1 TOCANTE TOCANTINS: O DISCURSO DOS COMPOSITORES E A CRIAÇÃO DA IDENTIDADE REGIONAL Liliane Scarpin da Silva Storniolo UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Câmpus de São Paulo Liliane Scarpin da Silva Storniolo TOCANTE TOCANTINS: O DISCURSO DOS COMPOSITORES E A CRIAÇÃO DA IDENTIDADE REGIONAL Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes – IA/UNESP - Dinter Interinstitucional UNESP - UFT, na Área de Concentração: Arte e Educação, na Linha de Pesquisa: Processos artísticos, experiências educacionais e mediação cultural, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Artes. Orientadora: Profª. Drª. Karylleila dos Santos Andrade. Palmas Novembro/2019 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp Scarpin, Liliane da Silva Storniolo, 1969- Tocante Tocantins : o discurso dos compositores e a criação da identidade regional / Liliane Scarpin da Silva Storniolo. - São Paulo, 2020. 167 f. Orientadora: Profª. Drª. Karylleila dos Santos Andrade Klinger Tese (Doutorado Dinter em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes e Universidade Federal do Tocantins 1. Compositores - Tocantins. 2. Composição (Música). 3. Identidade social. 4. Regionalismo. I. Klinger, Karylleila dos Santos Andrade. II. Universidade Estadual Paulis- ta, Instituto de Artes. III. Universidade Federal do Tocantins. IV. Título. CDD 781.3 S885t (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Câmpus de São Paulo TOCANTE TOCANTINS: O DISCURSO DOS COMPOSITORES E A CRIAÇÃO DA IDENTIDADE REGIONAL Liliane Scarpin da Silva Storniolo Orientadora: Profa. Dra. Karylleila dos Santos Andrade Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Artes – IA/UNESP - Dinter Interinstitucional UNESP - UFT, na Área de Concentração: Arte e Educação, na Linha de Pesquisa: Processos artísticos, experiências educacionais e mediação cultural, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Artes. Aprovada por: _______________________________________________ Profª. Drª. Karylleila dos Santos Andrade (Orientadora) Universidade Federal do Tocantins _______________________________________________ Profª. Drª. Carminda Mendes André Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho” _______________________________________________ Profª. Drª. Roseli Bodnar Universidade Federal do Tocantins ________________________________________ Profª. Drª. Janete Santos Universidade Federal do Tocantins _______________________________________________ Prof. Dr. Jean Carlos Rodrigues Universidade Federal do Tocantins Palmas 20 de novembro 2019 À minha mãe Cleuza Scarpin, fonte inesgotável de amor e inspiração que sempre acreditou em meu sonho, mesmo quando eu não acreditei. “Mãe na sua graça, é eternidade” (CDA) Agradecimentos Sempre é melhor agradecer do que pedir, então, inicio meus agradecimentos aos seres de luz que iluminaram o meu caminho nos momentos mais obscuros pelos quais caminhei nessa jornada. Ao Divino Espírito Santo, fonte perene de inspiração, a Nossa Senhora das Graças, minha protetora e a Deus que me concedeu a vida e sabedoria para chegar até aqui. Ao meu marido Djalma e a meu filho Vítor José que sempre me apoiaram durante esse período difícil e superaram minhas ausências e meu descontrole emocional em muitos momentos. Amo vocês! À minha irmã Sandra e às pessoas da minha família que acreditam na minha capacidade profissional e em minha habilidade de superação de dificuldades. À minha amiga/irmã Kyldes Vicente que me incentivou muito e me orientou na escolha do tema desse trabalho, além de estar presente durante toda essa jornada, ouvindo minhas frustrações, minhas ideias, dando orientações e ainda recebendo áudios de madrugada, gratidão! Amo você! Às minhas colegas de trabalho e amigas Julliene e Silvana que estão literalmente comigo todos os dias participando ativamente desse trabalho mesmo sem saberem, meus sinceros agradecimentos. Às minhas queridas amigas amadas Alessandra Ruita e Mariany Montino que me ajudaram demais durante essa tese por serem minhas parceiras de conversas maravilhosas, conselhos necessários, jantares perfeitos regados a muito amor, muita gratidão. Às minhas colegas e amigas da Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários Mylena, Soely, Leila, Medina, Miraci; nossa artista querida; Mírian e ao Caio, muito obrigada pelo carinho. À Joelma Modesto, minha amiga e fotógrafa profissional que enriqueceu meu trabalho com sua visão sensível no show “Amazonicantoria” e me ajudou sempre com suas palavras de carinho. Ao meu amigo de longa data Rogério Adriano que é a pessoa mais criativa que conheço e realizou toda arte no meu trabalho, além de conhecer todo trabalho de tanto que falei em seu ouvido nesses anos. À minha mais que amiga Cristiane Mezzaroba, minha comadre, que nunca se negou a me ouvir e, mais importante, estar