unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP SIRLENE DUARTE PRÁTICAS DE SUBJETIVAÇÃO E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA: O SUJEITO NO ENTREMEIO DA AUTO-AJUDA E DA CIÊNCIA ARARAQUARA – SP 2008 2 2 SIRLENE DUARTE PRÁTICAS DE SUBJETIVAÇÃO E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA: O SUJEITO NO ENTREMEIO DA AUTO- AJUDA E DA CIÊNCIA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara, como pré-requisito para a obtenção do título de Doutor em Letras. Linha de pesquisa: Estrutura, Organização e Funcionamento Discursivo e Textual Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina ARARAQUARA – SP 2008 3 3 Ao Nilton Leonardo (Léo) e ao Vinícius, cujas ausências se fazem, a cada dia, mais presentes. 4 4 AGRADECIMENTOS Foram muitas as contribuições que recebi no percurso da feitura deste trabalho. Algumas vindas de longe, outras de muito perto. Este é, agora, o momento de agradecer aos companheiros participantes dessa jornada. Agradeço, com um carinho muito especial, ao professor Dr. Arnaldo Cortina, orientador desta pesquisa, por ter, pacientemente, sabido compreender as minhas tantas dificuldades. Agradeço a sensibilidade, a generosidade e a honestidade, tão marcantes em seu comportamento e, sobretudo, agradeço, com respeito e admiração, pelo rigor profissional com que conduziu a orientação desta pesquisa. Aos professores componentes da banca examinadora, por aceitarem o convite para a participação desta defesa. Às profas. Dras. Maria do Rosário V. Gregolin e Vanice Maria O. Sargentini, pelas contribuições dadas quando do exame de qualificação, pela acolhida em Araraquara, pelos produtivos encontros em congressos, bares e repúblicas da academia. Ao prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes, pela interlocução neste e em tantos outros trabalhos. À profa. Dra. Renata Coelho Marchezan, pelas contribuições nas leituras de Mikhail Bakhtin. Ao Cleu ou Cleuzinho, que conheci mais recentemente nos caminhos do fazer análise de discursos, agradeço sua contribuição; e, como não lembrar, ao “Çula”, meu amigo-irmão, meu companheiro, meu comparte de longa data, desde as primeiras “Letras”. É com amor- paixão que agradeço sua amizade e sua participação durante o fazer deste trabalho. E o que seria de mim sem Antônio, o Tony Fernandes Júnior, e sem a Taninha, a Maia Barcelos. Sem vocês eu não seria a Sirla que sou. Obrigada, a vocês dois, Tony e Tânia, por estarem presentes, constantemente e sem trégua, nos momentos bons, mas, e, principalmente, naqueles em que eu mais precisei de apoio. Foram nesses momentos que Antônio recitou o 5 5 poema mais perfeito e Tânia escolheu “a roupa com a qual eu pudesse dançar o melhor samba”. À Lidiane Alves do Nascimento, a lindinha, e à Gisele Alves, companheira de livros e “copos”. As razões para justificar o meu agradecimento são tantas que se resumem na seguinte frase: um beijo, de mãe, no coração de cada uma. Aos membros do GEADA (Grupo de Estudos em Análise do Discurso de Araraquara), de “todas as épocas”, de todos os lugares, em todos os momentos, eu agradeço a acolhida gentil e a interlocução em Análise do Discurso. Ao GELE (Grupo de Estudos em Leitura), pelas contribuições teóricas em Semiótica Greimasiana. Em especial ao Fernando Moreno, uma amizade construída nesse percurso e que se mantém, mesmo que a geografia insista em nos distanciar. À Léa, pela compreensão em minhas ausências. E ao Francisco, pelo momento feliz no início de 2008. À Cida Conti, à Aline, ao Ismael, ao Niguelme e ao Henrique (meu lindo acreano), amizade construída e estreitada nesse percurso. Ao Nilton Milanez, meu lado pandoca, agradeço por estar sempre bem pertinho, em todos os momentos. Obrigada pelo resumo em língua estrangeira, tanto em francês quanto em inglês. Às funcionárias da Secretaria da Pós-Graduação, em Araraquara, pela cortesia e agilidade no atendimento. Aos colegas da lida diária do Campus da UFG em Catalão, amigos dos cursos de História, Pedagogia, Geografia, Matemática, Ciências da Computação, Educação Física; e aos meus colegas de Departamento, agradeço por (re)afirmarem, sempre, que o fazer acadêmico é tecido nas mesmas tramas do fazer pessoal e político. Em especial agradeço à Ademilde pelas tantas traduções do francês e por estar sempre presente em minha vida acadêmica e pessoal; à Imaculada, por quem tenho um grande respeito profissional, agradeço a amizade; à Lívia, pelo ombro amigo nos bons e nos maus momentos; à Maria Helena, por fazer-me avó, trazendo ao mundo a Alice e, “pelas mãos de Alice”, vislumbrar dias mais felizes. 6 6 Na pessoa do Diretor do Campus de Catalão, Prof. Dr. Manoel Rodrigues Chaves, eu agradeço a todos os funcionários, indistintamente, em suas diversas áreas de atividades, pela amizade sincera. Ao Departamento de Letras, Administração do Campus da UFG e à Prefeitura Municipal de Catalão, pela licença concedida. E, aos funcionários do Departamento Pessoal, pela agilidade na tramitação da documentação referente a essa licença. E, por último, agradeço aos meus pais, meus irmãos e irmãs por participarem de minha vida diária; à Karinne e ao Thiago, meus filhos, por compreenderem as tantas ausências; e ao Braz, meu marido-VIDA, por suportar, pacientemente, a minha tensão durante a escritura deste trabalho. 7 7 DUARTE, Sirlene. Práticas de subjetivação e construção identitária: o sujeito no entremeio da auto-ajuda e da ciência. 2008. 141f. Tese (Doutorado em Lingüística e Língua Portuguesa). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara. 2008. RESUMO O presente trabalho concebe a literatura de auto-ajuda como uma prática contemporânea de subjetivação e procura analisar os discursos que sustentam determinados textos de auto-ajuda, compreendendo-os como parte integrante de discursos historicamente produzidos. Para tanto, procura verificar os efeitos de construção identitária, observados no discurso da Teoria Multifocal do Conhecimento, elaborada por Augusto Cury, um dos escritores representativos da literatura de auto-ajuda no Brasil. Sustentam esta pesquisa os pressupostos teóricos da Análise do Discurso francesa, a partir das contribuições dadas por Michel Foucault, já assinaladas por Michel Pêcheux, e amplamente desenvolvidas em vários trabalhos realizados por estudiosos brasileiros; mais especificamente, esta pesquisa centra-se nas noções de subjetividade e identidade e nas reflexões sobre ciência arroladas na obra de Foucault. Com esse aporte, problematiza-se a língua como materialidade do discurso cujo funcionamento, na auto-ajuda, possibilitou apreender tipos identitários a partir dos saberes criados nesse discurso visando a interferir e a conduzir as subjetividades em direção a um modelo de sujeito requisitado na contemporaneidade. A análise lingüístico-discursiva possibilitou perceber a conformação de um discurso utilitarista/pragmatista funcionando a partir do saber, do desejo, da crença e da ação dos sujeitos. Palavras-chave: Discurso. Auto-ajuda. Ciência. Subjetividade. Identidade. 8 8 DUARTE, Sirlene. Pratiques de subjectivation et construction identitaire: le sujet dans l’entremêle de l’auto-aide et de la science. 2008. 141f. Thèse (Doctorat en Linguistique et Langue Portugaise). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2008. RÉSUMÉ Ce travail présent conçoit la littérature de l'auto-aide comme une pratique contemporaine de subjetivation, cherchant analyser les discours qui soutiennent certains textes de l'auto-aide, en les comprenant tel qu'intégrant de discours historiquement produits. Donc, il cherche à vérifier les effets de constructions identitaires, observés dans le discours de la Teoria Multifocal do Conhecimento [Théorie Multifocal de la Connaissance], élaborée par Augusto Cury, l'un des écrivains les plus représentatifs de la littérature de l'auto-aide au Brésil. Les présupposés de l'Analyse du Discours d'orientation française soutiennent cette recherche, à partir des contributions de Michel Foucault, déjà signalées par Michel Pêcheux, largement développées dans des plusieurs travaux réalisés par des chercheurs brésiliens; spécifiquement, cette recherche focalise les notions de subjectivité et identité ainsi que les réflexions sur la science, de la façon dont elle a été comprise par Michel Foucault. Considérant ce postulat, on problematise la langue comme matérialité du discours, vu que son fonctionnement à propos de l'auto-aide remet à l'appréhension des types identitaires à partir des savoir créés dans ce discours, visant à l'interférence et la conduction des subjectivités vers un modèle de sujet demandé par notre contemporanéité. Une analyse linguistique-discursive a possibilité la perception de la configuration d'un discours utilitariste/pragmatique fonctionnant à partir du savoir, du désir, des croyances et de l'actions des sujets. Mots-clés: Discours. L'auto-aide. Science. Subjectivité. Identité. 9 9 DUARTE, Sirlene. Subjectivation practices and identity construction: the subject in-between the self-help and the science. 2008. 141f. Thesis (Doctorate in Linguistics and Portuguese Language). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2008. ABSTRACT This research conceives the literature on self-help as a contemporaneous practice of subjetctivation, searching to analyse the discourses which support certain self-help texts and comprehending them as a constitutive part of discourses historically produced. Therefore, it searches to verify the effects of identity construction, observed in the discourse of the Teoria Multifocal do Conhecimento [Multifocal Knowledge Theory], elaborated by Augusto Cury, one of the most representative writers on self-help literature in Brazil. This research is based on the theoretical presuppositions of the Discourse Analyses of French orientation, from Michel Foucault contributions, also pointed by Michel Pêcheux, largely developed in several works taken by Brazilian researchers; specifically, this research focus on not only the notions of subjectivity and identity, but also on the discussions about science, the way it is understood in the works of Michel Foucault. Taken these postulates, we discuss the language as a materiality of the discourse, which functioning concerning this kind literature provides the apprehension of several identity types from the knowledge created within this discourse, which objective is to interfere and conduct the subjectivities towards a subject pattern required in nowadays. A linguistic-discursive analysis provided the realization of a configuration of an utilitarian/pragmatic discourse functioning from knowledge, desire, beliefs, and action of the subjects. Keywords: Discourse. Self-help. Science. Subjectivity. Identity. 