1 Lívia Mara Botazzo França CLINÂMEN E O LABIRINTO DA CRIAÇÃO: DESLOCAMENTOS ABERRANTES EM SUPERFÍCIES FISSURADAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Artes. Linha de Pesquisa: Processos e Procedimentos Artísticos. Orientador: Prof. Dr. Sergio Mauro Romagnolo. São Paulo | 2020 2 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio, convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. B748c Botazzo França, Lívia Mara, 1975- Clinâmen e o Labirinto da Criação : deslocamentos aberrantes em superfícies fissuradas / Lívia Mara Botazzo França. - São Paulo, 2020. 100 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Sergio Mauro Romagnolo Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Criação (Literária, artística, etc.). 2. Arte moderna. 3. Escultura moderna. 4. Objeto (Estética). I. Romagnolo, Sergio Mauro. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 792.028 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 3 Lívia Mara Botazzo França CLINÂMEN E O LABIRINTO DA CRIAÇÃO: DESLOCAMENTOS ABERRANTES EM SUPERFÍCIES FISSURADAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Artes. BANCA EXAMINADORA: _______________________________________ Prof. Dr. Sergio Mauro Romagnolo Orientador ________________________________________ Prof.ª Dr.ª Rosangela da Silva Leote UNESP – Instituto de Artes ________________________________________ Prof.ª Dr.ª Patrícia Moran Fernandes USP – Escola de Comunicação e Artes São Paulo, 26 | 10 | 2020. 4 Ao companheiro das mais intensas e vigorosas jornadas, amado Sergio AF, sem seu amor fatal, jamais teria conseguido realizar esta travessia Ao meu filho, Zolê, por seu amor puro alimentar a chama incandescente da beleza de viver sob à luz da sua presença Aos meus pais, Luiz e Mara, minhas inspirações selvagens Este trabalho é dedicado à memória de Moraes Moreira, Abraham Palatnik e Arlindo Machado. Por suas obras, por seus legados...Saravá! 5 AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Agradeço à minha família pelo apoio incondicional Ao Prof. Dr. Sergio Romagnolo pela confiança e liberdade À Profa. Dra. Rosangela Leote pela leitura cirúrgica À Profa. Dra. Patrícia Moran Fernandes pela disponibilidade Aos amigos do GIIP, pelos encontros alegres Ao Instituto de Artes da UNESP, por seus servidores e por sua estrutura ainda permitirem o avanço do entender humano para além de aparelhamentos. 6 RESUMO Estes estudos se dirigiram à figura primitiva do clinâmen interpretado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, aproximando-o como alegoria para o processo de criação artística, redimensionado nos entre-campos labirínticos das atividades artísticas abordadas em deslocamentos aberrantes em superfícies fissuradas. O objetivo foi enfatizar os aspectos construtivos e operativos intrínsecos ao processo de criação, e oferecer reflexões dirigidas ao campo prático da arte contemporânea, a partir da investigação de campo realizada entre 2018 e 2020. Palavras-chaves: Clinâmen, Gilles Deleuze-Felix Guattari, Processo de Criação, Deslocamentos Aberrantes, Superfícies Fissuradas. 7 ABSTRACT These studies addressed the primitive figure of the clinamen interpreted by Gilles Deleuze and Félix Guattari, approaching him as an allegory for the artistic creation process, resized in the labyrinthine inter-fields of artistic activities, addressed in aberrant displacements on fissured surfaces. The objective was to emphasize the constructive and operational aspects intrinsic to the creative process, and to offer reflections directed to the practical field of contemporary art, based on the field research carried out between 2018 and 2020. Keywords: Clinamen, Gilles Deleuze-Felix Guattari, Creation Process, Aberrant Displacements, Fissured Surfaces. 8 LISTA DE ILUSTRAÇÕES 1. Lygia Pape, Língua Apunhalada, 1968. ..................................................................................................... 12 2-15. Desvios da Obra - variações, 2015-2016. ...................................................................................... 16-17 16. Desvios da Obra - variaçãoes, 2015-16. ................................................................................................. 18 17. Estudo sobre linha n1, 2013. .................................................................................................................. 22 18. Hélio Oiticica, Delirium Ambulatorion ,1978. .......................................................................................... 25 19. Hélio Oiticica, Parangolé P15 Capa 11 – Incorporo a Revolta, 1967. .................................................... 26 20. Lygia Clark, Caminhando, 1963-64. ....................................................................................................... 28 21. Estudo Fita de Moebius, 2018. .............................................................................................................. 30 22. Lygia Clark, O dentro e o fora, 1963. ....................................................................................................... 31 23. Plano de Imanência, 2018-19. ................................................................................................................ 33 24. Fluxos de Interações Afetivas, 2020. ...................................................................................................... 34 25. Ateliê de Paulo Bruscky (2004). ............................................................................................................. 36 26. Escritório de Paulo Mendes da Rocha (2018). ........................................................................................ 36 27. Desenhos Imanentes, 2020. ................................................................................................................... 39 28. Modelo Hidráulico Espiralado e Hidráulico Turbilhonar, 2019. .............................................................. 41 29. Letícia Parente, Marca Registrada, 1975. .............................................................................................. 42 30. Registros do processo da criação até a instalação da obra Sem título, da série Totêmica, 2018. ....... 47 31. O-R-I-E-N-T-A-T-I-O-N, 2018. ..................................................................................................................... 49 32. Estudo Dobragens Virtuais – Combinação Recíproca, 2018. ................................................................. 49 33. Estudo Dobragens Virtuais – Repetição Segmentar, 2018. ................................................................... 50 34. Estudo Dobragens Virtuais – Recombinação Divergente, 2018. ............................................................ 50 35. Sequência de Dobras Transversais, 2018. ............................................................................................. 51 36. Exercício de Dobras Transversais, 2018. ................................................................................................ 52 37. Exercício de Dobras Duplas Latitudinais, 2018. .................................................................................... 52 38. Exercício de Dobra Simples Latitudinal, 2018. ....................................................................................... 53 39. Exercício de Sobreposições Monocromáticas, 2018. ............................................................................. 53 40. Exercício de Sobreposições Monocromáticas Quentes, 2018. ............................................................... 54 41. Abaixo, exercício de Variações Cromáticas, 2018. ................................................................................. 54 42. Detalhe de Dança Aérea, 2019. .............................................................................................................. 58 43. Registro de experimento compositivo com retalhos de papel (2019). ................................................... 60 44. Reprodução do teste com papel higiênico: Alongamento de Dobras. 2020. ......................................... 61 45. Fitas de rendas de papel (2019). ............................................................................................................ 62 9 46. Esboços do projeto C O R P Ф L E N T O (2018)...................................................................................... 63 47. C O R P Ф L E N T O, 2018. ..................................................................................................................... 63 48. Experimentações com pigmentos quentes sobre papel (2019). ............................................................ 64 49. Rendas brancas e pigmentadas instaladas entre o mezanino e o pavimento térreo do ateliê (2019). 65 50. Processo de experimentação compositiva com rendas terrosas (2020)................................................ 67 51. Experimento compositivas com rendas terrosas, 2020.......................................................................... 68 52. Esboços para Esculturas Dançantes (2018). ......................................................................................... 70 53. DANÇA AÉREA N.1, 2019. ....................................................................................................................... 71 54. DANÇA AÉREA N.2, 2019. ....................................................................................................................... 72 55. Sem título, 2019. ..................................................................................................................................... 75 56. Topografia da Pintura, 2018. .................................................................................................................. 77 57. Fases da produção de Topografia da Pintura, 2018. ............................................................................. 78 58. Experimentos de composição para Topografia da Pintura, 2018. ......................................................... 78 59. Experimento de montagem para Topografia da Pintura, 2018. ............................................................. 79 60. Processo de montagem de Topografia da Pintura, 2018. ...................................................................... 80 61. Fase prospectiva do projeto Caminho para o Altar, 2018. ..................................................................... 82 62. Fase executiva até a montagem do processo de Caminho para o Altar, 2018. ..................................... 83 63. Fase do processo de Sem Título - Trípico, 2019-20. ............................................................................... 84 64. Detalhes de Sem Título - Trípico, 2019-20. ............................................................................................ 85 65. Sem título - Tríptico, 2019-20. ................................................................................................................. 85 66. Fase do processo de Do Caos à Luz, 2019. ............................................................................................ 86 67. Do Caos à Luz, 2019. .............................................................................................................................. 87 68. Estudos prospectivos com Do Caos à Luz e elementos geométricos, 2019. ......................................... 87 69. Fases do processo de Sem Título - série Insular, 2019-20. .................................................................... 88 70. Detalhe dos campos de linhas horizontais e verticais de Sem Título - série Insular, 2019-20. ............. 89 71. Detalhe da pintura entre linhas horizontais e verticais de Sem Título - série Insular, 2019-20. .......... 