor a referida pesquisa acerca de uma personagem da obra Ensaio sobre a cegueira (SARAMAGO, 1995) foi a nossa percepção de que estamos vivendo um momento de profunda crise de valores morais e éticos, como já apontamos. A esse respeito, teceram considerações Bauman (1997), Bruckner (2000), Costa (1985; 1989), Habermas (1985/1990), La Taille (2002a, 2009), Lipovetsky (2004), Rouanet (1993), Sennett (1976/1988), Pedro-Silva (2006) dentre vários estudiosos dedicados à análise da atualidade. Richard Sennett (1943-) considera que as pessoas, atualmente, só tem se preocupado com os próprios interesses. Assim, elas apenas buscam refletir sobre a própria vida psíquica, com o objetivo de desvelar os verdadeiros sentimentos, esquecendo-se do fato, ou mesmo desconhecendo, de que eles são produzidos socialmente, além de transformar a convivência com amigos íntimos e familiares em um fim em si mesmo. O citado autor (SENNETT, 1976/1988) afirmou que essa situação está relacionada à valorização da esfera privada em detrimento da pública. Ao realizar análise histórica das razões que levaram à transformação da dimensão pública numa questão de obrigação formal, este estudioso notou que as pessoas não estão preocupadas com a descoberta de princípios supraindividuais. Edgard de Assis Carvalho (Prefácio, apud COSTA, 1989, p. 9), ao comentar as posições políticas do psicanalista Hélio Pelegrino (1924-1988), assim resumiu o 24 seu pensamento acerca do mundo contemporâneo, atravessado pela mentalidade da sobrevivência: [...] um mundo sem amor, desoxigenante, terminal, incapaz de garantir a socialidade [sic] mínima. Nesse cenário dilacerador é que explodem a violência generalizada, a impotência social, o descalabro institucional, a reprodução ampliada da cultura do narcisismo que, de um lado, aposta na desestruturação da sociabilidade e, de outro, investe no curto-circuito da autopreservação e da autoconservação desmesurada. Segundo Jurandir Freire Costa (1944-) e Cristopher Lasch (1932-1994)2, essa mentalidade é produto da cultura da violência. Ela, ao apontar a todo o instante a impotência e a impossibilidade de mudança do sombrio quadro social instituído, ativa mecanismos narcisistas de proteção do EU. Isso pode levar, por exemplo, a modelos de relacionamentos, referentes às convivências em geral, pautados na superficialidade e brevidade. Nesse sentido, Bauman (1997) os define como líquidos, e Piaget (1932/1994), heterônomos, portanto a mercê do clima cultural geral3. Em outros termos, o sujeito dá a impressão de que está se relacionando, mas, na verdade, sequer está levando em consideração o outro. Justificamos, também, a nossa pesquisa, porque estudos psicológicos referentes aos valores morais são relevantes, já que o sujeito possui uma imagem valorativa de si. Segundo Roger Perron (1991, p. 24 apud LA TAILLE, 2002c, p. 16) As representações de si são construídas como conjunto de valores. Todas as características pelas quais o sujeito pode se definir são, com efeito, sentidas, em graus diversos, como desejáveis ou não (...) „sou valor porque sou, sou porque sou valor‟. Ademais, conforme Alfred Adler (1870-1937), a leitura que fazemos de nós é sempre positiva (1933/1991). Em outros termos, o referido psicólogo austríaco considera que somente o fato de se ser humano já implica buscar fugir do sentimento de inferioridade. Este, para Adler (1933/1991), é responsável por 2 Referimo-nos às obras de Costa “Narcisismo em tempos sombrios” (1985 e Psicanálise e moral (1989) e as de Lasch A cultura do narcisismo: a vida americana numa época de esperanças em declínio (1979/1983) e O mínimo eu: a sobrevivência psíquica em tempos difíceis (1984/1987). 3 O clima cultural geral (general cultural climate) consiste “[...] particularmente na influência ideológica pela qual os media modelam a opinião pública. [Assim,] Se o nosso clima cultural foi padronizado sob o impacto do controle social e da concentração tecnológica a um grau sem precedentes, podemos esperar que os hábitos de pensamento dos indivíduos reflitam a dinâmica de sua própria personalidade. Tais personalidades podem, na verdade, ser produtos dessa padronização” (ROUANET, 1989, p. 175). 25 neuroses, bem como por comportamentos agressivos e imorais. Por perspectiva contrária, La Taille (2002c) critica o valor “estar bem consigo mesmo” apontado por Adler (1933/1991) como autoestima, ou seja, sentimento do valor que não está relacionado à moral (beleza física, inteligência, sucesso profissional). Dessa forma, La Taille (2002c, p. 23) enuncia: [...] não consideramos a autoestima como condição necessária ao agir e pensar morais, contrariando assim uma opinião popular (retomada por Adler, 1933/1991) segundo a qual „quem está de bem consigo mesmo‟ age moralmente. Não vemos porque pessoas que agem imoralmente, ou simplesmente costumam colocar a moral em segundo plano, teriam necessariamente problemas de autoestima. Tal tese apoia-se, no fundo, na ideia de que a imoralidade relaciona-se com a patologia (ou a ignorância), tese claramente desmentida por estudos como os da psicanálise. Apesar disso, a questão é que Piaget (1954/2014) retoma a afirmação de Adler (1933/1991) de que valorizar positivamente a si próprio compõe as identidades de maneira geral, portanto constitui força motivacional. Justificamos nossa escolha por constatar lacuna na literatura em relação a estudos científicos voltados para a análise da obra Ensaio sobre a cegueira (SARAMAGO, 1995), sob o viés da psicologia da moralidade e eticidade humana. Ademais, procuramos também construir novos olhares para a psicologia da moralidade humana. Conforme levantamento bibliográfico feito em 2016, nas bases de dados Dedalus, Scielo e Google Acadêmico, não encontramos estudos, por meio dos unitermos “Saramago”, “Ensaio sobre a cegueira”, “psicologia moral”; psicologia moral and Saramago”, “psicologia das virtudes”, psicologia das virtudes and Saramago”. A maioria dos estudos referentes à obra em questão tratou de assuntos pertinentes à análise de elementos importantes à literatura, como Os espaços infernais e labirínticos em Ensaio sobre a cegueira (RICHTER, 2007). Mesmo quando envolvia a psicologia, não apresentava questões proporcionadas pela psicologia moral de Piaget (1932/1994), como A violência é cega: reflexões em torno de Ensaio sobre a cegueira de José Saramago (TEIXEIRA, 2010). Igualmente, não encontramos investigações relacionadas à psicologia das virtudes, sistematizada por La Taille (1992, 1998, 2000, 2002a, 2002b), que tenha tido a referida obra de Saramago (1995) analisada, tampouco qualquer outra do mesmo escritor. 