10 10 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS.............................................................................11 1. O tema e a pesquisa.............................................................................................................11 2. A escolha do material de análise/constituição do corpus.................................................15 3. Sobre o autor e as obras.....................................................................................................21 4. Hipóteses e objetivos...........................................................................................................24 5. Trabalhos realizados sobre a literatura de auto-ajuda...................................................25 1. BASES TEÓRICAS PARA UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA E SUBJETIVIDADE.............................................................................31 2. PRÁTICAS DE SUBJETIVAÇÃO E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA......................66 2.1. Subjetividade e Identidade..............................................................................................66 2.2. A escrita autobiográfica no entrelugar científico e identitário....................................73 3. O FAZER CIÊNCIA NA TEORIA MULTIFOCAL DO CONHECIMENTO ...............92 3.1. Das formas de conhecimento...........................................................................................92 3.2. A TMC e a autonomia do sujeito...................................................................................102 3.3. A TMC e a idéia de caos: ilusão de origem identitária:..............................................110 3.4. Auto-ajuda: o sujeito contemporâneo na mira da TMC.............................................113 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................128 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................131 11 11 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS A literatura de auto-ajuda assemelha-se a uma droga que lota cada vez mais as prateleiras das livrarias, ensinando a exorcizar os abalos das figuras em vigência. (Suely Rolnik) 1. O tema e a pesquisa O interesse em estudar o tema auto-ajuda tem nos acompanhado há algum tempo. Surgiu, inicialmente, quando aluna do Curso de Mestrado, na Universidade Federal de Goiás, em 1996, cursando a disciplina “Tópicos em aquisição e desenvolvimento da escrita”, ministrada pela professora Drª Sônia Vieira Mota. Foi nesse curso que entramos em contato, pela primeira vez, com alguns autores ligados à área de estudos da Análise do Discurso de linha francesa, especificamente a que tem a psicanálise como eixo norteador. Para o trabalho final daquela disciplina, propusemos analisar alguns mecanismos persuasivos que poderiam ser encontrados em textos de auto-ajuda e escolhemos, para isso, dois trabalhos publicados pelo escritor Lair Ribeiro. Foi esse trabalho que nos fez esboçar, na época, um plano de pesquisa sobre o tema. Todavia, terminada a disciplina, e por razões diversas, engavetamos o projeto. Foi somente em 2003, quando matriculada como aluna especial na FCL-UNESP/CAr, nas disciplinas “Semiótica Discursiva”, ministrada pelo professor Dr. Arnaldo Cortina, e “Contextos Epistemológicos da Análise do Discurso”, ministrada pela professora Drª Maria do Rosário Valencise Gregolin, que o interesse em retomar o assunto voltou. A consolidação do projeto de pesquisa concebendo a literatura de auto-ajuda como prática de subjetivação veio em momento posterior, quando já aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa nesta instituição. Os trabalhos que se têm sobre a literatura de auto-ajuda, atualmente, nas diferentes perspectivas teórico-analíticas, concordam em um ponto: há um tipo de auto-ajuda, sob forma 12 12 de manual, que tem por objetivo ditar regras de comportamento. Definido como manual1 ou técnica, esse tipo de literatura tem por objetivo ensinar modos de conduta, modos de viver individual. Por meio do resgate da auto-estima e do estímulo de pensamentos positivos é possível, propõe a maioria das obras de auto-ajuda, resolver as mazelas pelas quais passa o sujeito. Diversas e diferentes são as técnicas ou instruções que podem ser encontradas nesses livros, cada uma delas direcionada a um tipo específico de questão: “ser líder de si mesmo”, “parar de fumar”, “emagrecer sem passar fome”, “enriquecer rapidamente”, “relacionar-se bem com as pessoas”, “fazer amigos”, “obter prazeres do sexo”, “viver bem na intimidade”, “adquirir sabedoria rapidamente”, “ser bonita para sempre”, “aumentar o poder da memória”, “administrar o estresse”, “falar bem para progredir na carreira profissional”, “revolucionar a qualidade de vida”, etc. As propostas são as mais variadas, desde alcançar sucesso profissional e pessoal até controlar o corpo e a mente para a obtenção daquilo que se almeja. O princípio básico parece ser o de que qualquer pessoa é capaz de ajudar a si mesma, desde que siga os conselhos dados, ou instruções prescritas, pelos manuais. Em síntese, é necessário entrar em um estado de bem-estar e de perfeição consigo mesmo para viver e relacionar-se harmoniosamente com os outros. Os livros de auto-ajuda têm, assim, o objetivo de ensinar modos de conduta para que o sujeito possa se fortalecer e, fortalecido, viver em plena felicidade. Nesse raciocínio, é possível apontar uma característica nesse tipo de literatura: há nele um discurso de automodelação e de controle do corpo e da mente, pretensiosamente revolucionário, ou, que pode auxiliar o sujeito a fazer uma “verdadeira revolução em sua vida”, como propõe Cury (1998), por exemplo, quando prescreve tipos de condutas eficazes para se conquistar tanto um determinado bem quanto solucionar um dado problema, sejam eles de cunho material ou espiritual. Nessa conformação, esse discurso apresenta duas particularidades: adquire propriedade de verdade inquestionável quando o provável passa a ser o possível na e pela ação do sujeito que, por sua vez, poderá transformar a realidade independentemente de sua situação concreta (sociohistórica); ser sustentado pela crença em soluções imediatistas e em fórmulas miraculosas. Corrobora com essa afirmação Brunelli (2003, p. 177) quando diz que os livros de auto-ajuda [...] pregam que o segredo para que qualquer um consiga melhorar de vida, alcançar sucesso, ganhar muito dinheiro etc. está 1 Nessa acepção, de acordo com a maioria dos trabalhos que se tem sobre auto-ajuda, por manual entende-se “livro-guia”, de fácil manuseio, que porta instruções fáceis de serem executadas. Em nossas leituras, não encontramos a concepção de “gênero didático”, embora alguns pesquisadores, como Chagas (2001; 2002), por exemplo, fale em um discurso didático da auto-ajuda. 13 13 na crença incondicional na realização dos sonhos, do projeto de vida, dos desejos etc. [...] jamais duvidar do poder que se tem de mudar a realidade. Essa idéia de crença e de fé pode ser encontrada na afirmação de um dos escritores que mais vende livros de auto-ajuda, Lair Ribeiro, quando diz não haver “nada de errado com o mundo em si. O caso não é mudar o Brasil, nem a sociedade. Você é que tem que mudar. Se você mudar, o mundo muda com você” (RIBEIRO, 1992, p. 42). No que se refere aos livros publicados por Lair Ribeiro, temos observado que, em sua maioria, e alguns trabalhos de pesquisa sobre a obra desse autor endossam a nossa constatação2, mantêm um discurso sustentado no próprio sujeito, creditando-lhe total responsabilidade por todos os seus atos. Os usos condicional e imperativo presentes nos enunciados (“se você mudar” = “mude!”), característicos desse discurso voltado principalmente para o universo empresarial, produzem alguns efeitos de sentido que merecem duas considerações: os problemas pelos quais passa o sujeito dizem-lhe respeito diretamente, pois causados por ele mesmo (não há “nada de errado com o mundo” = se há algo errado, esse algo é você; “se você mudar, o mundo muda com você” = discurso da capacidade pessoal, do mérito próprio: todas as conquistas advêm da capacidade, da aptidão, da superioridade, de o sujeito em obtê-las. Essa afirmação provoca um outro deslizamento de sentido: todos os fracassos resultam também da incapacidade, do desmerecimento, do próprio sujeito em não querer mudar). O discurso que sustenta esse tipo de direcionamento na literatura de auto-ajuda é o da meritocracia3; o universo exterior ao sujeito está estabilizado, é seguro. A mudança necessária encontra-se no mundo interior, encontra-se dentro de cada um dos sujeitos. A fé, nesse caso, não está direcionada nem para o divino e nem para o místico, mas na crença da vontade e da aptidão pessoal em querer mudar. Esse discurso fundado no valor pessoal pode ser encontrado em grande parte das obras de auto-ajuda. A título de exemplo, podemos novamente citar o escritor Augusto Jorge Cury, quando afirma, em um de seus livros, que “ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar autor da própria história. Ser feliz é uma conquista e não obra do acaso” (CURY, 2001, p. 12, os grifos são nossos). 2 Ver especialmente o trabalho de CERCATO – www.inventario.ufba.br, consultado em 15/03/2006. 3 O discurso do mérito, de valor moral ou intelectual, está centrado nas aptidões do indivíduo. Segundo Chagas (2002, p. 40), em nota de rodapé, citando Lorenzo Fischer pelas leituras de Bittencourt (1998), a meritocracia tem seus fundamentos no princípio do achievement. Tudo quanto um indivíduo consegue na vida (ou não consegue) depende de sua virtude e de sua inteligência. 14 14 Enquanto prática, a auto-ajuda parece propor transformações nas relações sociais, modalizando representações, a fim de (re)organizar o(s) sujeito(s) em um espaço e em um tempo historicamente determinados. Como pensar, então, tempo e espaço nesse discurso? Se os problemas sociais e as soluções coletivas parecem engendrar-se em individualidades postas sob fórmulas massificadas – as situações cotidianas são gerais e até mesmo similares para todos os sujeitos –, estaria a auto-ajuda firmando um contrato, do tipo Seguro de Vida, cuja cláusula principal daria garantias para a obtenção de seres perfeitos e harmônicos e cuja identidade seria única e permanente? Ao se produzirem verdades sobre o corpo, a mente, o trabalho, a mulher, dentre outras, a auto-ajuda apresenta-se como um instrumento por meio do qual tudo pode ser resolvido. Duas estratégias são percebidas nesse raciocínio: a primeira resulta do fato de se colocar o sujeito para pensar sua própria vida, recorrendo, para isso, aos exercícios de auto-análise, estratégia auto-reflexiva; a segunda, decorrente da anterior, modificá-la com suas ações, estratégia pragmática. O que parece marcar esse gênero é que “os textos não se destinam unicamente à leitura, possuem um cunho prático, pressupondo que o leitor passará da leitura à ação”, afirma Rüdiger em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo4. Assim é que os discursos de auto-ajuda parecem estar sempre respondendo às seguintes questões: o que é você hoje? o que faz você hoje? o que você quer ser hoje? o que você quer ser e será amanhã? Ao levantar essas questões não poderíamos deixar de falar sobre a linguagem, suas práticas, e sobre sujeito contemporâneo: pensar a literatura de auto-ajuda enquanto prática significa pensá-la inserida no contexto sociohistórico. Refletir sobre essa literatura implica também colocar em evidência formas de linguagem e de sujeito produzidas ou requisitadas nas atuais condições de produção de diferentes discursos voltados para um modelo idealizado, planejado e construído. Ao mesmo tempo, é necessário pensar o lugar e o papel da memória, “uma memória de natureza social”, conforme esclarece Fernandes (2005), diante da proliferação de textos de auto-ajuda que, cada vez mais, lotam as prateleiras das livrarias. O tipo de perfórmance de linguagem que visa a impressionar, a convencer e a levar o sujeito a seguir um modelo prescrito interessa-nos uma vez que parece estar esse sujeito-leitor “capturado” pela imagem de sucesso veiculada nos discursos que compõem essa literatura. Em razão desse apelo, o sujeito vai se configurando e tornando-se aquele que é capaz de tudo fazer, de não só controlar, mas de mudar o seu destino e a sua identidade. Existe um modo (ou 4 Entrevista concedida a Iara Biderman e publicada na Folha Equilíbrio, datada de 6 de maio de 2004, Fórmulas simplistas ‘empobrecem’ livros de auto-ajuda. Folha de S. Paulo. 15 15 modos) de subjetivação operado por uma força pragmática sobre os sujeitos que parece organizar os discursos de auto-ajuda. Estamos falando de uma prática cujos objetivos visam a construir, a interferir e a controlar a vida dos sujeitos, tanto na relação do sujeito com ele mesmo quanto na relação do sujeito em sua vida social. Uma prática ligada à produção de valores e que exige ação e reação imediata dos sujeitos. Esse é o movimento que insere a auto-ajuda no contexto contemporâneo, ou contexto da modernidade5, e que a faz funcionar como “guia prático da vida”. A vida cotidiana, nesse sentido, é (re)construída entre o escolher um “estilo de vida” a partir de uma gama de opções disponíveis e que visam à (re)estruturação de uma identidade própria, uma “auto-identidade”, nas palavras de Giddens (2002). Visando a conduzir subjetividades, a auto-ajuda vende, então, “maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir”, ou, “mais do que bens”, oferece “formas de vida para serem consumidas” imediatamente, atendendo ao tipo(s) identitário(s) requisitado(s) mercadologicamente, dialogando com Pelbart (2003, p. 21). 