UNIVERSIDADE ESTADUAL JÚLIO DE MESQUITA FILHO - UNESP CAMPUS BAURU FACULDADE DE ARTES, ARQUITETURA, COMUNICAÇÃO E DESIGN - FAAC DEPARTAMENTO DE ARTE E REPRESENTAÇÃO GRÁFICA - DARG BACHARELADO EM ARTES VISUAIS JULIA NOGUEIRA DUARTE DE OLIVEIRA DE ONDE VEM TODAS AS COISAS: A APROPRIAÇÃO DO PAPELÃO NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE OBRAS DE ARTE Bauru 2022 JULIA NOGUEIRA DUARTE DE OLIVEIRA DE ONDE VEM TODAS AS COISAS: A APROPRIAÇÃO DO PAPELÃO NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE OBRAS DE ARTE Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais, habilitação em Bacharelado, da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design - FAAC UNESP/Campus de Bauru, como requisito para a obtenção do Título de Bacharel em Artes Visuais. Orientador: Profa. Dra. Joedy Luciana Barros Marins Bamonte. Bauru 2022 Oliveira, Julia Nogueira Duarte de. De onde vem todas as coisas: a apropriação do papelão no processo de criação de obras de arte / Julia Nogueira Duarte de Oliveira, 2022 197 f. : il. Orientador: Joedy Luciana Barros Marins Bamonte Monografia (Graduação)–Universidade Estadual Paulista (Unesp). Faculdade de Artes, Arquitetura, Comunicação e Design, Bauru, 2022 1. Assemblage. 2. Instalação. 3. Processo criativo. 4. Arte Contemporânea. 5. Papelão. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Artes, Arquitetura, Comunicação e Design. II. Título. JULIA NOGUEIRA DUARTE DE OLIVEIRA DE ONDE VEM TODAS AS COISAS: A APROPRIAÇÃO DO PAPELÃO NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE OBRAS DE ARTE Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais. COMISSÃO JULGADORA Profa. Dra. Joedy Luciana Barros Marins Bamonte. Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design - UNESP Professora Orientadora — Presidente da Banca Examinadora Profa. Dra. Tarcila Lima da Costa Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design - UNESP Prof. Dr. José Paiani Spaniol Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista - UNESP Bauru, 23 de agosto de 2022 AGRADECIMENTOS Agradeço à minha família, meu pai João Francisco, minha mãe Jeane, meu irmão João Gabriel e em especial minha irmã gêmea Laura, que sempre escuta todas as minhas ideias e acreditou mesmo quando eu não achei possível — do surgimento do projeto até a montagem das obras. O apoio de vocês foi essencial para que este e outros trabalhos pudessem existir. Às minhas professoras de arte e de linguagem visual, Simone e Lahayda, por mostrarem os caminhos possíveis mesmo antes da Universidade. E a todas professoras e professores que participaram da minha formação acadêmica ao longo desses anos desafiadores de graduação, perpassados por uma Pandemia. À minha orientadora Joedy, que acompanhou e apoiou desde o começo a jornada criativa com o papelão. E à banca examinadora, que aceitou participar deste momento tão importante na graduação. À minha amiga Thaís, por todas as conversas que ajudaram a alimentar o processo criativo. Ao Adriano, Isabela D., Isabela H., Júlia M., Júlia T., Letícia, Luiz Felipe, Luiz H., Maith, Marcos, Manoela, Pâmela, Raffaela e Tarcila, que participaram da montagem e/ou educativo da exposição, e contribuíram para concretizar este projeto. RESUMO A pesquisa teve como objetivo desenvolver um conjunto de obras com a apropriação do papelão e caixas de papelão, propondo a ressignificação de objetos e espaços do cotidiano; e propondo a interação do espectador com os trabalhos. Foi realizada a revisão do percurso da história da arte ocidental, que resultou na inserção e apropriação de objetos do cotidiano na arte, e suas influências nas práticas artísticas contemporâneas com ênfase nos anos 1950 a 1990. Foi realizado o registro e análise dos documentos do processo criativo, e da construção de sentido das obras desenvolvidas, contextualizando-as em relação a referências literárias, artísticas e a produções pessoais de 2019 a 2021. Apresentou-se o processo de montagem e desenvolvimento de educativo para a mediação das obras resultantes da pesquisa. A exposição “De onde vem todas as coisas” foi composta por três trabalhos que relacionavam o papelão ao conceito de silêncio e a introspecção, e alcançou públicos de diversas faixas etárias, profissões e cursos. Palavras-chave: Assemblage. Instalação. Processo criativo. Arte Contemporânea. Papelão. ABSTRACT The research’s objective was to create artworks from the appropriation of cardboard and boxes, proposing the resignification of daily life objects and spaces; and proposing the spectator’s interaction with the works. The research revised the course of the history of Western art, which resulted in the appropriation of everyday objects and their influence on contemporary art from 1950 to 1990. The creative process documents and the concept development of the artworks were registered and analyzed; contextualizing them about the literary and artistic references, and personal productions from 2019 to 2021. It was made the presentation of the building process and development of the educational approach to the mediation of the artworks produced as a result of the research. The art exhibition “Where everything comes from” was composed of three artworks that established a connection between cardboard, the concept of silence, and introspection, reaching a diverse public from different age groups, professions, and fields of study. Keywords: Assemblage. Installation art. Creative process. Contemporary art. Cardboard. LISTA DE FIGURAS Figura 1. Kurt Schwitters; Merzbau; 1933; Alemanha ….……………………………..20 Figura 2. Yves Klein; Vazio; 1958; Iris Clert, Paris. ……………………………………25 Figura 3. Yves Klein; Vazio; 1958; registro da instalação. ……………………………25 Figura 4. Arman; O Cheio; 1960; Iris Clert, Paris. ……………………………………..27 Figura 5. Cildo Meireles; Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola; 1970. ………………………………………………………………………………………...32 Figura 6. Cildo Meireles; Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Cédula “Quem matou Herzog?”; 1970. ……………………………………………………………………32 Figura 7. Cildo Meireles; Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Cédula “Marielle Franco”; 2019. …………………………………………………………………..33 Figura 8. Jac Leirner; Pulmão; 1987; papel celofane (capa de caixa de cigarro) montado em caixa de acrílico; 20,8 x 6 cm. …………………………………………….34 Figura 9. Jac Leirner; Pulmão; 1987; Embalagens de cigarro e cordão de poliuretano. …………………………………………………………………………………34 Figura 10. Julia Nogueira; Olhe para mim; 2021; fio paralelo, fita isolante, lâmpada vermelha, papelão, plugue e soquete; Cotia - São Paulo. ……………………………44 Figura 11. Julia Nogueira; Inalcançável; 2021; fio paralelo, fita isolante, garrafas plásticas com água, lâmpada vermelha, lâmpada LED, papelão, plugue e soquete; 1,72 m x 70 cm x 90 cm; Cotia - São Paulo. ……………………………………………44 Figura 12. Detalhe da obra “Olhe para mim”. ………………………………………….46 Figura 13. Detalhe da obra “Inalcançável”. …………………………………………….47 Figura 14. Julia Nogueira; Autorretrato; 2019; tinta acrílica sobre papelão; 90 x 65 cm, Bauru - São Paulo. ……………………………………………………………………48 Figura 15 Julia Nogueira; Cúmplices: Caroline e Maith; 2019; tinta acrílica sobre papelão; 42 x 42 cm; Bauru - São Paulo. ……………………………………………...49 Figura 16. Julia Nogueira; Santíssima Trindade - série Casa; 2019; tinta acrílica sobre papelão; 46 x 30 cm, Bauru - São Paulo. ………………………………………..49 Figura 17. Julia Nogueira; Todo dia isso - autorretrato; 2021; tinta acrílica sobre papelão; 1 x 1,2 m, Cotia - São Paulo. ………………………………………………….50 Figura 18. Documento de processo: página 1 de sketchbook com anotações para um projeto não realizado, 2021. ………………………………………………………….50 Figura 19. Documento de processo: página 2 de sketchbook com anotações para um projeto não realizado, 2021. ………………………………………………………….51 Figura 20. Documento de processo: página 3 de sketchbook com anotações para um projeto não realizado, 2021. ………………………………………………………….51 Figura 21. Julia Nogueira; Instabilidades Cotidianas; 2020; Arame, madeira, madeirite resinado, papelão e tela de arame galvanizado; 2,03 m x 1,95 m x 3,10 m; Bauru - São Paulo. ………………………………………………………………………...52 Figura 22. Detalhe de parte da obra “Instabilidades Cotidianas”. ……………………53 Figura 23. Amilcar de Castro; 1990; aço; 14 x 23 x 0,3 cm. ………………………….53 Figura 24. Henrique Oliveira; A Origem do Terceiro Mundo; 2010; madeira compensada, PVC e metal; vista interior. ……………………………………………….54 Figura 25. Henrique Oliveira; A Origem do Terceiro Mundo; 2010; vista interior. ….54 Figura 26. Aníbal López; Escultura Passada de Contrabando do Paraguai para o Brasil; 2007. ………………………………………………………………………………...55 Figura 27. Ibrahim Maham; Paraíso Perdido Não Orientável 1667; 2017. ………...56 Figura 28. Carlos Bunga; Mausoléu; 2012; Papelão, fita adesiva, tinta fosca, cola e 45 esculturas da Pinacoteca do Estado de São Paulo. ……………………………….57 Figura 29. Christo e Jeanne-Claude; The Wall - Wrapped Roman Wall; 1973-1974; polipropileno e corda. ……………………………………………………………………...59 Figura 30. Documentos de processo: páginas 10 e 11 do livro ata. …………………60 Figura 31. Primeiro desenho de “A Fonte”; lápis de cor sobre Canson; 21 x 29,7 cm; Cotia - São Paulo. ………………………………………………………………………….61 Figura 32. Registro do acaso na montagem de “Inalcançável”. ……………………..62 Figura 33. Primeiro desenho de “A Torre”; lápis de cor sobre Canson; 21 x 29,7 cm; Cotia - São Paulo. ………………………………………………………………………….62 Figura 34. Documentos de processo: páginas 13 e 14 do livro ata. ………………...64 Figura 35. Quiosque no meio do caminho na entrada do Terminal Metropolitano de Cotia. ………………………………………………………………………………………..65 Figura 36. Segundo desenho de “A Fonte” com indicação de pontos de luz; grafite sobre Canson; 29,7 x 42 cm; Bauru - São Paulo. ……………………………………...66 Figura 37. Desenho de “A Caverna”, projeto de parede falsa dentro da Galeria da FAAC; grafite sobre Canson; 29,7 x 42 cm; Bauru - São Paulo. ……………………..67 Figura 38. Desenho do interior de “A Caverna”; grafite sobre Canson; 29,7 x 42 cm; Bauru - São Paulo. ………………………………………………………………………...68 Figura 39. Caixas acumuladas em Cotia, São Paulo. ………………………………...69 Figura 40. Caixas acumuladas desmontadas, prontas para transporte em Cotia, São Paulo. ………………………………………………………………………………………..69 Figura 41. Caixas acumuladas desmontadas e amarradas, prontas para serem transportadas para Unesp Bauru, São Paulo. ………………………………………….71 Figura 42. Caixas acumuladas no ateliê de Escultura da Unesp Bauru. …………...72 Figura 43. Painéis de madeira. …………………………………………………………..72 Figura 44. Caminhão da Unesp carregado com papelão acumulado. ………………73 Figura 45. Material descarregado dentro da Galeria da FAAC. ……………………...73 Figura 46. Disposição dos painéis delimitando o espaço da obra dentro da Galeria da FAAC. ……………………………………………………………………………………74 Figura 47. Detalhe de quina coberta com papelão. …………………………………...75 Figura 48. Início da fixação do papelão nos painéis 11/07/2022. ……………………76 Figura 49. Registro do processo 13/07/2022. ………………………………………….76 Figura 50. Luzes cobertas com papelão 13/07/2022. …………………………………77 Figura 51. Encaixe e dobraduras no papelão para cobrir as luzes 16/07/2022. …...78 Figura 52. Papelão cobrindo a fachada à esquerda. Colagem de papelão na moldura do teto 15/07/2022. ……………………………………………………………...79 Figura 53. Vista de um dos cantos da obra com painel de divisória ainda sem preenchimento na parte de baixo 16/07/2022. …………………………………………79 Figura 54. Detalhe de montagem no dia 18/07/2022 — criação de volumes próximo ao chão. ……………………………………………………………………………………..80 Figura 55. Acúmulo do papelão em cima dos paletes 19/07/2022. …………………81 Figura 56. Canto com volume 19/07/2022. …………………………………………….82 Figura 57. Separação do papelão ondulado 19/07/2022. …………………………….83 Figura 58. Processo de montagem do teto 20/07/2022. ……………………………...84 Figura 59. Teste de montagem de “A Torre” 20/07/2022. …………………………….85 Figura 60. Fiação passada por dentro das caixas 21/07/2022. ……………………...86 Figura 61. Fiação de “A Torre” ligado dentro da Galeria 21/07/2022. ……………….86 Figura 62. Passagem do fio por dentro das caixas 21/07/2022. …………………….87 Figura 63. “A Fonte” — diagonal esquerda. ……………………………………………88 Figura 64. “A Fonte” — diagonal direita. ……………………………………………….90 Figura 65. “A Fonte” — vista frontal. ……………………………………………………90 Figura 66. “A Fonte” — instruções no painel de madeira. ……………………………91 Figura 67. “A Fonte” — caixa com papel e caneta para anotar pedidos. …………..91 Figura 68. “A Fonte” — cartaz (Apêndice B) e texto curatorial ao fundo (Anexo A). 