26 Por fim, ao analisar os aspectos morais da obra de Saramago (1995) a partir dos mencionados referenciais, foi nossa intenção contribuir para os aspectos apresentados a seguir: a) apresentar, por intermédio da obra Ensaio sobre a cegueira (1995), contribuições para a expansão do campo de estudos da Psicologia Moral e das Virtudes; b) oferecer elementos sobre os aspectos éticos e morais presentes nas relações atuais; c) promover reflexões sobre ou para o ensino da literatura nos cursos de Ensino Fundamental, Médio e Superior; d) identificar na obra Ensaio sobre a cegueira (SARAMAGO, 1995) questões atuais sobre a ética, a moral, os valores e as consequências de uma sociedade pós- industrial na construção da identidade. Nesse sentido, o objetivo principal deste trabalho consistiu em analisar os aspectos ético/morais encontrados na obra Ensaio sobre a cegueira (SARAMAGO, 1995), sobretudo em relação à mulher do médico, a única personagem não tomada pela cegueira branca. Especificamente, foram nossos objetivos: 1 – identificar a natureza dos valores priorizados pela “mulher do médico”, isto é, se eles eram mais afeitos à dimensão moral (pública), ética (privada) ou se constituíam em formas de glória; 2 – tendo como parâmetro a análise dessa personagem, em analogia com as sociedades pós-industriais, identificar os valores que têm sido priorizados por grande parte dos indivíduos a ponto de não se considerar o outro em suas relações; 3 – igualmente, por intermédio da “mulher do médico”, analisar os valores que Saramago (1995) apregoou como necessários para a superação desse modelo de identidade heterônoma e de sociedade tomada pela cegueira branca. Para a análise dos valores da “mulher do médico”, empregamos como referência a psicologia moral de Piaget (1932/1994), a psicologia das virtudes, sistematizada por La Taille (1992, 1998, 2000, 2002a, 2002b), bem como a filosofia das virtudes de Comte-Sponville (1995). Por conta disso – antes de entrar na análise da personagem – na Parte II deste trabalho, apresentamos nossa metodologia, a saber, realizamos uma pesquisa documental. 27 Na Parte III, discorremos sobre o referencial teórico adotado. Basicamente, tecemos considerações sobre os valores éticos/morais referentes à Psicologia moral (PIAGET, 1932/1994), à Psicologia das virtudes (LA TAILLE, 1992, 1998, 2000, 2002a, 2002b), além de nos voltarmos a definições de virtude e sua importância na construção da moralidade (COMTE-SPONVILLE, 1995). Na parte IV, apresentamos a vida de Saramago e o contexto histórico em que se deu o seu nascimento, a adolescência, a adultícia e, por fim, a velhice e sua morte. Na parte V, apresentamos análise de falas, pensamentos e condutas da “mulher do médico” – a única a não ser tomada pela cegueira branca; Por fim, apresentamos um conjunto de considerações finais, à guisa de conclusão. 28 2 METODOLOGIA 29 2.1 Modalidade de pesquisa Denominamos documental a modalidade de pesquisa que desenvolvemos no presente estudo, conforme a conceituação apontada por Gil (1987). Ela muito se assemelha à bibliográfica, diferenciando-se em relação à natureza das fontes, pois a documental trata analiticamente de materiais que ainda não foram submetidos a tal expediente ou que podem ser reconstituídos de acordo com o objeto de estudo em questão – no nosso caso, os valores presentes na “mulher do médico” em Ensaio sobre a cegueira (SARAMAGO, 1995). Essa modalidade de pesquisa contribui para a análise de documentos já acusados, mas que permitem receber variadas interpretações; embora não tenham sido desenvolvidas pesquisas sobre a psicologia moral e ética quanto a essa obra. Dessa forma, “esquadrinhamos” a obra. Fizemos um exame minucioso de todos os elementos relacionados à psicologia ética e moral. Para tal, consideramos as proposições de Piaget (1932/1994) e de outros estudiosos e colaboradores. Entre eles, citamos: Comte-Sponville (1995), Gilligan (1982), Kohlberg (1981/1992) e La Taille (1992, 1998, 2000, 2002a, 2002b). 2.2 Processo Inicialmente, a partir da elaboração do nosso projeto de pesquisa, realizamos uma leitura que nos permitisse estar fronte à amplitude de perspectivas possibilitadas pela obra Ensaio sobre a cegueira (1995), entretanto já nos atentando às cenas que pudessem nos levar às análises pretendidas. Em continuação, realizamos o levantamento acerca da biografia de Saramago, compreendendo o período anterior ao seu nascimento até a sua morte, bem como do contexto histórico ao qual pertenceu. A partir de então, elaboramos um capítulo concernente à biografia de Saramago. Procedemos dessa forma por termos por apropriada a noção de que o artista possui um papel social, o qual, por sua vez, influencia o conteúdo de suas obras. Paralelamente, fizemos leituras e estudos sobre a sociedade moderna e a neo ou pós-moderna. Visávamos, com isso, demonstrar a possibilidade de autonomia por parte do sujeito racional e virtuoso, como nos aponta Piaget (1932/1994), o que contrasta com algumas teorias pós-modernas que colocam o 30 sujeito como descentrado, criando, assim, o referencial da “morte do sujeito”. Ressaltamos, porém, que o citado referencial foi retirado de nossa pesquisa por não tê-la contemplado. Na sequência, passamos para uma nova leitura, o estudo e o fichamento da obra Ensaio sobre a cegueira (1995). Assim, pudemos direcionar ainda mais nossa pesquisa, já que elegemos a “mulher do médico”, uma personagem da obra, como nosso cerne analítico. Dessa forma, selecionamos os trechos referentes à mulher do médico, única personagem não tomada pela cegueira. Para a execução da análise, optamos pela divisão em subitens, tais como a questão da coletividade ou falta dela, do machismo, do estupro, do papel dos intelectuais em sociedades complexas, da perda de identidade, do cuidado com o próximo, da beleza, do excesso de informações decorrente das sociedades pós- industriais, entre outros. Com isso, pudemos realizar, então, a análise dos resultados que encontramos. Após o exame de qualificação, porém, considerando as recomendações, refizemos parte da análise. Posteriormente, elaboramos um resumo da análise de modo a facilitar a possível leitura realizada por outros pesquisadores ou interessados pelo tema. Por fim, foram elaboradas nossas considerações finais. Julgamos importante ressaltar também que a pesquisa foi vista pela banca de defesa como contribuinte para outras áreas do saber, como a educacional. Desse modo, pretendemos desenvolver uma pesquisa em continuação à presente dissertação destacando tais implicações. 