2. A escolha do material de análise/Constituição do corpus Em razão da grande quantidade de livros e das diversas diretrizes encontradas na literatura de auto-ajuda, excluiremos obras que, de alguma forma, estejam vinculadas a algum tipo de religião, como o espiritismo; ligadas às tradições orientais, os taoístas, por exemplo; e as catalogadas como sendo esotéricas. Consideraremos, para este trabalho, três outros direcionamentos temáticos encontrados no universo discursivo da auto-ajuda e que, conforme Rüdiger (1996, p. 18-20), são distintos e separados entre si segundo suas orientações. O primeiro encontra-se ligado à prática do pensamento positivo. As obras com esse direcionamento têm como objetivo ensinar ao sujeito formas de organização para que possa administrar os problemas acarretados com o seu tempo histórico: conciliar trabalho, família e lazer, por exemplo, num momento em que a competitividade é sua principal exigência. Parte-se do princípio de que, na conjuntura atual, o tempo diário dos sujeitos está sendo consumido pela dedicação, quase exclusiva, ao trabalho, 5 Entendemos o termo “contemporâneo” com sinônimo de “modernidade”. Para tanto, recorremos à explicação dada por Giddens e a tomaremos como distintiva também neste trabalho. O autor (GIDDENS, 2002, p. 12), entende o termo modernidade como equivalente ao “mundo industrializado”, reconhecendo que o industrialismo não é sua única dimensão institucional. Esta é a primeira característica envolvida no termo modernidade. A segunda é sua dimensão capitalística, posto que envolve a contemporaneidade num mercado competitivo e mercantilista. Esses dois mecanismos colocam em funcionamento o dinamismo característico da modernidade. É esse dinamismo que faz com que as instituições atuais sejam diferentes das anteriores, posto que coloca, de um lado, as “influências globalizantes” e, de outro, “as disposições pessoais”, dois extremos, segundo o autor, da extensão e da intencionalidade moderna. 16 16 o que vem acarretando graves problemas para lidar com os reflexos resultantes dessa demanda. Utilizando a meditação como ferramenta de controle e de equilíbrio do corpo e da mente, é possível mudar essa situação: o princípio é o de que o sujeito é capaz de fazer uma “retomada de si mesmo” (se é que algum dia ele tenha tomado a si mesmo!) por meio de exercícios (ou exercitação) com o pensamento (“força do pensamento”). A técnica é repetir frases positivas (afirmativas), do tipo “eu quero”, “eu sou capaz”, “eu posso”, “eu sou forte”, “eu sou um homem novo”. Essas estratégias podem ser encontradas em linhas temáticas do tipo “pense positivo”, “o poder da mente”, “administre seu stress”, “aumente o poder de sua memória”, “saiba viver pessoalmente”. O segundo direcionamento volta-se para as condutas morais: obter sucesso dependerá da superação da descrença do sujeito nele mesmo para que possa constituir-se como sujeito moral de uma conduta na sociedade – “como ser um pai de família exemplar”, “como ser um bom amigo”, “como ser o melhor funcionário”, “como ser a esposa perfeita”, “como ser um filho dedicado”, “como ser a mãe ideal” são alguns títulos encontrados. E, por último, o terceiro direcionamento visa às relações interpessoais: ser bem sucedido dependerá do saber manipular o outro e dele “tirar proveito”: “como seduzir pessoas”, “como intimidar amigos”, “como trazer seus inimigos para perto de você”, para citar apenas esses. Essas diretrizes permitem que façamos uma primeira delimitação do material de análise que constituirá o corpus desta pesquisa e direcionar a escolha para o livro Inteligência Multifocal: análise da construção dos pensamentos e da formação de pensadores, do escritor Augusto Jorge Cury (1998). Nessa obra, constatamos que as três orientações mencionadas mantêm entre si relação de interdependência. As estratégias e os exercícios, caracterizadores do pensamento positivo, a escolha e a prescrição de determinados tipos de condutas em detrimento de outros, rigorosamente adequados às exigências da atual conjuntura, e o enfoque nas relações interpessoais não se encontram no universo do senso comum, como ocorre na maioria dos livros de auto-ajuda, mas, nessa obra, são fundamentados cientificamente6, afirma Augusto Cury. A título de exemplificação, teoria e ciência são definidas e distinguem-se no discurso da Inteligência Multifocal. A teoria é definida como um conjunto de procedimentos cujos limites estão ligados a sua própria construção e dimensão, mas o autor não nega que sua utilização seja importante, pois ela é capaz de possibilitar a “expansão da produção do conhecimento”. Toda teoria é “limitada e redutora em relação à ciência, que é inesgotável” (CURY, 1998, p. 54). E a inesgotabilidade da ciência se dá por três fatores: primeiro, o fato 6 É oportuno dizer que discutiremos sobre o conceito de ciência subjacente a esse discurso de auto-ajuda em um capítulo específico, neste trabalho. 17 17 de que, na construção dos pensamentos, o limite da lógica deve ser ultrapassado – a ciência não é fruto do fenômeno em si, mas do “fenômeno interpretado”; segundo, a consciência existencial não é real, mas virtual – um “sistema de intenções que discursa incansavelmente sobre a realidade essencial, mas nunca a incorpora intrinsecamente”; e o terceiro sustenta-se na afirmação de que o “universo microessencial é infinito, pois a consciência da existência nasce [...] da realidade essencial das matizes da existência” (p. 54-57). criar uma teoria foi e ainda é uma aventura complexa e sinuosa para mim [Cury]. Os teóricos produziram conhecimento usando o pensamento como ferramenta – eu [Cury] procurei produzir conhecimento sobre a ferramenta que eles utilizaram, ou seja, sobre o próprio pensamento, sobre os fenômenos que o constrói [sic], sobre os elementos que dão origem às idéias. (CURY, 1998, p. 54) É oportuno marcar que o lexema aventura, associado aqui à idéia de desbravamento, liga-se a um “princípio, a uma [...] descoberta de algo que está encoberto e precisa ser trazido à luz” (NAVARRO, 2006, p. 69). Esses efeitos de sentido caracterizam, por exemplo, o perfil identitário do sujeito-enunciador, nesta e em outras posições-sujeito que virá a ocupar nesse discurso: um cientista aventureiro que se propõe a conhecer, a investigar, “lugares nunca dantes navegados” do conhecimento, a (re)descobrir o homem na singularidade de seu pensamento. Outros lexemas corroboram para firmar esses efeitos, como por exemplo, exploração, no recorte “uma das mais importantes explorações do homem [...] é a exploração de si mesmo” (p. 17); e viagem, no enunciado “a viagem mais interessante é a que ele [o homem] empreende quando se interioriza” (p. 17). Trouxemos aqui apenas um primeiro esboço de alguns elementos que irão fundamentar a construção e o funcionamento dos pensamentos na Teoria Multifocal do Conhecimento, doravante referida neste trabalho apenas por TMC. Vale ressaltar que os efeitos decorrentes da genialidade desse discurso podem ser marcados pela negação de outras ciências até então existentes (matemática, filosofia, psicologia, psicanálise, antropologia, dentre outras). Na TMC, as ciências já constituídas são consideradas pseudociências e necessitam, para sair dessa condição, dos postulados da Teoria Multifocal. Afirmação que pode ser comprovada pelo recorte que trazemos, a seguir, e que, embora extenso, é bastante elucidativo: 18 18 A Psicologia e a Psiquiatria ainda se encontram nos estágios iniciais do desenvolvimento teórico. Quem tem o mínimo de compreensão sobre o que é uma teoria, como ela se organiza, se fundamenta e é usada como suporte da interpretação, assim como sobre o que é o conhecimento, seus limites, alcance, lógica, validade e práxis, sabe que a Psicologia e a Psiquiatria, em detrimento de possuírem inúmeras teorias, avançaram apenas alguns degraus na escala inesgotável de conhecimento sobre a psique humana. Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento teórico na Psiquiatria e na Psicologia é que elas possuem um objeto de estudo – a psique, alma, ou mente – inatingível sensorialmente e inacessível essencialmente. Tal dificuldade investigatória tem propiciado a produção de diversas teorias psicológicas e psiquiátricas com postulados, definições, sistema de conceitos, hipóteses e variáveis intrapsíquicas distintas. Por isso, não se intercomunicam nem se expandem mutuamente. Como os cientistas da Psicologia e da Psiquiatria podem discursar sobre a intimidade da psique humana, se ela é inacessível essencialmente e inatingível sensorialmente? Como poderão investigar os complexos processos de construção dos pensamentos, se não se sabe do que se constitui a natureza intrínseca da energia psíquica, como se organizam os pensamentos e se descaracterizam na mente? Como se organiza a energia emocional em fobias, angústias, prazeres e humores deprimidos? As perguntas são amantes das dúvidas. O grande problema da Psicologia e da Psiquiatria, bem como de outras ciências, não é produzir teorias, mas romper seus apriscos teóricos, intercomunicar suas idéias, mesclar seus postulados, conjugar seus conceitos, afinar suas definições, organizar suas derivações e criar avenidas comuns de pesquisa sob o prisma de variáveis universais. As ciências que investigam direta e indiretamente a psique humana talvez nem saibam precisar em que estágio de desenvolvimento estejam. Misticismos, psicologismos e “achismos” [sic], que expressam produções de conhecimentos sem embasamento científico, têm saturado as sociedades e contaminado essas ciências, trazendo grande confusão teórica. Precisamos de teorias multifocais capazes de explicar os processos de construção dos pensamentos, a formação da consciência existencial, a transformação da energia psíquica, enfim, o funcionamento psicodinâmico e histórico-existencial da mente humana. [...]. Minha produção de conhecimento [...] foi produzida durante vários anos nos trilhos do motim teórico e, depois, se converteu nos trilhos da democracia das idéias. Creio que necessitamos de teorias multifocais e multivariáveis para explicar [...] a psique humana. Creio que a Psicologia e a Psiquiatria deveriam procurar produzir pesquisas conjuntas, se unirem teoricamente e, além disso, se associarem com a Sociologia e a Filosofia para produzir teorias psicossociais e filosóficas multifocais e multivariáveis sobre a psique humana. Devido a abordagem psicossocial e filosófica do homem abordada neste livro, quando eu atuo nos textos como um pensador da Psicologia procuro ser específico ao comentar os fenômenos psíquicos, mas quando atuo como 19 19 um pensador da filosofia, faço críticas e generalizações com liberdade, o que é próprio dos filósofos. (CURY, 1998, p. 191-196) O objetivo desse discurso, ao que se nos apresentam os enunciados transcritos, é mostrar que a TMC conseguiu não somente ultrapassar todas as ciências até então conhecidas, principalmente a Psiquiatria e a Psicologia, mas foi capaz de desvendar o mistério do funcionamento do pensamento humano. Essa afirmação (re)produz e (re)constitui, uma vez mais, os efeitos de genialidade no e do discurso. Os três direcionamentos temáticos anteriormente mencionados (prática do pensamento positivo, condutas morais e relações interpessoais), ao serem associados a um suposto saber científico, fazem com que o discurso seja recebido, ou apresentado, como verdadeiro. E essa indumentária de verdade (ou verdades) vem acompanhada por duas outras credenciais: a primeira advém das afirmações de que as hipóteses levantadas são comprovadas por meio do método da experimentação; a segunda, pela posição sujeito-enunciador, vinculada a três instituições privilegiadas e autorizadas socialmente: a da ciência, da psiquiatria e da psicoterapia. Outros argumentos corroboram também para a escolha de apenas uma obra para análise nesta pesquisa: o fato de se refutar a classificação da TMC, como também das outras obras publicadas