comigo quando precisei, obrigada. Agradeço aos avaliadores da minha banca de qualificação, professoras Carminda e Janete e professor Jean Carlos que direcionaram minha pesquisa e, assim, pude me encontrar com meu trabalho e desenvolvê-lo com mais segurança e à professora Roseli Bodnar por aceitar estar em minha defesa. Um agradecimento especial aos meus pesquisados Genésio Tocantins e Dorivã que, além de responderem meus questionamentos e esclarecerem minhas dúvidas, tornaram-se meus amigos. Agradeço muito a colaboração de meu pesquisado Juraildes da Cruz, que respondeu meus questionamentos rapidamente. Às minhas amigas que viajaram comigo nessa jornada Raquel, Adriana, Bárbara, Rosemeri e Renata que me socorreram nos momentos de desânimo, pois elas sabiam exatamente o que dizer. À minha mais que amiga, a rainha Marinalva que compartilhou minhas angústias e sempre me deu seu abraço confortador. À Unesp, representada pelos Instituto de Artes de São Paulo, que com a parceria da UFT, trouxe o Dinter para Palmas, dando oportunidade a mim e aos demais colegas à essa formação acadêmica. Por fim, agradeço a minha orientadora Karylleila Andrade por todas as orientações e por todas as conversas que tivemos durante esses anos. Sem ela, seria impossível realizar este trabalho. Resumo O tema dessa tese é a criação da identidade regional do estado mais jovem da Federação, o Tocantins, por meio da análise das letras de canções dos compositores Genésio Tocantins, Juraildes da Cruz e Dorivã. Para que esse tema fosse desenvolvido, tivemos como objetivos: analisar as razões pelas quais os compositores selecionados consideram-se regionais e/ou pioneiros do Tocantins; identificar se há a presença de um discurso pautado no regionalismo e se existe uma representação (identificação) do povo tocantinense nessas canções. Acredita-se que a construção dessa identidade esteja pautada no resgate de tradições e costumes advindos da sociedade agropastoril desenvolvida no Brasil, nas regiões litorâneas que migraram para os sertões e hoje é a base econômica do estado do Tocantins. Para que pudéssemos conhecer a história da criação do estado do Tocantins, inicialmente, foi necessário que se fizesse uma pesquisa considerando-se o espaço maior, o Brasil, a partir de sua invasão pelos portugueses no século XVI. Dessa forma, esses estudos foram pautados pelas artes que trabalham de modo imprescindível para a constituição da identidade nacional, ou seja, a literatura e as canções aqui difundidas que traçaram um percurso que marca a historicidade do Brasil e, posteriormente, do Tocantins. Os tipos de pesquisa utilizados foram: bibliográfica de acordo com os preceitos de Eva Maria Lakatos e Maria de Andrade Marconi (2003) e de campo de acordo com Milliam Soares dos Santos (2013) e, com entrevistas estruturadas para os compositores e diretores de emissoras de rádio regionais (enunciadores) e interpretação de textos por enunciatários, que são alunos de um curso de pós-graduação da Unitins. Para tanto, a pesquisa foi qualitativa realizada por meio das teorias da Estética da recepção e Análise dialógica do discurso, ambas desenvolvidas pelo denominado Círculo de Bakhtin que era formado pelos teóricos da linguagem russos Mikhail Bakhtin, Valentim Voloshinov, Pável Medvedev e outros (2006). Dessa forma, defende-se nessa pesquisa a tese de que em meio a turbilhões de acontecimentos históricos e políticos, a identidade regional do Tocantins também é construída pelos enunciatários, compositores pioneiros do estado, por meio da historicidade contida nas letras de suas canções e esses discursos estão representando o enunciatário, o povo tocantinense. Palavras-chave: Tocantins. Regionalismo. Identidade. Compositores pioneiros. Análise dialógica do discurso. Abstract This thesis’ theme is the creation of the regional identity of the youngest state of Brazilian Federation, Tocantins, through an analysis of song lyrics from the songwriters Genésio Tocantins, Juraildes da Cruz e Dorivã. In order to develop this theme, we had as objectives: to analyze the reasons why the selected songwriters consider themselves as regional and/ or, pioneers of Tocantins; identify whether there is the presence of a speech based on regionalism, and if there is a representation (identification) of Tocantins’ people in these songs. As the hypothesis, we believe the construction of this identity is based on the rescue of traditions and customs from agropastoral society developed in Brazil, in the coastal regions that migrated to the countryside and today it is the economic basis of Tocantins state. In order to know the history of the creation of Tocantins state, initially, it was necessary to conduct a research considering the major space, Brazil, since the Portuguese invasion in the XVI century. Thus, these studies