31 3 REFERENCIAL TEÓRICO 32 3.1 A psicologia moral de Jean Piaget Embora Piaget tenha escrito apenas uma obra em relação ao desenvolvimento moral, a saber, O juízo moral na criança (1932/1994), o referido pensador trouxe grande contribuição para o campo da Psicologia Moral. Na mencionada obra, informamos que o emérito pensador de Genebra definiu a moral como um conjunto de regras e valores que tem por finalidade possibilitar a harmonia social. Isso significa que a aquisição de valores morais é essencial para a vida em sociedade, independente do conteúdo dessa moral. Na sequência, iniciou os estudos sobre a psicogênese moral por meio dos jogos regrados (bolinha de gude, por exemplo). Diante disso, a primeira indagação a ser feita refere-se aos motivos que o teriam levado a iniciar seus estudos sobre o juízo moral justamente com os jogos, pois eles não são morais. É possível depreender que ele agiu assim porque os jogos, como a moral, trata-se de uma atividade interpessoal ou interindividual; o respeito necessário para a sua efetivação é produto de acordos mútuos e envolve valores morais (justiça e honestidade, por exemplo). Utilizou como método, visando o estudo da consciência sobre as regras do jogo, o interrogatório acerca da origem das regras – de onde elas vieram, quem as inventou e se podiam ser modificadas. Quanto à prática, Piaget (1932/1994) pediu aos sujeitos que o ensinassem a jogar, com o argumento de que tinha jogado há muito tempo e, por isso, tinha se esquecido de como proceder no citado jogo. Os resultados mostraram que as crianças constroem três maneiras distintas de se relacionar com as regras do jogo, nomeadas por Piaget (1932/1994) de anomia, heteronomia e autonomia. É evidente que esses modos de relacionamento são dependentes da interação do sujeito com o meio físico e, sobretudo, com o social. Caso ele não interaja ou os estímulos ofertados sejam poucos ou de qualidade questionável, esse processo não ocorrerá. Em outros termos, a aquisição das regras do jogo e da moral, tendo por parâmetro La Taille (1992), a) não é produto apenas do indivíduo (apesar de ele participar ativamente desse processo); b) é produto também do meio, já que é um fato social, ou seja, em última análise, c) é produto de relações interindividuais. Além disso, não podemos desprezar a força dos afetos nesse processo, como afirmou o próprio Piaget (1964/1973, p. 37-38, itálicos nossos): 33 Em toda conduta, as motivações e o dinamismo energético provêm da afetividade, enquanto que as técnicas e o ajustamento dos meios empregados constituem o aspecto cognitivo. Nunca há ação puramente intelectual (sentimentos múltiplos intervêm, por exemplo: na solução de um problema matemático, interesses, valores, impressão de harmonia) assim como também não há atos que sejam puramente afetivos (o amor supõe a compreensão). Feitos esses esclarecimentos, os resultados apontaram que, primeiro, as crianças interagem com as regras do jogo de maneira anômica. Essa forma de relação, segundo Piaget (1932/1994), vai do nascimento até a idade média de 5 (cinco) ou 6 (seis) anos de idade. Essencialmente, caracteriza-se pela ausência da moral, ou seja, os sujeitos nessa condição “não seguem regras coletivas”, estando mais interessados em satisfazer-se do ponto de vista motor e fantasioso. Apesar disso, durante esse momento, a criança começa a considerar interessante a noção de regularidade. Na sequência, Piaget (1932/1994) notou que as crianças com idade entre 6 (seis) e 9 (nove) ou 10 (dez) anos, em média, apresentavam comportamentos diferentes em relação a tais regras. Ele denominou esse “período” de heteronomia, que significa ser governado por outras pessoas – o equivalente de menoridade em Kant (1783/2005). Agora, elas manifestam “interesse em participar das atividades coletivas e regradas” (LA TAILLE, 1992, p. 50). Contudo, ainda o fazem de maneira egocêntrica, ou seja, elas brincam ao lado de outras crianças, mas não com ou contra elas. Duas características explicitam, então, a heteronomia: a primeira refere-se à interpretação acerca da origem das regras, assim como à possibilidade de elas serem modificadas. As crianças, nesse momento, acreditam que as regras foram feitas há muito tempo por “senhores” e/ou por Deus e, mesmo que os jogadores concordem, é impossível que elas sejam modificadas. Dessa forma, elas não se concebem como legisladoras (inventoras de regras). A segunda refere-se ao respeito rígido e inquestionável no tocante às regras, do ponto de vista teórico (no discurso), e o desrespeito prático. Em outras palavras, como o próprio Piaget (1932/1994) verificou, depois de iniciado o jogo, as crianças introduziam novas regras, visando obter melhor desempenho, sem tomar consciência de que as estavam desrespeitando. Isso ocorria porque elas ainda não 34 tinham construído o significado da existência das regras, vendo-as de maneira semelhante às leis físicas. Na autonomia, que ele verificou ocorrer a partir dos 9 (nove) ou 10 (dez) anos em diante, a maioria dos sujeitos apresentou características opostas às do período anterior. Nesse momento, eles respeitam e cumprem efetivamente as regras, além de tal respeito ser produto de acordos mútuos. Aqui podemos dizer que eles passam a se comportar como legisladores. Diante desses resultados, o referido estudioso começou a indagar se, em relação aos deveres propriamente morais, os sujeitos se relacionariam também dessa maneira. Com a finalidade de solucionar esse questionamento, realizou novos estudos, tendo como objeto os deveres morais. Antes, porém, de apresentar os resultados, julgamos importante apresentar os motivos que o levou a prosseguir seus estudos de psicologia moral a partir da análise da relação do sujeito com o dever. Elencamos: a) o ingresso no universo moral se dá pela aprendizagem de diversos deveres impostos pelos pais, como o de não mentir, não furtar, não falar palavrão, entre outros, e b) a imposição desses deveres só é possível quando o sujeito manifesta interesse em participar de atividades coletivas e regradas. Ao estabelecer conversações com as crianças sobre o furto, a mentira e o desajeitamento material, chegou aos seguintes resultados: há uma fase de heteronomia, antes da de autonomia, que se traduz pelo realismo moral. Este, por sua vez, apresenta três características: 1ª toda ação será considerada boa se estiver de acordo com as regras ou com aquilo que os adultos dizem; 2ª os deveres são entendidos literalmente, ou seja, ao pé-da-letra; 3ª por conseguinte, o desrespeito aos deveres é julgado em função do seu aspecto exterior (realidade objetiva) e não da intencionalidade (realidade subjetiva). Isso acontece porque a) as normas morais não são construídas ou reconstruídas pelo sujeito, b) a concepção de dever é compreendida como sinônimo de obediência ao estabelecido, c) há o desconhecimento do espírito e das razões que levaram à formulação das leis. Na autonomia ocorre a superação desse estado de coisas (o realismo moral). Em consequência, os deveres passam a ser produtos de acordos entre os indivíduos e não mais mera obediência ao instituído. 