89 72. Detalhes da pintura entre linhas horizontais e verticais de Sem Título - série Insular, 2019-20. ........ 90 73. Processo: Dentro-Fora-Fora-Dentro, 2019-20. ........................................................................................ 91 74. Dentro-Fora-Fora-Dentro, 2019-20.......................................................................................................... 92 75. Reprodução digital de Expansão da Linha, 2020. ................................................................................. 92 76. Fases do processo de Expansão da Linha, 2020. .................................................................................. 93 77. Detalhe de experimentação de montagem para Expansão da Linha, 2020. ........................................ 94 78. Autorretrato_Pensadora, 2018. ............................................................................................................... 95 10 SUMÁRIO PRÓLOGO (11-12) INTRODUÇÃO - ENTRE CAMPOS INTERRELACIONAIS FLUTUANTES (14-20) INTINERÁRIO 1 – CLINÂNEM E O LABIRINTO DA CRIAÇÃO (22-56) 1. CAMINHO DA INVEÇÃO (24-32) 2. FLUXO (32-40) 3. ATO DE ESCOLHA (40-48) 4. DOBRA (48-56) INTINERÁRIO 2 – DESLOCAMENTOS ABERRANTES (58-73) 1. ARRANJOS (59-64) 2. VARIAÇÕES (64-68) 3. TENSIONAMENTOS (69-73) ITINERÁRIO 3 – SUPERFÍCIES FISSURADAS (75-95) 1. MOVIMENTOS RONDÔMICOS (77-80) 2. CONTRA-EFETUAÇÕES (81-90) 3. RESSONÂNCIAS (91-95) CONSIDERAÇÕES [FINAIS] (97-98) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (99-100) 11 PRÓLOGO1 A arte me move e eu me movo na arte. A arte me morde, me abocanha, faz sangrar. Morde por desejo, por ruminância, por vertigem. A busca de essência pela ardência e aderência. E nisto, não há de ser um mal, por certo, há de ocorrer, certas rugosidades, certas deformações, certas excentricidades. Haverá sim de ocorrer, por certo, a insurgência de anomalias, de exageros, de obsessões. Pois há de ser certo, tão certo, que fulguras das mais assombrosas feitiçarias, das mais ingênuas lágrimas, das mais presunçosas encenações, certamente, hei de fazê-las todas! Ah, mas essa mordida... essa mordida vira boca na carne, carne no corpo da gente, me faz cair dentro do buraco perfurado, buraco negro de mim que penso que sei quem sou... Essa mordida é selvagem e quente, dilacera tendões e fibras, mata piolho, barata e serpente... É fisgada profunda, rompe a pele da minha alma e todo um mundo que me cerca flutua. O que pode um corpo? (pergunta Espinosa) Esta será uma saga que se dispõe a interjeições, a povoamentos de afetos, a lentidões de deslocamentos, a formações transitórias e transformações transbordantes. A natureza desses esforços é sempre a mesma, a arte, meu primeiro gênero do viver. A essência é o desejo de transcendência, de ser mais do que se espera, de ultrapassar limites e conhecer as próprias fronteiras. O que anuncia a promessa de uma obra é senão o processo, testemunha ocular dos gestos, registro das expressões estéticas e pulsões poéticas. Moventes, sinuosas, divergentes. Guiadas por misteriosas forças cósmicas da criação. Neste caminhar, ramificações se espalham daquilo que resulta obra, daquilo que aparece como processo, daquilo que marca o paradoxo da criação, o corpo meu. 1 Excepcionalmente me permiti uma abertura poética para o texto dissertativo no intuito de aquecer o tipo escritural acadêmico, marcado pelo formalismo e assepsia racional. [NA]. 12 Lygia Pape, Língua Apunhalada, 1968. (Disponível em https://www.nybooks.com/daily/2017/06/12/lygia-pape-radical-banquet/, acesso 05/11/2019). 1 13 14 INTRODUÇÃO A pesquisa encontra seu ponto de partida na escultura Desvios da Obra [2 a 16], que realizei entre os anos de 2015 e 2016. Por esta obra pude observar os primeiros indícios de um pensamento plástico-visual que começava a se voltar à relevância do processo como catalisador do projeto poético e temático da pesquisa que pretendia seguir. Neste período, começo a me interessar pelo gesto artístico duchampiano que origina os readymades. Talvez este interesse tenha se dado pelo fato de estar envolvida com projetos de dança contemporânea e performance, e lidava com elementos do meu entorno que, em geral, eram constituídos por objetos prontos. De todo modo, encontro em Radicante (2009), livro de Nicolas Bourriaud (1965), uma perspectiva renovada sobre os readymades de Marcel Duchamp (1887-1968), onde propõe a primazia do “ato de escolha” do artista (2011, p. 151), em relação ao objeto fabricado que foi escolhido. Para Bourriaud o importante é voltarmos para a vontade do artista de desviar objetos prontos, dando-lhes um destino diferente ao que estaria determinado, não como uma apropriação, mas como um “deslocamento” (ibidem p. 152, itálico do autor). Um movimento que ocorre no entre zonas, no entre sistemas fábrica-museu, e que propicia o encontro de mundos, referindo-se ao clinamen como a “figura primitiva” (ibidem p. 156), que afirmaria este encontro por um desvio, como princípio de mudança de realidade, de reorientação. Por outro caminho, Gilles Deleuze (1925-1995) ofereceu o aprofundamento analítico do clinamen2, olhando-o como figura da gênese do movimento molar e molecular da criação. Por isso, almejei traçar um paralelo entre a teoria filosófica com o campo prático da criação artística, instigada a investigar meu próprio processo, na observância dos elementos processuais e procedimentais envolvidos. 2 Logique du sens título original da primeira publicação francesa em 1969, pela prestigiada editora Les Éditions de Minuit, como versão editada da tese de doutoramento de Gilles Deleuze (pub. Lógica do Sentido, trad. Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Ed. Perspectiva, 2015). 15 Deste modo, o objeto investigado nestes estudos se dirigiu ao clinamen deleuziano como alegoria3 para a criação artística, redimensionado nos entre-campos: deslocamentos aberrantes e superfícies fissuradas. O objetivo foi enfatizar os aspectos construtivos e operativos intrínsecos ao processo de criação, e oferecer reflexões dirigidas ao campo prático da arte contemporânea, a partir da investigação de campo realizada entre 2018 e 2020. Assim, o que apresento é muito mais um compilado de ideias e esforços reunidos, labirinticamente, que se propõe ao entendimento poético e crítico, do que qualquer outra prerrogativa que porventura lhe seja atribuída. Por certo, inúmeros ajustes e alterações foram introduzidos desde o início da pesquisa e estou convencida que outras virão, desencadeados os movimentos de transição sob os quais a matéria se cerca e incidem sobre uma crítica de processos artísticos. 3 Sergio Romagnolo em seu livro A dobra e o vazio: questões sobre o barroco e a arte contemporânea, entende que em alegoria, se diz b para significar a, é “um falar de outro modo, uma substituição de um pensamento por outro (apud Hansen, 1986, p. 1). A alegoria divide-se em duas partes: a maneira retórica de construir frases, uma alegoria poética, e a maneira de interpretar textos teológicos, a alegoria interpretativa (ibidem). (São Paulo: Editora Unesp, 2018, p. 63). 16 Desvios da Obra, 2015-2016. Registros de variações da obra. (medidas variadas - retalhos de madeira, pregos e vergalhão). Fotos: autora. 2 | 3 | 4 5 | 6 7 17 1 8 9 | 10 | 11 12 | 13 | 14 15 Desvios da Obra, 2015-2016. Registros de variações da obra. (medidas variadas - retalhos de madeira, pregos e vergalhão). Fotos: autora. 18 15 00 Desvios da Obra, 2015-2016. Registro de variação da obra. (medidas variadas - retalhos de madeira, pregos e vergalhão). Foto: autora 16 19 ENTRE CAMPOS INTERRELACIONAIS FLUTUANTES. Essa possibilidade de flutuar sobrevoando campos, florestas, rios, jardins, desertos, trilhas escondidas de dentro da pintura, da escultura, da trama, da fenda, da fissura, é sempre uma coisa só, o curso do percurso. A pesquisa se propõe a trazer o clinamen como metáfora para o processo de criação artística, interseccionando à leitura interpretativa da filosofia de Gilles Deleuze, Félix Guattari e interlocutores, o tensionamento entre a figura da gênese da criação dos mundos pelos gregos antigos4 (mecânica dos fluxos, modelo turbilhonar), com a da geração do corpo de uma obra (metabolismo de dobragem de atos estéticos). Levantando-se, com isso, discussões, relações e conexões entre realidades distintas que se cruzam e que formulam paisagens para o caminho percorrido. No entendimento de que o processo criador carrega em si uma estética, uma maneira própria de fazer e dizer, a argumentação se fez por meio de recursos poéticos e filosóficos nos manejos da matéria de expressão trabalhada, acompanhados por relatos, exercícios e estudos. Pretendendo-se trazer para o campo prático da arte, alguns apontamentos que ganharam relevância à medida em que encarnaram os escrutínios artísticos, cada qual inerente às cosmologias estéticas referenciadas. A metodologia se inspirou em análises múltiplas de recortes espaço-temporais, sob três itinerários interrelacionais: 1. Clinâmen e o Labirinto da Criação; 2. Deslocamentos Aberrantes; e 3. Superfícies Fissuradas. Como “zonas de variação contínua” (DELEUZE, 1992, p. 181) que “sobrevoam, cada uma, uma região, e que emitem signos umas às outras” (ibidem), por conexões de componentes estéticos, sem visar uma concepção totalizadora, mas visar a politonalidade de um dizer plástico e visual em desenvolvimento. A politonalidade do processo de criação aqui é revelada por paisagens moventes que se conectam por pontos referenciais fixos, criticidade imaginativa e discursiva 4 Partindo da mecânica atomista de Epicuro de Samos (341- 271 ou 270 a.C.), filósofo grego do período helenístico e que reafirmou o atomismo de Demócrito de Abdera (cerca de 460-370 a.C.), cuja visão materialista-naturalista, pauta-se na concepção da mecânica da natureza e das sensações, nos diz que o fluxo de átomos destacados dos corpos ao entrarem em contato com nossos sentidos imprimiria imagens (eídola) em nossa “alma”, as sensações, fixando caracteres imediatos do objeto, sem possibilidade de refutar sua existência, vindo a originar os conceitos e que, por sua vez, projetar verdades. (SCIACCA, 1967, vol. I, p. 117). 20 de fazeres artísticos, referenciando artistas e obras que em mim propulsionam as forças ativas da arte, seja por suas obras e ações, seja pelo espírito de liberdade suscitado em seus percursos artísticos. Trabalhei a partir da mixagem e colagem de conceitos que ganham paisagens e figuras, sempre moventes, impermanentes e contínuas, realizando recortes espaço-temporais que se basearam nas investigações práticas durante a pesquisa de campo, compreendida entre o período de 2018 a 2020, observando seus meandros, suas curvas, redobras e ziguezagueados, dando ênfase ao contexto da praxis artística, na perspectiva da materialidade e da abordagem procedimental. 