were guided by arts which work in a crucial way to constitute the national identity, i.e., the literature and the songs propagated here traced a path that marks Brazil’s historicity and, afterward, Tocantins’. The research types used were: bibliographic, according to the definitions by Eva Maria Lakatos and Maria de Andrade Marconi (2003) and field study according to Milliam Soares dos Santos (2013) and, with structured interviews for the songwriters and for the regional radio station directors (enunciators) and text interpretation by enunciatees who are students of a Post-Graduation course at Unitins. Therefore, the qualitative research was carried out through the theories of Aesthetics Reception and Dialogic Speech Analysis, both developed by the so-called Bakhtin Circle which was formed by the Russian language theorists Mikhail Bakhtin, Valentim Voloshinov, Pável Medvedev, and others (2006). Thus, we advocate in this research the thesis that in a whirlwind of political and historical events, the regional identity of Tocantins is also built by the enunciatees, state pioneers songwriters, through the historicity presented in the lyrics of their songs and these speeches are representing the enunciator, the Tocantins’ people. Keywords: Tocantins. Regionalism. Identity. Pioneers Songwriters. Dialogic Speech Analysis. Lista de imagens Imagem 01: Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos ................................................ 37 Imagem 02: Ditadura militar no Brasil (1964-1985) ................................................................................. 38 Imagem 03: Carlos Gomes........................................................................................................................ 40 Imagem 04: Evolução da História do Brasil e da música brasileira ........................................................... 41 Imagem 05: Maxixe .................................................................................................................................. 42 Imagem 06: Orestes Barbosa ................................................................................................................... 44 Imagem 07: Noel Rosa .............................................................................................................................. 44 Imagem 08: Carlos Lyra ............................................................................................................................ 46 Imagem 09: Maysa ................................................................................................................................... 46 Imagem 10: Chico Buarque de Holanda ................................................................................................... 48 Imagem 11: Eduardo Araújo, Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Wandreléia e Martinha e Rone Von ........50 Imagem 12: Edu Lobo e Marília Medalha. Festival da Canção, 1965 ....................................................... 51 Imagem 13: Reunião tropicalista. No alto, Caetano, Torquato Neto e Rita Lee; no meio, Tom Zé, Glauber Rocha, Rogério Duprat e Gil, ao lado de Gil Gal Costa .............................................................................. 52 Imagem 14: Evolução da música brasileira ............................................................................................... 54 Imagem 15: Roteiro de viagem de Saint-Hilaire pela capitania de Goyas ................................................ 62 Imagem 16- Siqueira Campos discursa na Assembleia Nacional Constituinte ......................................... 65 Imagem 17: Construção de uma canoa às margens do rio Tocantins ....................................................... 67 Imagem 18: Francisco Aires da Silva-1921 ............................................................................................... 68 Imagem 19 Autoridades de Porto Nacional e estudantes defronte à catedral da cidade ........................ 68 Imagem 20: Porto Nacional, 1956 ............................................................................................................ 71 Imagem 21: Movimento para e emancipação do Tocantins. Ao fundo bandeira que simboliza a autonomia política do Tocantins (1956) ..................................................................................................................... 72 Imagem 22: Momento histórico da entrega das emendas de criação do estado do Tocantins ao presidente de senado Ulysses Guimarães .................................................................................................................. 74 Imagem 23: Material de publicidade dos projetos apresentados pelo deputado Siqueira Campos de 1973 a 1998 ....................................................................................................................................................... 