92 Figura 69. “A Fonte” — parte de trás. …………………………………………………..92 Figura 70. “A Fonte” — parte de trás outro ângulo. …………………………………...93 Figura 71. “A Fonte” — de noite. ………………………………………………………...93 Figura 72. “A Torre”. ………………………………………………………………………94 Figura 73. “A Torre” e “A Caverna” — de noite. ………………………………………..95 Figura 74. “A Torre” e “A Caverna” — de dia. ………………………………………….95 Figura 75. “A Caverna” — instruções para entrar na obra. …………………………..96 Figura 76. Texto e pergunta motivadora na entrada de “A Caverna”. ……………….96 Figura 77. Dentro de “A Caverna” — quina oposta à porta. ………………………….97 Figura 78. Dentro de “A Caverna” — quina próxima à porta. ………………………...97 Figura 79. Dentro de “A Caverna” — detalhe do chão e teto. ………………………..98 Figura 80. Dentro de “A Caverna” — quina da porta. …………………………………98 Figura 81. Dentro de “A Caverna” — quina oposta à porta. ………………………….99 Figura 82. Dentro de “A Caverna” — ângulo da parede em frente à porta. ………..99 Figura 83. Dentro de “A Caverna” — parede em frente à porta. …………………...100 Figura 84. Dentro de “A Caverna” — chão e paredes opostas à porta. …………...100 Figura 85. Registro do encontro da equipe voluntária do educativo. ………………101 Figura 86. Visitantes participando de “A Fonte” na abertura 21/07/2022. …………103 Figura 87. Fala de abertura da exposição — Joedy Bamonte e Julia Nogueira 21/07/2022. ………………………………………………………………………………..104 Figura 88. Pessoas aguardando para entrar em “A Caverna” 21/07/2022 — detalhe para a mesa ao fundo, com a comida servida nas caixas em que foram compradas. ………………………………………………………………………………………………104 Figura 89. Registro da participação família 22/07/2022. …………………………….105 Figura 90. Conversa após a participação na obra “A Caverna” 22/07/2022. ……..106 Figura 91. Voluntário do educativo Luiz Felipe acompanhando grupo na obra “A Fonte” 22/07/2022. ……………………………………………………………………….106 Figura 92. Voluntária do educativo Maith na mediação de “A Caverna” 22/07/2022. ………………………………………………………………………………………………107 Figura 93. Maith acompanhando um grupo na participação em “A Caverna” ao fundo e em primeiro plano conversa com espectadores 22/07/2022. ……………………..108 Figura 94. Registro do chão rasgado devido a abertura da porta 25/07/2022. …..110 Figura 95. Fresta de luz que foi coberta 25/07/2022. ……………………………….110 Figura 96. Grupo deixando desejos em “A Fonte” 25/07/2022. ……………………111 Figura 97. Voluntária do educativo Pâmela na mediação de “A Caverna” 25/07/2022. ……………………………………………………………………………….112 Figura 98. Grupo se organizando para entrar em “A Caverna” com mediação de Pâmela 25/07/2022. ……………………………………………………………………...112 Figura 99. Escrevendo desejos em “A Fonte” 25/07/2022. …………………………113 Figura 100. Dupla prestes a entrar em “A Caverna” 25/07/2022. …………………..114 Figura 101. Voluntária do educativo Thaís, à esquerda, na mediação de “A Caverna” 25/07/2022. ………………………………………………………………………………..114 Figura 102. Dupla de participantes prestes a entrar na obra 25/07/2022. ………...115 Figura 103. Conversa com o grupo após a participação na obra “A Caverna” 25/07/2022. ……………………………………………………………………………….116 Figura 104. Grupo entrando na caverna, em primeiro plano alunas revisitando o trabalho 26/07/2022. …………………………………………………………………….117 Figura 105. Trio passando álcool em gel antes de entrar em “A Caverna” 26/07/2022. ……………………………………………………………………………….118 Figura 106. Escrevendo pedidos 26/07/2022. ………………………………………..119 Figura 107. Criança escrevendo um pedido em “A Fonte” 26/07/2022. …………..120 Figura 108. Aluna voluntária do educativo Pâmela na mediação da obra “A Caverna” 26/07/2022. ………………………………………………………………………………..121 Figura 109. Voluntária do educativo Raffaela acompanhando o percurso de uma dupla 26/07/2022. ………………………………………………………………………...123 Figura 110. Voluntária do educativo Raffaela recebendo grupo 26/07/2022 ……...124 Figura 111. Grupo interagindo com a “A Torre” 26/07/2022 ………………………...124 Figura 112. Dupla investigando a “A Torre” 27/07/2022. …………………………….125 Figura 113. Trio entrando em “A Caverna” 28/07/2022. …………………………….126 Figura 114. Registro da visita da turma de Mediação Cultural e Educativa. Mediação de Luiz Felipe e Júlia M., à esquerda na foto 27/08/2022. …………………………..127 Figura 115. Registro da conversa com a turma de Mediação Cultural e Educativa 27/07/2022. ………………………………………………………………………………..127 Figura 116. Registro da reunião final do educativo 28/07/2022 — Júlia Mússalam, Luiz Felipe Motta, Thaís de Oliveira e Pâmela Rocha. ………………………………128 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 15 O BATISMO DO OBJETO 18 2.1. Assemblage e Instalação 18 2.2. Os Novos Realistas 23 2.3. O pensamento na arte conceitual e contemporânea brasileira 27 DENTRO DA CAIXA TEM OUTRA CAIXA 37 3.1. O processo criativo e a busca pelo silêncio 37 3.2. Materialidade 43 3.3. Os documentos de processo, a participação do espectador e o convite à introspecção 58 DE ONDE VEM TODAS AS COISAS 71 4.1. Montagem 71 4.2. As obras no espaço 89 4.3. O educativo e a recepção das obras 101 CONCLUSÃO 131 REFERÊNCIAS 135 Apêndice A — Registro das etapas de montagem e colaboração de colegas no processo, detalhes das obras finalizadas e recepção do público. 139 Apêndice B — Cartaz da exposição. 188 Apêndice C — Ata da Reunião de Encerramento do Educativo no dia 28/07/2022. 189 Anexo A — Texto Curatorial escrito pela Profa. Dra. Joedy Luciana Barros Marins Bamonte. 197 15 1. INTRODUÇÃO A pesquisa tem como título, “De onde vem todas as coisas: a apropriação do papelão no processo de criação de obras de arte”, cujo tema se debruçou sobre a apropriação de materiais retirados do contexto cotidiano, com ênfase no papelão, para a construção de três obras; investigando as relações entre forma e significado, ocupação e ressignificação do espaço, e analisando o processo criativo por meio dos registros do processo. A hipótese sustentada foi a de que partindo da investigação do uso de materiais do cotidiano e da ocupação do espaço ao longo da história da arte, com ênfase nas décadas de 1950 e 1990 e do estudo do processo criativo, seria possível produzir um grupo de trabalhos com o papelão, que propusessem a ressignificação dos lugares comuns. Desta forma, a pesquisa se justifica sob o aspecto científico, visto que o estudo do uso de materiais cotidianos na arte contribui para as discussões sobre arte contemporânea brasileira, valorizando assim a produção de arte nacional. A distância entre a arte e as experiências cotidianas — que envolve o afastamento e incompreensão da arte pelo público não especializado — é uma das dificuldades que a arte contemporânea enfrenta. A possibilidade de ressignificação dos espaços e materiais comuns é uma forma de dialogar não apenas com a história da arte, mas também com a realidade além da Universidade e do campo específico. Envolvendo a troca de experiências e acesso à arte ainda no processo de acumulação dos materiais, mesmo antes da montagem das obras em si. A pesquisa-criação ressalta ainda a atuação do artista como pesquisador e mediador, enriquecendo a discussão sobre o processo criativo e acesso à arte, temas ainda envoltos de mistificação. Além disso, o interesse nos assuntos abordados na pesquisa é resultado de uma investigação poético teórica que foi desenvolvida ao longo de toda a graduação em Bacharelado em Artes Visuais, especialmente no uso do papelão para construção de obras, propondo a alteração da função de espaços cotidianos, chamando a atenção para a presença da experiência estética nos momentos mais corriqueiros. A imersão na materialidade do papelão e outros objetos apropriados do dia a dia encontrados em caçambas e calçadas, e o reúso dos mesmos no processo criativo demonstra a intersecção da arte com questões relacionadas à vida. 16 O objetivo geral foi desenvolver um conjunto de obras a partir da apropriação de papelão e caixas de papelão, realizando a ressignificação de objetos e espaços do cotidiano. Foram desenvolvidas três obras que contaram com a participação do espectador, convidando-os a momentos de introspecção, adentrando o silêncio que permeia a sincronia com o momento presente. Os objetivos específicos foram: contextualizar o uso de materiais apropriados do cotidiano na história da arte, apresentando o percurso que diversificou a materialidade utilizada pelos artistas, sobretudo a partir da década de 1950 e 1990 na Europa e no Brasil; analisar os termos “Assemblage” e “Instalação”, investigando a produção de artistas que utilizam materiais apropriados do cotidiano e o espaço em suas composições; e desenvolver três obras com papelão como resultado da pesquisa, registrando e analisando o processo de criação. A pesquisa classificou-se como pesquisa em arte e sobre arte, pesquisa-criação, com abordagem qualitativa e natureza exploratória. Em um primeiro momento foi realizada a pesquisa bibliográfica e iconográfica e em um segundo momento, foi abordado o processo criativo no decorrer da produção das obras com o uso do papelão — investigação e registro dos documentos de processo. A primeira seção estruturou-se a partir da consulta bibliográfica a autores como Aracy Amaral (2006), Cristina Freire (1999), Ferreira Gullar (1999; 2003), Katia Canton (2001; 2009), Pierre Restany (1979), Vivian van Saaze (2013) e William C. Seitz (1961), para o estudo específico a respeito do surgimento dos termos “Assemblage” e “Instalação”, e do processo que resultou na diversificação da materialidade utilizada nas artes visuais e na arte contemporânea brasileira. Apresentou-se uma contextualização na história da arte ocidental com análise de obras e artistas que questionam as instituições de arte, e utilizam ou utilizaram o espaço, materiais e objetos apropriados do cotidiano, com ênfase da década de 1950 a 1990. Destacou-se a importância de artistas como Kurt Schwitters (1887-1948) para a história da Assemblage e da Instalação, além de outros como Marcel Duchamp (1887-1968) e o grupo de artistas franceses, os Novos Realistas. Discutiu-se a influência de instituições como o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) no desenvolvimento de Museus de Arte Moderna no Brasil e na América Latina, abordando-se as mudanças no uso do espaço e materialidade em relação às 17 instituições de arte e pensamento moderno; as intersecções em arte e vida e contexto no qual os artistas se inseriram refletindo em suas composições. Na segunda seção foi realizada a consulta bibliográfica a autores como Cecília Almeida Salles (2011), Clarice Lispector (2009; 1999) e Fayga Ostrower (1995; 1998), a fim de estudar o processo criativo, o ato criador e embasar a definição de silêncio abordada nos trabalhos desenvolvidos. Foi realizada a investigação dos documentos de processo da produção das obras desenvolvidas nesta pesquisa, além da análise de obras dos últimos três anos nas quais utilizou-se o papelão. Na terceira e última seção, apresentou-se um registro do processo de montagem, o resultado final das obras e um relato do educativo desenvolvido para a mediação da exposição. “De onde vem todas as coisas” ficou em exposição dos dias 21/07/2022 a 29/07/2022 na Galeria de FAAC e na entrada da Central de Laboratórios no Campus da Unesp Bauru. 18 2. O BATISMO DO OBJETO Nesta seção aborda-se um breve panorama da história da arte ocidental, investigando a inserção e apropriação de objetos do cotidiano na arte e suas influências nas práticas artísticas contemporâneas. O recorte aborda algumas das vanguardas europeias a fim de investigar o surgimento e definição dos termos “Assemblage” e “Instalação”, nos anos 1960 e 1970. Em um segundo momento, aborda-se o grupo os Novos Realistas, assim nomeado pelo crítico de arte Pierre Restany. Por fim, aborda-se a arte nacional por meio das gerações de artistas brasileiros de 1950 a 1990, estudando o pensamento da arte conceitual/conceitualismo, a investigação do processo criativo e a busca por sentido na construção de obras. O que significa introduzir um material ou objeto retirado da realidade cotidiana em uma obra de arte? Quais as mudanças que esse processo acarreta para as obras, artistas, museus e público? 