21 22 ITINERÁRIO 1 Clinâmen e o Labirinto Da Criação 23 Esquartejar o processo de criação para olhar os procedimentos empregados em minha prática, me pareceu a melhor maneira de apreender os elementos partícipes da causalidade da obra, observando as escolhas, ambientes, gestos, e agenciamentos de fluxos que viram obra e que alimentam outras obras, possibilitando outras virem a existir. Notadamente, concentrada em olhar para o motor que se alimenta daquilo que produz. A figura primitiva do clinamen lucreciano5 recuperado por Deleuze veio a servir de base a uma questão que se fazia presente há certo tempo: seria possível ainda em se falar em uma ontologia do processo da obra de arte6, depois da “ontologia da pura diferença”7 de Deleuze? Quando se busca uma compreensão da obra a partir da investigação de seu processo geracional, evidencia-se uma correlação com a abordagem deleuziana à figura do clinâmen grego com a relação de causalidade da criação, pela seguinte análise: O clinamen como um equivalente ao conatus é a potência singular de cada indivíduo, a potência de agir ou força de existir8, a potência de expansão que 5 clinamen: do latim = declinação (subs. masc.), inclinação, pendor. Em etimologia, clinâmen se aproxima por significado de “clínica”, de origem grega: em /klinikós/, que concerne ao leitor; /kliné/, leito, repouso; e /klino/, inclinar, dobrar. Em Filosofia, clinâmen é a definição dada por Lucrécio (Tito Lucrécio Caro, ca. 94/93-55 a.C.) no poema De rerum natura ou “Da natureza das coisas”, a partir da doutrina atomista de Epicuro (341-270 a.C.), a qual nasceu nas bases do atomismo de Demócrito de Abdera, sendo porém Lucrécio quem nomeou de clinâmen o movimento imprevisível dos átomos, que ao se deslocarem no vazio e em queda, por seu próprio peso e na trajetória retilínea, desviam de modo lateral e espontâneo e cujo encontro desses átomos, de diferentes pesos e formas, produziriam a matéria (DELEUZE, 2015, p. 276). 6 Aqui “Ontologia do processo da obra de arte” é expressa no sentido de um sistema regrador de disciplinas aplicadas à matéria de conteúdo poético e estético. (NA). 7 Expressão de David Lapoujade, que diz: “Deleuze formula explicitamente a hipótese de uma ‘ontologia da pura diferença’, que constituirá, como se sabe, uma das teses essenciais de Diferença e Repetição” (nota da pag. 23, do livro por ele organizado, “A ilha deserta” (pub. São Paulo: Iluminuras, 2006). 8 Deleuze traz a figura do conatus nas bases do pensamento filosófico de Benedictus de Espinosa (1632-1677) que o entendia como “um esforço de perseverar no ser. Porém, esse conatus [esforço] é, ele próprio, potentia agendi [potência de agir]. (...) [potência de agir ou força de existir]”, “’A potência pela qual uma coisa singular qualquer, e consequentemente o homem, existe e opera, não é determinada senão por outra coisa singular, cuja natureza deve ser entendida pelo mesmo atributo pelo qual se concebe a natureza humana´” (DELEUZE, 2017, p. 97, nr. 15). Imagem da página anterior: Estudo sobre linha n1, 2013. 17 O clinamen é a determinação original da direção do movimento do átomo. É´ uma espécie de conatus: um diferencial da matéria, e por isso mesmo um diferencial do pensamento, de acordo com o método da exaustão. Daí o sentido dos termos que o qualificam: incertus não significa indeterminado, mas não designável; paulum, incerto tempore, intervallo minimo significam ‘em um tempo menor que o mínimo de tempo contínuo pensável’. (DELEUZE, 2015, p. 276). (itálico do autor, grifo meu). 24 cada um de nós possuímos de afirmação de si, e por isso de afirmação da vida. Há outros sentidos correlatos, como desejo, esforço, vontade, entusiasmo, força vital. Deleuze atualizará a teoria dos gregos antigos, atribuindo ao clinâmen a designação de “diferencial da matéria” e “diferencial do pensamento”. O clinâmen como sendo a Diferença que une e Repete os dois termos de uma relação: matéria (o ente) e pensamento (o ser), afirmará que aquilo que difere é o que se coloca “entre o ser e o ente” (DELEUZE, 2018a, p. 103), se apresentando por meio da Dobra, uma abertura ou fenda “constitutiva do ser e da maneira pela qual o ser constitui o ente”9. No entanto, como elemento diferencial não se restringe a ser apenas um termo viajante do tempo que se relaciona a uma teia de significados, como é o caso de conatus, ele nasce da filosofia atomista de Epicuro10, que designa ao clinâmen, ser o movimento de desvio do átomo que propicia o encontro com outro átomo, e que por isso, produziria a matéria, formando mundos. O que proponho é uma aproximação a estes conceitos filosóficos no tocante à minha leitura do clinâmen, entendendo-o como fenômeno geracional nos processos artísticos de criação. Fato e ato se relacionando pela conjugação de fluxos e condutas inerentes à cosmologia estética dos artistas, de modo indissociável do caos – o labirinto, o inconsciente –, produzindo cadeias de processamentos intensivos, vertiginosos e volitivos, que se expandem por sucessivos e simultâneos deslocamentos aberrantes em superfícies fissuradas. 1. CAMINHO DA INVENÇÃO. O poder afirmativo da arte é ser ela criadora de sentidos. Mais que produzir imagens, formas ou conceitos, a arte propulsiona novos modos de existência, novas maneiras de viver, novas 9 NOTA SOBRE A FILOSOFIA DA DIFERENÇA DE HEIDEGGER em Diferença e Repetição (trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado, 1ª. Ed., Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018a, nota 21, p. 103-104). 10 Ibidem nr.5, desta dissertação. 25 maneiras de amar, pois agencia fluxos desejantes multissensoriais e multidimensionais que abrem fronteiras e reivindicam novas conexões para o conhecer humano. Nietzsche (1844-1900) dizia ser a arte a força ativa da potência do criar mundos, “estimulante da vontade de potência, excitante do querer” (NIETZSCHE apud DELEUZE, 2018b, p. 131). O artista como causa ativa de suas próprias ações, em quem a força afirmativa da vida que se manifesta enquanto agente operador da arte, de modo objetivo e intuitivo, agencia coisas ou estados de coisas, produzindo uma estética da existência sobre si e sobre o mundo. Colabora a partir de sua própria experiência de existir, a produção de uma vida bela, aquela que é constituída por forças vindas de dentro, que correspondam a toda sua potência, toda sua pulsão, a força totalizante de sua continuidade. A Experiência Neoconcreta no Brasil é um belo exemplo desse poder afirmativo da arte que propõe novas formas de vida. Hélio Oiticica (1937-1980), [18], que era “leitor assíduo de Nietzsche” (BRAGA, 2015, p. 56) ousou propor uma arte de transformação, de transvaloração e redimensionalização de valores cristalizados pela racionalidade e materialidade objetiva, por meio da “experiência suprassensível”, e que a pesquisadora Paula Braga explica: O alargamento das formas de compreensão do mundo para além do exercício intelectual e da submissão dos sentidos ao intelecto conduziria a uma proximidade com o núcleo do processo de criação e à possibilidade de criação do novo: não uma “nova obra de arte”, mas um novo entendimento de mundo. O suprassensorial seria uma expansão dos sentidos, na qual ‘a experiência se alça por sobre o objeto da mesma, se subjetiva, liberando supersensações, originais, mitigas, nunca antes movida. Oiticica quer provocar a junção única entre sentido e subjetividade em cada indivíduo, num efeito da obra de arte que ‘só com algo paralelo podemos comparar. (BRAGA, 2017, p. 57-58). Hélio Oiticica, Delirium Ambulatorion ,1978, No evento “Mitos Vadios”. Foto: Sólon Ribeiro. (Waly Salomão, Hélio Oiticica: Qual é o parangolé? E outros escritos. 2015). 18 26 Onde lançaria o participante a um “estado de invenção” desencadeado, principalmente, nos Parangolés (FAVARETTO, 2017, p. 34), [19], isto porque, não foram concebidos apenas para serem vestidos, mas para serem incorporados (BRAGA, 2017, p 57) a fim de sintonizar as potencialidades da criação pela experiência estética, conectando corpo e sensibilidade, inteligível e sensível. Sem desejar cair em mero psicologismo de uma arte instrumentalizada à viabilizar um estado psíquico criativo, invoco para que a obra e o Programa de Oiticica sejam recebidos em sua proposta ética e estética das mais ambiciosas e valiosas para nossa cultura. Há uma conjugação de multiplicidades em que o que sobressalta e compõe a relação dos elementos opostos é o divergente, o desequilíbrio, a vertigem, e que, paradoxalmente, se realiza nos entre-campos, seja entre inteligível e sensível, apolíneo e dionisíaco, espaço da obra e superfícies táteis, trabalho alienado e prazer estético, natureza e cultura, entre arte e antiarte. Por isso que entendo não se tratar de “junção única” entre sentido e subjetividade dos indivíduos, como expresso no texto de Braga, no sentido de unir ou integrar opostos, mas, a meu ver, o de estabelecer uma mediação, uma simbiose desses campos ou sistemas, que passam a coexistir, deflagrada pela diferença residual de seus elementos e descontínua em seu movimento, ou seja, por tudo aquilo que diferencia ou diverge um do outro, ao mesmo tempo em que seus elementos constitutivos entram em relação de coordenação recíproca entre os pares. A “junção” implicaria uma síntese ou totalização de superação desses opostos, um amalgamento que eliminaria a autonomia das partes, o que evidentemente não acontece nos Parangolés de Oiticica, mesmo considerando que sua intenção seja a superação dos estratos de significância e subjetivação visando um estado “suprassensorial”. A união entre sentido e subjetividade representaria uma disciplinarização intensiva dos corpos, pois desconsideraria a “onipotência do significante, bem como a autonomia do sujeito” (DELEUZE-GUATTARI, 2012a, p. 54). Além disso, significância (sentido) e subjetivação (subjetividade), “são completamente distintas de direito” (ibidem p. 55), apesar de estarem Hélio Oiticica, Parangolé P15 Capa 11 – Incorporo a Revolta, 1967. Foto: Claudio Oiticica. 19 27 sempre juntas, atuam de modos diferentes, seja em seu regime (irradiação circular x linearidade segmentar), seja em seu aparelho de poder (a escravatura generalizada despótica, o contrato-processo autoritário). (ibidem). O que percebo em Oiticica é o atravessamento por esses estratos, da significância (sentido) e da subjetivação (subjetividade), que se faz por conjugação de fluxos que se cruzam e se aliam para formarem um terceiro termo mediador. Este terceiro termo mediador seria o “estado de invenção” libertado pela experiência estética. Neste sentido que me aproximo de Oiticica, de sua proposta de estado de invenção provocado pela dinâmica de elementos partícipes da experiência estética da obra, propondo, justamente, a superação do dualismo por oposição ou junção de planos (estratos ou superfícies), para privilegiar o que se coloca no meio, na passagem de um plano para o outro, que se realiza no deslizar do percurso experimental, mediando corpos, sujeitos e materialidade, compreendidos ao contexto espacial da obra, o ambiente (a rua, a praça, a favela, o museu, o mundo), suscetível aos imprevistos do acaso, às investidas do caos. É nesta gigantesca e complexa cadeia movente de situações de significações que emergem “significantes flutuantes”11. Segundo Lévi-Strauss (1908- 2009), nos significantes flutuantes se encontra “um sistema de interpretação que simultaneamente considere os aspectos físico, fisiológico, psíquico e sociológico de todas as condutas” (STRAUSS apud PASSETTI, 2008, p. 198), colocadas relacionalmente em jogo. Neste encontro de mundos, de deslocamentos dos corpos por entre a multiplicidade de componentes significantes flutuantes, o clinâmen fundamentará as conexões afetivas desses cruzamentos, aparecendo como abertura para o outro, colocando os elementos sob fricção, quanto maior for a intensidade e vibração dos componentes, maior será o grau de potência 11 O significante flutuante levi-straussiano se aproximaria do conceito de devir deleuziano, que atuaria no chamado plano de consistência ou plano de composição, e nisto não haverá qualquer estranhamento, considerando que ambos partem da reflexão da diferença e multiplicidades de séries divergentes. (NA). 