76 Imagem 24: Biscoito amor perfeito .......................................................................................................... 79 Imagem 25: Altar da igreja matriz de Nossa Senhora da Natividade ....................................................... 80 Imagem 26: Página inicial da cartilha “Tocantins: a fronteira do 3º milênio” .......................................... 81 Imagem 27: Greve de fome de Siqueira Campos ..................................................................................... 82 Imagem 28: Cartaz da exposição “Siqueira Campos” ............................................................................... 83 Imagem 29: Fóssil do girassol ................................................................................................................... 84 Imagem 30 - José Wilson Siqueira Campos .............................................................................................. 84 Imagem 31 - Brasão de Armas do Estado do Tocantins ............................................................................ 85 Imagem 32 – Bandeira do Estado do Tocantins ........................................................................................ 86 Imagem 33: Artistas regionais e população cantam “Canção de Amor a Palmas” ................................... 88 Imagem 34: Vista panorâmica de Palmas ................................................................................................. 89 Imagem 35: Cruzeiro ............................................................................................................................... 90 Imagem 36: Memorial Luís Carlos Prestes ............................................................................................... 90 Imagem 37: Monumento aos Dezoito do Forte ....................................................................................... 92 Imagem 38: Relógio do Sol ....................................................................................................................... 93 Imagem 39: Cascata ................................................................................................................................. 93 Imagem 40: Monumento à Bíblia ............................................................................................................ 94 Imagem 41: Monumento de Súplica dos Pioneiros ................................................................................. 95 Imagem 42: Frisas..................................................................................................................................... 95 Imagem 43: Compositores Braguinha Barroso, Genésio Tocantins, Mara Rita, Dorivã, Diomar Naves e outros artistas regionais homenageiam Siqueira Campos ....................................................................... 97 Imagem 44: Tocantinense não é goiano- Porto Nacional 1956 .............................................................. 105 Imagem 45: Peixe no leite de coco babaçu ............................................................................................ 106 Imagem 46: Genésio Tocantins ............................................................................................................... 109 Imagem 47: Localização do Bico do Papagaio - TO ................................................................................. 111 Imagem 48: Capa do CD Brasis, as canções e o povo ............................................................................. 112 Imagem 49: Quebra de coco em regime de mutirão, Juverlândia, TO ................................................... 113 Imagem 50: Raimunda Gomes da Silva .................................................................................................. 113 Imagem 51: Siqueira Campos em reunião no Barracão do Canela ......................................................... 119 Imagem 52 : UHE Luís Eduardo Guimarães ............................................................................................ 120 Imagem 53 - Juraildes da Cruz ................................................................................................................ 123 Imagem 54: Paçoca de carne de sol ....................................................................................................... 126 Imagem 55: Parque Estadual do Cantão ................................................................................................ 129 Imagem 56: Rio Araguaia ....................................................................................................................... 131 Imagem 57: Cachoeira da Formiga ......................................................................................................... 