2.1. Assemblage e Instalação O uso de objetos do cotidiano, dejetos da indústria, resíduos recicláveis e do espaço na composição de obras de arte foi possibilitado devido a um conjunto de fatores sócio-culturais, artísticos e até mesmo políticos. Dessa trajetória que resultou, dentre outras práticas e linguagens, nas Assemblages e Instalações, abordam-se apenas alguns dos antecedentes na história da arte ocidental. Das vanguardas europeias destaca-se o cubismo em sua fase analítica, ainda no início do século XX. A mudança paradigmática na construção do espaço pictórico bidimensional nas colagens de Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963) nublam as fronteiras entre a escultura e a pintura, e aproximam-se do real ao inserir elementos como pedaços de jornal, madeira e objetos diversos em suas composições. O cubismo influenciou também outros movimentos de vanguarda que deram continuidade a questão dos objetos e expansão para o espaço: Aqui está o germe de duas grandes correntes da arte contemporânea saídas do cubismo: o neoplasticismo, que aprofundou o problema espacial proposto pela bidimensionalidade e pela construção vertical, e o dadaísmo — particularmente Kurt Schwitters — que continuaria essa tendência, o uso, 19 no quadro, de materiais diversos, tirados da vida cotidiana. Os tableaux-objet surrealistas e outras tantas obras de pintores atuais como o italiano Burri e o espanhol Cuixart, não têm outra origem senão essa fase do cubismo (GULLAR, 1999, p. 29). Uma das correntes originadas pelo cubismo citadas acima por Ferreira Gullar, o dadaísmo, surgiu como uma resposta anti-guerra após a I Guerra Mundial. Foi também um movimento de anti-arte, de negação, que se utilizava do ridículo, ironia e da inversão em suas obras (SEITZ, 1961). Foi neste contexto que os ready mades de Marcel Duchamp (1887-1968) surgiram, incluindo todos os objetos criados pelo homem como obras de arte, compartilhando da ironia dadá que questionava a arte e suas instituições (SEITZ, 1961). Os ready mades e a sua influência nas gerações posteriores são abordados com maior profundidade em um próximo subitem a respeito dos Novos Realistas. A expansão dos limites entre arte e vida realizada por Kurt Schwitters (1887-1948) é outro marco nas mudanças na arte ocidental após as vanguardas europeias. O artista compunha, como mencionado, obras com materiais e detritos retirados das ruas, que: “[...] ao serem absorvidos pelo sentido de forma, esses detritos ganham uma nova identidade e nos comovem [...] Consequentemente, o próprio ambiente cotidiano de nossa vida se transforma e ganha nova dimensão.” (OSTROWER, 1995, p. 183). As obras que Schwitters nomeou como “MERZ” invadiram o cotidiano e configuraram um estilo de vida (MoMA, 2012). Os “Merzbau” eram construções que tinham dimensões arquitetônicas e usavam a lógica da colagem no espaço tridimensional, expandindo-se para o espaço com simbolismos e significados relacionados à vida do artista (SEITZ, 1961). Um dos “Merzbau” foi construído ao longo de dez anos em diversos cômodos de sua casa em Hanover, mas foi destruído durante um ataque aéreo em 1943 (ORCHARD, 2007). 20 Figura 1. Kurt Schwitters; Merzbau; 1933; Alemanha. Fonte: Wilhelm Redemann (1933) In: ORCHARD (2007). As mudanças na arte ocidental que vinham acontecendo desde a I Guerra Mundial ganharam novo sentido na década de 1950, após outra Guerra Mundial. O período foi marcado por uma efervescência de experiências artísticas e linguagens, além de grandes mudanças políticas e sociais. Em 1961, por exemplo, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) apresenta a exposição “The Art of Assemblage”, um importante marco na história da Assemblage e validação da mesma no cânone da arte ocidental. A exposição teve curadoria e direção de William C. Seitz (1914-1974) e reuniu uma ampla mostra de obras e artistas, como os já mencionados Picasso, Braque, Duchamp e Schwitters, além de outros importantes nomes da época, como Robert Rauschenberg (1925-2008), Jean Dubuffet (1901-1985), Jasper Johns (1930) e Willem de Kooning (1904-1997). Artistas integrantes dos Novos Realistas (subitem 2.2.) também integraram a exposição, como, Raymond Hains (1926-2005), Arman (1928-2005), César (1921-1998), Jean Tinguely (1925-1991), Martial Raysse (1936), Mimmo Rotella (1918-2006), Niki de Saint-Phalle (1930-2002) e Daniel Spoerri (1930). O termo Assemblage, entretanto, foi incorporado à arte em 1953 por Jean Dubuffet (antes da exposição do MoMA) e denomina a apropriação de objetos pela técnica da justaposição, indo além da colagem, agregando novas possibilidades 21 compositivas e de significação. Cada objeto mantém sua origem e história, contribuindo para construir camadas de significado que se relacionam com o todo (SEITZ, 1961). Na Assemblage há também a possibilidade de expansão para o espaço arquitetônico e relação com o ambiente urbano moderno: “[...] o tecido de múltiplas facetas da cidade moderna é o cenário apropriado para a recente montagem/assemblage - sua colcha de retalhos de aleatória [...] beleza resplandecente e miséria nociva” (SEITZ, 1961, p. 73, tradução nossa). 1 As intervenções sobre os objetos agregam novas conotações e camadas de significado que não existiam antes dos mesmos serem apropriados. As associações se tornam mais específicas quando a forma do objeto é mantida, sendo possível identificá-lo. O significado e os materiais, portanto, se fundem e carregam suas marcas de uso, origens e histórias, que somadas às técnicas utilizadas e a outros objetos combinados geram novas características formais e consequentemente de significado (SEITZ, 1961). Quanto a ligação da arte com a vida cotidiana, Allan Kaprow (1927-2006) em “Assemblages, Environments & Happenings” (1956) declara que as fronteiras entre elas devem ser mantidas o mais fluidas e indistintas quanto possível e a fonte de temas e materiais para compor as obras deve ser derivada de qualquer lugar menos da arte (KAPROW, 1956). Ao abordar a composição dos Happenings, Kaprow as relaciona com as Assemblages e os Environments: A composição de um Happening procede exatamente como nas Assemblages e Environments, ou seja, evolui como uma colagem de eventos em determinados períodos de tempo e em determinados espaços. Quando pensamos em “composição”, é importante não pensar nela como uma “forma” auto suficiente [...] Em vez disso, a composição deve ser entendida como uma operação dependente dos materiais (incluindo pessoas e a natureza) [...] Tais materiais e suas associações e significados, assim como apontei, geram os relacionamentos e movimentos do Happening, ao invés do contrário. (KAPROW, 1956, p. 266, tradução nossa)2. 2 No original: The composition of a Happening proceeds exactly as in Assemblages and Environments, that is, it is evolved as a collage of events in certain spans of time and in certain spaces. When we think of “composition”, it is important not to think of it as self-sufficient “form”[...] Rather, composition is understood as an operation dependent upon the materials (including people and nature) [...] Such materials and their associations and meanings, as I have pointed out, generate the relationships and the movements of the Happening, instead of the reverse. (KAPROW, 1956, p. 266). 1 No original: [...] the proper backdrop for recent assemblage is the multifarious fabric of the modern city — its random patchwork of [...] resplendent beauty and noxious squalor. (SEITZ, 1961, p. 73). 22 Assim como na construção de significado dos objetos justapostos da Assemblage (SEITZ, 1961), a forma dos Happenings emerge do que os materiais podem fazer e das relações entre eles (KAPROW, 1956), mantendo características que se relacionam com o contexto do qual foram retirados. O termo "Environments" e outros como “Ambiente” e até mesmo “Assemblage”, foram utilizados antes de “Instalação”, termo adotado a partir da década de 1960-1970 (FREIRE, 1999). Na Assemblage, como apresentado, a escolha dos objetos, sua organização, suas relações, história, técnicas aplicadas e marcas de uso constroem o significado e complexidade simbólica das obras. Já na Instalação, o espaço na qual ela é construída faz parte de seu significado, relacionando-se com o contexto social e político no qual se insere (FREIRE, 1999). Essa característica da Instalação foi uma tática utilizada por artistas a partir dos anos 1960 para repensar criticamente os espaços institucionais de arte (FREIRE, 1999). As Instalações compartilham da ênfase no processo, contrariando a ideia de arte como objeto autônomo, com outros movimentos artísticos como Action Painting, dadaísmo, Grupo Fluxus, minimalismo, Performances e Arte Conceitual (SAAZE, 2013). A crítica institucional e a ênfase no processo é retomada em um próximo subitem sobre o pensamento na arte conceitual e contemporânea brasileira. Ainda sobre o termo Instalação: [...] o termo Instalação, que até então significava a montagem (a instalação) de uma exposição, passa a nomear essa operação artística em que o espaço (entorno) torna-se parte constituinte da obra. [...] Se o contexto da galeria ou do museu é parte fundamental da Instalação, a primeira observação a ser feita é que ela não ocupa o espaço, mas o reconstrói, criticamente. [...] Além dessas características relativas ao espaço, o elemento temporal é também colocado em pauta, isto é, o caráter efêmero das Instalações nega perenidade à obra. (FREIRE, 1999, p. 91-92, grifo do autor). A reconstrução do espaço nas Instalações propõe também outra relação do espectador com a obra, que passa a englobar seu corpo e sentidos. Para perceber o trabalho é necessário circular a seu redor por diversos ângulos, ou seja, a temporalidade muda não apenas em relação a falta de perenidade da materialidade, mas também no tempo de percepção da obra. As experimentações com o espaço e a apropriação de objetos nas décadas de 1960 e 1970 dão continuidade às mudanças iniciadas nas vanguardas europeias, 23 alcançando situações limite na concepção do que é arte, seus objetos e assuntos. A seguir, aborda-se com mais detalhes estes desdobramentos em Paris, com o grupo dos Novos Realistas. 2.2. Os Novos Realistas Ao evento da inserção de objetos da indústria na arte ocidental por Marcel Duchamp, o crítico francês Pierre Restany (1930-2003) deu o nome de batismo do objeto (RESTANY, 1979): "Um produto manufaturado qualquer, absolutamente comum e fabricado em série torna-se, em virtude apenas da escolha de Duchamp, uma obra de arte. Assistimos com os ready-made, ao batismo artístico do objeto usual.” (RESTANY, 1979, p. 81). E esse foi o ponto de partida principal do grupo fundado por ele, os Novos Realistas. O grupo surgiu na década de 1960 e foi originalmente composto pelos artistas Yves Klein (1928-1962), Arman, François Dufrêne (1930-1982), Hains, Raysse, Spoerri, Tinguely e Villeglé (1926), que assinaram o primeiro manifesto em 1960, em Milão. Outros artistas do grupo, César, Rotella, Niki de Saint-Phalle, Gerard Deschamps (1937) e Christo (1935-2020) integraram o grupo posteriormente. O segundo manifesto, “Quarenta graus acima de dadá”, data de 1961 em Paris e o terceiro manifesto, “A Realidade supera a ficção”, data de 1963 em Munique (RESTANY, 1979). Os manifestos não pressupunham uma técnica ou um modo de fazer obras, mas sim uma identificação com a retomada do realismo após anos de abstração. A escolha de objetos do Tachismo, dentre outras manifestações da época que sucederam os gestos do Expressionismo Abstrato, tinham causado um esvaziamento do potencial simbólico e expressivo das obras que o grupo era contrário (RESTANY, 1979). A apropriação realizada pelos Novos Realistas levou ao limite o gesto de Duchamp, para além da negatividade do dadaísmo: "[...] o terço grau do fato dadá, a sua experiência positiva: a descoberta do folclore industrial contemporâneo e das suas possibilidades expressivas ligadas ao senso da natureza moderna." (RESTANY, 1979, p. 33). Para eles, essa apropriação do real era o caminho para um novo humanismo e arte popular, que ao introduzir objetos em sua linguagem se 24 aproximava da Sociologia, da comunicação de massa, inserindo-se no folclore