35 Piaget (1932/1994) deu prosseguimento aos seus estudos acerca da psicologia moral, investigando a noção de justiça. Concordamos com La Taille (1992) que ele fez isso por vários motivos. Primeiro: em relação ao dever, foi vista basicamente a moral da heteronomia. Isso significa que o dever se cumpre, não necessitando de reflexão. A justiça, diferentemente, demanda o pensar, a análise da situação sob diferentes perspectivas. Só assim, o sujeito tomará uma decisão justa. Podemos dizer que o modelo ontogenético apresentado por Piaget (1932/1994) prevê a construção de um sujeito autônomo. Segundo: a justiça é a noção moral mais racional e fácil de ser investigada do ponto de vista metodológico. O próprio Piaget (1932/1994, p. 156, itálicos nossos) dá subsídios a essa tese ao dizer que [...] se o aspecto afetivo da cooperação e da reciprocidade escapa ao interrogatório, há uma noção, a mais racional sem dúvida das noções morais [...] cuja análise psicológica pode ser tentada sem muitas dificuldades: a noção de justiça. Terceiro: é mais ou menos independente das influências adultas para se desenvolver. “É quase sempre à custa e não por causa do adulto que impõe à consciência as noções de justo e de injusto”, tornando necessário, tão somente, o respeito mútuo e a solidariedade entre as crianças (PIAGET, 1932/1994, p. 156). Quarto: é a noção ou virtude que reúne as demais, como afirmou Bergson (apud LA TAILLE, 1992) e Aristóteles (343 a.C./1991), pois envolve ideias relacionadas à reciprocidade e ao equilíbrio. Escrevia Bergson que a noção de justiça é a mais instrutiva de todas as noções morais porque engloba todas as outras: ela envolve ideias matemáticas como as de proporção, peso, compensação, igualdade, e costuma ser evocada pela imagem da balança, símbolo da reciprocidade e do equilíbrio. (LA TAILLE, 1992, p. 53) De maneira semelhante aos inquéritos acerca dos deveres, Piaget (1932/1994, p. 160) perguntou às crianças aspectos com o seguinte teor: “Será que as punições que se dão às crianças são sempre muito justas, ou então, será que há umas menos justas do que outras?” Os resultados novamente mostraram que a criança, antes da autonomia, se relaciona de maneira heterônoma em relação a esse valor. Isso significa que elas: a) 36 confundem justiça com lei e com o que as autoridades dizem; b) partem da ideia de que todo crime será castigado, seja por meio da justiça “imanente” ou retributiva. Já na autonomia, ocorre a separação entre justiça, lei e autoridade. A ideia principal aqui é a seguinte: todo ato deve ser avaliado por meio da reciprocidade e da aplicação do imperativo categórico kantiano, a saber: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1785/2004, p. 51). Quanto às sanções, as crianças privilegiam as por reciprocidade, como a de “excluir do grupo alguém que mentiu porque a mentira é justamente incompatível com a confiança mútua” (LA TAILLE, 1992, p. 54). Feitas essas pesquisas, Piaget encerrou O juízo moral na criança (1932/1994) dissertando sobre os fatores determinantes do desenvolvimento moral, ou seja, os motivos responsáveis pela “passagem” da heteronomia para a autonomia. Cabe dizer, inicialmente, que as relações interindividuais produzem efeitos psicológicos diversos. E, como dissemos, não são unicamente produtos da sociedade como um todo e nem do indivíduo como unidade isolada. Elas podem ser agrupadas em dois tipos de relação: as de coação e as de cooperação. As coercitivas são relações assimétricas, de imposição, ou seja, um dos polos impõe ao outro suas formas de pensar, seus critérios e verdades. Isso acontece porque as regras são dadas de antemão e, portanto, não são construídas ou reconstruídas pelos sujeitos. Assim, nesse tipo de relação, não há reciprocidade, pois é uma relação constituída. Quase sempre mantida pela tradição e por nela não existir a reciprocidade (pensamento operatório), reforça o egocentrismo (característica principal do período pré-operatório), já que dificulta o colocar-se no lugar do outro. Imaginemos os reflexos: o sujeito tem seus pensamentos como sendo a verdade, que, por sua vez, foram introjetados pela tradição imposta; assim, não leva em consideração os do próximo. Os sujeitos, em decorrência, acabam acreditando, mas não sabem os motivos para isso. Nas palavras de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), eles estão condenados a muito crer e a nada saber (1762/1973). No que se refere à moral, esse tipo de relação leva ao respeito unilateral pelas leis e/ou pelas autoridades, além de uma assimilação deformante das razões de ser das diversas regras (o sujeito se pauta, basicamente, pelo realismo moral). 37 Desse tipo de relação, deriva a heteronomia moral, a qual fornece um modelo a ser seguido. As cooperativas – que significa agir mentalmente (pensar), levando em consideração outrem – são simétricas; portanto, norteadas pela reciprocidade. Por esse motivo, são relações constituintes. Dessa forma, solicitam mútuos acordos entre os sujeitos, pois as regras não são dadas de antemão. Sublinhamos que, somente com a cooperação, o desenvolvimento intelectual e moral podem ocorrer. Nesse sentido, há a exigência de descentração, exatamente o processo que pode levar ao respeito mútuo e à autonomia. É inclusive, por isso, que Piaget (1932/1994) defendeu os trabalhos em grupo. Para ele, estes promovem a cooperação, exatamente por constituir relações entre iguais. Em síntese: na heteronomia [coação], o dever determina o bem (é bom o que é conforme às regras aprendidas), na autonomia [cooperação], o bem determina o dever (deve-se agir de uma determinada forma porque é bom). (LA TAILLE, 1992, p. 60) Esclarecemos que esse agir não significa fazer igual, mas levar em consideração o outro, mesmo quando se discorda dele. É, tão somente, coordenar pontos de vista (é um escutar o outro). Do ponto de vista linguístico, é realmente concretizar o processo comunicativo, ou seja, a relação entre emissor e receptor. Assim, as relações de cooperação fornecem um método (uma forma), ou seja, “o bem não é definido de antemão, mas poderá nascer ou se renovar a cada experiência de cooperação” (LA TAILLE, 1992, p. 61). Sendo assim, entendemos que o indivíduo contemporâneo evidencia-se ser um sujeito heterônomo. Para Kant (1783/2005), isso significa que ele não age de maneira moral, pois, para este autor, agir dessa forma só é possível se ele basear- se no imperativo categórico, isto é, pela reciprocidade. Para Piaget (1932/1994), diferentemente, ele é moral; porém, o seu discurso e sua prática pautam-se pela heteronomia, que significa ser governado por outras pessoas. Nesse sentido, praticamente todas as pessoas não teriam subjetividade ou esta não poderia ser compreendida como autônoma, “completa”. De qualquer forma, é possível depreender de Piaget (1932/1994) que isso não inviabiliza a sua teoria acerca da 38 possibilidade de construção da subjetividade ou que inexistam pessoas autônomas (apesar de elas serem raras). 