134 Imagem 58: Serra do Espírito Santo ....................................................................................................... 135 Imagem 59: Distância entre Araguacema e o Distrito do Bonfim .......................................................... 137 Imagem 60: Encontro dos romeiros na igreja no Distrito de Bonfim ..................................................... 138 Imagem 61: Santo objeto de culto na Romaria do Senhor do Bonfim ................................................... 139 Imagem 62: Pedra do Pedro Paulo- Taquaruçu ...................................................................................... 141 Imagem 63: Preparação dos bonecos para a caçada da Boiuna ............................................................. 142 Imagem 64: Show Amazonicantoria ....................................................................................................... 152 Sumário Apresentação ...................................................................................................................... 13 Capítulo 1: Brasis: apontamentos gerais sobre a formação da Identidade e da Cultura ....... 24 1.1 – A formação da sociedade brasileira ...................................................................................26 1.2 – Nação brasileira: discurso que ordena o caos ....................................................................28 1.3 – Literatura, identidade e cultura brasileiras ........................................................................33 1.4 – A difusão da música em solo brasileiro ..............................................................................39 1.4.1 – Música popular brasileira ................................................................................................41 1.4.2 – Carnaval: a música do povo ............................................................................................43 1.4.3 – Samba .............................................................................................................................44 1.4.4 – A Era do rádio..................................................................................................................46 1.4.4 - A Bossa Nova ...................................................................................................................48 1.4.5 – A Jovem Guarda ..............................................................................................................50 1.4.6 – Tropicalismo: psicodélico, alternativo e sedutor .............................................................52 Capítulo 2: Novas promessas e frutos: a formação cultural do antigo norte goiano / Tocantins ........................................................................................................................................... 57 2.1 O discurso e o espaço regional .............................................................................................58 2.2 – Minas do Goyases ..............................................................................................................60 2.3 – Os viajantes estrangeiros na Província de Goiás: discurso etnocêntrico e outras vozes ....63 2.4 O mito fundador e outros mitos ...........................................................................................65 2.4.1 O mito político ...................................................................................................................67 2.5 Porto Nacional: “berço cultural” ..........................................................................................69 2.6 Estou goiano, mas sou tocantinense ....................................................................................72 2.6.1 Habemus Tocantins ............................................................................................................77 2.7 A tradição nas terras tocantinenses: o mito fundador .........................................................79 2.8 A criação dos símbolos e tradições .......................................................................................82 2.8.1 Estratégias simbólicas ........................................................................................................87 2.9 Palmas: capital do futuro ......................................................................................................90 2.9.1 Praça dos Girassóis: o tempo ausente ...............................................................................93 2.9.2 Monumentos e contrastes ................................................................................................94 2.10 Incentivo à cultura no governo Siqueira Campos .............................................................100 Capítulo 3: Nóis é Jeca, mais é jóia: a composição de artistas regionais na construção da identidade do Tocantins .................................................................................................... 