pelo autor, com o rótulo de auto-ajuda, marcando, desse modo, a diferença entre ciência e auto-ajuda. Segundo Cury, toda a sua vasta e extensa bibliografia é resultado de seus mais de vinte anos de estudos científicos comprovados por meio da TMC. A auto- ajuda é tratada como “trabalhos desprovidos” de reflexão crítica e de fundamentação teórica, textos que “pensam pelo leitor”, levando até ele “respostas prontas”, e, por isso, a auto-ajuda não “estimula a arte de pensar e o desenvolvimento da inteligência” (CURY, 1998, p. 188). Para firmar uma vez mais a supremacia da TMC em relação a outras teorias que tratam sobre a inteligência humana, trazemos ainda outro fragmento: Há alguns anos, foi lançado o livro Inteligência Emocional, do dr. Daniel Goleman, que teve grande repercussão mundial e influenciou as áreas sócio- educacionais e de recursos humanos das empresas. [Esse] livro tem uma abordagem científica, mas seu enfoque principal é ser um livro de auto- ajuda, aliás é um belo livro nesse sentido. Porém, aqui, neste livro [na Teoria da Inteligência Multifocal] faço uma exposição de uma nova teoria da inteligência. [Ele] foi escrito com a despreocupação completa de se tornar um best-seller, pois ele não procura apenas homens que lêem livros, mas leitores que sejam garimpeiros de idéias, homens que tenham consciência da 20 20 complexidade da arte de viver, que tenham consciência de que a sabedoria se conquista muito mais nos invernos do que nas primaveras existenciais, que apreciam o mundo das idéias, que julgam de inestimável valor a arte de pensar e o desenvolvimento da consciência crítica. O livro Inteligência Emocional não produz uma teoria sobre a construção da inteligência; por isso não produz conhecimento, como o faz o livro da Inteligência Multifocal. As sociedades modernas [...] estão saturadas de livros de auto-ajuda que pensam pelo leitor. Este livro [Inteligência Multifocal] procura respeitar a inteligência do leitor e, ao mesmo tempo, provocar e estimular a arte de pensar, a arte da dúvida, a arte da crítica. Não escrevi este livro sobre a inteligência como um escritor que, na esteira do sucesso do livro sobre a inteligência emocional, procura também fazer sucesso. Pelo menos dez anos antes do livro Inteligência Emocional ser lançado nos EUA, eu já desenvolvia a teoria multifocal do conhecimento, da qual a Inteligência Multifocal faz parte. Faço esses comentários por respeito à inteligência do leitor, para fornecer subsídios para o seu julgamento crítico. (p. 198-200) A partir dos enunciados acionados, queremos saber como se faz ciência e como se faz auto-ajuda nesse discurso; ainda, o fato de constatarmos que os pressupostos teórico- metodológicos encontrados na TMC fundamentam todos os livros publicados por Cury é mais um motivo para escolhermos apenas essa obra para análise. Os princípios do “gerenciamento das emoções” e do “gerenciamento do eu” são dois exemplos que justificam nosso argumento. O resumo das publicações do autor, apresentado no próximo item (item 3), poderá comprovar essa afirmação, explicitando a convergência de todas elas em direção à TMC. Vejamos como esses dois princípios são definidos na TMC: Gerenciar a emoção é a ferramenta básica da inteligência multifocal (uma das poucas teorias científicas sobre o funcionamento da mente, criada por mim). É ela que desenvolve a inteligência emocional. Parece que eu tenho sido uma das vozes solitárias na ciência falando sobre o gerenciamento da emoção. Os pensadores, tais como Freud, Jung, Roger, não estudaram esse assunto. Mas ele é vital para a saúde psíquica. Ninguém comenta que o eu deve governar, proteger, direcionar a emoção. Por não saber que podem e devem gerenciar a emoção, milhões de pessoas têm vivido numa masmorra psíquica (CURY, 1998, p. 65, os destaques são nossos). Reafirmamos, assim, a escolha de apenas uma obra do autor, uma vez que ela participa da conformação dos discursos de todas as outras obras publicados por Cury. 21 21 3. Sobre o autor e as obras Augusto Jorge Cury é apresentado por seus editores, e do mesmo modo faz sua auto- apresentação, com as credenciais de escritor, psiquiatra, psicoterapeuta e cientista7. Dirige a Academia de Inteligência, instituto localizado na cidade de Colinas, interior de São Paulo, onde também reside. A finalidade dessa instituição é oferecer treinamento para profissionais ligados às áreas da psicologia, da educação e empresarial. Nessa última, a prioridade é o Setor de Recursos Humanos (RH). Seguindo um procedimento que cremos ser mais didatizado, apresentaremos a “extensa e vasta”, como os editores fazem questão de enfatizar, obra do autor, separando os livros por assunto, obedecendo, assim, à catalogação encontrada em três livrarias8. Essa conduta permitirá que tenhamos uma visão mais detalhada dos direcionamentos temáticos encontrados nas obras, das áreas de interesse do escritor e de que a TMC se faz presente em todas elas, conforme afirmamos anteriormente. a) Psicologia 1 – Inteligência Multifocal: análise da construção dos pensamentos e da formação de pensadores, já citada, é uma obra que traz sistematizada a teoria sobre o funcionamento da mente humana, o que a diferencia, mas não separa, das outras obras do autor. É também marcada por uma outra particularidade: o fato de essa teoria ultrapassar, segundo Cury (1998, p. 47), os limites de abordagens estudadas por outros autores, como a de Goleman (1995), Inteligência Emocional, e a de Gardner (1995), Inteligências Múltiplas. A partir dos princípios teórico-metodológicos estabelecidos, o autor afirma que a ciência da Inteligência Multifocal descreve e explica a origem e o funcionamento do pensamento, tornando possível ao indivíduo conhecer a si mesmo e transformar-se em um “pensador humanista”. b) Auto-Ajuda/Crenças 2 – 12 semanas para mudar uma vida (CURY, 2004). Nessa obra, Cury explica, de forma mais simplificada, segundo o próprio autor, os princípios teórico-metodológicos que fundamentam a TMC, tornando-a mais acessível ao seu público leitor. O objetivo é 7 Essa apresentação é encontrada nas obras do autor. 8 Livraria Siciliano (Uberlândia-Minas Gerais); Livraria Cultura Goiana (Goiânia-Goiás); Livraria Cultura (on line: www.livrariacultura.com.br). 22 22 possibilitar a qualquer pessoa acesso às ferramentas necessárias para o controle das emoções que, disciplinadas, conduzirão o indivíduo na resolução de seus problemas. 3 – Você é insubstituível: este livro revela a sua biografia (CURY, 2002). “Este livro revela a sua biografia” é o enunciado que perpassa toda obra, revelando o segredo para se obter a chave que abrirá as portas para sucesso. Para conseguir isso é preciso conhecer as regras de funcionamento da memória, aprendendo a gerenciar as emoções e a dominar a si mesmo. Cada indivíduo é capaz de deixar sua marca no mundo por meio de singularidades que lhe são inerentes e que o distinguem de outro, idéia central na narrativa dessa obra. 4 – Seja líder de si mesmo (CURY, 2004) é um livro que irá fornecer as ferramentas para que o indivíduo possa controlar seus pensamentos, elaborar suas perdas, ser líder de si mesmo, controlar suas emoções. O primeiro passo a ser dado, segundo o autor, é descobrir quem se é (quem sou eu?); o segundo é aprender liderar a si mesmo usando a inteligência (o que quero? o que posso?); o terceiro, conhecer e ter domínio dos mecanismos que formam a mente humana. O objetivo “é ensinar ao indivíduo ser autor de sua própria história e fazer da sua vida um grande espetáculo” (p. 8). O oitavo capítulo traz algumas “técnicas psicológicas” ao indivíduo que almeja ser líder de si mesmo. 5 – Revolucione sua qualidade de vida: navegando nas águas da emoção (CURY, 2002). Valorizar o seu próprio trabalho depreciando o trabalho do outro, ao que parece, é um recurso bastante utilizado na narrativa. Isso é recorrente nessa e em outras obras, principalmente na TMC. A narrativa é construída, pari passu, por meio da desvalorização da obra Quem Mexeu no Meu Queijo? de Spencer Jonhson (2002). No final, o grande segredo para revolucionar a qualidade de vida é revelado, qual seja, gerenciar os pensamentos e as emoções. Segundo o autor, “é preciso fazer uma viagem ao mundo da mente humana, extirpando medos e tensões que estão alojados no interior do indivíduo para que haja uma transformação total não só do próprio homem, mas também de toda a sociedade” (p.15). 6 – Nunca desista de seus sonhos (CURY, 2004). Os sonhos são o passaporte para se alcançar todos os objetivos. Aquele que sonha constrói os fundamentos de uma ciência para contribuir com a humanidade (p. 10). Com essas afirmações, Cury dirige-se ao público jovem, alertando-o para a importância da auto-interiorização, do gerenciamento do eu e das emoções. A narrativa é construída com várias e diferentes histórias e as personagens protagonistas, usadas como modelo, são aquelas consideradas pelo autor como as grandes sonhadoras da 23 23 humanidade. Cita, como exemplo, Jesus Cristo, Abraão, Moisés, Buda, Confúcio, Maomé, Platão, Sêneca, Khalil Gibran, John Kennedy, Hegel, Marx, Kant, Einstein, Thomas Edison, Santo Agostinho, dentre vários outros. 7 – Dez Leis para ser feliz – ferramentas para se apaixonar pela vida (CURY, 2003). Esse livro é um manual que traz o que o autor chama de “as dez leis essenciais à felicidade”. Essas leis congregam os princípios postulados na obra Inteligência Multifocal: análise da construção dos pensamentos e da formação de pensadores (CURY, 1998). 8 – Treinando a emoção para ser feliz (CURY, 2001) é um livro que ensina como a emoção, devidamente treinada, pode ser usada para se obter sucesso, felicidade, tranqüilidade, fortalecimento do corpo e da alma, superação dos vícios, das ansiedades, da depressão e do estresse. Nessa obra, tal qual em Nunca desista dos seus sonhos, o autor utiliza os mesmos grandes nomes da História como exemplo de homens que expandiram o mundo das idéias, Jesus Cristo, Abraão, Moisés, Buda, Confúcio, Maomé, Platão, Sêneca, Khalil Gibran, John Kennedy, Hegel, Marx, Kant, Einstein, Thomas Edison, para citar apenas esses. 9 – Pais Brilhantes, Professores Fascinantes (CURY, 2003). Para formar jovens felizes e inteligentes é preciso cultivar a emoção e expandir a inteligência deles. Essa é a finalidade da Educação e o compromisso de pais e professores, segundo Cury. Nessa obra, diversas técnicas são ensinadas com o objetivo de estimular as crianças e os adolescentes a se interessarem pela sua própria formação escolar e familiar. Dentre vários exercícios, ensina-se como controlar e gerenciar as emoções e os pensamentos. O livro é organizado em seis partes. A primeira e a segunda ensinam como ser “bons pais e pais brilhantes” e como ser “bons professores e professores fascinantes”, respectivamente. Sete são os hábitos que auxiliam na mudança de comportamento; e sete são os pecados capitais cometidos por educadores e que têm prejudicado o processo ensino-aprendizagem, assunto da terceira parte do livro; a quarta explica o funcionamento da memória e o papel da emoção nesse processo; a “construção da escola sonhada por todos” é assunto tratado na quinta parte e, por último, Cury faz o perfil de profissionais importantes em uma dada sociedade. Chega a uma conclusão, senão interessante, bastante intrigante: todos os profissionais são importantes, principalmente, e acima de todos eles, o psiquiatra. 10 – Filhos Brilhantes, Alunos Fascinantes (CURY, 2006). Direcionada para os jovens, as histórias apresentadas nessa obra ensinam, por meio do gerenciamento dos 24 24 pensamentos, como viver numa sociedade consumista e competitiva. Aqui também encontramos um receituário de como deve ser um “filho brilhante” e ser um “aluno fascinante”. c) Literatura/romance 11 – O futuro da humanidade: saga de um pensador (CURY, 2005). Narrativa que conta a trajetória de Marco Pólo, fazendo alusão ao navegador veneziano, de mesmo nome, do século XIII. Essa personagem é um estudante de medicina que tenta resolver os problemas dos pacientes por meio da prática terapêutica. Uma das estratégias é ensinar a gerenciar o eu. Como ocorre em todas as obras de Cury, essa personagem tenta desafiar o conhecimento clássico, substituindo-o por aquilo que ele chama de “técnicas originais”, isto é, técnicas construídas sem recorrência a nenhum conhecimento anterior. 