3.2 A psicologia das virtudes O outro referencial adotado – a psicologia das virtudes –, é decorrente do piagetiano. Só o apresentamos separadamente, por questões didáticas, e por La Taille (1992, 1998, 2000, 2002a, 2002b), seu principal sistematizador no Brasil, tecer considerações, também, sobre a dimensão ética (a do dever ser). La Taille (1998) propõe que o indivíduo atua moralmente por meio de influência de valores que não se resumem unicamente à justiça, como defende Kohlberg (1981/1992), Kant (1785/2004) e até Piaget (1932/1994). A esse respeito, a psicóloga Gilligan (1982) defende que as pessoas são pautadas, além da ética da justiça, pela ética do cuidado. Tal premissa baseou-se em estudos feitos a partir da aplicação de dilemas morais em meninos e meninas. Ao fazer isso, constatou que, frequentemente, o menino era guiado pela ética da justiça. Por causa disso, em presença de um dilema moral, ele reagia como se estivesse diante de um problema matemático. A menina, ao contrário, preocupava- se com o resultado do seu ato para a relação. Ela considerava “o mundo constituído de relacionamentos e não de pessoas isoladas, um mundo compatível com conexões humanas em vez de um sistema de regras” (GILLIGAN, 1982, p. 40). Consideramos importante ressaltar, entretanto, que, ao aplicar dilemas morais em meninos e meninas, a referida pesquisadora não pretendia comprovar qualquer espécie de binarismo de gênero em sua teoria, mas somente assim o fez a fim de perceber outras orientações morais existentes (não apenas a justiça). Flanagan (1991/1996), por sua vez, critica as perspectivas de Piaget (1932/1994) e de Kohlberg (1981/1992) por considerá-las limitadas. Para Flanagan (1991/1996), os dois citados pensadores reduzem a moral à ética da justiça e a um conjunto de regras que regula as relações interpessoais. Ademais, o referido filósofo problematiza o conteúdo e o método priorizados por Piaget (1932/1994) no estudo da moralidade. Segundo Pedro-Silva (2006, p. 60), isso significa dizer que Flanagan (1991/1996) questiona 39 [...] as suas [de Piaget] ideias de desenvolvimento moral, a descrição da psicologia moral em períodos, a primazia da razão na determinação da moralidade, o uso da linguagem como meio de verificação da consciência moral, e o fato de sua concepção de moralidade em direção à autonomia estar centrada na justiça e incidir unicamente nas relações interpessoais. Em relação ao fato de Piaget (1932/1994), conforme já dito, ter iniciado seus estudos sobre o desenvolvimento da moralidade a partir dos jogos de regras, Flanagan (1991/1996) demonstra certa simpatia, já que, em diversos casos, as regras do jogo são moldadas pela própria vida moral. Ele também concorda com a perspectiva piagetiana de a criança “passar” de uma fase heterônoma para uma autônoma, como já explicamos. A questão, porém, encontra-se no fato de Piaget (1932/1994) não ter mencionado a diferença existente entre o desenvolvimento das regras de um jogo e as da vida moral propriamente. Nesse sentido, Flanagan (1991/1996) explana que as regras de um único jogo podem ser várias, inclusive paradoxais entre si, enquanto não se é possível aprender várias concepções morais. Assim, quando a criança aprende preceitos morais, ela não tem à disposição outros sistemas de regras possíveis. Ainda em relação aos jogos compostos por um conjunto de regras, Flanagan (1991/1996) critica o fato de Piaget (1932/1994) compará-los à vida moral. Para aquele, os jogos, como bolinha de gude, pressupõem a disposição de todos os jogadores para executá-los. Em outros termos, todos devem estar dispostos a seguir as regras do jogo para que sua realização seja possível. Entretanto, existem jogos que, por serem praticados individualmente, não necessitam da coordenação de diferentes perspectivas, não se encontrando, assim, subjugados a coações externas. Por essa via, de acordo com Pedro-Silva (2006, p. 62), isso também pode ocorrer [...] com uma pessoa quando estabelece objetivos para sua vida, muitas vezes pouco dependente das opiniões alheias, ou quando apresenta atitudes de compaixão e generosidade em relação a um amigo que passa por problemas. Embora em tais situações possam estar presentes condutas decorrentes desse elemento de obrigação, como a tolerância mútua, elas não são, em si, vistas como deveres para o sujeito e tampouco são dependentes de relações interpessoais. 40 Além do mais, Flanagan (1991/1996) também aponta para a inexistência de estruturas de regras complexas e codificadas em determinados jogos, como o próprio Piaget (1932/1994) verificou em relação ao jogo de amarelinha. Por fim, defende que alguns elementos morais, como o amor, a amizade e a generosidade são totalmente estranhos aos jogos de regras. Sobre isso, Cada vez que um jogador ou um time ganha um ponto ou melhora sua posição, um outro jogador sofre uma perda correspondente, e no fim há um que ganha e um que perde. Isto distingue o jogo de bolinhas de numerosos jogos de um único jogador (apesar de existirem jogos com um só jogador e com resultado nulo, como o solitário), assim como numerosos jogos ou formas de jogo de vários jogadores, como pular corda, correr, acertar a cesta de basquete, brincar de boneca, representar uma peça de teatro ou cantar. É certamente verdadeiro que aspectos importantes da moral têm como objeto a regulação (ou o controle) do comportamento dos indivíduos em situações competitivas. Mas isto não é verdadeiro para toda a vida ética. (FLANAGAN, 1991/1996, p. 226-227) Em seus apontamentos, Flanagan (1991/1996) enfatiza, porém, alguns momentos de reconhecimento da restrição dessa teoria – pautada na ética da justiça - pelo próprio Piaget (1932/1994). Inicialmente, ele aponta para a afirmação piagetiana de que parte da consciência moral se forma relativamente independente das regras morais, sobretudo aquelas que viabilizam a cooperação. [...] o sentimento do bem resultaria daquela tendência mesma que impele os indivíduos a se respeitarem e situarem-se mentalmente no espírito uns dos outros [...] não há nada na forma do dever que obrigue seu conteúdo a estar conforme ao bem [...] (PIAGET, 1932/1994, p. 285-286) Dessa forma, vemos um Piaget (1932/1994) hesitante quanto a afirmar que o respeito decorre unicamente de uma necessidade racional. Os sentimentos também têm importante contribuição nesse processo, já que, para ele, o indivíduo teme decair moralmente aos olhos do sujeito respeitado. Ademais, existem os valores não morais, estimados pelo indivíduo, que também devem ser considerados. Piaget (1932/1994) ainda defende que não existe nada na moral alicerçada em regras que justifique a intenção dos indivíduos de