28 para o estado criativo, um movimento de desequilíbrio perpétuo da transcodificação ou transdução12 da matéria de expressão. Lygia Clark (1920-1988) em Caminhando [20], reúne componentes dimensionais transcodificadores, ao convidar o então expectador a participar da experiência, situando-o como criador. Oferece-se pela experiência a descoberta do corpo no corpo, materialidade do real percebendo espacialidades, texturas, formas e volumes, que são verificados à medida que avança a execução, o redimensionamento topográfico, os limites do 12 Deleuze e Guattari em Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia 2, consideram que: “A transcodificação ou transdução é a maneira pela qual um meio serve de base para um outro ou, ao contrário, se estabelece sobre um outro, se dissipa ou se constitui no outro.” (tradução Suely Rolnik, vol. 4, São Paulo: Ed. 34, 2012, pag. 125). Lygia Clark, Caminhando, 1963- 64. (Registros da ação). Fonte: Catálogo da exposição On Line: Drawing through the Twentieth Century, Museum of Modern Art, NY 2010-11. 20 29 plano escritural, um modo de comunicar pela aprendizagem dinâmica, concreta e confessional, que se opera enquanto é construído o trajeto. Em Caminhando a potência da criação é ativada pelo aprendizado integral e consistente da proposta que carrega, ampliando a consciência espaço- estrutural do participante, ativando aberturas para possibilidades, tendências, subversões e desvios. Nesta situação orquestrada por Clark não há participante ideal, há apenas fatos, materialidades atuando sobre planos, independentemente dos desdobramentos posteriores. A potência da proposta da obra se encontra na ideia de se envolver atividades perceptivas em que são exploradas funções cognitivas dos sentidos visuais e táteis, no campo perceptivo do “espaço háptico”13, uma espécie de espaço nômade (DELEUZE-GUATTARI, 2012c, p. 217-219) em que são reunidas as funções ópticas e táteis (ibidem p 222), levando o participante a uma situação de amplificação sensorial e que promove abertura para as investidas da criação, invenção e descobertas. O participante é colocado em situação de criação, à medida em que no desenrolar das ações que realiza, se vê pautado por decisões e escolhas, racionais e intuitivas, que transbordam a obra enquanto objeto-fim, processando as expressões de suas sensações, por meio de negociações subjetivas entre a tarefa dada e aquilo que queira fazer dela, evocando-se o processo, enquanto objeto-meio, pela experiência sensível. Sobre o plano mínimo dos entrelaçamentos de execução é criada uma membrana invisível de combinações múltiplas de estratos e estados de atenção, de intensões e intensidades que se alternam durante a experimentação sensível com a matéria, realizando uma investigação plástica, topográfica e estética, conferida pela experiência empírica do conhecer pelo fazer. 13 Deleuze e Guattari atribuem ao “espaço háptico” na obra Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2 – a qualidade de “estatuto estético fundamental” (2012c, p. 217), que reuniria a função óptica da visão, com a função háptica do tato. “Háptico é um termo melhor do que tátil, pois não opõe dois órgãos dos sentidos, porém deixa supor que o próprio olho pode ter essa função que não é óptica.” (ibidem). O professor Kaustuv Roy, da Louisiana State University, Baton Rouge, Estados Unidos da América, in artigo Gradientes de intensidade: o espaço háptico deleuziano e os três "erres" do currículo, oferece uma definição de espaço háptico iluminada: “O espaço háptico é, assim, um espaço de afecto e não um espaço de medidas e propriedades, um espaço de acontecimentos e não um espaço de coisas; ele é ocupado por intensidades, ventos e ruídos, forças e qualidades tácteis e sonoras (...). Estalido do gelo e canto das areias" (trad. Tomaz Tadeu, pub. Revista Educação & Realidade, v.27, n.2, 2002, pag. 11). Disponível em https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/25920, acessado em 06/06/2020. 30 A proposta de Caminhando é tão sedutora que me levou a querer construir uma Fita de Moebius [21], para repetir a experiência proposta por Clark. Neste limiar, a potência geradora do caos compõe a relação se, por um lado, pela possibilidade de encontrar na matéria suas qualidades internas e externas, suas medidas e superfícies, seus contornos e dobras, seus estreitamentos e extensões, por outro, a percepção se aguça e trabalha para uma expansão do estado de atenção, estimulando os sentidos a querer Estudo Fita de Moebius, 2018. (papel colorido e adesivo de contato). 21 O papel integra o processo de criação como suporte para explorar planos bi e tridimensionais, permitindo a ampliação do campo imanente, colocando imagem-pensamento em relação às intencionalidades e potencialidades construtivas, por meio de exercícios que exploram conceitos matemáticos e paradoxais, como a fita de Moebius. (Relato da autora, julho/2018). 31 superar as dificuldades do próprio corpo posto em diálogo interno e externo, amplificando-se sensações para a trama de significantes flutuantes e significados subjacentes. Apesar da organização material e estética previamente estabelecida para o estudo plástico [21], minha ideia inicial era explorar pelo contato físico e concreto a experiência de construir um paradoxo, de modo simples e realizável. Uma objetividade voltada à percepção das nuances guardadas no interior da proposta de Clark, presentes inclusive em O dentro e o fora [22]: As relações que marcam a unidade do interior e exterior é a repetição do vai e vem daquilo que ora está dentro e que ora está fora, ou também aquilo que é de dentro, mas que também é de fora, e vice-versa. Perceber a simples mudança de posição na trajetória e a alteração do plano perspectivo sobre a própria trajetória, colocada em contradição dos planos pela ideia de um dentro e um fora. Ambiguidade e abstração de uma matemática que não se fecha em dois planos, e que se abre à ponderação para um plano outro, formado por linhas abstratas que se entendem por limiares muito sutis, difíceis, que confundem a percepção. Lygia Clark, O dentro e o fora, 1963. (registro de performance). Fonte: Catálogo da exposição On Line: Drawing through the Twentieth Century, Museum of Modern Art, NY 2010-11. 22 32 De fato, durante a execução da experiência, e também depois, um povoamento de pensamentos se formou entorno das conexões com meu próprio processo de criação, guiados por algumas condutas intuitivas levadas a cabo, pelo “fazer para ver no que vai dar, o acaso” (ZAMBONI, 2006, p. 53), em certa medida. 2. FLUXO. A arte que se projeta em relações multidimensionais simultâneas é multissensorial, pois projeta múltiplas sensações, em que pouco importa a ordem cronológica de eventos, nesta linha sui tempore, passado e presente se sobrepõem um sobre o outro com a promessa de um porvir, um movimento de ida e volta descontínuo, pois marcado por paragens necessárias à fixação da linguagem. O processo de criação artística possui caráter de simultaneidade de interações entre incontáveis elementos matéricos, físicos e virtuais, manipulados e arranjados pela atuação dos artistas. Carrega uma estética, regida pela multiplicidade e pluralidade de elementos estetizantes e estetizados, cuja raiz pode ser exprimida pela concepção do modelo mecânico do clinâmen, promovendo novas relações pelo desvio e declinação de elementos que desencadeiam novas composições e interações, a partir do pensar imaginativo. Deleuze e Félix Guattari (1930-1992), se debruçaram a estudar o pensamento em sua dimensão formativa e criadora. Para eles, o processo de efetuação do pensamento em condições específicas se dá primeiramente com a projeção de uma imagem mental, que chamaram de imagem do pensamento: “O pensamento reivindica ‘somente’ o movimento que pode ser levado ao infinito” (DELEUZE-GUATTARI, 2010, p. 47), posto que “pensar e ser são uma só e mesma coisa” (ibidem p. 48). A existência se daria em dois planos, o do Pensar, na condição de imanência (potência de agir, existir, pensar), e o do Ser, na condição de natureza. Clinamen se observado como modelo mecânico, pode ser entendido como o movimento que gera conexões e relações de interações entre forças, convertendo-se em matéria e de matéria em expressão. (NA). 33 Para entender o pensamento que é criação, é mister compreender que ele se efetua de acordo com os modos de existência do ser-pensante. Seguindo o raciocínio deleuze-guattariano, será pelos modos de existência que o pensamento será efetuado, e o pensamento se efetua por meio daquilo que o afeta, numa retroalimentação contínua, perpétua e múltipla, num plano de imanência. O plano de imanência é onde a imagem do pensamento estaria a engendrar- se, por um movimento infinito no ‘horizonte relativo’, que se distancia enquanto avança o sujeito, e no ‘horizonte absoluto’, onde o sujeito está contido, o plano de imanência (DELEUZE-GUATTARI, 2010, p. 47 a 49). A ilustração abaixo [23], demonstra graficamente a ideia do plano de imanência como sendo um campo de forças imanentes: O atributo do pensamento, portanto, é ser movimento infinito duplo, um duplo infinito que se forma na dobra da projetação da imagem no horizonte relativo, e ao retornar para o horizonte absoluto onde permanece o sujeito, volta-se como pensamento criador, retornando e se dobrando novamente, sucessivamente e infinitamente, formando redundâncias de dobras sucessivas e reiteradas, que projetam a imagem do pensamento, ou imagem-pensamento “(curvatura variável do plano)”. (DELEUZE-GUATTARI, 2010, p. 49). Plano de Imanência, 2018-19. Ilustração: autora. 23 34 O pensamento se forma em curvas que variam no plano de imanência, a partir do modo de existência do ser-pensante, que é ser vivente e afirma a sua essência (natureza de pensar), por meio do seu corpo que é sujeitado por afecções14 que o afetam o tempo todo. O que coloco é que o pensamento terá potencial criador quanto maior for a capacidade que o corpo-sujeito tem de ser afetado, sucessiva e simultaneamente, por infinitos modos: “extensivo, variável e divisível” (DELEUZE, 2017, p. 224-225). O filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677), ao se perguntar o que pode um corpo, formulou sua filosofia para tratar os afectos como causa primeira do pensamento15 (ESPINOSA apud CHAUÍ, 1989, p. 97), pois seriam as afecções que atingem o corpo-sujeito que contribuiriam para a formação de seu modo de existir e que, portanto, o que marca seu modo de pensar, sua singularidade, subjetividade, sua visão de mundo, será o dinamismo das potencialidades intensivas e extensivas das forças afectivas implicadas no corpo-sujeitado, o formando e atualizando de modo acumulativo e ininterrupto. 14 “As afecções são as maneiras pelas quais as partes do corpo humano e, consequentemente, o corpo inteiro, é afetado” (ESPINOSA apud DELEUZE, 2017, p. 240, nr. 1). 15 Espinosa divide o conhecimento em três gêneros: o primeiro gênero é composto por afetos, opinião e imaginação, o segundo gênero ideias adequadas, que é a razão; e terceiro gênero ciência intuitiva (Espinosa, in “Ética II”, São Paulo: Nova Cultural, 1989, pag. 97, v. proposição XL e escólio II). 24 Fluxos de Interações Afetivas , 2020. Ilustração: autora. 