12 – A ditadura da beleza e a revolução das mulheres (CURY, 2005). Essa obra é direcionada para o público feminino, retratando o cotidiano das mulheres no mundo moderno. O problema colocado é o de se estar preso a determinados modelos pré-estabelecidos, por exemplo, os de beleza. Nessa obra o autor ensina como sair da “ditadura da beleza” e como adquirir “auto-estima”. Para conseguir obter sucesso sobre si mesmo basta saber gerenciar as emoções, afirmativa encontrada na obra. Além desses trabalhos, o autor tem ainda as seguintes publicações, catalogadas na seção “Religião” (obras vinculadas ao cristianismo católico): Os segredos do Pai-Nosso (2006); Maria, a maior educadora da história (2007); O Mestre dos Mestres: Jesus, o maior educador da história (2006). O Mestre da sensibilidade (2000); O Mestre da vida (2001); O Mestre do amor (2002); O Mestre inesquecível (2003). Não adquirimos, mas registramos ainda duas outras publicações: Escola da Vida: Harry Potter no mundo real (2002) e Superando os Cárceres da Emoção (2002), catalogadas nas áreas “Infanto-Juvenil/Literatura Juvenil” e “Medicina e Saúde/Medicina/Toxicologia”, respectivamente. 4. Hipóteses e Objetivos Problematizar a construção identitária no discurso de auto-ajuda implica questões teóricas e práticas, fato que nos impõe direcionar o olhar para os modos históricos de relações entre sujeitos. Isso equivale a colocar em evidência modos de fabricação de sujeitos, de 25 25 relações de poder, de saber e de verdade (re)produzidos, requisitados ou agenciados na literatura de auto-ajuda. Com base nessas afirmações, formulamos duas questões: afirma-se, no discurso da TMC, que o homem moderno encontra-se impossibilitado de “caminhar nas trajetórias sinuosas do seu próprio ser e de aprender a expandir sua consciência crítica e maturidade intelecto-emocional” (CURY, 1998, p. 21), o que o faz ficar “despersonalizado”, fraturado em sua identidade, e, por isso, o homem da modernidade encontra-se acometido por duas “graves” doenças, o estresse e a depressão (p. 28). Esse homem, cindido, fragmentado identitariamente, não estaria se contrapondo à figura do sujeito cognoscente – autônomo, livre e consciente de si mesmo – prometido por esse mesmo discurso? Tomando por base que o(s) saber(es) são fabricações (“invenções”), como pensar a estreita relação entre subjetividade, poder e verdade nesse discurso? Como essas questões podem atuar como prática de subjetivação e produção identitária? Em decorrência dessas indagações, esta pesquisa terá, como objetivo geral, analisar os discursos que sustentam determinados textos de auto-ajuda compreendendo-os como parte integrante de discursos historicamente produzidos. Explicitar, nesse sentido, seus aspectos/elementos constitutivos. E, como objetivos mais específicos, verificar quais seriam os enunciados que se atualizam nessa prática de auto-ajuda e que fundam uma nova discursividade; refletir sobre a produção/constituição de identidade dos sujeitos na “ciência” Multifocal, considerando que essa construção firma-se no ethos do enunciador e que o enunciador do discurso ocupa um lugar institucional privilegiado, qual seja, o da ciência. 5. Trabalhos realizados sobre a literatura de auto-ajuda Dos trabalhos de pesquisa já realizados no Brasil sobre a literatura de auto-ajuda, Francisco Rüdiger é o pioneiro. Sua tese de doutoramento, organizada em três volumes e intitulada Literatura de auto-ajuda e individualismo: contribuições ao estudo de uma categoria da cultura de massa contemporânea, foi defendida em 1995, na Universidade de São Paulo, área da Sociologia. Nessa pesquisa, Rüdiger faz um percurso histórico sobre a constituição da auto-ajuda, sua “genealogia”, segundo o próprio autor, analisando esse fenômeno enquanto cultura de massa e que tem seu discurso centrado no indivíduo. Concebe essa literatura como um instrumento produzido e utilizado por alguns grupos a fim de responder às dificuldades encontradas à conduta dos sujeitos. É um manual que ensina aos sujeitos como conduzir-se na vida. 26 26 Essa tese foi posteriormente publicada pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1996, sob o título, mais reduzido, Literatura de auto-ajuda e individualismo. Nela, a preocupação do autor é pensar no engendramento dos livros de auto- ajuda na sociedade moderna e a aceitabilidade desse gênero quando se propõe a apresentar solução para todos os tipos de problemas enfrentados pelo sujeito. A afirmação de que todos os sonhos, os desejos, a felicidade, a riqueza, enfim, o bem-estar de todos os seres humanos encontra-se no seu próprio interior reforça o individualismo nessa sociedade, posto que, livre e autônomo, o sujeito passa a ter direito e responsabilidade sobre si mesmo. O discurso de auto-ajuda abre possibilidades e legitima a busca individual por reconhecimento pessoal e social. No individualismo, segundo Rüdiger (1996, p. 238) “o indivíduo, enquanto sujeito, como valor, não é meramente dado, precisa ser construído e conservado através de um trabalho sobre si mesmo, dialeticamente mediado pela pessoa”. Um outro fato constatado pelo autor, durante a sua pesquisa, revela que muitos livros de auto-ajuda alcançaram estatuto de best-sellers. Rüdiger pesquisou os livros mais vendidos do gênero no Brasil, por números de edições, no período de 1910 a 1992. A título de exemplo, com base nos dados colhidos por ele, o livro de David Carnegie, Como fazer amigos e influenciar pessoas, chegou a sua quadragésima segunda edição (42ª ed.) – a primeira edição data de 1939; O poder infinito da mente, cuja primeira edição é de 1980, de Lauro Trevisan, chegou a sua ducentésima qüinquagésima edição (250ª). Outra obra de Trevisan, Você pode alcançar riquezas, de 1986, alcançou a trigésima edição (30ª). De acordo com Rüdiger (1996, p. 17), “só no Brasil, Joseph Murphy, Mandino e Carnegie venderam juntos cerca de cinco milhões de exemplares. Lauro Trevisan, escritor nacional, sozinho, vendeu cerca de um milhão e meio de livros desde que iniciou sua carreira em 1980”. O sucesso não ocorre por acaso, de Lair Ribeiro, alcançou sua vigésima sétima edição (27ª) – a primeira edição é de 1991. Nas pesquisas de Chagas (2002, p. 87), por meio de informações obtidas com a editora Objetiva, a partir do ano de 1992, os livros de Lair Ribeiro Comunicação Global (1993), chegou à sua trigésima edição (30ª); Fazendo amizade com o dinheiro (1992), vinte e nove edições (29ª); Auto-estima (1994), sete edições (7ª). Sobre o escritor Augusto Jorge Cury, pudemos constatar que, atualmente, é um dos escritores que está entre os mais vendidos no Brasil e vem se destacando em razão da diversidade temática encontrada em suas obras. Segundo informações da Editora Sextante, Cury já tem mais de três milhões de livros vendidos, mantendo uma média de cinqüenta mil 27 27 livros vendidos por mês9. Em entrevista à Folha de S. Paulo, datada de 26 de fevereiro de 2005, Cury afirmou ter mais ou menos vinte livros prontos, esperando para serem publicados. Dessa entrevista feita pelo jornalista Cassiano Elek Machado e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, Caderno Ilustrada, intitulada “O iluminado”, obtivemos algumas informações sobre o autor e a sua relação com a obra Inteligência Multifocal: análise da construção dos pensamentos e da formação de pensadores (CURY, 1998). Como médico psiquiatra diz que chegou a ter sucesso nos anos oitenta, mas decidiu sair da cidade de São Paulo e mudar-se para sua cidade natal, Colinas, interior paulista, “para repensar sua angústia diante da incapacidade de realizar seus ‘sonhos de cientista’”. O livro Inteligência Multifocal, segundo o autor, não teve nenhum retorno comercial, “eram assuntos muito complexos. Nem psicólogos, psiquiatras, nem filósofos conseguiam compreender, embora alguns cientistas diziam que estavam aplicando a teoria em teses de mestrado, doutorado e assim por diante. Aí percebi que ou enterrava os meus sonhos ou socializava a ciência, democratizava o conhecimento. Eu resolvi então escrever livros mais simples”. Só para exemplificar, depois da teoria da Inteligência Multifocal, Cury publicou mais de vinte livros, alguns já esgotados e não reeditados ou reimpressos [Escola da Vida: Harry Potter no mundo real (2002)], outros cujo alto índice de vendas valeu-lhe traduções para o espanhol e o inglês [Você é insubstituível: este livro revela a sua biografia (português (2002); espanhol (2003); inglês (2005)); Revolucione sua qualidade de vida: navegando nas águas da emoção (português (2002); espanhol (2004)); Nunca desista de seus sonhos (português (2004); espanhol (2007)); Dez Leis para ser feliz: ferramentas para se apaixonar pela vida (português (2003); espanhol (2004)); Pais Brilhantes, Professores Fascinantes (português (2003); espanhol (2006))]. Além do trabalho pioneiro de Rüdiger, vários outros, em diferentes áreas do conhecimento, vêm contribuindo para o estudo e a compreensão do fenômeno auto-ajuda. Arnaldo Toni Sousa das Chagas, pelo viés sociopsicanalítico-discursivo, publicou dois livros decorrentes de suas pesquisas sobre o assunto: A ilusão no discurso da auto-ajuda e o sintoma social (CHAGAS, 2001) e O sujeito imaginário no discurso de auto-ajuda (CHAGAS, 2002). Em linhas gerais, nessas obras o autor analisa o funcionamento dos discursos de auto-ajuda na sociedade atual e os fenômenos inconscientes que atravessam esses discursos e que possibilitam aos sujeitos terem a ilusão de um discurso transparente e homogêneo. Investiga, 9 Embora tenhamos obtido essa informação da própria editora, na pesquisa sobre os livros mais vendidos no Brasil, no período de 1966 a 2004, feita por Cortina (2006), não aparece nenhum dos livros já publicados por Augusto Cury. 28 28 nesse sentido, o sujeito psicológico da auto-ajuda. O pressuposto do autor é o de que o discurso de auto-ajuda vai ao encontro das “representações imaginárias do sujeito” posto que engendrado no “imaginário social individualista da sociedade atual” (CHAGAS, 2001, p. 12; 2002, p. 20). Na área de Comunicação, a dissertação de mestrado de Daniela Birman Escrita e simulacro: sobre a literatura em Foucault (BIRMAN, 1999), Universidade Federal do Rio de Janeiro, discute “a escrita atual como tecnologia de si”. Para tanto, analisa dois tipos de discursividade atuais: a auto-ajuda e o romance de Paul Auster. Também na Universidade Federal do Rio de Janeiro, área da Psicologia, encontramos o trabalho (dissertação de mestrado) de Jaileila de Araújo Menezes, intitulado Literatura de auto-ajuda: uma perspectiva de produção da subjetividade na contemporaneidade (MENEZES, 1999). Nessa pesquisa, tem-se a auto-ajuda como um dos instrumentos que participam da “constituição do espaço da interioridade psicológica dos indivíduos na modernidade” (p. 15). Enquanto “cultura psicológica”, a auto-ajuda “fabrica sujeitos” que correspondam ao perfil exigido pelo sistema de produção capitalista. A pesquisa de Givaldo César Borzillo, O estudo da motivação e auto-ajuda no mundo do trabalho. Estudo de caso: o discurso motivador de Roberto Shinyashiki (BORZILLO, 2001), dissertação de mestrado, área de Economia, Campus da Unesp, em Araraquara, analisa livros de auto-ajuda empresarial enquanto instrumento de apoio aos cursos oferecidos às empresas em sua adesão aos Programas de Qualidade Total. Preocupada com a interação entre escritor-leitor, Áurea Lúcia de Oliveira Silva investiga a auto-ajuda por meio da análise sistêmico-funcional. Esse trabalho, dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, área da Lingüística Aplicada, intitulado A interação escritor-leitor através de escolhas lingüísticas: um estudo em textos de espiritualidade, auto-ajuda e de Chiara Lubich (SILVA, 2000), faz o levantamento das escolhas pronominais encontradas em obras de auto-ajuda e como essas escolhas revelam a presença tanto do escritor quanto do leitor nos textos tomados como corpus. Outras pesquisas, constatadas por Cortina (2006), revelam que o fenômeno auto-ajuda continua sendo estudado por diferentes perspectivas teórico-analíticas. É o caso dos trabalhos de Brunelli (2004), Martelli (2006) e Oliveira (2006). Segundo o autor, Martelli, tal qual Rüdiger, concebe a auto-ajuda do ponto de vista “sociológico”, e nós acrescentamos, nos trabalhos de Rüdiger, um viés também antropológico, concordando com Sobral (2006); nos trabalhos de Brunelli e Oliveira a questão da auto-ajuda é tratada pelo “viés lingüístico- discursivo” (CORTINA, 2006, p. 188). 