105 3.1Identidade e representação: o discurso fundador ...............................................................107 3.1.1 “Estou goiano, mas sou tocantinense” ............................................................................109 3.2 Descobrindo os sentidos no Tocantins ................................................................................111 3.3 As composições intituladas tocantinenses: processo de construção e de formação de uma identidade local ........................................................................................................................112 3.3.1 Genésio Tocantins ............................................................................................................113 3.3.2 Juraildes da Cruz ..............................................................................................................129 3.3.3 Dorivã ..............................................................................................................................138 Considerações finais. ......................................................................................................... 150 Referências Bibliográficas .................................................................................................. 153 13 Não sou tanajura, mas eu crio asas: a chegada Emprestando o verso da canção “Meninos” do compositor tocantinense Juraildes da Cruz, início minha história, com lembranças de fatos de minha infância quando brincava nas ruas de Ibitinga, interior de São Paulo, e observava as tanajuras que saiam de seus formigueiros quando o verão chegava, no fim do ano. Achava curioso o modo como elas voavam e estranho como serviam de iguarias para os meninos. Naqueles tempos, sentia-me uma formiguinha, aquelas de doce que incomodam na cozinha, porém tinha muita vontade de ser tanajura, voar com os vagalumes e encontrar personagens das histórias que criava enquanto brincava. Para o professor Jorge Coli (1995, p. 11) “A arte instala-se em nosso mundo por meio do aparato cultural que envolve os objetos: o discurso, o local, as atitudes de admiração etc.”. Foi por meio de discursos cantados que a arte entrou em minha vida na infância, pela voz de minha mãe enquanto fazia arte sem saber, crivando caminhos de mesa de linho e outras peças de enxoval em uma máquina de pedal Singer. Além do som emitido pelo pedal, com sua voz doce, cantava canções de sua juventude, sacras e outras poucas nacionais que também eram tocadas no rádio de pilha que ouvia diariamente (Tomo um banho de lua/Fico branca como a neve [...]). Aos domingos havia um programa saudosista na rádio local e pude ouvir Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas, Dalva de Oliveira, Ângela Maria e muitos outros ícones da música popular brasileira (MPB). Adorava ouvir aquelas vozes sem levantar da cama e sempre tentava interpretá-las (decifrá- las), na maioria das vezes, sem sucesso. Mesmo sem entender todo discurso das canções, para mim, aqueles momentos eram mágicos, transportavam-me para lugares imaginários e me davam paz e tranquilidade; sentimentos difíceis de serem alcançados no cotidiano de uma vida difícil, na qual minha mãe tinha que trabalhar incansavelmente para sustentar nossa família, pois meu pai constantemente estava desempregado por ter problemas com o alcoolismo. Além disso, quando estava em casa, discutia frequentemente com minha mãe. Comigo e minha irmã, dava broncas e castigos, na maioria das vezes, sem motivo. Então, parafraseando Caetano Veloso, a arte que em minha vida entrou por canções foi “como a radiação de um corpo negro apontando pra a expansão do Universo”1. Comecei a trabalhar muito cedo para ajudar minha mãe, primeiro, como empregada doméstica (não obtive sucesso); depois com uma prima que trabalhava com enxovais para bebê e, finalmente, em uma loja de bordados, comum em minha cidade, Ibitinga/SP, “Capital Nacional do Bordado”, hoje “Estância Turística”. A proprietária da loja, Vera Lúcia, adorava Música Popular Brasileira (MPB)2 e tinha uma coleção de fitas K7 com sucessos nacionais. Foi assim, que descobri Paulo Diniz, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Chico Buarque e muitos outros cantores e compositores que embalaram muitos momentos bons e outros não tão bons em minha vida. Eram os anos 1980 e a música brasileira estava em um momento fértil com bandas, como: os Titãs, Capital Inicial, Barão Vermelho, RPM e cantores que se apresentavam com frequência no “Cassino do Chacrinha”, aos sábados, à tarde. Ia assistir ao programa na casa de minha avó que ficava próxima a minha, porque ela tinha televisão colorida. Era um momento de muitas descobertas, sonhos e constatações e a música, especialmente a MPB, sempre estava presente. Dessa forma, a música como objeto artístico de maneira empírica, cada vez mais foi fazendo parte da construção da minha vida e minhas preferências tanto musicais quanto literárias foram aprimorando-se. Por meio de leituras e audição de canções diversas, conheci a arte que transcende o tempo e o espaço; como as sinfonias de Vivaldi, os textos de Saramago, as canções de Chico Buarque, a literatura de Machado de Assis. Portanto, entendo que são objetos 1 Livros, Caetano Veloso, disponível em: < https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/81628/>, acesso em 26/ JUL/2018. 