35 Neste exercício imaginativo: o corpo é atravessado ao longo de sua existência por infinidades modais de forças afectivas, sejam elas ativas (alegrias) sejam elas passivas (tristezas), [24]. Essas afecções afetam o corpo de maneiras distintas, e por isso, o que importa avaliar é seu “poder de ser afetado” (DELEUZE, 2017, p. 240). Afinal muito além do corpo se equiparar à uma máquina de recepção e emissão de mensagens, o corpo é também produtor de afetos, ele participa não apenas como um receptor de estímulos sensoriais (visão, tato, audição, olfato, paladar), mas participa ativamente das interações de duas dimensões internas: a dos perceptos e dos afectos (ibidem). Os perceptos seriam percepções mais ligadas à ideia de “pacotes de sensações e relações que sobrevivem àqueles que o vivenciam”, e os afectos “não seriam os sentimentos, são devires que transbordam aquele que passa por eles (tornando-se outro)” (DELEUZE, 1992, p. 175). É inevitável que nossa rubrica assinale como paradoxo da criação artística a concepção da coexistência de perceptos e afectos, em conexões múltiplas que se dobram e desdobram sem se repetir, sempre se transformando, se dividindo, se multiplicando, povoando. De acordo com Deleuze e Guattarri, não haveria dois mundos, o mundo sensível da sensação e o mundo inteligível da percepção, pois não é possível saber onde começa e acaba cada um deles, mas apenas singularidades que se estendem até as vizinhanças de outras singularidades numa ordem espaço-temporal que vai ao infinito (DELEUZE-GUATTARI, 2012c, p. 207). O navegar artístico se encontra na singularidade da matéria de expressão, se produzindo por colisões em ambientes caóticos, cuja organicidade de elementos e compostos, muitas vezes se organizam por acúmulos, excessos e obsessões, estimulando a geração de pensamentos criadores. O ateliê [25] do artista brasileiro Paulo Bruscky (1949), traduz bem um modo de navegação torrencial por águas caudalosas: Perceptos – pacotes de sensações, espaço estriado – percepção visual. Afectos – são devires, espaço liso, percepção háptica. (NA) Por seu conteúdo abrangente e arrumação instável, o ateliê de Paulo Bruscky espelha (e duplica, portanto) a natureza fluida de sua obra, a qual não se acomoda ou ajusta a lugar simbólico algum, definindo-se como processo e liberta de um único fim. (ANJOS, 2010, p. 227). 36 Certamente os ateliês de artistas são espaços singulares de constante circulação de objetos e coisas. Propício a cruzamento de fluentes em que escoam poderosas forças afectivas e que encontram confluência pela ação do artista, sem sua atuação este campo de potências e possibilidades jamais se ergueria. Os ambientes corporativos que também exercem atividades de criação, seguem modos de organização muito parecidos com os ambientes artísticos, se diferenciando pelo destino dado por seu conteúdo e forma material. O escritório do arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha (1928)16, [26], é constituído por um corpo múltiplo dobrado no tempo, tanto quanto no ateliê de Bruscky [25]. A semelhança entre ambos espaços é conferida pela presença maciça de arquivos que integram os espaços de trabalho e execução, não foram escondidos em lugares escuros, empoeirados e esquecidos. Passado e presente sobrepostos, em permanente interação, retroalimentando novos processos pela fisicalidade da memória presente. Espaços configurados paulatinamente, de acordo com o uso que deles foi feito ao longo do tempo, refletindo o modo de vida, o temperamento, as necessidades advindas pelas atividades operadas, ora mais aleatórias, e caóticas, ora mais controladas e medidas. A configuração espacial formada por paisagens vivenciadas acrescenta o modus vivendi17 ao modus operandi do objeto, influenciando os modos pelos quais os processos criativos se compõem com o caos, seguindo tendências ora mais intuitivas, ora mais prospectivas, tudo dependerá da maneira que artista e arquiteto determinam necessidade e realidade executiva. Há um evoluir contínuo de mudança de estados que se segmentarizam na fronteira do intervalo, em tempos diferentes, seja no imperativo da acumulação e experimentação física, em Bruscky, seja no imperativo da 16 Sugestão para assistir na internet o vídeo que faz um tour pelo escritório do arquiteto, em: https://www.youtube.com/watch?v=Jb6Hia_S-NE. 17 O filósofo francês Henri Bergson em seu livro “A evolução criadora”, de 1907, fala em um modus vivendi que é obtido gradualmente pela inteligência, adotando “o seu plano de estrutura, e a matéria o seu modo de subdivisão. Essa estrutura e essa subdivisão estão engrenadas uma na outra. Elas são complementares entre si e devem ter progredido juntas. E quer se afirme a estrutura atual do espírito, quer se formule a subdivisão atual da matéria, em ambos os casos não se sai do domínio do evoluído: nada nos é dito daquilo que evolui, nem tampouco da evolução.” (BERGSON, 2010, p. 399). De cima para baixo: Ateliê de Paulo Bruscky (2004), disponível em http://www.revistaohun.ufba.br/pdf/lud mila.pdf, acessado em 18/05/2020.; e Escritório de Paulo Mendes da Rocha (Jornal El País, de 08/11/2018). Foto Ruy Teixeira. 25 26 37 função e formulação virtual em Rocha. Explico, acontece que a diferença entre cada uma dessas atividades se situa na qualidade da materialidade dos objetos produzidos nesses espaços; o primeiro, resulta obra (corpo integral) e, no segundo, projeto (corpo integrador), respectivamente expressos na organicidade e na funcionalidade, denotando modos próprios dos elementos tomarem os lugares em cada um dos casos. Portanto, estabelece-se uma relação de intencionalidades e intensidades, cuja dinâmica conjuntiva e disjuntiva de modos específicos e orgânicos, confere aos espaços o caráter de campo de individuação (DELEUZE, 2018a, 332- 333), a partir de uma série de ações, ordenadas, desordenadas e caóticas que emergirá a potência que força o pensamento para a criação. Naturalmente, apenas usei estes dois exemplos para destacar um ponto de vista que entendo ser fundamental à reflexão para quem opera com criação e invenção. Não se pode falar em absoluto orgânico, tampouco em total funcional. O que ocorre são combinações mútuas que visam uma certa complementaridade entre orgânico e funcional, variando a intensidade e capilaridade que exercem um sobre o outro – em movimento contínuo num dado plano18 do vivido. A filosofia analítica de Henri Bergson (1859-1941) diz que: 18 Para Bergson “um plano é o termo que se estabelece para um trabalho, que fecha o futuro cuja forma desenha [...]. Mas é mais fácil definir o método do que pô-lo em prática”. (2010, p. 122). O instinto perfeito é a faculdade de utilizar e até construir instrumentos organizados, a inteligência perfeita é a faculdade de fabricar e empregar instrumentos não organizados. (BERGSON, 2010, p. 158) (itálico do autor) [...] as leis do pensamento são apenas a integração das relações entre fatos. Mas, quando formulo os fatos com a configuração que hoje têm para mim, suponho as minhas faculdades de percepção e de intelecção tais quais são hoje em mim, pois são elas que fazem o loteamento do real, que recortam os fatos no todo da realidade. (BERGSON, 2010, p. 398-399). 38 Portanto, o processo de criação se valerá da combinação entre instinto (intuição) e inteligência (percepção) sobre uma paisagem recortada em um plano de composição, construído ou produzido pelo artista, que atuará utilizando e empregando instrumentos, em estruturas ora mais ou menos estáveis, ora mais ou menos instáveis, para suas experimentações plásticas. Pensando nisso, realizei um estudo chamado Desenhos Imanentes [27, pág. 36], vislumbrando a prática de uma experiência voltada a observar os fluxos de consciência e de pensamento que explorasse os reflexos sensório-motores, dentro de um ambiente produzido para a observação da intuição e da percepção, anulando a função óptica pelo cerrar dos olhos, para potencializar outros sentidos, seguindo três diretrizes: 1) Variação modal da matriz motora: - alteração da velocidade de gesticulação da mão: aumentada e reduzida; - inversão da base motora: mão esquerda (considerando ser destra). 2) Variação instrumental: - alteração de estados psíquicos de consciência: uso de psicoativos; - emprego de paisagem sonora: músicas sequenciais; e - redução de instrumentos mediadores: somente caneta e papel. 3) Programa livre de motricidade: - ausência de fundo temático e com foco dirigido à captação e conexão de fluxos e percepções, transferidos na linha contínua que emerge por impulsos expressivos, sem preocupação representacional ou vínculo figurativo. O que se guardou desta ideia, foi o desejo de realizar a experiência por meio do desenho livre, ou mesmo parcialmente livre, afinal carregamos as marcas que nos modelam enquanto seres de expressão que somos. Refazer caminhos, reencontrar trilhas, reaprender a segurar a caneta, entortar a mão às vezes, desfazer equívocos de uma conformação escolarizada que domina e restringe a expressão. Preceitos e regras que incutem o mundo dos certos e errados e que extirpam o jeito próprio de projetar em desenho o que pensamos e sentimos. Colocar-se em situações de criação mais porosas, permite-se surgir processos mais libertos de amarras e por isso, mais inventivos, em que se instalam aspirações às descobertas, permitindo estados criativos, como nos termos proposto por Oiticica e Clark. 39 - Desenhos Imanentes , 2020. (aproximadamente 27,2 x 20,0cm cada um, marcador permanente sobre papel). 27 40 Entendo que seja importante pensar o modus operandi artístico numa conjuntura mais ampla do que apenas se orientar por marcadores já assimilados pelo corpo treinado. Mas que pesem o modus vivendi sob os quais é traçada a paisagem vivenciada, “sobrevindo a proposição” (DELEUZE, 2015, p. 13-24), de ações desrobotizadas que abram caminho para ramificar algo novo comunicável a ser compreendido e explorado. 3. ATO DE ESCOLHA. O livre pensar é o pensamento nômade, cuja implicação é a convivência com conceitos dissonantes, simultâneos e, possivelmente, por sua disseminação geradora de novas práticas. O pensamento nômade de uma praxis da diferença, invariavelmente, visará de-formar, trans-formar, desviar, por meio da ação livre, o predicativo do clinâmen (DELEUZE-GUATTARI, 2012c, p. 212-213). Por uma perspectiva imaginativa ligada à física elementar da mecânica dos fluxos, Deleuze e Guattari19 consideraram o clinamen antigo como elemento diferencial que geraria os turbilhões e as turbulências, baseados numa hidráulica das “fluxões e dos fluxos” (ibidem p. 212). Um movimento de declinação do átomo que promove uma reação em cadeia de maneira isotrópica, isto é, de dentro para fora, expandindo seus efeitos a partir de seu centro (interior). Na página 38 [28], seguem duas ilustrações dos modos de expansão das fluxões, em espiral e turbilhão, partindo desse entendimento. Parodiando Lucrécio20, o clinâmen deleuze-guattariano poderia ser entendido como o movimento diferenciador que pertenceria a todos os corpúsculos (átomos, partículas, corpos). Uma qualidade, um adjetivo indissociável dos corpos (ente), uma potência originária da criação que se repete em todos os corpos originados, e 19 No último capítulo do volume 5 de Mil Platôs, cap. 14. 1440 – O liso e o estriado, Deleuze, e Guattari, ampliam a análise anterior do clinamen feita há mais de dez anos, da primeira publicação no seu livro-solo Lógica do Sentido, de 1969, apresentando-o desta vez na dinâmica hidráulica do modelo físico de Michel Serres (La Nasissance de la physique dans le texte de Lucrèce) (2012c, p. 211-216). 