29 29 Mais recentemente, a tese de livre docência de Cortina (2006), área de Lingüística, defendida na Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara, já mencionada, e a tese de doutoramento de Sobral (2006), área de Lingüística Aplicada, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, vêm contribuir e somar às pesquisas sobre auto-ajuda. No trabalho intitulado Leitor contemporâneo: os livros mais vendidos no Brasil de 1966 a 2004, Cortina (2006) faz uma pesquisa, de cunho histórico, elencando os livros mais vendidos no Brasil. Nela, o autor constata “um crescimento muito acentuado do consumo dos livros da categoria de auto-ajuda” (p. 141) e, utilizando-se da perspectiva da semiótica discursiva, caracteriza os tipos temáticos encontrados nos livros de auto-ajuda, definindo-a não apenas como uma questão de “gênero de discurso, mas de estilo de discurso” (p. 188). O autor atribui alguns fatores que talvez possam justificar essa escolha do leitor contemporâneo pela literatura de auto-ajuda, fazendo dela best-sellers. O primeiro diz respeito à questão do consumo e do mercado, numa relação de determinação recíproca: se se constata um crescente aumento na procura de livros de auto-ajuda, o mercado editorial passa a investir nesse tipo de literatura; um outro fator está ligado diretamente aos valores, coletivos e individuais, que compõem a “sociedade capitalista do final do século XX e início do XXI”. Para o autor num mundo em que os valores coletivos parecem cada vez mais suplantados pelos individuais passam a existir diferentes relações e necessidades. O leitor de auto-ajuda, portanto, consome esse tipo de literatura em busca de respostas para seus problemas individuais. Em verdade ela não é determinada pela ordem do desejo (querer-ser), mas sim pela ordem da necessidade (dever-ser ou não poder não ser). O isolamento em que estão colocados os sujeitos do mundo capitalista moderno faz com que eles se voltem para si mesmos e, para compreenderem-se, busquem em algum lugar as respostas para suas dúvidas. Essa, a meu ver, é a grande explicação para o crescimento da literatura de auto-ajuda atualmente. (CORTINA, 2006, p. 100-101) Em Elementos sobre a formação de gêneros discursivos: a fase “parasitária” de uma vertente do gênero de auto-ajuda, também na perspectiva do discurso, Sobral (2006) analisa o gênero auto-ajuda em sua produção, circulação e recepção, destacando a importância das relações enunciativas na criação de sentidos no discurso. Em suas especificidades de áreas e em suas singularidades analíticas, os trabalhos que se têm sobre auto-ajuda admitem haver um direcionamento de condutas prescritas por essa prática; concordam também com o fato de que o gênero auto-ajuda é um fenômeno da cultura 30 30 de massa e que aponta, cada vez mais, para o individualismo requisitado na contemporaneidade. A esses trabalhos, esperamos que a pesquisa aqui proposta possa contribuir, uma vez que temos, no campo da literatura de auto-ajuda, um tipo de prática que visa a conduzir o indivíduo por meio de um saber apresentado como científico. Em outras palavras, temos, no campo da auto-ajuda, certos discursos que, colocados dentro do campo do saber científico (saber racional), visam a atualizar novos modos de agir e de se comportar em uma sociedade considerada competitiva e consumista. Uma prática que propõe gerenciar a coletividade (re)apropriando-se da individualidade, por isso, marcada por um tipo de poder que visa a disciplinar as subjetividades em direção à identidade que se quer alcançar. Para dar continuidade às questões colocadas nesta Introdução, o estudo que ora se propõe encontra-se distribuído nos três capítulos que compõem a organização deste trabalho. No primeiro capítulo, intitulado “Bases teóricas para um estudo sobre constituição identitária e subjetividade”, apresentamos os pressupostos teórico-metodológicos da Análise do Discurso francesa, a partir das contribuições dadas por Michel Foucault, já assinaladas por M. Pêcheux, e amplamente desenvolvidas em vários trabalhos realizados no Brasil. Será esse o nosso aporte para pensarmos o discurso da teoria multifocal do conhecimento como uma prática contemporânea de subjetivação. No segundo capítulo, “Práticas de subjetivação e construção identitária”, propomos pensar como funciona essa prática de auto-ajuda que, atravessada por saberes, visa a construir identidades e a conduzir subjetividades. Para tanto, é feita, neste capítulo, a análise lingüístico-discursiva do corpus escolhido como material para este estudo. O terceiro capítulo, sob o título “O fazer ciência na Teoria Multifocal do Conhecimento”, tem como intento verificar como se dá o fazer científico no discurso da TMC. Preocupa-nos, nesse sentido, olhar os procedimentos discursivos que visam a constituir a TMC como um saber cientifico; quais os efeitos de sentido essa “suposta/pretensa” ciência produz. Na parte conclusiva deste trabalho (“Considerações Finais”) tentamos fazer uma síntese das discussões arroladas visando a perceber se as questões colocadas como hipóteses foram, ao menos parcialmente, respondidas. 31 31 1. BASES TEÓRICAS PARA UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA E SUBJETIVIDADE Não me diga para permanecer o mesmo. (Michel Foucault) Perguntar “quem você é” só faz sentido se você acredita que possa ser outra coisa além de você mesmo. (Zygmunt Bauman) Falar sobre identidade faz emergir, de imediato, o fato de que toda construção identitária envolve uma determinada organização política. Várias são as formas utilizadas para diferenciar os sujeitos e elas podem mudar de lugar dentro da sociedade e de uma sociedade para outra. Pensemos, por exemplo, no modo mais objetivo utilizado pela cultura ocidental, institucional e oficialmente, para estabelecer a identidade e o reconhecimento dos sujeitos, qual seja, por meio do que se convencionou chamar de documentação pessoal (Carteira de Identidade, Carteira de Trabalho, Título Eleitoral, Cadastro de Pessoas Físicas, dentre tantos outros documentos). Do ponto de vista mais subjetivo, por traços de personalidade e de comportamento, tais como agitado/quieto; bonito/feio; educado/grosseiro, etc.; características étnicas, como a cor da pele, dos cabelos, dos olhos; e a procedência (genealogia) podem ser instrumentos utilizados no processo identidade/identificação. Podemos dizer que os termos identidade e identificação implicam-se mutuamente: a identidade é um ponto de referência para caracterizar os sujeitos e marcá-los dentro de uma dada comunidade e a identificação o processo pelo qual a identidade pode ser estabelecida. A identidade resultaria de um conjunto de características individualizantes e a identificação o modo pelo qual seria possível verificar as diferenças ou as semelhanças no conjunto. Do ponto de vista da linguagem, todas essas características engendradas no processo de construção identitária são marcadas por discursos historicamente constituídos. Em termos de nação, a brasileira, por exemplo, aprendemos que, inicialmente, havia uma história comum 32 32 entre Brasil e Portugal, mas que era exclusivamente uma história portuguesa. A nação brasileira constitui-se no momento em que se contrapõe à portuguesa: ser brasileiro é ter traços identitários que se distinguem dos do lusitano. Algumas manifestações identitárias podem ser vistas, principalmente, nos árcades e nos discursos ufanistas do Romantismo. Reflexões profícuas sobre identidade, no momento contemporâneo, são feitas por Zygmunt Bauman. Úteis porque tratam o tema a partir do movimento da globalização, vislumbrando não uma imutabilidade identitária, mas, e ao contrário, identidades “incertas”, “fluidas”, “transitórias”. Na “modernidade líquida”, as instituições tidas até então como sólidas foram dissolvidas (fundidas, “liquefeitas”) e, por isso, fez-se mister discutir as políticas de identidade nesse tipo de sociedade, afirma o autor. Na obra Identidade (BAUMAN, 2005), resultado de entrevistas concedidas ao jornalista italiano Benedetto Vecchi, Baumam concebe a globalização como “uma forma de mudança radical e irreversível” que alcançou os domínios do público e do privado, afetando “as estruturas estatais, as condições de trabalho, as relações entre os Estados, a subjetividade coletiva, a produção cultural, a vida cotidiana e as relações entre o eu e o outro”. (p. 11) Segundo o autor, restrita até então ao campo das especulações filosóficas, a identidade passa a ser um debate necessário no campo da sociologia. Afirma, ainda, que essa questão não fora o centro das atenções na sociologia clássica (Weber ou Durkheim), posto que não se fizesse emergente naquele momento, mas surge hoje como uma questão primordial no seio das ciências sociais, haja vista ser um problema recente da modernidade tardia. E, por isso mesmo, entende que ela não é dada a priori, não está oculta à espera de ser descoberta, mas que se revela como algo a ser “inventado”, como alvo de um “esforço”. A identidade é como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta. (BAUMAN, 2005, p. 22) E se a identidade é uma invenção da modernidade tardia, a questão da identificação, também invenção globalizada, encontra-se cambiante em meio a tantas identidades disponibilizadas e/ou requisitadas. E, mais ainda, se antes o Estado assegurava a naturalização da identidade, seja por meio da idéia de “identidade nacional”, de “nacionalidade” ou de 33 33 “nação”, hoje, perdendo essa “âncora”, a identificação torna-se “cada vez mais importante para os indivíduos que buscam [...] um ‘nós’ a quem possam pedir acesso” (p. 30). Como exemplo, Bauman (2005) cita os grupos virtuais, “simulacro de comunidade”, e com os quais se cria a ilusão de pertencimento comum. Outros exemplos podem ser acrescidos a esse, como os de ajuda mútua10 constituída nas organizações religiosas, educacionais e familiares que utilizam, como instrumentais, técnicas e conselhos veiculados em diversas obras de auto- ajuda. Em uma pesquisa feita por nós, na cidade de Catalão, Estado de Goiás, constatamos que as obras de Augusto Cury, com temáticas sobre educação (CURY, 2003; 2006), por exemplo, são utilizadas nas escolas municipais como ponto de apoio pedagógico. Descobrimos, ainda em Catalão, que algumas obras pertencentes à coleção “Análise da Inteligência de Cristo”, também do escritor Augusto Cury, são lidas e discutidas por grupos da igreja católica, conhecidos como “Carismáticos”. Continuando com as reflexões de Bauman, há que se estar atento para a problemática da identidade na modernidade tardia, posto que o liberalismo e o comunitarismo unem, a um só tempo, por um lado, a idéia de liberdade de escolha e a segurança de pertencimento e, por outro, segrega, isenta e exclui (BAUMAN, 2005, p. 84-85). Esse movimento sustenta o (re)fluxo da sociedade da individualização – “é preciso tornar-se o que já se é” e a responsabilidade do que se é cabe exclusivamente aos sujeitos. Na esteira dessas reflexões, podemos dizer que causa e efeito são potências que atualizam o discurso da meritocracia, conforme já mencionamos anteriormente neste trabalho (cf. item 1, p. 14): se o sujeito não consegue obter êxito na vida pessoal, por exemplo, a culpa é dele e não da organização sistêmica em que está inserido. Na sociedade contemporânea, “fluida”, os sujeitos se ficam doentes, supõe-se que foi porque não foram suficientemente decididos [...] para seguir seus tratamentos; se ficam desempregados, foi porque não aprenderam a passar por uma entrevista, ou porque não se esforçaram o suficiente para encontrar trabalho ou porque são, pura e simplesmente, avessos ao trabalho [...] se agoniam sobre o futuro, é porque não são suficientemente bons em fazer amigos e influenciar pessoas e deixaram de aprender e dominar, como deveriam, as artes da auto-expressão e da impressão que causam. (BAUMAN, 2001, p. 43). 