técnico do moderno (RESTANY, 1979). Sobre a crença na tecnologia e apropriação do real: A esse sentido ontológico da natureza moderna, sem medida comum com os naturalistas antigos, devia logicamente corresponder a vontade de apropriação direta do real a partir de um de seus elementos (pigmento industrial puro, sucata, cartaz lacerado, artigo de série). O atestado objetivo que disso decorre não é mais, como em Marcel Duchamp, um fim em si mas a afirmação de uma evidência, a proclamação de uma tendência de expressão. [...] Axiomas aprioristas, os ready-made de Duchamp são palavras definitivas, sem sequência: Arman deu-lhes uma sintaxe. Essa preocupação sintática é capital, estando na origem de uma série de pesquisas de estilo que, renovando o espírito da colagem cubista e da assemblage schwitteriana, orientam-se deliberadamente para uma arte de síntese. Essa arte de síntese é popular ao mesmo tempo por sua motivação e destinação. É uma arte realista e otimista. (RESTANY, 1979, p. 110-111, grifo do autor). A noção de arte popular e o papel crucial da tecnologia e do folclore urbano do Novo Realismo possui um otimismo exacerbado, que é característico das vanguardas europeias e reforçado por seus manifestos. A visão de futuro de Restany da relação da arte com a sociedade a partir do Novo Realismo resulta na ideia de uma arte total, que iria romper as barreiras entre a arte e outras esferas da vida (da indústria, do design e da arquitetura, inclusive), com as obras englobando todos os espaços do cotidiano (RESTANY, 1979), em: “[...] um procedimento pluridimensional que tende ao condicionamento psicossensorial do espectador e por isso mesmo a uma justificação social totalmente diferente da arte.” (RESTANY, 1979, p. 120). O caminho para essa arte total seguiria algumas etapas, sendo a primeira e principal ação a alteração do papel dos museus na formação da sensibilidade do espectador (RESTANY, 1979), o que não deixa de ser uma crítica institucional — que foi também praticada pelos integrantes do grupo. Dentre eles, destaca-se o papel de Yves Klein, figura importante para a criação da mitologia do Novo Realismo (RESTANY, 1979). Klein levou a apropriação do real ao limite máximo ao se apropriar do “Vazio” e expô-lo na Galeria Iris Clert em uma exposição de mesmo nome, em 1958. O realismo do artista chegava em um nível: “[...] da totalidade espacial de uma realidade ao mesmo tempo tangível e todavia incomensurável” (RESTANY, 1979, p. 38). 25 Figura 2. Yves Klein; Vazio; 1958; Iris Clert, Paris. Fonte: The Estate of Yves Klein c/o ADAGP (1958) em Yves Klein [s.d.]. Figura 3. Yves Klein; Vazio; 1958; registro da instalação. Fonte: The Estate of Yves Klein c/o ADAGP (1958) em Yves Klein [s.d.]. É interessante notar que a análise de Restany sobre a exposição do “Vazio” vai além da esfera da crítica institucional, comum nos comentários sobre o evento. De fato, a exposição das paredes vazias em uma Galeria de Arte não pode ser entendida sem a ironia e ousadia do gesto, mas, no contexto do Novo Realismo, a ação ganha outros contornos. Sobre a exposição do “Vazio”, em um excerto de Palestra realizada na Sorbonne em 1959, Klein afirma: [...] Seguiu-se as regras éticas do que desenvolvi ao longo de dez anos. Essa ética é a fonte do imaterialismo que vai concluir a redescoberta de um amor verdadeiro pela matéria em oposição ao materialismo quantitativo e mumificado que nos faz escravos da matéria e a transforma em tirano [...] 26 Com essa tentativa, eu queria criar, estabelecer e apresentar para o público um estado pictórico sensível dentro dos limites de uma galeria de imagens. Em outras palavras, busquei criar um ambiente, um clima pictórico que é invisível mas presente, no espírito do que Delacroix se referia em seu journal como indefinível, que ele considerava como a própria essência da pintura. Esse estado pictórico, invisível dentro do espaço da galeria, deveria propiciar a melhor definição de pintura até hoje, que é por assim dizer, radiância. [...] (KLEIN, 1959, tradução nossa). 3 O artista encontrava uma síntese naquilo que não podia ser numerado ou definido. O processo de Klein que vai do ‘Vazio ao Imaterial’ (RESTANY, 1979) demanda do espectador um outro tipo de participação: O maravilhoso de Yves Klein é a natureza e o seu teatro de eventos. Cada acontecimento, manifestação da energia universal, é uma obra real como toda natureza, mesmo se se coloca momentaneamente no exterior das dimensões dos nossos sentidos, no real absoluto, o espaço infinito, o Vazio. [...] A comunicabilidade da mensagem de Klein é, evidentemente, uma questão de fé. Essa verdade revelada tem sua lógica que assenta em postulados de apropriação do mundo. Não existe salvação fora deles. É necessário admiti-lo e entrar no jogo, caso contrário todo procedimento corre o risco de parecer contraditório, ambíguo e muito ingênuo. (RESTANY, 1979, p. 41-42). Em uma exposição na qual as paredes estão vazias, o espectador fica de frente com a materialidade da vida e a construção dos espaços institucionais de arte é escancarada. O mesmo ocorreu com a exposição “O Cheio” (1960), também na Galeria Iris Clert, na qual Arman lotou o espaço com objetos em série e lixo, em contrapartida ao “Vazio” de Klein (RESTANY, 1979). Essa ação de acumulação é característica do artista, que explorou a questão quantitativa, do acúmulo e da seriação em vários de seus trabalhos. Em ambas as exposições os artistas realizaram gestos de apropriação pura do real (RESTANY, 1979), e confrontaram a construção do espaço institucional de arte. 3 Do inglês: [...] It followed the ethical rules that I had developed in the course of ten years. That ethics is the source of the immaterialism that will accomplish the rediscovery of a true love for matter as opposed to the quantitative, mummifying materialism that renders us slaves to matter and transforms it into a tyrant. [...] With this attempt I wished to create, establish, and present to the public a sensible pictorial state within the confines of a picture gallery. In other words, I sought to create an ambience, a pictorial climate that is invisible but present, in the spirit of what Delacroix referred to in his journal as the indefinable, which he considered to be the very essence of painting. This pictorial state, invisible within the gallery space, should provide the best general definition of painting to this day, which is to say, radiance. [...] (KLEIN, 1959). 27 Figura 4. Arman; O Cheio; 1960; Iris Clert, Paris. Fonte: Shunk-Kender, Roy Lichtenstein Foundation (1960) em Inrap [s.d.]. A seguir, aborda-se a crítica institucional, a apropriação de objetos, o uso do espaço e as práticas conceituais na arte brasileira. 2.3. O pensamento na arte conceitual e contemporânea brasileira O livro da exposição “The Art of Assemblage” (SEITZ, 1961) e o artigo do MoMA (2012) citados anteriormente são exemplos de publicações dessa instituição, que segundo Freire (1999) e Saaze (2013), exerceu grande influência na narrativa e consolidação do cânone do modernismo. Além de reforçar a ideologia do Cubo Branco (SAAZE, 2013). Ao discutir: “o espaço territorializado da arte, isto é, seu lugar físico e simbólico" (CANTON, 2009, p.15), que é normalmente associado ao museu, aborda-se a organização das obras segundo a ideologia do Cubo Branco — que se baseia no conceito de autonomia da arte (CANTON, 2009). Desde os anos 1960 esses ‘Cubos Brancos’ e as instituições da arte foram questionados por artistas, que realizaram experimentações e ocuparam o espaço interno e externo dos museus e galerias. Processo que se expandiu no 28 contemporâneo (CANTON, 2009), não apenas na Europa e nos Estados Unidos, como também no Brasil. O modelo de museu moderno que foi importado para o Brasil e América Latina na década de 1940 também teve influência do MoMA (FREIRE, 1999). No Brasil, o processo de criação do antigo Museu de Arte Moderna em São Paulo (MAM), cujo acervo posteriormente compôs o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), criado em 1963, teve participação direta de Nelson Rockefeller (AMARAL, 2006). Como apontado: Em dezembro desse mesmo ano de 1949 duas cartas de Ciccillo a Nelson Rockefeller e a Eduardo Kneese de Mello, já registram o recebimento, por parte do MAM de São Paulo, das sete obras da doação Rockfeller, modesta doação, em verdade, para um magnata que tanto estimulara, desde meados da década, a criação de um museu de arte moderna em São Paulo. Na verdade, essa doação é significativa na medida em que se desejou com ela selar a vinculação do museu paulista com aquele de Nova York, preocupado em estabelecer através da cultura, de acordo com as diretrizes do Departamento de Estado a que era vinculado o MoMA, um relacionamento interessante com os países da América Latina. (AMARAL, 2006, p. 266) A narrativa importada isola as obras de arte de seus contextos na ideia de ‘arte pela arte’, diminuindo o potencial expressivo, simbólico e conceitual das obras que não se encaixam nos moldes e categorias usuais (FREIRE, 1999). Sobretudo em relação às obras da linha conceitual de artistas do Brasil e da América Latina nos anos de 1960 e 1970, nos quais a arte conceitual e o conceitualismo estavam diretamente ligadas ao contexto político-social das ditaduras militares, repressão e falta de liberdade de expressão que marcaram o período (FREIRE, 1999). Sobre isso: A produção artística contemporânea, por sua vez, é múltipla e escapa à homogeneidade do discurso moderno. As proposições artísticas relacionam de maneira frequente a arte ao universo da vida cotidiana articulando, não raro, conteúdos sociais e políticos, Isso significa que o paradigma moderno dos museus já não se adequa à poéticas artísticas há algumas décadas. (FREIRE, 1999, p. 169). Esse desencontro entre a produção de arte e os paradigmas do museu moderno representa um desafio às instituições a respeito da preservação, conservação e catalogação. Sobre a “a nova dimensão do objeto”, Amaral (2006) afirma: 29 O desinteresse pela permanência do produto de seu trabalho criativo passou, assim, a partir dos anos 60, a ser uma característica do artista de nosso tempo, que especula com materiais não convencionais, para preocupação e desafio de conservadores e diretores de museus. Daí porque a característica do efêmero, do envelhecimentos visível na fisicalidade da obra, detectável nos objetos realizados, torna a produção artística de nosso tempo, com exceção da pintura, da escultura e das arte gráficas, obrigatoriamente vinculada ao registro documental, para fins de constatação de sua realização no espaço e tempo. (AMARAL, 2006, p. 154). Analisando o acervo do MAC USP, Freire (1999) destaca que a preservação de obras de arte da linha conceitual extrapola as práticas de conservação material, visto que conservar um pedaço de objeto utilizado não traduz necessariamente a rede simbólica que compunha a obra, que sobrevive apenas em registro. Para isso, é necessário uma prática museológica que dê inteligibilidade para as obras, incorporando os documentos, anotações e registros que fizeram parte da construção de seus conceitos e significados (FREIRE, 1999), o que: “Envolve instigar questões mais do que reiterar dados.” (FREIRE, 1999, p. 54). A função do museu, nesse sentido, é de não apenas preservar a memória, mas garantir meios para que o público possa participar e entender as obras (FREIRE, 1999). Ferreira Gullar (2003) mantêm uma opinião menos entusiasmada a respeito das consequências do gesto realizado por Duchamp, que resultou nessa nova forma de tratar os objetos e construir obras de arte: “Adotar como caminho a apropriação de objetos naturais ou industriais, hoje, já sem a negatividade do gesto de Duchamp, é uma atitude conformista e ingênua. [...]” (GULLAR, 2003, p. 59). O crítico levanta a problemática de se entender a anti-arte e negação da linguagem da arte como o único caminho possível após as vanguardas europeias e experimentações artísticas. Para ele, as experimentações de Lygia Clark (1920-1988) e Hélio Oiticica (1937-1980), por exemplo, não teriam como ir além delas mesmas por não serem uma linguagem (diferentemente da linguagem da arte) e causarem apenas sensações que envolviam os sentidos da percepção (GULLAR, 