20 (Tito Lucrécio Caro, ca. 94-50 a.C.), poeta e filósofo romano que viveu no século I a.C., foi o responsável pela divulgação da filosofia de Epicuro, inserindo no poema De rerum natura (Da natureza das coisas) o atomismo epicurista em seus precisos termos técnicos e filosóficos, como bem observa Vivian Carneiro Leão: “A teoria atômica desenvolvida na Escola epicurista chega pronta à pena de Lucrécio. O poeta não se incumbe de desenvolver os conteúdos filosóficos veiculados em sua obra, mas de difundi-los pelo mundo romano – o que não quer dizer que a empresa tenha sido menos árdua. De rerum natura, sob esse ponto de vista, pode assumir as feições de obra missionária, cujo desígnio é o de esclarecer e libertar à luz da razão.” (Resenha de LUCRÉCIO. Da natureza das coisas. Tradução de Luís Manuel Gaspar Cerqueira. Codex- Revista de Estudos Clássicos. Rio de Janeiro, vol. 5, n. 1, 2017, pp. 224-229). O clinamen entendido como princípio vital, determina a origem de todas as causas, pois é replicado nos subsequentes efeitos e recriado em todas as criaturas resultantes, tornando-se causa para outros efeitos sucessivos infinitamente. (NA) https://pt.wikipedia.org/wiki/94_a.C. https://pt.wikipedia.org/wiki/50_a.C. 41 que ao ser atingido por outro corpo, permanece em franco estado de ricocheteamento entre os corpos, portanto, em contínuo movimento de transformação. Do encontro provocado pelo desvio da vertical retilínea, o corpo atingiria a tangente paralela, desenhando uma trajetória em linha-curva por arco helicoidal, como uma hélice, expandindo as forças (físicas) que entram em conjugação, em graus variados de magnitude, que provocaria o escoamento giratório das correntes de fluxos, apresentando um padrão circular ou espiral ao redor do centro de rotação, formando o vórtice, um rodamoinho espiralado ou turbilhonado. . Não por acaso, introduzi os termos intertextuais destacando adjetivo, corpos, forças, conjugação, fluxos, para aproximar da realidade concreta: corpos adjetivados que conjugam fluxos por forças ativas. Em outros termos, o clinâmen nos indivíduos poderia ser compreendido como uma propriedade que se revelaria como autonomia, singularidade ou mesmo de alguma forma de liberdade que provocaria o surgimento de novas combinações, interações ou mesmo reiterações, produzindo novas formas ou ao menos implicando sobre elas transformações, modificações ou deformações, o algo novo pensável e escolhido, uma ação livre21. (DELEUZE-GUATTARI, 2012c, p. 213). 21 Para Bergson, “cada ato é o cumprimento de uma intenção” e o ato livre seria “um comportamento verdadeiramente nosso é o de uma vontade que não procura imitar a inteligência e que, permanecendo ela própria, isto é, evoluindo, chega por via de maturação gradual a atos que a inteligência poderá resolver indefinidamente em elementos inteligíveis sem, contudo, nunca o conseguir inteiramente: o ato livre é incomensurável com a ideia, e a sua ‘racionalidade’ deve ser definida por essa mesma incomensurabilidade, que permite achar nele toda a inteligibilidade que se queira.” (2010, p. 63). 28 Modelo Hidráulico Espiralado e Hidráulico Turbilhonar (2019). Ilustração: autora. 42 Falar em “ação livre” em arte seria uma quase redundância, ou um quase pleonasmo, partindo da concepção de que em arte a ação livre é condição sine qua non para os artistas, pelo simples fato de que sobre seu objeto de atuação serem operados elementos estéticos. Mas seria quase, porque também é preciso considerar os aspectos que qualificam as ações, atos e condutas estéticas, que dizem respeito aos diferentes modos de expressões poéticas advindas dos artistas. Pelos modos diferentes e divergentes com que são operados elementos estéticos e poéticos, conferidos pela experimentação construtiva da obra e pelo sobressalto de singularidades comunicantes, a partir do seu centro de rotação geracional, é que constituiriam os processos aberrantes22. A artista brasileira Letícia Parente (1930-1991), uma das pioneiras da videoarte no Brasil, em seus trabalhos, como em Marca Registrada [29], onde borda com agulha e linha a sola do pé as palavras “Made in Brasil”, propõe o deslocamento do foco do objeto-obra, para se concentrar no corpo-processo. O corpo é inserido 22 Assim nominado, porque neles se conjugam todos os regimes, todas as linhas de errância, todas as linhas de fuga, todos os desvios e desterritorializações, todos os blocos de sensações, de devires, de afetos, todos os desejos de modelação, de orientação e reorganização, em que são agenciados: trabalho (força motriz) e ação livre (causa motora). (NA) Letícia Parente, Marca Registrada, 1975. (quadros do vídeo de aproximadamente 10’33”). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=J5RakZ433wA, acessado em 06/06/2020. 29 43 diretamente no corpo da obra em todas as suas máximas adjetivas e diversificativas singulares. Corpo-movimento, corpo-biológico, corpo-social, corpo-político, corpo-mediador, corpo-indócil, corpo-evento. O professor e pesquisador Luiz Cláudio da Costa, ao se referir à Marca Registrada como “o vídeo mais conhecido e perturbador para a época” (COSTA, 2008, p. 29), analisa: Destaco o que aponta Costa quando diz “não há uma composição e nem mesmo construção de obra”, a qual me coloco de pleno acordo. Entendo que o que se apresenta é processo, aliás tudo é processo, pois não se estabelece um fixador, nem mesmo pela inscrição Made in Brasil. Perceba quão atualizada aos nossos tempos ela se faz presente. A obra se atualiza pela operação da artista de retirar quaisquer elementos identificadores sociais individualizantes (estratos tais como gênero, classe, etnia, entre outros). Mas há um corpo com mãos que costuram um pé, deslocando-se do artigo definido “o” para o indefinido “um”23. Um corpo desrostificado24 em toda a ação. A ausência do rosto presentifica um corpo esvaziado25, de estratificações de significância e subjetivação, revelando-se “pelo que ele é, 23 Para Deleuze e Guattari “o artigo indefinido é o condutor do desejo”, pois “’um’ ventre, ‘um’ olho, ‘uma’ boca: ao artigo indefinido nada falta, ele não é indeterminado ou indiferenciado, mas exprime a pura determinação de intensidade, a diferença intensiva.” (DELEUZE-GUATTARI, 2012a, p. 31). 24 No sentido empregado por Deleuze e Guattari de desfazer o rosto, que é o tempo todo estratificado por “três grandes estratos”: o organismo, a significância e a subjetivação, é “desfazer todos os estratos, e as superfícies de estratificação que o bloqueiam ou rebaixam” (2012a, p. 25). 25 Corpo esvaziado é o “corpo sem órgãos” que supera “três grandes estratos relacionados à nós, quer dizer, aqueles que nos amarram mais diretamente: o organismo, a significância e a subjetividade. A superfície de organismo, o ângulo de significância e de interpretação, o ponto de subjetivação ou de sujeição. Você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo – senão você será um depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado – senão você será desviante. Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado – senão você será apenas um vagabundo.” (2012a, p. 25). É´ interessante notar a ausência de composição, o desprezo pela estruturação, a improvisação tanto da câmera que observa quanto da performer que necessita refazer seus gestos quando um ponto de seu bordado se desfaz. Não há uma composição e nem mesmo construção de obra. Apenas o registro de uma ação familiar e sem grandes pretensões, ainda que a frase que Letícia borda em seu pé tenha sentidos simbólicos precisos vinculados ao contexto cultural e político da época. Mas o que impropriamente nos perturba é o efeito, a variação do atual visado que não podemos fixar. (ibidem) 44 conexão de desejos, conjugação de fluxos, continuum de intensidades.” (DELEUZEU-GUATTARI, 2012a, p. 27). A atuação da artista se faz livre enquanto realiza “desvios dos gêneros artísticos, dos valores instituídos, dos comportamentos sistematizados, das instituições e burocracias dos saberes e poderes” (COSTA, 2008, p. 37). É por isso, que toda ação livre implica um ato livre, de precisão de raciocínio como as de Deleuze, Guattari e Costa e que aproveito para trazer Bergson, antecessor a todos, que ofereceu, com grande clareza, conjecturas acerca do ato livre enquanto ato gerador ou causa geradora de todas subsequentes causas, efeitos que se tornam causas, o elã da vida26: Assim, dizendo que o talento de um pintor se forma ou se modifica a partir das “influências das próprias obras que produz, por isso é preciso aprofundarmos nossa consciência sobre nós mesmos que “consiste em mudar; mudar em amadurecer; amadurecer em se criar indefinidamente.” (ibidem p. 22). O ato de escolha, portanto, implica em autoconhecimento e aprofundamento sobre aquilo que fazemos, que se revela à medida que agimos. É a causalidade bergsoniana do “só pensamos para agir” (2010, p. 59): 26 Elã Vital: A expressão francesa élan vital (em português, "elã vital") é utilizada por Bérgson para designar um impulso original de criação de onde provém a vida e que, no desenrolar do processo evolutivo, inventa formas de complexidade crescente até chegar, no animal, ao instinto e, no homem, à intuição, que é o próprio instinto tomando consciência de si mesmo e de seu devir criador. (JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, 5ª. Ed.). Foi no molde da ação que se moldou a nossa inteligência. A especulação é um luxo, ao passo que a ação é uma necessidade. Ora, para agir, começamos por nos propor um fim; fazemos um plano, em seguida passamos ao pormenor do mecanismo que o realizará. Esta última operação só é possível se soubermos com que podemos contar. Precisamos ter extraído da natureza semelhanças que nos permite antecipar o futuro. É, portanto, necessário que tenhamos aplicado, consciente ou inconscientemente, a lei da causalidade. (ibidem). o que fazemos depende daquilo que somos; mas é necessário acrescentar que somos, em certa medida, aquilo que fazemos, e que criamos continuamente a nós próprios. Essa criação de cada um por si próprio é, aliás, tanto mais completa quanto mais se pensa sobre aquilo que se faz. (BERGSON, 2010, p. 21) 45 Mas essa causalidade não se funda numa causa central e fixa, cujo núcleo é Deus (Ser), mas se funda na causalidade contínua e heterogênea da duração concreta27, da experiência do vivido, em permanente estado de mudança de estados afetivos, diante do mundo, e que se revela pelo impulso criativo emergido das fluxões. Essas revelações aparecem da combinação de forças, inclusive as físicas, porém as psíquicas, ligadas à percepção e intuição, é que possibilitará sua formulação. A formulação de um projeto poético de obra surge aos poucos, da acumulação de revelações advindas pelas correntes de fluxão. Assim, o livre pensar é o livre agir, que se dá por um ato autodeterminado de se pensar para agir. Mas, para um agir que fuja à lógica do “ato caprichoso” (ibidem p. 63), aquele sem razão que o conduza, que oscila “mecanicamente entre duas ou mais soluções já feitas e acabar finalmente pela escolha de uma delas” (ibidem), vulgarmente conhecido pelo senso comum por “zona de conforto”, expresso por Bergson como a “vontade de imitar o mecanismo da inteligência” (ibidem). Fugir à vontade de imitar o mecanismo da inteligência é algo de extrema dificuldade de se realizar. É primeiramente lutar contra a tendência interna repetitiva da inteligência que se forma a partir da nossa intuição e percepção por blocos de sensações, que constituem os devires. Mas afinal o que é o devir? O antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (1951), realiza uma interessante aproximação do devir deleuze-guattariano com o estatuto do toteísmo de algumas etnias amazônicas, contribuindo com a seguinte definição: 27 Deleuze em seu livro Bergsonismo (tradução de Luiz B.L. Orlandi, São Paulo: Ed. 34, 2012), entende que a memória é coexistente virtual da duração “essencialmente, a duração é memória, consciência, liberdade. Ela é consciência e liberdade, porque é memória em primeiro lugar. Ora, essa identidade da memória com a própria duração é sempre apresentada por Bergson de duas maneiras: ‘conservação e acumulação do passado no presente’.” (2012b, p. 43). Blocos de devires formam um rizoma. (NA) Devir é o vir a ser, é o tornar a ser algo, é o que está sempre em movimento, o processo, o entre, pois não está no passado, apesar de se projetar a partir dele, se pretende no futuro, sem ao menos ser certo sua efetuação, há no devir um ‘furtar-se ao presente’. (DELEUZE, 2015, p. 2). 