10 Um estudo sobre grupos de ajuda mútua instituídos nas escolas foi feito por PANIAGO (2005). 34 34 Os deslocamentos referenciais, de coletivos para os individuais, fazem com que o sujeito, na tentativa de sobreviver subjetivamente, busque alternativas para enfrentar as adversidades causadas pelo “mal estar” contemporâneo. Nessa sociedade “líquida”, “fluida”, que exige novos estilos de vida, construções e reconstruções de subjetividades, surgem novas estratégias para tentar vencer as fragilidades humanas, para conduzir esse homem “pós- moderno” que “não sabe como prosseguir” diante da inconstância de normas, valores e modelos. Segundo Bauman (1998, p. 221), a pós-modernidade é a “era dos especialistas em ‘identificar problemas’, ‘dos restauradores da personalidade’ [...], dos livros de ‘auto- afirmação’: é a era do ‘surto de aconselhamento’”. A pós-modernidade é a era que reivindica o retorno do “alquimista”, aquele que afirma que os sujeitos são capazes de superar seu “mal- estar” e lhes dá uma receita de como fazer isso. Livre, mas solitário, o sujeito pós-moderno busca recursos para se auto-ajudar. Os pregadores de ajuda, possuidores da “pedra filosofal”, “iluminados” pela racionalidade capaz de transformar os indivíduos, ou de “lançar luz” à sua verdadeira identidade (personalidade), surgem, com os seus “produtos técnicos”, para fazer a manutenção dessa condição. Na sociedade contemporânea, “o caráter constituinte do discurso de auto-ajuda [...] seja qual for sua articulação ou produção, traz consigo uma promessa a ser cumprida [...] uma proposta [...] de perfeição, sem falhas, de completude” (CHAGAS, 2001, p. 109). Segundo Gregolin (2003)11: a auto-ajuda (“o que fazer de si mesmo”) passa pela “revelação de si” e pela análise por uma voz do outro (experts, psicólogos, orientadores, médicos, etc.). São dois tipos de textos – dos que se confessam e dos que interpretam – por meio dos quais se criam saberes sobre o uso que as pessoas devem fazer de seu corpo, de sua alma, de sua vida. (inédito, os destaques são da autora). A questão da identidade como problemática contemporânea (“moderna” e “pós- moderna”) é também o centro das preocupações do sociólogo Boaventura de Sousa Santos. Para esse autor (SANTOS, 2001, p. 135) as identidades são decorrentes de processos de identificações – “as identidades são identificações em curso”12. Isso vale até mesmo para as 11 Trabalho pertencente ao conjunto de textos redigidos pela professora Gregolin para leitura na disciplina Discurso e História: a constituição de identidades, ministrada em 2003, na Unesp, campus de Araraquara. 35 35 identidades tidas como aparentemente sólidas (ou aparentemente inalteráveis), como, por exemplo, a identidade particular, “de homem ou de mulher”, ou mais abrangente, como a de “nação”, posto que participam dessas identidades “jogos de polissemia”, “negociações de sentido” que se transformam de época para época. E, porque históricas, instauram e combinam o próprio e o alheio, o individual e o coletivo, a tradição e a modernidade. Rolnik (2000), pelo viés histórico-psicanalítico, entende que a problemática da identidade desloca as subjetividades numa “profusão cambiante” de universos variados. A figura moderna da subjetividade, segundo a autora, sustenta-se na certeza de uma referência identitária fixa e estável, porém, essa “crença” é ilusória, posto que o fenômeno da globalização econômica não apenas “pulveriza as identidades”, mas também produz um conjunto de padrões identitários adequados à ótica do mercado e oferecidos para serem “consumidos pelas subjetividades”. Desse modo, continua a autora, as identidades “locais fixas desaparecem para dar lugar às identidades globalizadas flexíveis que mudam ao sabor dos movimentos do mercado e com igual velocidade” (p.20). Essa situação cambiante das identidades não implica forçosamente o abandono da referência identitária. As subjetividades tendem a insistir em sua figura moderna, ignorando as forças que as constituem e as desestabilizam por todos os lados, para organizar-se em torno de uma representação de si dada a priori, mesmo que, na atualidade, não seja sempre a mesma esta representação. [As] mudanças implicam a conquista de uma flexibilidade para adaptar-se ao mercado, em sua lógica de pulverização e globalização; uma abertura para o tão propalado novo: novos produtos, novas tecnologias, novos paradigmas, novos hábitos, etc. (ROLNIK, 2000, p. 20) Nesse movimento, há duas questões em confronto: de um lado, a desestabilização, de outro, a tentativa insistente de manutenção da referência identitária. Essas forças antagônicas, segundo a autora, ao invés de serem “produtivas”, ganham um “caráter diabólico”, propício à manutenção de um “mercado variado de drogas” que, por sua vez, “sustenta e produz [a] demanda de ilusão”. Com diferentes “roupagens”, essas drogas são assim apresentadas: as “propriamente ditas”, aquelas que as indústrias farmacológicas fabricam como “produtos do narcotráfico” – a fraqueza humana resolvida pela ilusão da onipotência; as fórmulas da 12 Por considerar identidade e identificação como processos, “configurações hermenêuticas” que variam de época para época, o autor prefere usar os termos no plural. Por isso “identidades” e “identificações” (cf. SANTOS, 2001). 36 36 “psiquiatria biológica” apregoando que todas as “turbulências” pelas quais os sujeitos passam são causadas pelas “disfunções hormonais ou neurológicas”; as “miraculosas vitaminas” que prometem a juventude (física e mental) eterna. Além dessas, outras drogas transitam livremente no mercado. As indumentárias são outras, mas os objetivos são os mesmos das anteriores, qual seja, sustentar ilusões. São, para Rolnik (2000, p. 21), as identidades “prêt-à-porter glamorizadas [e] imunes aos estremecimentos das forças” político-econômicas: a droga oferecida pelos mídia, cujo efeito é temporário, mas eficaz; a que vem na embalagem diet/light/zero (zero em açúcar) fabricando corpos “top model”; por último, a droga oferecida pela literatura de auto-ajuda questionando as figuras até então colocadas em vigência. Encontram-se, nessa categoria, a “literatura esotérica, o boom evangélico e as terapias que prometem eliminar o desassossego, entre as quais a Neurolingüística13, programação behaviorista de última geração” (ROLNIK, 2000, p. 22). A essa categoria, nós acrescentamos mais um tipo de droga, tão perigosa quanto perversa: a que se apresenta com roupagens de cientificidade e promete a morte das figuras identitárias contemporâneas, substituindo-as pelo retorno de uma “única e verdadeira identidade”, imutável, “escondida nas profundezas mais íntimas de cada sujeito”, livre de qualquer imolação, que sempre esteve ali à espera da ciência para que pudesse ser emersa. Essa droga promete matar a identidade presente, a do “eu sou”, apagar a identidade do passado, a do “eu era”, a do “eu fui”, para deixar viver uma nova identidade, a do “eu serei”, essa que sempre esteve escondida no interior de todo ser humano, esperando apenas ser “iluminada” para ressurgir. 13 Os neurolingüistas definem a Programação Neurolingüística como “um conjunto muito rico de técnicas pragmáticas de comunicação, por meio das quais o indivíduo aprende a viver melhor e a atuar de uma maneira eficiente nas situações que o cercam”. Nesse sentido, todo ser humano é capaz de programar o “que quer fazer” estimulando os comportamentos “positivos”. Essa técnica parte do princípio de que “o cérebro tem linguagens próprias e só precisa de comandos adequados para funcionar bem e, com isso, o indivíduo consiga interagir com o outro e com a sociedade” (informações retiradas do site da PNL, disponível em www.pnl.com.br). A PNL sustenta-se em quatro premissas: (1) “corpo e mente funcionam como um sistema integrado”; (2) “é preciso saber focar adequadamente o pensamento”; (3) tudo o que o homem fala é processado e produz algum tipo de efeito (idéia de causa/efeito); (4) “a crença torna-se uma profecia que vai se realizar” – para que os desejos possam ser realizados, é preciso acreditar. Os seguidores da PNL não admitem sua associação com a literatura de auto-ajuda e afirmam que um dos motivos desse estereótipo é a não catalogação, por parte das livrarias, de suas obras na área da Psicologia. Dolores Del Resende, especialista em saúde e trainner advanced em PNL, faz a seguinte distinção entre a Programação Neurolingüística e a auto-ajuda: “a auto-ajuda diz o óbvio, trabalha com um conceito universal e não ensina o passo a passo de como alcançar um objetivo, enquanto a PNL deixa um rastro, deixa de técnica para fazer isso”; outra diferença está no “papel do indivíduo no processo de sua modificação: a PNL coloca na pessoa a razão [de sua] mudança, enquanto a auto-ajuda coloca [a mudança da pessoa] nos ensinamentos”. Todavia, há quem discorde, dentro do campo da neurolingüística, dessa posição. Segundo Vânia Menegalli, pesquisadora nessa área, há sim um vínculo entre a PNL e a literatura de auto-ajuda, posto que “muitos especialistas de PNL tentam modelar determinadas situações”. A exemplo, diz: “pega-se alguém que sabe escrever muito e modela-se sua estratégia, para então passar isso através de técnicas para demais pessoas”, e continua: “este processo não é novo na sociedade, já que há anos criamos estratégias baseadas na ação de alguém e a copiamos como padrão”. (cf. revista Psique, ano I, nº 9, p. 31). 37 37 Tal qual fênix, os efeitos dessa “claridade” podem ser vistos no fragmento a seguir: a experiência mais bela que temos hoje tem de morrer, se desorganizar e ser armazenada fisicamente no córtex cerebral. Notem que nem mesmo o momento mais feliz de nossa vida dura mais do que horas ou dias. O caos do “eu sou” expande a história intrapsíquica, [porém, e para que isso aconteça] os pensamentos e as emoções do presente têm que “morrer” e se registrar nela. “Morrendo”, descaracterizando-se, eles abrem espaços para novas leituras da memória e para a produção de novos pensamentos e emoções. A morte do presente é a única possibilidade de expansão do próprio presente, de enriquecimento do “eu sou”, pois o presente se alimenta de novas informações. Somente o “eu” (do “rei eu”) tem a capacidade [...] de gerenciar, de reciclar, de reorganizar e de reorientar a construção de pensamentos e de todos os demais processos de construção da inteligência. (CURY, 1998, p. 83) Ainda, no fragmento recortado, o jogo metafórico criado pela oposição morte/vida produz efeitos de haver uma possibilidade para transformação identitária. A relação do eu sou com o “eu fui”, renascendo como um novo eu sou, gerenciado agora pelo rei-eu, aponta também para a relação passado/presente/futuro, implicando aqui novamente o efeito de (re)construção identitária. Esses efeitos fazem emergir uma única subjetividade que é, em sua essência, imutável. Engendrados nesse mesmo mecanismo, outros enunciados podem ser acionados: poucos homens conseguem ter sucesso em ser um grande empresário, um respeitado político, um grande cientista, um exímio artista, mas todos conseguem realizar o maior de todos os sucessos intelectuais, o sucesso mais espetacular, que é ser um engenheiro de idéias, um construtor de pensamentos. (p. 213) temos estudado os fenômenos mais importantes que atuam no processo de construção dos pensamentos. [...] eles co-interferem de maneira particular a cada momento existencial. Até onde conheço, penso que as grandes teorias psicológicas, psicossociais e filosóficas (principalmente as epistemológicas) não estudaram os processos de construção da inteligência a partir dos sistemas de co-interferências de variáveis que atuam nas diversas etapas da interpretação em que são gerados os pensamentos e as emoções. (p. 214) é insuficiente fazer