2003) e: “nem oferecem ao espectador (ao outro) a fruição plena que caracteriza o prazer estético.” (GULLAR, 2003, p. 8). Apesar disso, reconhece as contribuições dessas experimentações para a arte: Da mais exigente construção geométrica ao tachismo mais cego, da mais 30 irônica utilização do objeto pronto ao realismo mágico ou às montagens de restos de metal, madeira, estopa ou barbantes, o artista destas últimas décadas faz a exploração exaustiva das formas e materiais — tradicionais ou modernos, requintados ou pobres — que a época lhe ofereceu. E depois de tanto buscar, rasgar, decompor, recompor, juntar, misturar, montar… cansou-se. Mas terá sido inútil todo esse esforço? Evidentemente não. Esses artistas ampliaram a nossa capacidade de ver e sentir, revelaram-nos a expressão de formas, texturas, matérias, para as quais éramos cegos ou insensíveis. Introduziram-nos em nossa linguagem estética: sua ação atuou como um terremoto que pôs à mostra muita riqueza até então soterrada e desconhecida. (GULLAR, 2003, p. 134). Os experimentos artísticos tanto de Lygia Clark quanto de Hélio Oiticica foram um importante marco na história da arte brasileira. A partir das práticas do Neoconcretismo, a Arte Abstrata popularizada pelo Concretismo brasileiro ganhou outra dimensão: uma expansão espacial para a realidade, a plurisensorialidade e a participação do espectador. A forma e as cores no Neoconcretismo ganham movimento, ocupando espaços que ultrapassam molduras e suportes. As obras deixam de ser construídas apenas para a contemplação: Os problemas se recolocam. Os neoconcretos, retomando a questão da forma significativa, que os concretistas abandonaram voltados para puros problemas de estrutura e tensões cromáticas, rompem com o conceito tradicional de quadro e escultura e propõem uma linguagem efetivamente não figurativa, isto é, cuja expressão dispensa um espaço metafórico para se realizar. A obra neoconcreta realiza-se diretamente no espaço, sem os apoios semânticos convencionados na moldura (para o quadro) e na base (para a escultura). (GULLAR, 1999, p. 253). Somando-se a liberdade de experimentações artísticas decorrente do Neoconcretismo, o final dos anos 1950 e anos 1960 no Brasil presencia a volta da figuração por meio de movimentos como a Nova Figuração e a Nova Objetividade. A Nova Figuração foi influenciada pela apropriação de elementos da comunicação de massa e cultura da Pop Art americana, que ocorreu simultaneamente ao Novo Realismo em Paris. A respeito da figuração e aproximação com o real por meio do uso de objetos e materiais na arte brasileira sob a linha conceitual, afirma-se: [...] Essa liberdade clamada pela obra de arte ganha novos contornos com a arte conceitual dos anos 60/70. Ali, materiais precários e muitas vezes efêmeros anunciam a possibilidade de a arte se desgarrar de seus aspectos mais objetuais, coisificados e particularmente mercadológicos, para exercer papéis sociais e políticos. Atuando sob o regime militar, artistas criaram estratégias simbólicas e metafóricas para penetrar o cerco à liberdade de expressão, acusar a mercantilização da arte, apontar para a necessidade de 31 interação público/espectador, denunciar o aburguesamento social, comentar a evanescência da arte e a fragilidade da vida. (CANTON, 2001, p. 23) A diversidade de técnicas e materiais utilizados eram uma maneira de evitar a censura, como citado acima. Destaca-se ainda a coincidência cronológica do conceitualismo nas obras de artistas brasileiros ter começado na mesma época dos primeiros anos do Ato Institucional n° 5, período no qual se teve o aumento da perseguição política, violência e censura durante a ditadura no país (FREITAS, 2007). Durante os anos de 1960 a 1974, a arte de vanguarda levou ao limite temas e questões que o Neoconcretismo já tinha levantado: o corpo como obra, o sensorial e a relação arte e ambiente/arte e vida — transformando-as em outras questões sobre a violência, a precariedade e o circuito (FREITAS, 2007). Ainda neste contexto: “A emergência de Cildo Meireles (1948) no meio artístico brasileiro em fins da década de 60 é coincidente com o surgimento das tendências conceituais, de que ele foi o valor mais consistente em nosso país.” (AMARAL, 2006, p. 168). Em “Inserções em circuitos ideológicos” (1970-2019), por exemplo, Cildo Meireles leva a apropriação do real e uso de objetos ao nível político e social, de forma que o trabalho não se limitava aos espaços institucionalizados de arte. As inserções consistem na interferência em sistemas de circulação com dois projetos, “Projeto Coca-Cola” e “Cédula”, que: “[...] surgiram também da constatação de duas práticas mais ou menos usuais. As correntes de santos (aquelas cartas que você recebe, copia e envia para as pessoas) e as garrafas de náufragos jogadas ao mar.” (MEIRELES, 2009, p. 24). Em “Projeto Coca-Cola” o artista gravou críticas e mensagens como “Yankees go home”, em garrafas retornáveis de Coca-Cola com tinta branca vitrificada, que aparecia apenas quando as garrafas estavam cheias e eram retornadas para circulação. 32 Figura 5. Cildo Meireles; Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola; 1970. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural (2022). No projeto "Cédula", Cildo Meireles carimbou a frase “Quem matou Herzog?” em uma nota de cruzeiro em referência ao assassinato do jornalista durante a ditadura militar e em 2019 estampou o rosto de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro e ativista dos direitos humanos que foi assassinada em 2018 em uma nota de real. Figura 6. Cildo Meireles; Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Cédula “Quem matou Herzog?”; 1970. Fonte: Pat Kilgore (s.d.) em Itaú Cultural (2016). 33 Figura 7. Cildo Meireles; Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Cédula “Marielle Franco”; 2019. Fonte: El País (2019). Sobre as Inserções, Meireles afirma em depoimento, ainda em 1970: Do meu ponto de vista, o importante do projeto foi a introdução do conceito de ‘circuito’, isolando-o e fixando-o. É esse conceito que determina a carga dialética do trabalho, uma vez que parasitaria todo e qualquer esforço contido na essência mesma do processo (media). Quer dizer, a embalagem veicula sempre uma ideologia. Então, a ideia inicial era a constatação de ‘circuito’ (natural), que existe e sobre o qual é possível fazer um trabalho real. Na verdade, o caráter da ‘inserção’ nesse circuito seria sempre o de contra-informação. Capitalizaria a sofisticação do meio em proveito de uma ampliação de igualdade de acesso à comunicação de massa, vale dizer, em proveito de uma neutralização da propaganda ideológica original (da indústria ou do Estado), que é sempre anestesiante. É uma oposição entre consciência (inserção) e anestesia (circuito), considerando-se a consciência como função da arte e anestesia como função da indústria. (MEIRELES, 2009, p. 24). Outra artista brasileira da linha conceitual que utiliza objetos do cotidiano, (embalagens, sacolas plásticas, cartões de visita do meio artístico) é Jac Leirner (1960): “[...] que propõe acumulações ordenadas racionalmente com materiais os mais inusitados, e, nessa ordenação, os materiais ou objetos acumulados obtém uma transcendência, além de seu referencial imediato” (AMARAL, 2006, p. 156). 34 Nas obras da série “Pulmão” (1987), por exemplo, Leirner utiliza maços de cigarro que fumou e acumulou, organizando suas partes — como os selos, a capa de celofane e a embalagem de papelão — em formas e composições diversas. A relação entre o objeto apropriado e o título transforma as obras em órgãos, corpos que contém índices da vida pessoal da artista e também do cotidiano de consumo. Figura 8. Jac Leirner; Pulmão; 1987; papel celofane (capa de caixa de cigarro) montado em caixa de acrílico; 20,8 x 6 cm. Fonte: MAM (2019). Figura 9. Jac Leirner; Pulmão; 1987; Embalagens de cigarro e cordão de poliuretano. Fonte: Romulo Fialdini [s.d.] em Enciclopédia Itaú Cultural (2022). 35 Leirner faz parte de um contexto posterior à geração de 1960 e 1970. No Brasil, a retomada da pintura e a aproximação de temas sociais, além da retomada da narrativa pela geração 80 (CANTON, 2001) é sucedida por uma geração de artistas nos anos 1990, cuja produção possui: “a noção de que a originalidade da criação é um mito modernista.” (CANTON, 2001, p. 28). A geração de 1990/2000 carrega consigo toda a pluralidade das gerações anteriores e: Os artistas contemporâneos não podem mais compartilhar de uma atitude modernista, que buscava na arte uma resposta transcendental, pura, abstrata e sintética, acima das coisas que formam a complexa tessitura do mundo real. A arte não mais redime. E os artistas contemporâneos incorporam e comentam a vida em suas grandezas e pequenezas, em seus potenciais de estranhamento e em suas banalidades. [...] à geração 1990/2000 não cabe mais uma discussão sobre questões relativas aos suportes. A pintura não morreu, tampouco a escultura. Juntaram-se a elas instalações, objetos, textos, Internet e outros meios. [...] As relações de dualidade entre corpo e espírito, a memória e os registros pessoais são o grande e inquietante tema de uma nova geração. Ele se estrutura a partir de arranjos formais e construções conceituais que formam narrativas não lineares, enviesadas, que levam em conta a sofisticação da estruturação de materiais e meios, oriundos dos projetos desenvolvidos pela vanguarda modernista, que marcou grande parte do século 20. (CANTON, 2001, p. 30). Para o desenvolvimento de suas obras, os artistas desta geração partem de experiências pessoais, narrativas enviesadas, relações com o texto, questões relativas à memória, à identidade, a uma busca por uma espiritualidade e relação com o meio político e social em que vivem (CANTON, 2001) e principalmente: “Artistas contemporâneos buscam sentido” (CANTON, 2001, p. 30). Essa busca por sentido e significado soma-se a toda abertura e nova capacidade de “ver e sentir” (GULLAR, 2003, p. 134) advinda das experimentações artísticas das gerações anteriores. As narrativas não são lineares e os trabalhos possuem múltiplas leituras, muitas vezes convidando o espectador a descobrir e adentrar a subjetividade de cada artista e obra (CANTON, 2001). Diferem-se dos grupos e movimentos abordados anteriormente, como o Novos Realistas, Concretismo e Neoconcretismo, que possuíam manifestos e visões específicas, pois: [...] a ação artística contemporânea é prioritariamente individual, baseada em formas de expressão pessoal e íntima — a Geração 90 se engaja em tentativas de restabelecer na arte um sentido, uma mensagem, uma conexão com o observador para nele incitar algum tipo de postura diante do 36 mundo e da vida. (CANTON, 2001, p. 31). Nessa busca por sentido, cada artista percorre um caminho interno que se manifesta nas escolhas de materiais e técnicas que refletem diretamente no significado e complexidade da obra. Como apresentado, os trabalhos da linha conceitual e da arte contemporânea brasileira desafiam a lógica moderna na qual os museus foram estruturados e alteram o papel do espectador na interação com a obra e o espaço. Além de incorporar na construção simbólica e conceitual os documentos, anotações, projetos e pensamentos do artista — que podem auxiliar no entendimento das obras por parte dos espectadores. A apropriação de fragmentos da realidade e objetos nas obras de arte é hoje amplamente utilizada, contribuindo para a pluralidade de expressões artísticas e liberdade criativa de uma geração que busca alcançar o íntimo e o cotidiano da condição humana. É um pensamento sobre o mundo que não mais encontra respostas no universal — têm-se uma multiplicidade de narrativas, pontos de vista e saberes que compõem os trabalhos dos artistas contemporâneos. 37 3. DENTRO DA CAIXA TEM OUTRA CAIXA Nesta seção será abordado o processo de construção de sentido das obras desenvolvidas para a presente pesquisa, a partir da apropriação das caixas de papelão, em um recorte que investiga o processo criativo e a relação estabelecida com o silêncio. Em um segundo momento, o foco será para a materialidade do papelão associada à ideia de silêncio em trabalhos desenvolvidos de 2019 a 2021 e, por fim, serão apresentadas as anotações e mapas mentais desenvolvidos ao longo do processo criativo da pesquisa, o desenvolvimento das obras e a proposta de interação com o público. A seção é composta pelas ideias e referências artísticas que dão significado ao papelão dentro de todo processo criativo das obras, desde a preparação até a proposta de interação com o espectador. 