46 Devo dizer que a leitura de Viveiro de Castro sobre o devir deleuze- guattariano é bastante precisa, mais clara ainda é a síntese que dela faz: A partir do que observa Viveiros de Castro, do devir ser um “movimento que desterritorializa”, me permite dizer que o clinamen é uma qualidade conferida a todo devir. Sendo o devir molecular, ele pode ser entendido para além do olhar simbólico ou metafórico, mas como real expressivo. A proposta de Deleuze e Guattari é a desterritorialização. O desterritorializar artístico, é o fazer gestos-livres, é o “desfazer o rosto”, desfazer cristalizações por desvianças, isto é, “produzir sucessivamente desvios padrão por desvianças para tudo aquilo que escapa às correlações biunívocas, e instaurar relações múltiplas para tudo que é aceito em uma primeira escolha e o que não é tolerado em uma segunda, em uma terceira, etc.” (DELEUZE-GUATTARI, 2012a, p. 50). Estas relações biunívocas as quais se refere Deleuze e Guattari, são os estratos postos em contradição por oposição, são correlações do “sim e não”, em que se exclui ou se aceita colocando-se em relação, elementos e lhes atribuindo valores opostos, rico-pobre, déspota-subalterno, homem branco-homem negro, busca-se estabelecer universalidades elementares por correlações binárias, sempre dois a dois (ibidem p. 49). Buscar novos modos para compor e provocar a emergência de devires- estético-poéticos outros. Provocar relações moleculares da matéria, misturar compostos, manipular materiais e instrumentos, realizar toda a travessia deslizando sobre espaços estriados para situar-se em espaços lisos da Um devir é uma relação molecular e intensiva que opera em um registro outro que o da relacionalidade combinatória das estruturas formais; ela opera nas regiões longe do equilíbrio habitadas pelas multiplicidades reais. (2008, p. 103). Se as semelhanças seriais são imaginárias e as correlações estruturais, simbólicas, os devires são, então, reais. Nem metáfora nem metamorfose; um devir é um movimento que desterritorializa ambos os termos da relação que se estabelece, extraindo-os das relações que os definiam para associá-lo através de uma nova ‘conexão parcial’. (ibidem). 47 criação, foram os pontos considerados no registro procedimental de realização da obra Sem Título, da série Totêmica, [30]. Registros do processo da criação até a instalação da obra Sem título, da série Totêmica, 2018. (exibida na 7ª. Edição do LOTE, no Instituto de Artes – UNESP, São Paulo, em 2018). Fotos: autora. 30 48 Assim para mim, tanto quanto o é para Deleuze e Guattari, fazer gestos-livres não é “uma coisa à toa” (2012a, p. 64), é “desfazer o rosto”, refazer as linhas de significância e subjetividade, gradual, e necessariamente por meio de 4. DOBRA. É preciso dobrar. Dobrar primeiramente a vontade de imitar o mecanismo de nossa inteligência, e redobrar se ainda não for suficiente, porque, se assim não for, renuncia-se as forças plásticas da arte, cujo princípio é a dobra. Estendendo o princípio da dobra a todas as coisas do mundo, orgânico ou inorgânico, interno ou externo, oferece-se às células, à mente e ao próprio corpo, sua continuidade e expansão, isto é, a potencialização das multiplicidades e funcionalidades sinápticas. A dobra, tem a função de alterar a essência das coisas, uma vez que no plano da imanência os objetos seriam modificados em sua recepção e em sua aferição e percepção, perdendo sua forma estática ou inerte e ganhando modulação variável e contínua, permitindo uma condição cósmica relacional dinâmica com todos os outros organismos, mais precisamente em relação aos pontos de vista dos indivíduos em sua disponibilidade política, cultural, espacial e temporal. Pensando nisso, trouxe a obra O-R-I-E-N-T-A-T-I-O-N (2018), [31], para, a partir dela, propor os estudos de Dobragens Virtuais [32, 33 e 34], a sequência de operações de arranjos por: combinação recíproca, repetição segmentar e recombinação divergente. Visando observar três momentos de escolhas compositivas, na investigação formal e material, tendo partido da proposta de “linha ativa” 28 de Paul Klee (1879-1940), cujo preceito é o brincar solto do ponto em movimento, investigando suas inflexões, coordenadas e curvaturas. 28 Em uma série de exercício, Paul klee propõe a inflexão da linha ativa, “o ponto posto em movimento por uma força exterior” (G. Deleuze in “A dobra: Leibniz e o barroco”. Trad. Luiz B.L. Orlandi, Campinas/SP: Papirus, 2012, pag. 31.). [...] todos os recursos da arte, e da mais elevada arte. É´ necessária toda uma linha de escrita, toda uma linha de picturalidade, toda uma linha de musicalidade... Pois é pela escrita que devimos animais, é pela cor que devimos imperceptíveis, é pela música que devimos duros e sem recordação, ao mesmo tempo animal e imperceptível: amoroso. Mas a arte nunca é um fim, é apenas um instrumento para traçar as linhas da vida. (ibidem p. 63). 49 Combinação Recíproca [32]. Desenhando à mão, em dois tempos, tomei dois segmentos de linhas contínuas irregulares em F1 e F2 29. Ao operar a combinação entre os segmentos, sobrepondo-os um sobre o outro, encontro a forma de F3, cujo entrelaçamento propicia o aumento de entropia visual pela soma dos pontos de inflexão dos ângulos, das figuras que se encontram em interação. 29 A lógica cíclica das etapas em que é utilizado o desenho, poderia ser substituído por quaisquer outras linguagens expressivas, seja em música, pintura, literatura, poesia, entre tantas outras, considerando o recorte espaço-temporal possível às particularidades de suas escrituras. (NA). O-R-I-E-N-T-A-T-I-O-N, 2018. (23,0x20,0 cm, hidrográfica sobre papel). 31 Estudo Dobragens Virtuais – Combinação Recíproca, 2018. A interação entre F1 e F2 se faz pela dobra de formas, que tanto pode ser dirigida a um estado transitório ou instável, ou a um estado transitivo ou exploratório. Este estado exploratório é onde as linhas de fuga se projetam, é onde acontece a passagem para outro estado que será constituído com o processo de estabilização. (NA) 32 50 Repetição Segmentar [33]. Posteriormente, quando se chega a uma estabilização da interação de F3, corporifica-se a figura F4, passando para o estado exploratório em que são extraídas de F4, duas diferentes formas-trajetos em: F5 e F6. Recombinação Divergente [34]. Num momento seguinte, ao operar novo arranjo entre F5 e F6, inverto a posição espacial de F6 em 180º espelhado, mantendo a posição original de F5, reconduzindo nova interação em que é precipitado o rizoma na forma-trajeto resultante em F7. Estudo Dobragens Virtuais – Repetição Segmentar, 2018. 33 Estudo Dobragens Virtuais – Recombinação Divergente, 2018. Esta ação também poderá ser encarada como atos preparatórios ou mesmo exercícios perceptivos, em que são investigados, à miúde, segmentos repetidos da forma- trajeto que os originou. (NA) 34 F7 51 O intuito dos exercícios de dobragens virtuais foi destacar os diferentes estados de interação entre séries divergentes, onde vemos um estado transitório ou instável nas combinações recíprocas (F3), um estado transitivo ou exploratório nas repetições segmentares (F5 e F6), e finalmente, um estado rizomático nas recombinações divergentes (F7). Nas recombinações divergentes que se constroem rizomas, os termos da relação se divergem por inversão de posição simétrica. F5 diverge em conteúdo e forma de F6. O que interessa observar nas operações é aquilo que se apresenta nas passagens espaço temporais e nas transições estruturais moventes da linha de fuga, isto é, as linhas abstratas que atuam a favor do divergente, daquilo que se apresenta no entre-formas, no entre-campos compositivos das qualidades expressivas da matéria. Localizar meio e modo de atuação das formas expressivas agenciadas nas ações livres dos artistas é trabalhar não pela lógica do modelo ou decalque (DELEUZE- GUATTARI, 1995a, p. 29), mas operar por cartografias ou “mapas” (ibidem, p. 30). “O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (ibidem). Porta múltiplas aberturas que lhe permite novas recombinações e rearranjos, tanto no que se refere ao elemento diferencial ou diferenciador (clinâmen) no que tange a forma de conteúdo e forma de expressão operados, quanto nos agenciamentos de fluxos advindos a cada dobragem, operando-se transcodificações (cruzamentos transversais de códigos) em que vigorem “a técnica e a linguagem, a ferramenta e o símbolo, a mão livre, a laringe flexível, o ‘gesto e a palavra’” (ibidem, p. 98). Os estudos a seguir foram concebidos como dobragens físicas, conforme a sequência abaixo [35], em que abordo técnicas de dobragem e recorte. Sequência de Dobras Transversais, 2018. (70x70cm). 35 52 A sequência de imagens [35] é um exemplo de recortes por dobras transversais que conferem circularidade às linhas retilíneas do quadrado, que se cruzam entre as verticais (linhas latitudinais) e as horizontais (linhas longitudinais), que estão nas dobras do triângulo (transversais), conforme podem ser melhor visualizadas em [36]: Juntamente com os exercícios de recorte, cuja preocupação se circunscrevia apenas no recortar, foram exploradas algumas características físicas, como maleabilidade e variação de gramaturas, do guardanapo [36] ao canson [37]. Realizei testes e pequenas amostragens para tomar esses procedimentos como mapa-decalque de meu caminho de criação, e nele produzir conexões, interferências e bifurcações que garantissem a permanência do rizoma. Ainda de um modo semelhante como com os retalhos de madeira, da experiência com o trabalho Desvios da Obra, foi começar a trabalhar com o papel que em geral ainda eu via mais como aparato para o desenho ou como suporte para a pintura, do que como elemento compositivo para um trabalho, isso mudou quando tomei contato com dobradura durante a época que dava aula de arte para crianças. Então comecei a fazer uma série de experimentos com papel em variadas gramaturas e cores. (relato da autora: abril/2018) Exercício de Dobras Transversais, 2018. (40x40cm). 36 Exercício de Dobras Duplas Latitudinais –, 2018. (30,0x15,5cm). 37 53 Admitindo o recorte-livre como metáfora operacional para a ação livre, proponho um percurso de criação gradual, constituído por amplas experimentações, formais e materiais, guiadas por pequenos desvios de elementos compositivos, uma libertação que avança aos poucos, mas que pretende o gesto-nômade: Dos exercícios de recortes novas formas-relevos surgiram com o canson, com Dobras Simples em linha latitudinal, em contraste com o fundo cinza [38], depois com fundo neutro monocromático [39]: Teste 6: Exercícios de Montagem, 2018. Exercício de Dobra Simples Latitudinal, 2018. (medidas variadas). 38 Exercício de Sobreposições Monocromáticas, 2018. (29,7x42,0cm). 39 quanto mais liberto o gesto, mais desterritorializado será o plano de composição para que se encontre as marcas territoriais da matéria de expressão por linhas de errância (DELEUZE-GUATTARI, 2012b, p. 123). 54 Posteriormente, com sobreposições monocromática quentes [40], e, finalmente, com sobreposições cromáticas variadas [41]. 111111111111 À direita: exercício de Sobreposições Monocromáticas Quentes, 2019. Abaixo, exercício de Variações Cromáticas, 2018. (29,7x42,0cm). 