uma abordagem genérica dos fatores sociais, psicológicos e genéticos que influenciam o processo de formação da personalidade e o discurso dos pensamentos, mas não sobre os sistemas de variáveis que concebem o nascedouro, a natureza, os limites e o alcance dos pensamentos e emoções. (p. 214) 38 38 o fluxo vital da energia psíquica indica que há na psique, pelo menos desde a aurora da vida fetal até o último suspiro existencial, uma operação inevitável dos processos de construção dos pensamentos. Essa operação faz com que cada ser humano seja um produtor de artes, de ciência, de técnicas, de relações sociais, de comunicação, enfim, um ser que vive sob o regime da revolução das idéias, o que enseja o processo de formação da personalidade e desenvolvimento da história psicossocial humana como um todo. (p. 216) Essa busca a uma identidade verdadeira, escondida no interior dos sujeitos, significa polarizar interior e exterior, ou, colocar em discussão a idéia de “presença de uma interioridade em separado de uma exterioridade”, como bem diz Machado (1999, p. 211), trazida aqui para auxiliar-nos. Segundo essa autora, aceitar como verdadeira a tese de que o homem, desde sempre, tem uma essência, traz duas implicações: uma é acreditar que é da natureza da subjetividade ser idiossincrática (mesma causa, efeitos diferentes); a outra, é acionar, na esfera privada, uma única forma-subjetividade, o que significa desconsiderar os movimentos da e na história. A subjetividade é, ao contrário do que percebemos nos efeitos construídos na TMC, e, de acordo com a autora citada, produzida (“inventada”) por várias e diferentes formas, como “dobras” que se “formam [e] se desfazem e outras então se formam em um movimento incessante”, não sendo elas “nem interiores e nem exteriores mas formações provisórias de um entre que mistura finitos materiais de expressão em ilimitadas combinações” (MACHADO, 1999, p. 212-213). A partir dessas problematizações, permitimo-nos afirmar que a tentativa de encontrar uma origem identitária estável, ou de uma personalidade única, verdadeira, no discurso da TMC, é uma tentativa ilusória, posto que a historicidade impõe sempre “expressões-em-nós”, idéia encontrada ainda em Machado (1999), num movimento que é singular, mas nunca interior. A promessa de que há uma ordenação no caos e de que é possível dominar essa ordem, gerenciado-a, corrobora para entendermos esse discurso de auto-ajuda como uma prática contemporânea de subjetivação. Nesse sentido, ao se colocar como panacéia para os sujeitos, a prática da TMC cria “territórios existenciais” como “ancoragem segura”, à maneira da prática alquímica, ou, a de um ópio poderoso, capaz de deixar “sedados” os sujeitos, como bem nos lembrou Bauman (2001; 2005) e Rolnik (2000) citados neste trabalho. A essas reflexões, a atualidade do pensamento foucaultiano é de singular importância e bastante produtiva para esta pesquisa. Para Foucault, a identidade de cada sujeito é efeito e instrumento de poder. No campo das ciências sociais, por exemplo, a psicologia e a psicanálise sempre estiveram à disposição dos poderes para intervir no comportamento e 39 39 controlar os sujeitos, seja em nível do indivíduo seja da coletividade. As identidades são invenções para fabricar sujeitos, daí seu caráter de mutabilidade. O homem dado a priori, aquele que sempre existiu, que “sempre esteve aí”, “o indivíduo vivo”, que “fala e trabalha” é uma invenção recente, posto que não existia até o século XVIII. O homem é uma “criatura” fabricada pela “demiurgia do saber [...] há menos de duzentos anos: mas tão depressa envelheceu que se imaginou fàcilmente que esperara na sombra durante milénios o momento de iluminação em que seria, enfim, conhecida” (FOUCAULT, 1966, p. 402). Essa é a gênese do homem, até então excluído da reflexão clássica da linguagem “porque o que nela se entretecia era a representação e o ser” (p. 405- 6, grifos nossos). Esse nascimento, essa “presença nova”, se dá pela configuração geral dos saberes em um dado momento histórico, dá-se pela episteme – é por meio dos saberes que uma nova relação se “estabelece entre as palavras, as coisas e a sua ordem” (FOUCAULT, 1966, p. 407). A episteme clássica, segundo Foucault, configura-se pelas positividades, quais sejam, a história natural, a análise das riquezas e a gramática geral, cujos saberes estão direcionados para as identidades e as diferenças dos seres. O princípio que rege essa episteme é o da representação. Na episteme moderna, a vida, o trabalho e a linguagem substituem a temática dos seres vivos, das trocas e do discurso. Esses são os “constructos” que fundamentam empiricamente as positividades nessa episteme e que dão lugar aos estudos da biologia (vida), da economia (trabalho) e da filologia (linguagem). A episteme moderna, ao contrário da clássica, é regida pelo princípio da organização relacional e funcional entre os elementos: “a identidade não mais se estabelece entre um ou mais elementos, mas refere-se à identidade da relação entre os elementos e as funções que lhes correspondem” (PRADO FILHO, 1998, p. 46). A esse respeito, é bastante esclarecedora a leitura que Prado Filho faz do texto foucaultiano: enquanto a problemática do pensamento clássico [...] consistia em estabelecer uma nomenclatura que funcionasse como uma taxionomia, o pensamento moderno coloca em questão a relação do sentido com a forma da verdade e a forma do ser, compondo o discurso que é, ao mesmo tempo, uma ontologia e uma semântica [...] A representação não mais exerce, neste contexto, o papel de operador básico – ela encontra-se agora referida a uma consciência [...] fundada, sustentada na figura do homem como duplo ser empírico-transcendental, colocado ao mesmo tempo como objeto e fundamento de todo conhecimento possível – é este o centro de toda a crítica foucauldiana à primazia concedida ao sujeito e ao tratamento relativo à 40 40 problemática da subjetividade no pensamento moderno. (PRADO FILHO, 1998, p. 47) Ora, se homem não existe desde sempre e nem sempre esteve colocado na ordem dos saberes, sua entrada se dá com a modernidade (século XIX), Foucault constata, na obra As palavras e as coisas (FOUCAULT, 1966), especificamente no capítulo “O homem e seus duplos”, já citado, não só o seu estatuto originário e transitório, mas também findável e sua finitude encontra-se exatamente na problemática de sua origem. É a historicidade, segundo Foucault, que coloca o modo de ser do homem em sua relação com o tempo: porque o homem é finito ele tem uma história e “é por o homem não ser contemporâneo do seu ser que as coisas se apresentam com o tempo que lhes é próprio. A finitude é a relação insuperável do ser do homem com o tempo” (FOUCAULT, 1966, p. 436). Se na episteme clássica a historicidade decorria da origem, na episteme moderna é a historicidade que “interroga” a questão da origem. Essa é a problemática colocada por Foucault, uma “(des)dobra”, posto que o homem, não sendo contemporâneo de sua origem, é ele contemporâneo de sua própria existência, o que implica estar o homem “determinado” a um tempo estabelecido pela vida, pelo trabalho e pela linguagem, vinculado às “positividades que lhe são exteriores e que o ligam à espessura das coisas” (FOUCAULT, 1966, p. 437). A identidade14 dos sujeitos está sempre ligada ao jogo simultâneo do “Duplo”: “distância ínfima mas invencível, que reside no ‘e’ do recuo e do retorno, do pensamento e do impensado, do empírico e do transcendental, do que é da ordem da positividade e do que é da ordem dos fundamentos” (FOUCAULT, 1966, p. 442). No discurso moderno, o modo de ser do homem é marcado pela historicidade das coisas. O homem é uma figura finita – um finito que se desvela na própria indagação de seus duplos –, mas fundamento de todo conhecimento possível, marcado por um “cogito que lhe deixa sempre um resíduo de impensado e de sombra, e ao movimento sempre aberto, jamais 14 Foucault, ao preocupar-se com a exterioridade dos fenômenos, reconhece a subjetividade como um enunciado ligado a uma diversidade de práticas sociais e políticas, por isso histórico. Nesse sentido, a noção de identidade está ligada aos mecanismos de controle e aos jogos de poder. Prado Filho chama a atenção para essa discussão em Michel Foucault. Segundo o autor, não existe uma teoria da subjetividade nos trabalhos de Foucault, como também não existe uma teoria do sujeito. O que Prado Filho fez foi uma leitura marcando como a subjetividade estava presente na problemática do autor de forma periférica e/ou marginal. Faz questão de enfatizar a distinção entre “problematização do sujeito” e “problematização da subjetividade” em Foucault (cf. PRADO FILHO, 1998). Ainda, para Prado Filho, quando Foucault problematiza sobre o sujeito, ele está discutindo com historiadores e filósofos (fase arqueológica); a problematização da subjetividade recebe um tratamento genealógico, posto que incida sobre sujeitos concretos – a problemática do sujeito é, pois, parte da problematização da subjetividade (cf. FERNANDES JR., 2007). 41 41 realizado, que vai do recuo ao retorno de sua própria origem”, conforme nos esclarece, com propriedade, Prado Filho (1998, p. 52). A identidade é, em cada indivíduo, marcada pela pluralidade. Ignorar isso significa negar toda a historicidade das coisas, o que implica, no pensamento foucaultiano, desconsiderar os diferentes “modos de subjetivação/objetivação” dos sujeitos engendrados nas relações de poder. Pensar a(s) identidade(s) pelo prisma da imutabilidade e da não pluralidade é negar também os (re)investimentos de construção de sentidos envolvendo discursos que (co)participam e que, por sua vez, emergem determinados tipos de práticas: as de auto-ajuda, as literárias, as midiáticas, as fundadas na tradição, as científicas, as que refletem o senso comum, dentre tantas outras práticas já tão bem assinaladas e problematizadas por Michel de Certeau (CERTEAU, 2004; CERTEAU et al, 2003). É negar, pois, o próprio movimento da interdiscursividade. Segundo Fonseca (2003, p. 24), os mecanismos engendrados nos processos de objetivação e de subjetivação do sujeito, nos trabalhos de Michel Foucault, “concorrem, simultaneamente ou não, para os processos constitutivos do indivíduo”. No primeiro processo, a preocupação de Foucault é analisar práticas que constituem o indivíduo em objeto, tornando-o um “corpo” dócil e útil (“genealogia do indivíduo moderno enquanto objeto”); no segundo, as práticas que constituem o indivíduo enquanto sujeito preso a uma identidade (“genealogia do indivíduo moderno enquanto sujeito”). Nessa esteira, é necessário entender a relação e a diferença entre indivíduo e sujeito nas reflexões de Foucault, haja vista que temos, na prática de auto-ajuda, um discurso que visa ao indivíduo em sua existência particularizada no mundo, mas que, ao cuidar desse indivíduo, trata também da coletividade. O termo sujeito, no pensamento foucaultiano, designa “o indivíduo preso a uma identidade que reconhece como sua, assim constituído a partir dos processos de subjetivação [e] esses processos, justapostos aos processos de objetivação, explicitam [...] a identidade do indivíduo moderno: objeto dócil-e-útil e sujeito” (FONSECA, 2003, p. 26). O sujeito é, assim, um lugar e uma função no discurso e o indivíduo um produto do exercício de um poder disciplinar. Isto posto, e considerando sempre o sujeito e a identidade, como também a subjetividade, enquanto construções sociais, de natureza, portanto, coletiva, usaremos, neste trabalho, o termo “sujeito”, implicado nele esses dois movimentos de constituição do indivíduo: o da objetivação e o da subjetivação. Esse percurso direciona o nosso olhar para a subjetividade envolvida no processo de construção identitária na obra escolhida como material de análise para esta pesquisa. Podemos dizer, por exemplo, que, num primeiro momento, parece haver um eixo central no discurso da 42 42 TMC, qual seja, o saber do sujeito sobre ele mesmo. Esse saber, posteriormente, irá permitir a ele o controle de todas as suas ações, em todos os âmbitos. Nesse caso, esse discurso de auto- aju