agirem segundo o bem. Nessa perspectiva, Flanagan (1991/1996) diz que não basta às pessoas terem uma concepção autônoma das regras que as governam no âmbito ético, mas importa que elas consigam avaliar criticamente o conteúdo em relação à qualidade das regras 41 que as cercam. Caso contrário, todo tipo de ideal autônomo, mesmo que duvidoso, torna-se legítimo. É o caso, por exemplo, de indivíduos que fazem o uso de sua competência cognitiva e moral para subjugar os demais. Flanagan (1991/1996) também tece críticas relacionadas diretamente a Kolhberg (1981/1992), outro representante da justiça como principal norteadora da moralidade. Devido a essa perspectiva, este limitou suas pesquisas a uma concepção deontológica. Isso significa dizer que toda a vida ética é passível de análise e é guiada por um modo de pensar único e unificado. Kolhberg (1981/1992) justifica sua escolha por entender a justiça como a primeira virtude da sociedade, que deve ser também a do indivíduo. Sendo assim, ampara-se na concepção de moralidade como um sistema de regras que visa à regulação das relações interpessoais. São, dessa maneira, desconsideradas como morais as normas para a construção de uma vida boa. A esse respeito, Flanagan (1991/1996, p. 236-237) discorre: A ideia de que uma concepção da moral exclusivamente centrada nos direitos, nos deveres e nas obrigações não é uma invenção recente [...] O fato de que outros aspectos da moral tenham desaparecido do quadro da psicologia moral é, em grande medida, devido à predominância do pensamento de Lawrence Kolhberg. Em vez de explorar esta lacuna da teoria de Piaget, Kolhberg a recobre, apropriando-se de maneira obstinada de tudo o que é mais racionalista na obra de Piaget. Acerca das referidas apropriações, Flanagan (1991/1996) demonstra sua utilização indevida por Kolhberg (1981/1992) a partir de passagens da obra de Piaget (1932/1994). O primeiro afirma que este, Piaget, considera constantemente em sua obra a presença de outras virtudes morais. Por exemplo, quando Piaget (1932/1994) refere-se às regras dos jogos, aponta que as crianças são levadas a obedecê-las, além da necessidade de respeitar a lei, por uma espécie de boa vontade. Piaget (1932/1994) também discorre sobre outras virtudes, como a generosidade, presentes nas relações entre pais e filhos. Segundo ele, tais excelências não foram impostas, portanto não são engendradas a partir da moral da obediência. Ele, ao pesquisar se as crianças realmente consideram profícuas as punições, ainda retoma a generosidade como uma virtude eficazmente influente nas condutas morais, já que impede a reincidência do delito. 42 Ademais, quando se volta para a relação entre noção de justiça e autoridade adulta, percebe que existe uma fase em que as crianças, mesmo não concordando que seja justa a ordem dos pais, obedecem-lhes por gentileza. Por fim, além de outras virtudes capazes de guiar as condutas morais, Piaget (1932/1994) coloca a solidariedade como eixo norteador das condutas quando investigou a responsabilidade coletiva – todos serem punidos se o agente causador do delito for desconhecido ou se ninguém quiser denunciá-lo. Julgamos, portanto, pertinentes as críticas em relação a Kolhberg (1981/1992), ao defender uma concepção deontológica e racionalista da moralidade humana a ponto de, por um lado, subestimar, e por outro, superestimar aspectos significativos da obra de Piaget (1932/1994). Os filósofos Campbell e Christopher (1996) também teceram críticas nesse sentido. Eles reconhecem que, para a construção da moral, não bastam apenas a justiça (razão) ou o cuidado (afeto). Para eles, outros valores podem influenciar os julgamentos e as condutas morais. Em relação à razão como norteadora do desenvolvimento moral, os autores a definiu como o cerne da filosofia moral de Kant (1783/2005). Este apenas considerava uma ação como moral quando estivesse de acordo com o dever e também tivesse sido feita por dever. Assim, a ação apenas seria considerada moral se fosse passível de universalidade, ou seja, quando racionalmente era validada para todos os seres racionais; portanto, em detrimento de interesses individuais. Dessa perspectiva kantiana, Campbell & Christopher (1996) afirmam ter emergido duas outras concepções complementares: a formalista e altruísta. Segundo Pedro-Silva (2006, p. 72), [enquanto a primeira] privilegia a forma do raciocínio moral em detrimento do seu conteúdo; a segunda concebe a ação moral como essencialmente voltada para o outro, pois está baseada no sacrifício dos interesses pessoais em nome dos alheios. Logo, tem-se uma moral referenciada no outro – other-regarding. Dessa forma, para Campbell & Christopher (1996), valores intrapessoais – self-regarding – considerados morais em muitas sociedades, como a coragem e a honestidade, são relegados. 43 Os referidos pensadores também creditam ao caráter racionalista que compõe grande parte das pesquisas a subordinação do desenvolvimento moral ao cognitivo, como defendia Kohlberg (1981/1992). Tugendhat (1996), filósofo que tem como temas de reflexão a ética e a linguagem, fez críticas semelhantes quando se referiu ao fundamento (princípios) que, segundo Kant (1783/2005), determina a ação moral. Ele concorda com este filósofo em relação ao que expressa o imperativo categórico apenas se a intenção for a de viver em sociedade. Entretanto, tece críticas à tese kantiana a respeito de o fundamento da moral estar apoiado numa razão pura, sem influência do mundo empírico e dos sentimentos (inclinações). Importa dizer que Kant (1783/2005) concorda que as inclinações também exercem influência nas ações morais, porém ele quer que a razão seja o cerne. Tugendhat (1996, p. 168, itálicos nossos) tece considerações a esse respeito ao analisar a formalidade kantiana: „P, se se deixa determinar exclusivamente pela razão, quer necessariamente x‟, então podemos ver agora que Kant nem contesta esta proposição, mas que ele apenas questiona pela possibilidade de P deixar- se determinar exclusivamente pela razão – sem inclinações. Que o ser humano, quando se deixa determinar pela razão pura, necessariamente vai querer x, é de fato analítico [...] Mas que ele pode deixar-se determinar pela razão pura, isto deve parecer um prodígio [...] não só, que é tão difícil (e na minha opinião: impossível) tornar inteligível uma proposição que pretende que fazer algo seja racional em si e não apenas relativamente, mas ainda também que a motivação correspondente vai contra o antropologicamente [diria, também, psicologicamente] compreensível e faz Kant apelar a uma proposição sintética a priori, que o obrigará por sua vez então à suposição, que o homem só pode ser moral, se ele é ao mesmo tempo compreendido como membro de um mundo suprassensível. Taylor (1989/1996) – professor