40 41 55 Estes foram alguns exercícios selecionados dentre outros vários desdobramentos decorrentes desses estudos de dobras e formas-relevo simétricas, com algumas variações cromáticas e composicionais, sobre as quais permitiram identificar traçados que, à medida que eram reproduzidos pela repetição do modo de feitura, reiteravam um modo de decalcar formas que passariam a se entender como mapa rizomórfico30, abrindo canais para encontrar afluentes, conexões ou mesmo bifurcações. Deleuze e Guattari contrapõem ao “modelo árvore-raiz”, o “decalque transcendentes” do rizoma-canal (1995a, p. 42): A arte constituiu-se em territorialidades próprias, diferentemente do conceito de desterritorialização, que diz respeito à superação dos estratos pelos indivíduos. No contexto da arte em si e seus modos de criação, fala-se em componentes territorializantes, “marcas territoriais” como os readymades (DELEUZE-GUATTARI, 2012b, p. 130), onde ocorre a imanência de devires expressivos ou qualidades expressivas das matérias pela máxima: “De qualquer coisa, fazer uma matéria de expressão”. (ibidem). Essas qualidades ou devires são propriedades ativas que determinam as ações do movimento dos artistas. Figura como causa e como efeito tanto no produzir quanto no interagir e manipular coisas e objetos, propiciando um resultado materializado, corpóreo ou incorpóreo, que se efetua a partir da sua própria qualidade declinante e que qualifica todo um cosmos estético da obra, e mais profundamente de seu processo criador. 30 Para Deleuze e Guattari “ser rizomorfo é produzir hastes e filamentos que parecem raízes, ou melhor ainda, que se conectam com elas penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a novos e estranhos usos.” (1995a, p. 34). O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois modelos: um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa, mesmo que constitua suas próprias hierarquias, e inclusive ele suscite um canal despótico. Não se trata de tal ou qual lugar sobre a terra, nem de tal momento na história, ainda menos de tal ou qual categoria no espírito. Trata-se do modelo que não para de se erigir e de se entranhar, e do processo que não para de se alongar, de romper-se e de retomar. [...] o móvel que não paramos de deslocar. (ibidem). 56 Deste modo, concebendo o processo criador sob o aspecto molar e molecular do devir, passo a observar os agenciamentos artísticos como articulações e desarticulações libidinais manifestas em Deslocamentos Aberrantes. 57 58 ITINERÁRIO 2 Deslocamentos Aberrantes 59 Pele a pele, corpo a corpo, dobra a dobra. Na alusão ao processo de criação como um corpo vivo dançante, cujo mapa coreográfico é desenhado no limite e na perspectiva de ser movente, este itinerário dedica-se em reunir os agenciamentos propulsores dessa dança de invenção, ainda enquanto transpira, vibra e pulsa. Mostrarei alguns recortes temporais das articulações desse corpo movente, das maneiras conceptivas aos modos operativos, partindo dos projetos poéticos: C O R P Ф L E N T O (2018) e Escultura Dançante, este em duas variações, Dança Aérea v.1 (2018-19) e Dança Aérea v.2 (2019). Onde destaco os aspectos construtivos, técnicos e instrumentais de efetuação das obras, além dos incidentais, incorporados no processo. Com efeito, os desdobramentos e reminiscências imanentes que se alastraram ou margearam outros trabalhos, exercem o preponderante papel de conectores ético-estéticos, pois concentro o olhar nas condutas e nos gestos, que guiaram as seleções e escolhas transponíveis às linguagens da arte, sob os quais traduzem em miúdos, o espírito incisivo que almejo suscitar, um meio próprio do modular aberrante. 1. ARRANJOS. Entendo o arranjar artístico como o agenciar desejos, e a constituição de territorialidades artísticas sua consequência imediata, uma vez estar em seu cerne operações de torções objetivas, modulações subjetivas e bifurcações gestuais, em que são deslocados objetos, materialidades e instrumentos, desviados de seu destino para serem transportados para o campo estético por feitos poéticos. Um ampliar e esticar medidas, instaurar desmedidas, acordos, acordes e negociações com as forças do caos, às forças do querer emotivo, afetivo, conjugal. O arranjar, aqui expresso, tem muito a ver com o algo que se passa no enlace amoroso fatal, de quereres transbordantes, o prolongamento daquilo que dura para além do ponteiro, do ponto, mas naquilo que cadencia as paragens, o ritmo. Na página anterior: Detalhe de Dança Aérea, 2019. 42 60 Colocar em relação variadas materialidades para denotar na ação de contra- efetuação, o movimento criativo, qualidades expressivas permeadas por cruzamentos e conexão de fluxos moventes (forças, potências e devires), construídos por linhas abstratas circulares, abertas e sensíveis aos acoplamentos de segmentaridades lineares, pois não podemos deixar de esquecer a intermitência de eventos que alimentam retroativamente o objeto em sua dimensão espaço-temporal, de modo sequencial e, às vezes, simultâneo. Neste sentido, utilizando materiais e suportes escolhidos de meu entorno doméstico, reuni variáveis extraordinárias contidas nas ordinárias. Em outras palavras, busquei nos objetos ordinários, suas potencialidades extraordinárias, trazendo à superfície do ordinário a profundeza expressiva do extraordinário, de maneira a possibilitar variações e experimentações, submetidas às técnicas, todo um conjunto de esforços e leis físicas para um expressar poético-visual componível. Assim, a observação dos retalhos de papel acumulados no chão do ateliê [43], desencadeou o desejo perene de trabalhar a técnica da dobragem com recorte do papel, no campo tridimensional. Talvez uma maneira de desviar da conduta que até então se dirigia ao campo bidimensional, atendendo a uma função matricial nos projetos, em termos muito semelhantes como os da gravura. O corpo disforme que se apresentava me levou a pensar nas estruturas externas dos invertebrados, dada uma certa semelhança com alguns tipos de exoesqueletos. De modo que me vi induzida a observar organismos dessa Registro de experimento compositivo com retalhos de papel (2019). 43 61 natureza, principalmente suas estruturas, visando uma interposição viável à estrutura da escultura que pretendia construir. A solução que melhor atendeu essa expectativa, preservando a complexidade e multiplicidade dos planos em relação, foi conectá-los por meio de uma linha flexível em algodão, apenas atravessando os pontos de encontros dos planos seriados. Esse exercício perceptivo e imaginativo, decorrente da imagem dos acúmulos desordenados de planos sobrepostos, me levaria a pensar os desenhos recortados, não apenas como elementos estruturais para uma composição que receberia um suporte e uma técnica, mas de pensá-los como elementos estruturantes, acumulando a qualidade funcional de suporte, responsável pela sustentação da obra, ao mesmo tempo em que qualificaria o próprio objeto estético. Após uma laboriosa pesquisa com materiais diversos, submeti à técnica da dobragem recortada, uma gama variada de suportes plasmáveis, desde a variados tipos e gramaturas de papeis, como cartões, papelões, embalagens, acetados, polímeros (também em variações cromáticas e gramaturais), até testes com tecidos e não-tecidos. Todavia, surpreendentemente, foi com o papel higiênico que cintilaram as rendas [44]. 44 Reprodução do teste com papel higiênico: Alongamento de Dobras. (2020). 62 De fato, o papel higiênico conferiu à C O R P Ф L E N T O [47], performatividade, maleabilidade e leveza que confesso não imaginava encontrar. Uma revelação que se apresentou à primeira “abertura” da dobra recortada, como chamo o momento posterior ao do recorte. A potencialidade de se trabalhar com um material de tão fácil acesso, talvez o material mais ordinário dos ordinários, só me impulsionava a produzir cada vez mais rendas. Diariamente, entre os intervalos com outras atividades, ficava horas dobrando e recortando, meditando sobre as formas possíveis a serem extraídas, descobertas. A única regra de invenção era sempre tentar produzir uma renda distinta da outra, pela máxima: de cada tira recortada, uma renda diferente da outra; por mínima diferença que apareça entre as semelhanças evidentes [45]. Quanto mais produzia séries e séries de rendas, mais aprendia sobre suas propriedades matéricas, no seio da dupla materialidade, corpórea (físicas) e incorpóreas (linguagem), vislumbradas durante a execução como preparação de algo ainda por vir, a construir. Seguindo um pouco a ideia das estruturas dos invertebrados, muito inspirada nos deslocamentos das águas vivas31, realizei alguns esboços [46], para ajudar a 31 Uma curiosidade, as águas-vivas são consideradas como os únicos animais imortais do planeta, dada sua capacidade de regeneração celular. (SILVEIRA, Evanildo da. A misteriosa água-viva de apenas dois centímetros que cientistas acreditam ser imortal. BBC Brasil, São Paulo, 12/02/2018. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-43011009, acessado em 18/07/2020). Fitas de rendas de papel (2019). 45 63 pensar como poderia estruturar uma matéria tão sensível às forças da natureza, como as forças do vento e da gravidade, buscando fugir do ardiloso caminho da representação, mas com o intuito de imitar estruturas ou mecanismos de sustentação, visando orientar uma montagem por amontoamentos de tiras de rendas [47]. C O R P Ф L E N T O, 2018. (cerca de 3,0x0,5x0,5m, papel e tira em malha algodão). Trabalho exposto na 7ª edição do L.O.T.E., no Instituto de Artes da UNESP, São Paulo, em 2018. Foto: autora. 47 Esboços do projeto C O R P Ф L E N T O (2018). 46 64 2. VARIAÇÕES. Uma coisa que leva a outra. Impossível delimitar as possibilidades de variações sobre uma matéria dada sem cair num cálculo diferencial de derivadas infinitas. As linhas de cruzamentos são infinitas, por isso, sua realização se dar no campo virtual da abstração. Não temos como ter uma experiência do infinito, apenas podemos pensar sobre ele. Portanto, o que me soa propositivo é olhar para os detalhes dos campos matéricos e conjugar neles conexões, vigorosas o suficiente para ocorrerem mutações, sem deixar de ser leves, flexíveis e desaceleradas. Conexões abertas e sensíveis aos deslizamentos segmentarizados, que escapem de um centro concêntrico de dominância, mas deem vazão às linhas de fuga.32 Com isto, o movimento natural foi realizar experimentações com pigmentos coloridos nos papeis [48]: 32 Esta é uma visão tecida nas bases da análise sobre micropolítica e segmentaridades que Deleuze e Guattari abordam em Mil Platôs, enxergam como problemática as “grandes representações coletivas”, porque suporia a “similitude de milhões de homens”. Visão esta inspirada em Gabriel Tarde (1843-1904) que, segundo os autores, “se interessava mais pelo mundo do detalhe ou do infinitesimal: as pequenas imitações, oposições e invenções, que constituem toda uma matéria sub-representativa. [...] uma microimitação parece efetivamente ir de um indivíduo a um outro. Ao mesmo tempo, e mais profundamente, ela diz respeito a um fluxo ou a uma onda, e não ao indivíduo. A imitação é a propagação de um fluxo; a oposição é a binarização, a colocação dos fluxos em binaridade; a invenção é uma conjugação ou uma conexão de fluxos diversos. E o que é fluxo, segundo Tarde? É crença ou desejo (os dois aspectos de todo agenciamento); um fluxo é sempre de crença e de desejo. [...] A imitação, a oposição, a invenção infinitesimais são, portanto, como quanta de fluxo, que marcam uma propagação, uma binarização ou uma conjugação de crenças e de desejos.” (DELEUZE-GUATTARI, 2012a, p. 107-108). (itálico dos autores). Experimentações com pigmentos quentes sobre papel (2019). 48 Há inúmeras maneiras de se dobrar e extrair formas libertas de chassis. Fazer dobras transversais e paralelas, recortando-as, tornaram uma constante, primeiramente para incorporação do programa do desenho modular espelhado, mas depois para aprimoramento técnico e procedimental para projetos tridimensionais. (Relato da autora, 2018). 65 Acrescentar a cor, pigmentando o