3.1. O processo criativo e a busca pelo silêncio A inserção de objetos do cotidiano na arte adentra às fronteiras da vida, mas não é apenas por meio da materialidade que isso pode acontecer. O próprio processo de criação de uma obra de arte aproxima-se do viver em seus equilíbrios e desequilíbrios, configurando um trajeto não linear que é guiado pela intuição (OSTROWER, 1998): A intuição de uma pessoa integra todos os seus conhecimentos intelectuais e suas experiências emocionais, assim como seu lastro cultural. [...] São experiências que cada um só pode adquirir por si mesmo ao longo de seu viver. (OSTROWER, 1998, p. 56). Neste processo, a intuição age em conjunto com a memória — que é responsável por manter a identidade do indivíduo por todas as fases de sua vida — e juntas elas afetam as escolhas realizadas pelo artista (OSTROWER, 1998). Em consequência disso: Determinarão assim o seu estilo. [...] O estilo é a marca inconfundível nas obras de um artista — e nós a reconhecemos imediatamente. Pois o estilo reflete a personalidade singular de alguém, sua maneira específica de se dar e de ser. (OSTROWER, 1998, p. 64-65, grifo do autor). 38 As escolhas realizadas no processo de criação têm como base a seletividade interior do artista: “que é a verdade de cada indivíduo, caracterizando-o em suas afinidades e seus interesses, suas aspirações e seus valores.” (OSTROWER, 1998, p. 56). É a seletividade interior que escolhe e ordena os acasos que podem ser incorporados na criação — apenas aqueles que ressoam nas estruturas internas do indivíduo de forma pessoal. Dessa forma, a compreensão de mundo e as associações criadas entre acontecimentos passam pela intuição. E o processo de criação se retroalimenta, assim como as memórias se ressignificam, criando sempre novas conexões entre passado e presente ao longo da vida do indivíduo (OSTROWER, 1998). O gesto criador se caracteriza como um movimento com tendência que está em constante maturação, sujeito à intervenção do acaso; direcionado por princípios éticos e estéticos do projeto poético (SALLES, 2011) do artista. Sobre o projeto poético, afirma-se: Em toda prática criadora há fios condutores relacionados à produção de uma obra específica que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo. São princípios envoltos pela sua aura da singularidade do artista; estamos, portanto, no campo da unicidade de cada indivíduo. São gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal, singular e único. (SALLES, 2011, p. 44). As referências durante o processo criativo podem vir de lugares diversos: filmes, livros, documentos, memórias, a própria vida cotidiana e até mesmo obras realizadas anteriormente, passando pela seletividade interior (OSTROWER, 1998) e o projeto poético, além dos diálogos do artista consigo e com o meio em que vive (SALLES, 2011). Entretanto, ressalta-se que é apenas criando que a obra se realiza, a partir do primeiro gesto ou forma que delimita os caminhos possíveis dentro da composição na qual cada elemento estabelece relações internas uns com os outros e chegam ao equilíbrio que configura o todo (OSTROWER, 1998). Sobre isso, acrescenta-se: E na medida em que se avança o trabalho, acumulando-se de fatos físicos, cada vez mais se reforçam certas determinações que se qualificam seletivamente. O caminho se estreita sempre mais. Assim o curso de elaboração segue de formas possíveis para formas necessárias. Pois a cada decisão que tome o artista, as opções vão diminuindo e o “necessário” se torna cada vez mais inevitável. (OSTROWER, 1998, p. 68, grifo do autor). 39 Muitas vezes, o fazer de uma obra é o que gera outra, não sendo possível determinar exatamente o começo e o fim de um processo. A experiência adquirida com um trabalho integra o repertório do artista e dá corpo a outras experiências: Não há uma teoria fechada e pronta anterior ao fazer. A ação da mão do artista vai revelando esse projeto em construção. As tendências poéticas vão se definindo ao longo do percurso: são princípios em estado de construção e transformação. Trata-se de um conjunto de princípios que colocam uma obra em criação específica e as produções anteriores de um artista em constante avaliação e julgamento. (SALLES, 2011, p. 47). A investigação do processo criativo pode ocorrer pelo estudo dos documentos de processo, que são: “[...] registros materiais do processo criador. São retratos temporais de uma construção que agem como índices do percurso criativo.” (SALLES, 2011, p. 26), e podem existir em mídias diversas (SALLES, 2011). Sobre a análise destes documentos pela crítica genética, afirma-se: O olhar crítico vai, certamente, além da mera observação curiosa que esses documentos podem aguçar [...] É um acompanhamento teórico-crítico das histórias das criações. Os vestígios deixados por artistas oferecem meios para captar fragmentos do funcionamento do pensamento criativo. [...] Para se chegar a sistemas e suas explicações, descreve-se, classifica-se, percebe-se periodicidade e, assim, relações são estabelecidas. É feito, desse modo, um acompanhamento crítico-interpretativo dos registros. O movimento do olhar nasce no estabelecimento de nexos entre os vestígios. O interesse não está em cada forma mas na transformação de uma forma em outra. Por isso, pode-se dizer que a obra entregue ao público é reintegrada na cadeia contínua do percurso criador. (SALLES, 2011, p. 28-29). O estudo dos documentos, além de captar vestígios do pensamento por de trás do processo criativo, pode auxiliar no entendimento da rede de significados e dar inteligibilidade a obras que sobrevivem no tempo por meio de registros fotográficos (FREIRE, 1999), como no caso de trabalhos da linha conceitual abordados anteriormente. Por meio desses registros deixados pelo artista, é possível aprender um pouco mais sobre seu universo interno e externo, sua relação com o contexto e realidade em que vive, ou seja, elementos que compõem sua identidade e interesses — a intuição, o estilo, a seletividade interior (OSTROWER, 1998) e suas tendências e projeto poético (SALLES, 2011). 40 É importante, portanto, investigar como se deu o processo de criação das obras desenvolvidas ao longo desta pesquisa, abrindo a “caixa dentro da caixa” para entender as influências, referências e o contexto no qual foram criadas. Sobre a influência, afirma-se: Esta questão da “influência” no desenvolvimento de um artista precisa ser bem entendida. A influência nunca vem de fora, ou seja, nunca é imposta a alguém — o que, aliás, seria impossível. Ao contrário, é sempre o próprio artista que sai em procura de seu mestre — uma procura intuitiva, é claro —, buscando assimilar certos aspectos de sua obra, que de algum modo o tocam intimamente. (OSTROWER, 1998, p. 18). Um dos caminhos geradores no processo criativo da série desenvolvida na presente pesquisa foi a busca por silêncio e introspecção. O silêncio, enquanto exercício prático, permite que voltemos o olhar para o interior como uma tentativa de equilíbrio com o mundo exterior, ultrapassando-se assim as noções individuais limitantes que impedem a percepção do contexto em sua realidade. É, sobretudo, uma tentativa de sincronia com o momento presente, que remete às narrativas enviesadas e à busca pessoal pela espiritualidade (CANTON, 2001) por meio da prática de yoga e da meditação. Essa busca refletiu a vontade de transformar um sentimento de vida, muitas vezes uma angústia, em arte. Quanto à relação entre a arte e o viver, acrescenta-se: — Não se assuste. — disse — As coisas são bem mais simples sem nunca deixarem de ser complexas. Acima de tudo, de tudo mesmo, está o viver, a própria vida vivida. É nela que temos a nossa referência máxima — ela constitui, ao mesmo tempo, a referência e o contexto para os nossos valores. Assim, é em função da vida que surgem as formas expressivas de arte. Então, ao longo dos milênios da história da humanidade, primeiro vem a criação realizada pelos artistas. Depois, eventualmente surgem classificações, análises, teorias, conceitos, formulados a partir das obras criadas. (OSTROWER, 1998, p. 4). São nos momentos de silêncio ou vazio que se percebe a imensidão da vida. Na literatura, Clarice Lispector (1920-1977) descreve muito bem a sensação de sincronia com o presente ou epifania em seus trabalhos. Como no livro, “A Paixão segundo G.H.” (2009), no qual a protagonista vive um processo profundo de reestruturação interior e desvinculação das ilusões que construíam sua noção de indivíduo depois de comer uma barata. G.H. descreve o neutro da vida como o 41 silêncio, uma entrega que abandona as expectativas e a esperança em favor de simplesmente ser, percebendo o essencial da vida em nós que é a mesma vida que existe na barata: “Para escapar do neutro, eu há muito havia abandonado o ser pela persona, pela máscara humana. [...]” (LISPECTOR, 2009, p. 63). De certa forma, o processo de encontro com o neutro é o que almeja aqueles que meditam. A capacidade de perceber a diferença entre o “eu” e os pensamentos, uma distância que permite colocar em perspectiva o fenômeno de viver. A neutralidade para a personagem, entretanto, é o inferno, uma atualidade permanente — não existe mais a esperança, pois anula-se a ideia de futuro — e uma força impessoal do Deus (LISPECTOR, 2009). Dessa forma, a realização da personagem vem com uma angústia fatal da complexidade do viver: “Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos.” (LISPECTOR, 2009, p. 47), e com um medo de deixar para trás certezas fundadas na ideia de indivíduo. Lispector (2009) constrói a expectativa ao longo da narrativa e a inclusão do leitor na jornada transmite a inquietação da protagonista: Dá-me a tua mão. Porque não sei mais do que estou falando. Acho que inventei tudo, nada disso existiu! Mas se inventei o que ontem me aconteceu - quem me garante que também não inventei toda a minha vida anterior a ontem? Dá-me a tua mão: Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio. (LISPECTOR, 2009, p. 66-67). Em “Silêncio” (1999) a autora descreve novamente essa sensação de estar diante do nada: [...] Então ele, o silêncio, aparece. O coração bate ao reconhecê-lo. Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio [...] Então, se há coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se com ele, nós os únicos fantasmas de uma noite em Berna. Que se entre. Que não se espere o resto da escuridão diante dele, só ele próprio. Seria como se estivéssemos num navio tão descomunalmente enorme que ignorássemos estar num navio. [...] Depois nunca mais se esquece. Inútil até fugir para outra cidade. Pois quando menos se espera pode-se reconhecê-lo - de repente. Ao atravessar 42 a rua no meio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasmagórica e outra. Depois de uma palavra dita. [...] (LISPECTOR, 1999, p. 55-56). Outra perspectiva sobre o silêncio aparece em “Tanta mansidão” (1999), no qual Lispector descreve a sintonia com o presente sem a presença do medo ou necessidade de coragem. Ela simplesmente vê a chuva cair e não espera ver ou sentir nada além da chuva, uma total atenção à realidade tal como ela é: “Talvez seja isso ao que se poderia chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas vivo de uma alegria mansa.” (LISPECTOR, 1999, p. 64-65). Essa apreensão da imensidão da vida e do silêncio aproxima-se do momento de percepção do infinito de Yves Klein, que ao ver o encontro do céu com o mar na praia de Nice, ainda em sua juventude, passou a criar uma mitologia pessoal do azul ao imaterial, o indizível, que existe a todo momento (RESTANY, 1979). Uma percepção da realidade em sua condição mais extrema: O real absoluto para além do azul é o vazio, o imaterial é saturação da matéria. Essa negação substancial é bastante significativa. Apenas a referência à tradição mística pode justificá-lo plenamente. Desse real absoluto que é Deus, nada pode nos dar o meio de reduzir a distância infinita (e “substancial”) que dele nos separa. O azul de Yves Klein que resulta no vazio é o azul e a noite mística. O azul e o vazio são os dois aspectos sucessivos da mesma realidade suprema, que em último lugar se nos revela como incomensurável e como inapreensível, isto é, como intangível.