de filosofia moral –, também aponta críticas sobre o reducionismo moral quando analisa aspectos acerca de identidade moderna. Para o referido autor, a concepção kantiana subjuga a moral às obrigações referentes ao outro em detrimento do próprio eu. Nesse sentido, para ele, ao se definir a moral como um conjunto de obrigações que tem o outro como figura principal, marginalizam-se outras questões consideradas moralmente valorosas, importantes tanto individualmente quanto nas próprias relações. Falamos sobre o modo como se vive a vida, como se atende apropriadamente aos interesses ou às exigências depositadas em si próprios por outras pessoas, inclusive aquelas que se voltam para a construção de uma vida 44 plena, ou seja, boa e significativa. Para ele, estas são imprescindíveis pra compreender as questões morais. Sendo assim, Taylor (1989/1996) busca refletir acerca do conceito de identidade e o modo como esta se articula com a moral. Conforme afirma, a relação entre elas foi abandonada devido ao relativismo moral engendrado pela natureza pluralista das sociedades modernas. Ademais, também houve influência dos paradigmas voltados à definição do conteúdo da obrigação em detrimento daquele que se preocupa com a natureza de uma vida boa. A „moralidade‟, com efeito, pode ser e com frequência é definida tão- somente em termos do respeito aos outros. Considera-se que a categoria da moral abrange precisamente nossas obrigações para com as outras pessoas. Se, contudo, adotarmos essa definição, teremos de admitir que existem outras questões além da moral que são de essencial importância para nós e põem em jogo uma avaliação forte. Há questões sobre como vou levar minha vida que remetem ao aspecto de que tipo de vida vale a pena ter ou que tipo de vida vai cumprir a promessa implícita em meus talentos particulares, nas exigências incidentes sobre alguém com minha capacidade, ou do que constitui uma vida rica e significativa em contraposição a uma vida voltada para questões secundárias ou trivialidades. Trata-se de interrogações de avaliação forte, visto que quem as faz não tem dúvida de que se possa, ao seguir os próprios anseios e desejos imediatos, dar um mau passo e, em consequência, fracassar na tarefa de levar uma vida plena. (TAYLOR, 1989/1996, p. 28-29, itálicos nossos) Em síntese, Taylor (1989/1996) enfatiza a importância das noções acerca de uma vida plena para se apreender a moralidade, e não apenas das que estão pautadas na obrigação para com o outro. Ademais, afirma que existem os aspectos referentes à dignidade, ou seja, que fazem do indivíduo alguém digno de respeito ou não. Não me refiro agora ao respeito a direitos, no sentido da não-violação, que podemos denominar respeito „ativo‟, mas ao pensar bem de alguém, até mesmo admirá-lo, que é o que está implícito quando dizemos na linguagem comum que alguém tem nosso respeito [consideração]. (TAYLOR, 1989/1996, p. 29) Dessa forma, os referidos pensadores apresentaram a necessidade de se considerar outras concepções de moralidade a fim de retomar a relação entre o desenvolvimento do eu e outros valores. Para tal, a doutrina moral aristotélica lhes pareceu mais apropriada. Segundo Aristóteles (343 a.C./1991), as virtudes são as 45 únicas que podem nos conduzir ao bem e à felicidade. Assim, devemos nos orientar para a busca da felicidade por meio de seu exercício. Além dos argumentos de cunho filosófico acerca dos valores morais já apontados, julgamos necessário destacar os de base psicológica. Isso porque o sujeito possui uma imagem de valor de si, isto é, fazemos uma leitura positiva de nós mesmos, a qual, segundo Perron (1991), configura um valor a ser preservado. La Taille (1998, 2000, 2002a, 2002b), por sua vez, classifica os valores empúblicos (morais), privados (éticos) ou formas de glória. Os públicos almejam a harmonia social, como o faz a noção de justiça. Por isso a moral é construída tendo o outro como objeto de preocupação e, dessa forma, diz respeito à dimensão do “dever agir”. Referindo-se aos privados (éticos), estão alicerçados no eudemonismo (ARISTÓTELES, 343 a.C./1991) e também buscam a harmonia ou alguma forma de felicidade, ou seja, dizem respeito à dimensão do “dever ser”. Embora busquem harmonia, ela se encontra agora no pessoal, diferentemente dos valores públicos, que visam à social. Entretanto, só podem ser considerados éticos se estiverem subordinados aos morais. Isso porque os éticos não são essenciais à harmonia social, segundo La Taille (1998, 2000). Para nós, é o caso, por exemplo, da amizade, que, apesar de gerar felicidade, é dispensável para a ordem social. Dessa forma, se os considerarmos diretores de nossas ações, a harmonia social e, consequentemente, a individual tendem a desaparecer. Eis como La Taille (2006, p. 29-30) se pronunciou acerca dos valores morais e éticos, iniciando sua reflexão com a definição de eudemonismo, pois alguns autores [...] consideram que os homens sabem o que é a felicidade, devendo a filosofia dar-lhes as técnicas apropriadas para conquistá-la. É o caso do utilitarismo [...] para quem a felicidade consiste em prazer e ausência de dor – coisa que todo ser humano [...] sabe muito bem, mesmo que intuitivamente. Outras teorias debruçam-se sobre a problematização do que seja a felicidade, negando-lhe um status natural. [Para Aristóteles] não há felicidade possível sem o cultivo das virtudes, por intermédio do qual os homens podem atingir a elevação. [Isso não significa que] Os teóricos do eudemonismo desconhecem a dimensão deontológica (deveres) e sua importância fundamental para o convívio, mas a colocam no segundo plano de suas reflexões [...] Esse não é o caso de pensadores como Kant, o qual elege a dimensão dos deveres [moral] como central em suas reflexões. [...] para ele, a tarefa da moral não é a de ensinar como ser feliz, mas como merecer sê-lo. Em suma, os dois temas, o da moral – deveres – e o da ética 46 – “vida boa” –, encontram-se em todas as reflexões sobre as condutas humanas e o porvir de suas vidas. As formas de glória (beleza, força física, fama, riqueza) podem ser consideradas valores, como afirma La Taille (1998, 2000), pois são apreciadas pelos indivíduos, além também de serem fortes influenciadoras de suas ações. Tais valores, a nosso ver, são decorrentes do hedonismo e/ou do higienismo, ou seja, da busca pelo prazer individual ou do cuidado consigo mesmo (como se, para isso, nenhuma ou pouca importância tivesse outrem). É uma trivialidade comum a religiosos e ateus, racionalistas e místicos: o hedonismo nos corrompe, torna-nos pequenos, covardes e, claro, consumistas. Será que é verdade? Uma coisa é óbvia: somos demasiado preocupados com nossa sobrevivência para sermos hedonistas. Um pé na balança e um olhar inquieto para os