2 Aqui se entende música popular brasileira como de origem urbana, que proveio da tradição do povo e/ou de intelectuais e foram divulgadas pelos meios eletrônicos-rádio, televisão, gravações em discos de vinil, compact disc e outros (MEDAGLIA, 2007). 14 [...] que tiveram, continuam tendo e sempre terão valor artístico. Transcendentes, exteriores às culturas e ao tempo, as obras possuiriam como que uma “essência” artística, um valor “em si”, intrínseco e imanente, que lhes garantiria o “ser” obra de arte, ser perene, uma das manifestações “superiores” da natureza humana. Ora, é importante ter em mente que a ideia de arte não é própria a todas [...] Somos nós que enunciamos o “em si” da arte, aquilo que nos objetos é, para nós, arte (COLI, 1995, p. 64). Dessa forma, as obras de arte têm uma importância fundamental para mim, considerando que todo aprendizado, adquirido ao longo de minha vida pessoal e acadêmica, foi permeado pela arte musical. Entendo que a composição musical, na qual as palavras são imbuídas de poesia, torna-se discurso poético. Sobre a obra de arte produzida pela música e pela poesia, a filósofa Hannah Arendt (2007, p. 183) esclarece: Na música e na poesia, que são as menos “materialistas” porque seu “material” consiste em sons e palavras, a reificação e o artesanato necessários são mínimos. [...] A poesia, cujo material é a linguagem, é talvez a mais humana e a menos mundana das artes, aquela cujo produto final permanece mais próximo do pensamento que o inspirou. Nesse sentido, acredito que a análise da recepção de canções pode descortinar a transfiguração ocorrida com as palavras contidas no discurso musical, fazendo com que o analista possa mostrar como se realizam os sentidos construídos pelo receptor. Sou a primeira pessoa da minha família a ter um diploma universitário, estudei Letras Vernáculas em Bauru e, já no primeiro ano de faculdade, comecei a lecionar para alunos do ensino fundamental, na época, da 5ª à 8ª séries em um colégio estadual chamado “Cacilda Caldas Cruz”, na área central da cidade, era contratada como professora eventual. Ao terminar o curso de Letras, prestei concurso para o ensino fundamental e médio do Governo do Estado de São Paulo. Fui aprovada e escolhi trabalhar na escola na qual havia estudado todo ensino fundamental “Escola Estadual Victor Maida”. Trabalhei por dezessete anos na escola, dentre os quais, como professora de Língua Portuguesa e na gestão, como vice- diretora. Em sala de aula, constantemente utilizava letras de canções para trabalhar aspectos gramaticais e, principalmente, interpretação de texto. Nesse tempo também cursei Pedagogia em Jaboticabal. Em 2001 cursei disciplinas como aluna especial no Mestrado em Letras na Unesp de Araraquara. Em 2002, prestei a prova do mestrado em Marília na área de Comunicação Social e fui aprovada. Trabalhando com alunos do ensino médio e, preocupada as dificuldades e desinteresse em leitura e interpretação de textos, resolvi apresentar a eles a MPB, sobre a qual tinham quase total desconhecimento. Aproveitei meu treinamento como ouvinte e coloquei em minhas aulas composições de cantores nacionais para auxiliar os alunos nas dificuldades da escrita de gêneros textuais. Consegui bons resultados com essa estratégia. No mestrado focalizei minha pesquisa nas canções de Caetano Veloso, com análise pelo viés da Estética da Recepção, a partir da concepção dos vazios do texto, teoria desenvolvida pelo linguista russo Mikhail Bakhtin. Foi um trabalho de pesquisa bibliográfica e participativa a qual era aplicada em salas de aula do ensino médio nas quais lecionava. Apresentava as canções aos alunos que passavam pelo processo de estranhamento do texto; em seguida, interpretavam o conteúdo e finalmente preenchiam os vazios baseados em seus conhecimentos prévios e nos conhecimentos que adquiriam durante os estudos. Ao final, havia a presença de um cantor da cidade, conhecido pelos adolescentes, que cantava as canções analisadas. Tudo isso era realizado oralmente e após todas as etapas os alunos produziam seus textos. Depois do mestrado, trabalhei na Facep (Faculdade Centro Paulista), em Ibitinga, como professora de