(RESTANY, 1979, p. 102). Vinicius de Moraes (1913-1980) traduz para o português um poema de Giacomo Leopardi (1789-1837), “O infinito de Leopardi” (1986), que também descreve essa sensação diante da vida. No poema, o eu lírico descobre seu pensamento individual em meio à imensidão da natureza, e depois se entrega à essa sensação de infinito: Sempre cara me foi esta colina Erma, e esta sebe, que de tanta parte Do último horizonte o olhar exclui. Mas sentado a mirar, intermináveis Espaços além dela, e sobre-humanos Silêncios, e uma calma profundíssima Eu crio em pensamentos, onde por pouco Não treme o coração. E como o vento Ouço fremir entre essas folhas, eu O infinito silêncio àquela voz 43 Vou comparando; e vem-me a eternidade E as mortas estações, e esta, presente E viva, e seu ruído. Em meio a essa Imensidão meu pensamento imerge E é doce o naufragar-me nesse mar.” (LEOPARDI, 1986, p. 17, tradução de Vinicius de Moraes). O silêncio, o neutro, o vazio, o imensurável (para alguns, Deus) causa em igual medida medo e espanto, admiração e resignação. É um momento entre o equilíbrio e o desequilíbrio no qual a percepção da eternidade do presente e finitude da vida coexistem. Um inferno (LISPECTOR, 2009) e uma libertação. E foi a partir desse encontro e desencontro com o silêncio que surgiram alguns dos trabalhos que integram a cadeia contínua do processo criador (SALLES, 2011) que chegou nesta pesquisa. A seguir aborda-se a materialidade e a questão do silêncio associado ao papelão. 3.2. Materialidade Em 2021 foram realizados os primeiros trabalhos que utilizavam caixas de papelão e dialogavam com a ideia de silêncio. As obras “Olhe para mim” (2021) e "Inalcançável" (2021) surgiram durante o período de ensino remoto, em decorrência da pandemia de COVID-19, e ocuparam espaços da minha casa. Ambas utilizavam caixas de papelão e luz para a construção de estruturas que interferiam nos espaços em que estavam, atrapalhando ou alterando a circulação. Dialogavam também com a decadência, a ressignificação de lugares e materiais comuns, e abordando os cantos. 44 Figura 10. Julia Nogueira; Olhe para mim; 2021; fio paralelo, fita isolante, lâmpada vermelha, papelão, plugue e soquete; Cotia - São Paulo. Fonte: acervo pessoal (2021). Figura 11. Julia Nogueira; Inalcançável; 2021; fio paralelo, fita isolante, garrafas plásticas com água, lâmpada vermelha, lâmpada LED, papelão, plugue e soquete; 1,72 m x 70 cm x 90 cm; Cotia - São Paulo. . Fonte: acervo pessoal (2021). 45 Além do silêncio que foi discutido anteriormente, as obras partiram da noção dos “Cantos” apresentada por Gaston Bachelard (1884-1962) em “A poética do Espaço” (1957). Sobre os cantos, afirma-se: Eis o ponto de partida de nossas reflexões: todo canto de uma casa, todo ângulo de um aposento, todo espaço reduzido onde gostamos de nos esconder, de confabular conosco mesmos, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um aposento, um germe de uma casa. (BACHELARD, 1957, p. 286). O canto é também uma negação do Universo, do exterior, um espaço de silêncio que é ao mesmo tempo solidão e refúgio (BACHELARD, 1957). Nele, ocorrem reflexões sobre a vida e a morte, onde se sente felicidade em ser triste — uma dualidade. Pode ser também um devaneio desagradável, que deixa o sujeito imóvel e imobilizado. É um espaço que possui relação com o tempo longínquo, com a imaginação que se mistura com a memória, onde há o reencontro com a vida sonhadora e um retorno à infância (BACHELARD, 1957). Os cantos possuem pequenos infinitos de tempo, repleto de coisas imóveis e mortas que nunca são esquecidas, aquilo que se carrega de mais humilde e mais ignorado. Há cantos em que não se pode mais sair, mas mesmo em uma espécie de prisão encontra-se a paz de se estar em um repouso intermediário entre o ser e o não ser, uma irrealidade na qual só se sai com um acontecimento do exterior (BACHELARD, 1957). À ideia de canto somou-se a reflexão sobre a melancolia e solidão que às vezes surge no encontro com o silêncio. Em “Olhe para mim” (2021), foi abordada a questão da ambiguidade de um espaço que se habita, muitas vezes imobilizado (BACHELARD, 1957). Um lugar que demanda atenção e desperta memórias, devaneios negativos ou positivos a partir de detalhes, como o azulejo do banheiro ou as sombras que se misturam embaixo das pias e armários. A obra ocupou o gabinete embaixo da pia do banheiro, um móvel que estava inchado em decorrência de infiltrações de água, despertando a atenção e também o desconforto diante de uma situação inusitada. O trabalho preencheu o canto com formas e luz vermelha. Sobre o uso da cor luz, afirma-se: [...] As luzes coloridas têm o poder de provocar interpretações abstratas, remetendo a valores absolutos, religiosos, até místicos. Isso porque as 46 cores, quando originadas diretamente das fontes luminosas, apresentam-se “puras”, ou seja, em saturação máxima e com o efeito de transparência característico, o que provoca a impressão de serem imateriais, pura energia. (SANTOS, 2021, p. 177). A luz agia nas camadas de textura, chamando à uma investigação mais atenta e um processo de introspecção. O verbo imperativo no título, “Olhe para mim”, entrava em confluência com as reflexões surgidas a partir dos textos, explicitando a atenção que o espaço demandava de quem utilizava o banheiro, além de ressignificar um ambiente cotidiano. O fio que compunha o trabalho assumia a aparência e condição dos materiais utilizados, dialogando assim com as partes deterioradas do armário. Os pedaços de papelão se expandiram para várias direções, dificultando a circulação entre o chuveiro e o restante do banheiro, alcançando os pés de quem utilizava o vaso sanitário. O trabalho ocupou, portanto, não apenas o espaço físico como também o espaço criado pela luz. Figura 12. Detalhe da obra “Olhe para mim”. Fonte: acervo pessoal (2021). As caixas de papelão utilizadas em ambas as obras foram acumuladas ao 47 longo de meses. Foram retiradas as marcas de empresas e fábricas das caixas, mantendo-se apenas os adesivos de entrega, sacos plásticos, rabiscos e notas fiscais. Em “Inalcançável” (2021), foi abordada a ideia de sonho como um devaneio negativo e/ou positivo habitado em momentos de silêncio (BACHELARD, 1957). O título fazia referência ao equilíbrio delicado da pilha de caixas, que desafiavam a gravidade. Diferentemente de “Olhe para mim” (2021), as caixas não foram desmontadas ou rasgadas. Foi utilizada uma estrutura de contrapeso com garrafas de leite para manter de pé a estrutura de caixas empilhadas e encaixadas umas nas outras. Também foi utilizada a cor vermelha nas luzes, com uma lâmpada branca no topo. A pergunta: “O que tem dentro das caixas?”, foi base para o pensamento sobre o trabalho e é retomada na análise do processo de criação das obras desta pesquisa. Figura 13. Detalhe da obra “Inalcançável”. Fonte: acervo pessoal (2021). A primeira vez que o papelão foi utilizado como material, entretanto, foi em 2019, ainda com um interesse na textura e bidimensionalidade da caixa desmontada, que se somou à pintura figurativa — de retratos à objetos. 48 Figura 14. Julia Nogueira; Autorretrato; 2019; tinta acrílica sobre papelão; 90 x 65 cm, Bauru - São Paulo. Fonte: acervo pessoal (2019). 49 Figura 15 Julia Nogueira; Cúmplices: Caroline e Maith; 2019; tinta acrílica sobre papelão; 42 x 42 cm; Bauru - São Paulo. Fonte: acervo pessoal (2019). Figura 16. Julia Nogueira; Santíssima Trindade - série Casa; 2019; tinta acrílica sobre papelão; 46 x 30 cm, Bauru - São Paulo. Fonte: acervo pessoal (2019). Em 2021, durante o período de isolamento social, outra pintura no papelão foi iniciada mas nunca finalizada. As anotações desenvolvidas para a obra, entretanto, incorporaram-se no processo criativo das obras desta pesquisa. Em especial com a frase "dentro da caixa tinha uma caixa" e rascunhos para uma série de pinturas que 50 não saíram do papel. Figura 17. Julia Nogueira; Todo dia isso - autorretrato; 2021; tinta acrílica sobre papelão; 1 x 1,2 m, Cotia - São Paulo. Fonte: acervo pessoal (2021). Figura 18. Documento de processo: página 1 de sketchbook com anotações para um projeto não realizado, 2021. Fonte: acervo pessoal (2021). 51 Figura 19. Documento de processo: página 2 de sketchbook com anotações para um projeto não realizado, 2021. Fonte: acervo pessoal (2021). Figura 20. Documento de processo: página 3 de sketchbook com anotações para um projeto não realizado, 2021. Fonte: acervo pessoal (2021). Em 2020, durante a residência artística “Em Residência: Bauru” — Projeto 52 contemplado pelo Edital Proac 20/2019 - Produção de exposições inéditas de artes visuais — foi desenvolvida a obra “Instabilidades Cotidianas” (2020), exposta na Mostra Coletiva “Em Residência: Bauru” na Galeria Municipal “Angelina Waldemarin Messenberg" em 2021. No trabalho, foi abordado o conceito de mudança, dificuldades diárias e o embate entre a cidade e os corpos que nela habitam. Sobre a obra, afirma-se: A obra Instabilidades Cotidianas é composta de duas peças que dialogam entre si, evidenciando contraste de formas e texturas; a primeira é uma parede que se inclina desafiando sua própria rigidez composta por fragmentos de madeira e papelão, e a segunda peça é fluida, formada por grades de metal e arame enferrujado. Os materiais utilizados foram encontrados em caçambas e canteiros de obra pelos quais passei em diversos bairros da cidade durante a Residência, e foram incorporados com suas marcas de uso e deterioração. Tive como eixo norteador o conceito de “construção” - social e material - no contexto urbano de Bauru, propondo reflexão sobre a ressignificação dos resíduos do consumo e da construção civil por diversas classes sociais, que aponta para uma estrutura de (des)construção urbana e para questões como o acesso à cidade, moradia e transporte, ligadas ao cotidiano bauruense. (OLIVEIRA, 2020-2021, p. 62). Figura 21. Julia Nogueira; Instabilidades Cotidianas; 2020; Arame, madeira, madeirite resinado, papelão e tela de arame galvanizado; 2,03 m x 1,95 m x 3,10 m; Bauru - São Paulo. Fonte: Marília Vasconcellos (2021) em “Em Residência Bauru”: Catálogo da Exposição (2020-2021). 53 Figura 22. Detalhe de parte da obra “Instabilidades Cotidianas”. Fonte: Marília Vasconcellos (2021) em “Em Residência Bauru”: Catálogo da Exposição (2020-2021). Em relação às referências artísticas que construíram o repertório imagético da criação dos trabalhos mencionados acima e das obras desenvolvidas nesta pesquisa, destaca-se a acumulação explorada por Arman e Jac Leirner; o uso de objetos e linha conceitual de Cildo Meireles; e a ênfase na forma e relação com o espaço do Neoconcretismo, em especial com as obras de Amilcar de Castro (1920-2002). Figura 23. Amilcar de Castro; 1990; aço; 14 x 23 x 0,3 cm. Fonte: Instituto Amilcar Castro (2022). Destaca-se ainda o enfoque na materialidade e sobreposição na construção 54 de espaços de Henrique Oliveira (1973), que transforma madeira compensada, madeirite e outros materiais em formas orgânicas que englobam o espectador. É o caso do trabalho “A Origem do Terceiro Mundo” (2010), que compôs a 29a Bienal de Arte de São Paulo. Figura 24. Henrique Oliveira; A Origem do Terceiro Mundo; 2010; madeira compensada, PVC e metal; vista interior. Fonte: Henrique Oliveira (2022). Figura 25. Henrique Oliveira; A Origem do Terceiro Mundo; 2010; vista interior. Fonte: Henrique Oliveira (2022). Neste repertório imagético destaca-se também a Instalação, “Escultura 55 Passada de Contrabando do Paraguai para o Brasil” (2007), de Aníbal López (1964-2014) apresentada na 6º Bienal do Mercosul. O trabalho foi composto de caixas de papelão vazias que foram contrabandeadas por traficantes para a exposição. Discutindo, portanto, o papel da arte e sua relação com a sociedade e os limites entre Happenings, Performances e a realidade. Além de colocar em cheque órgãos de fiscalização de fronteiras e a própria instituição de arte. Figura 26. Aníbal López; Escultura Passada de Contrabando do Paraguai para o Brasil; 2007. Fonte: Revista Desvio (2019). O interesse na forma quadrada e o empilhamento na obra de Aníbal López aparece também na Instalação, “Paraíso Perdido Não Orientável 1667” (2017), de Ibrahim Mahama, cujos trabalhos transitam pelas fronteiras que perpassam o espaço, o espectador e a materialidade, dialogando também com questões político-sociais. 