números do colesterol na hora de abocanhar chocolate ou queijo, um ou dois preservativos (sobrepostos) no momento de transar (de preferência no sábado, que amanhã dá para descansar), preocupados com nossa reputação na hora de escolher o lugar de um encontro furtivo, apreensivos na hora de gastar, envergonhados, temerosos e arrependidos já antes do ato: esses somos nós, os pretensos "hedonistas" modernos. Os únicos hedonistas, entre nós, são poucos e marginalizados: heroinômanos queimando o organismo para viver um orgasmo permanente ou promíscuos procurando raivosamente o gozo, noite adentro, nos escassos e precários lugares da orgia. O papa, em geral, opõe o suposto "hedonismo" contemporâneo à "cultura da vida". É a maneira que ele encontrou para defender casamento e procriação contra divórcio e aborto. O estranho é que os outros (que não são papas) não percebam que a "cultura da vida" já ganhou faz tempo: a preservação de nossa existência é, para nós, infinitamente mais importante do que a procura do prazer. Somos higienistas, isso, sim. Mas não hedonistas. [...] A tese segundo a qual o luxo e a luxúria enfraquecem os cérebros e os músculos é uma ideia "pop" [...] (CALLIGARIS, 2007). Portanto, não julgamos as formas de glória como valores públicos ou privados, uma vez que não visam à harmonia social ou à alguma forma de felicidade. Ressaltamos que, para La Taille (1998, 2000), o tipo de valor é determinante das ações morais. Assim, se os valores públicos forem centrais em nossa identidade moral4, o sujeito poderá envergonhar-se, por exemplo, por ter agido desonestamente. Por outro lado, se predominar as formas de glória, o indivíduo provavelmente nutrirá indignidade por não possuir fama, riqueza ou por não alcançar o padrão de beleza sonhado. 4 Sobre a personalidade moral, ver Puig (1998). 47 Ademais é possível ao indivíduo, conforme o mesmo autor, privilegiar alguns valores em detrimento de outros, o que o faz associar sua identidade a específicas noções morais, como coragem, lealdade, honestidade, generosidade, e não a outros valores. Por fim, um único sujeito poderá compor sua identidade por mais valores públicos (dever agir) ou privados (dever ser). Assim, segundo Pedro-Silva (2006, p. 91, itálicos do autor), Depreende-se dessas considerações a necessidade de se ampliar os paradigmas de entendimento e análise da moralidade humana. Isso implica alargar tanto o leque dos fatores psicológicos que influenciam a moralidade quanto a investigação de outros temas morais, que não os classicamente pesquisados: a ética da justiça e o relacionamento interpessoal (dilemas que sempre envolvem o outro como objeto). Sendo assim, os críticos, de um modo geral, propõem que outras concepções de moralidade sejam integradas às pesquisas sobre o desenvolvimento moral, reintegrando a importância do eu e de outros valores além do da justiça. A partir do que já expusemos, julgamos importante salientar que concordamos com a tese de que a psicologia moral deve também integrar como objeto de estudo os valores correspondentes à construção de uma vida boa. Apesar de eles nem sempre seres considerados virtuosos, temos ciência de sua importância para quem os adota. Assim, por meio da definição de virtude, podemos avaliar se determinado valor adotado constitui uma excelência moral. 3.3 Ética e virtude Iniciamos com a consideração de que, quando falamos em virtude, remetemo- nos ao campo da ética. Esta opera acerca da investigação do que seria felicidade e infelicidade, bem e mal, justo e injusto e a respeito dos valores a que os homens se submetem. Nesse sentido, a virtude configura o conceito principal para se compreender as perspectivas dos filósofos em divergentes sistemas morais. Sobre a definição de virtude, Comte-Sponville (1995) a conceitua como uma força que age ou que pode agir. Por exemplo, os objetos são dotados de uma excelência, sem importar o uso que se faça deles, como a faca, que possui excelência em cortar. Mesmo que ela seja utilizada para golpear alguém, sua excelência em si (cortar) não diminuirá. Para o referido pensador, “sua capacidade 48 específica também comanda sua excelência própria. Mas essa normatividade permanece objetiva ou moralmente indiferente. À faca basta cumprir sua função, sem a julgar [...]” (COMTE-SPONVILLE, 1995, p. 8). Quanto ao homem, o processo se constitui de maneira mais complexa. Primeiramente, segundo o referido filósofo, o homem não possui uma excelência predeterminada. Pelo contrário, suas virtudes precisam ser construídas. Ademais, as virtudes podem vir a desaparecer ou ser consideradas vícios de acordo com o contexto histórico e cultural. Temos, então, a virtude humana como resultante de um cruzamento do fator biológico (hominização) e da exigência cultural (humanização). Por essa perspectiva, para ele, a virtude é o poder de humanidade. São as virtudes morais que fazem o homem parecer mais humano, mais excelente que outro. Sem a virtude, então, seríamos qualificados de inumanos. Para Comte-Sponville (1995, p. 9-10) A virtude, repete-se desde Aristóteles, é uma disposição adquirida de fazer o bem. É preciso dizer mais, porém: ela é o próprio bem, em espírito e em verdade. Não o Bem absoluto, não o Bem em si, que bastaria conhecer ou aplicar. O bem não é para se contemplar, é para se fazer. Assim é a virtude: é o esforço para se portar bem, que define o bem nesse próprio esforço [...] A virtude ou, antes, as virtudes [...] são nossos valores morais, se quiserem, mas encarnados, tanto quanto quisermos, mas vividos, mas em ato. Sempre singulares, como cada um de nós, sempre plurais, como as fraquezas que elas combatem ou corrigem. O referido pensador nos apresenta um Pequeno tratado das grandes virtudes (1995), utilizado também como nosso referencial, em que discorre sobre 18 excelências que considera mais importantes, como a generosidade, a compaixão, a justiça, a coragem, a prudência, entre outras. O tema das virtudes, porém, tem sido alvo de estudos desde a Grécia Antiga. Platão (380 a.C./2006) afirmava que a virtude residia no homem que vivia em conformidade com as normas da justiça. Ademais, considerava necessária uma definição que abrangesse todas as virtudes. Enfim, para ele, virtude possuía um significado de ascese, considerando que a define como “liberação e troca de todas as paixões, prazeres e valores individuais pelo pensamento, considerado, por ele, um valor universal e ligado à imutabilidade das formas eternas” (apud PEDRO- SILVA, 2006, p. 93-94, itálicos do autor). Por sua vez, Epicuro (s.d./1997) apontou para o fato de que o homem deve cultivar as virtudes para, assim, atingir a felicidade, ato considerado como a 49 finalidade da vida. Ele ainda considerava a prudência a virtude mais importante, da qual decorrem as demais e que pos