56 Figura 27. Ibrahim Maham; Paraíso Perdido Não Orientável 1667; 2017. Fonte: Galeria White Cube (2022). A obra, que compôs a exposição “Ex Africa" no CCBB de Belo Horizonte em 2017, foi construída com materiais recolhidos do ambiente urbano. Sobre ela, afirma-se: Mahama encontrou “colaboradores” para produzir centenas de “caixas de sapateiro”, pequenos objetos de madeira criados a partir de caixotes usados para transportar materiais no Brasil. Baseado na profissão dos engraxates em Gana, as caixas também podem funcionar como um tambor, nos quais se pode bater para solicitar trabalho. Agregados em um monumental e cuidadosamente equilibrado bloco, os caixotes são colocados junto com outros itens reaproveitados, como sapatos de salto, martelos e agulhas. [...] (HUG, 2017, p. 166). Sobre o uso de papelão, destacam-se os trabalhos de Carlos Bunga (1976) que estuda a materialidade e o pictórico construindo instalações que interferem na arquitetura na qual se inserem, formando espaços dentro de espaços. 57 Figura 28. Carlos Bunga; Mausoléu; 2012; Papelão, fita adesiva, tinta fosca, cola e 45 esculturas da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Fonte: Galería Elba Benítez (2022). O artista utiliza materiais corriqueiros e enfatiza o processo, criando a partir dos locais em que as obras se inserem. É o caso da exposição “Mausoléu” (2012) que ocupou o Octógono da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Sobre a exposição, afirma-se: Na tradição da arquitetura e do urbanismo, um mausoléu é um túmulo de grandes proporções para guardar os restos mortais de reis, imperadores, proeminentes figuras públicas ou heróis de uma nação. Na paisagem das cidades, onde eles existem, marcam a morte para celebrar a grandeza da vida, perenizar a memória, ao mesmo tempo em que pontuam a retórica dos vencedores e do poder instituído. Na Pinacoteca, Mausoléu é uma grande torre de papelão, construída no centro do museu, que abriga um conjunto de esculturas do seu acervo escolhido pelo artista. Ela mimetiza a arquitetura deste espaço interior, mas, ao mesmo tempo, a dificulta: altera a forma como ele é percebido para lembrar a sua função. O deslocamento das entradas, o delicado giro na estrutura simétrica do Octógono, a abertura de fendas e janelas na parte superior, a cor do papelão e o laranja dos tijolos, a superfície de pintura na parte externa, são associações que põem em movimento um conjunto de significados relacionado a ele e à história da organização que o abriga. (MESQUITA, 2012). A seguir, aborda-se a análise dos documentos de processo desenvolvidos ao longo desta pesquisa e a proposta de participação do espectador. 58 3.3. Os documentos de processo, a participação do espectador e o convite à introspecção Não mais limitadas ao contexto de isolamento social nem aos cantos, a proposta das obras desta pesquisa expandiram-se para o espaço público. A busca pessoal pelo silêncio se transformou em um convite à introspecção do outro, já presente na obra “Olhe para mim” (2021), mas sem a angústia e decadência dos trabalhos anteriores. Buscou-se formas do espectador compor o significado da obra com suas experiências, configurando uma necessidade de compartilhar esse assunto, assim como G.H. chama pelo espectador: “[..] Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta” (LISPECTOR, 2009, p. 66-67). O processo de registro dessa mudança da relação do silêncio com o papelão começou em janeiro de 2022, em um livro ata. A frase “tudo começou com o papelão” inaugurou uma sequência de mapas mentais com anotações, definições e associações que foram surgindo ao longo dos meses de pesquisa. A partir daí, foi destacada a função cotidiana do papelão em proteger mercadorias durante o transporte e armazenamento, além da praticidade nas entregas. A caixa faz parte da expectativa de recebimento e se integra num percurso que tem relação com o espaço e o tempo. A pergunta, “O que tem dentro das caixas?”, foi retomada junto com uma sequência de outras perguntas geradoras, como: “Ao cobrir as paredes com papelão, o que se revela?” e “O que tem além da textura e da sobreposição de materiais?”. A afirmação, “tenho medo do escuro então acendo a luz”, envolvia o pensamento sobre o espectador dentro de um espaço transfigurado e o papel da iluminação nas obras — e também um medo de infância. Neste sentido, foram relembrados os trabalhos de Christo e Jeanne Claude (1935-2009), que cobrem o exterior de monumentos para destacar a estrutura por debaixo. 59 Figura 29. Christo e Jeanne-Claude; The Wall - Wrapped Roman Wall; 1973-1974; polipropileno e corda. Fonte: Shunk-Kender (1974) Christo and Jeanne-Claude Foundation and J. Paul Getty Trust. A pergunta “O que encontro no meu silêncio?” direcionou o pensamento criativo para a meditação, ideia das obras como um convite para outro lugar que seria familiar na textura e no toque, mas diferente do espaço cotidiano. As anotações no livro ata destacam novamente a função da caixa associada ao transporte. “O que você deixa empilhar na sua cabeça?” resgatou recortes de caixas com ilustrações que orientam o empilhamento correto em paletes. Neste contexto, uma colagem de uma página de um sketchbook de 2019 foi incorporada no fluxo de anotações e os primeiros desenhos das obras ganharam forma. 60 Figura 30. Documentos de processo: páginas 10 e 11 do livro ata. Fonte: acervo pessoal (2022). Propôs-se a criação de três trabalhos a partir da apropriação das caixas de papelão. O primeiro deles, “A Fonte”, teve como proposta construir um local em que o espectador pudesse deixar alguma preocupação, problema ou pensamento que iria embora junto com as caixas ao final da exposição. No primeiro desenho, a desorganização das caixas entrou em contraste com as ilustrações de empilhamento recomendado mencionadas anteriormente, ligando-se, portanto, à desordem, ao acúmulo, ao erro e à decadência. Estes adjetivos negativos ganharam outras significações quando levantou-se a ideia da fonte como um mito ou credo popular, um ritual simbólico em que se faz um pedido por meio de um gesto carregado de misticismo, que é um convite ao que sentimos e desejamos. 61 Figura 31. Primeiro desenho de “A Fonte”; lápis de cor sobre Canson; 21 x 29,7 cm; Cotia - São Paulo. Fonte: acervo pessoal (2022). Nos primeiros rascunhos de “A Torre” se estabeleceu relação com o jogo "Torre de Jenga", no qual os jogadores vão retirando bloquinhos da estrutura tentando não derrubá-la. Propôs-se a construção a partir do equilíbrio precário como no trabalho “Inalcançável” (2021), também em contraste com a organização padrão recomendada para empilhamento de caixas. “A Torre” surgiu de um acaso: ao longo da montagem de “Inalcançável”, a estrutura caiu e ficou apoiada na parede como se o trabalho fosse propositalmente pensado daquela forma. 62 Figura 32. Registro do acaso na montagem de “Inalcançável”. Fonte: acervo pessoal (2021). Figura 33. Primeiro desenho de “A Torre”; lápis de cor sobre Canson; 21 x 29,7 cm; Cotia - São Paulo. Fonte: acervo pessoal (2022). 63 Com esse ocorrido, destaca-se o acaso no processo criativo mencionado anteriormente (OSTROWER, 1998; SALLES, 2011) e a aproximação com o método do acaso no processo criativo em meios eletrônicos: Neste método está incluída a idéia do não-previsível, do singular (uma única vez), que se concretiza por meio de distintas possibilidades em aberto, o que remete imediatamente à idéia de jogo, de acaso, como primeiro, a saber, como significado de pura qualidade. É o método segundo o qual um conjunto de causas independentes entre si determinam um acontecimento fortuito, um fato imprevisto ou não-intencional. Pode-se mesmo pressupor esse método como um antimétodo. Aquilo que não está no programa poético se manifesta e se configura. [...] (PLAZA; TAVARES, 1998, p. 93). “A Torre” constituiu-se assim como um índice do que se deixa acumular emocionalmente no interior, em um equilíbrio instável. O espectador seria confrontado com aquilo que está prestes a cair ou já caiu, deixaria algo para trás em “A Fonte” e em seguida, seria convidado a entrar na caixa, em seu próprio silêncio. A pergunta, “Para onde você vai quando está no escuro?” retomou as reflexões de “Olhe para mim” (2021), expandindo-se do canto para todo o espaço da Galeria ou da sala. Em “A Caverna”, a iluminação não estaria mais associada à cor vermelha das obras anteriores — que alterava a cor do papelão. Para a instalação foi considerado o uso de uma lâmpada pendurada com fio exposto, com a opção de ser ligada e desligada conforme a escolha de quem entrasse no ambiente. Chegou-se, por fim, ao uso da lanterna como fonte de luz. A lanterna surge da experiência pessoal de nove anos como integrante do Movimento Escoteiro, vivência que foi importante em meus anos de formação, do começo da adolescência até o início da vida adulta. A anotação apresentada anteriormente, “tenho medo do escuro então acendo a luz” é retomada neste contexto — em acampamentos e trilhas tive que enfrentar esse medo, algumas vezes munida apenas de uma lanterna. No escuro, “[...] há o silêncio” (LISPECTOR, 1999, p. 55) e a supressão parcial ou às vezes total de um dos sentidos, que afeta a percepção de mundo. Na obra, o espectador escolheria para onde direcionar sua busca em um lugar físico e não físico, associado à ideia de mudança e transição, que seria enfatizada pela alteração que o facho de luz iria realizar no espaço por meio da lanterna. A princípio, se considerou forrar algumas das caixas de papelão com papel 64 chumbo para refletir a luz, agregando-se por meio desse material a ideia de presente. Deixando a ideia do papel chumbo de lado, apenas a luz foi estendida para os demais trabalhos, com lâmpadas de luz quente. Figura 34. Documentos de processo: páginas 13 e 14 do livro ata. Fonte: acervo pessoal (2022). Definiu-se, mais a frente, que “A Fonte” seria então uma fonte de um não desejo, em que se depositaria não uma moeda, mas algo que seria levado embora. A obra seria construída com paletes e um amontoado de caixas de papelão. Nas caixas mais altas ficariam as luzes, que iriam construir a ideia de monumento público e misticismo. Próximo à obra, propôs-se que retalhos de papelão e um canetão estivessem postos junto às orientações que o participante iria seguir em três etapas: 1) pare e pense: o que vem te incomodando que você gostaria de não carregar mais?; 2) anote em pedaço de papelão o que você deseja que vá embora junto com essas caixas; 3) jogue seu desejo em uma das caixas. O trabalho seria colocado em um lugar com circulação de pessoas, de forma a entrar no caminho diário, como bancas, lanchonetes e quiosques que ficam no meio da circulação em calçadas e terminais de ônibus — como no caso do terminal em Cotia, próximo à minha casa. 65 Figura 35. Quiosque no meio do caminho na entrada do Terminal Metropolitano de Cotia. Fonte: acervo pessoal (2022). “A Caverna” seria uma sala coberta de papelão do chão ao teto, com sobreposição de caixas abertas, rasgadas — sem marcas de produtos e empresas, mas com adesivos do correio, anotações e amassados do material. O espectador entraria na instalação com uma lanterna. Na entrada a pergunta geradora: “O que você encontra no seu silêncio?” daria início a busca. “A Torre” seria um equilíbrio de caixas de papelão apoiadas na parede, montada pelo encaixe e colagem de uma caixa na outra com contrapesos para segurar a estrutura; com luzes dentro de três caixas. Duas regiões do Câmpus da Unesp Bauru foram levantadas como opção para a montagem das obras: a Central de Laboratórios e a Galeria da FAAC ou as salas 50 's e a sala 59 — optando-se pela Central de Laboratórios e a Galeria da FAAC. Denota-se que a Galeria estava em vias de ser reformada, com avarias no forro do teto, infiltração de água e mofo. Dessa forma, sua ocupação iria