Teoria da Literatura e como coordenadora do curso de Letras. Também trabalhei, por um curto período, na Faculdade Renascentista em Taquaritinga/SP no curso de Pedagogia. Em 2007 prestei um processo seletivo em Palmas/TO para o curso de Letras EaD na Unitins (Universidade Estadual do Tocantins), instituição na qual trabalho desde 2008, contratada até 2016 e concursada a partir desse ano. Conheci a música regional tocantinense em shows de cantores famosos nacionalmente e internacionalmente, como: 15 Alceu Valença e Osvaldo Montenegro, nos quais os cantores e compositores regionais se apresentavam antes da atração principal. As letras dessas canções como “Passarim do Jalapão” (Dorivã), “Coco livre S/A” (Genésio Tocantins) e “Pequi Blues” (Reneu do Amaral Berni) sempre me instigaram, pois apresentam um vocabulário próprio do estado que escolhi viver. Quando soube da oportunidade de prestar o processo seletivo do Dinter em Arte Educação que a Universidade Federal do Tocantins (UFT) e a Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (Unesp) ofereceriam para professores tocantinenses, pensei em trabalhar com algum tema no qual pudesse realizar uma pesquisa sobre os discursos proferidos nas canções de compositores regionais pioneiros do Tocantins. Conforme já mencionado, no mestrado, meus estudos foram balizados pela estética da recepção, cujo foco está no receptor (enunciatário), agora, continuarei minhas pesquisas nessa mesma linha, considerando as canções produzidas por compositores tocantinenses que exaltam seu aspecto regional de maneira particular, com uma qualidade estética diferenciada. Para o poeta, tradutor, ensaísta e crítico literário José Paulo Paes (1926-1998), a presença da literalidade nas canções da música popular brasileira cria um produto estético e tem a capacidade de discerni-la de textos “não-literários” (1987). Complementando a estética da recepção, a pesquisa será alicerçada na análise dialógica do discurso que proporciona o encontro entre o enunciador e o enunciatário, visto que o que é analisado é justamente essa relação. Este trabalho vincula-se ao curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Artes – Doutorado Interinstitucional (Dinter) em Arte e Educação Unesp/UFT e tem como linha de pesquisa “Processos artísticos, experiências educacionais e mediação cultural”. Portanto, considerando o tema escolhido, focalizaremos um dos processos artísticos do Tocantins no que se refere às letras das composições musicais regionais. Nesse sentido procura-se compreender se os compositores tocantinenses buscam afirmar ou não uma identidade musical no estado. Em pesquisas realizadas com materiais disponíveis sobre a identidade cultural e musical do estado do Tocantins, encontraram-se alguns textos acadêmicos sobre a cultura tocantinense, comidas típicas, canções regionais, porém essas pesquisas eram realizadas com abordagens que não atendiam minhas aspirações. Outros trabalhos, foram de essencial importância para essa pesquisa, como é o caso da tese de doutorado do professor Jean Carlos Rodrigues e a tese da professora Valéria Cristina Pereira da Silva entre outras. Mas, embora fossem assuntos muito importantes e essenciais para a compreensão da criação do estado do Tocantins, não protagonizavam os artistas da terra, sobre os quais gostaria de pesquisar. Então, diante dessas constatações decidi investigar as letras de canções de compositores regionais, sobre os quais discorrerei mais adiante explicitando os critérios da escolha de cada um deles. Portanto, essa pesquisa justifica-se pela necessidade de reunir informações sobre a construção da identidade cultural do estado do Tocantins por intermédio das composições regionais. Como primeira hipótese, acredita-se que a identidade musical do estado também está sendo construída pelos discursos dos compositores pioneiros locais. Dessa forma, construir-se-á um percurso histórico no qual serão considerados fatos aportados no discurso fundador do estado e nos discursos produzidos pelos compositores regionais que historicizam essas ocorrências no decorrer da criação do Tocantins. Considera- se como segunda hipótese, que a população do estado não tem o hábito de ouvir composições regionais e que isso ocorre, especialmente, por desconhecer essas canções. Pressupõe-se que, quando as letras dessas canções são apresentadas aos tocantinenses que não as conhecem há uma identificação. Para essa comprovação, serão colhidas impressões de enunciatários por meio de uma pesquisa com alunos de pós-graduação da Unitins que são oriundos de diversas regiões do estado. A criação do estado do Tocantins em 1989 abriu novas possibilidades para os compositores, que antes cantavam as riquezas do norte goiano, e, muitas vezes, não conseguiam grande expressividade no cenário regional por ser o estado de Goiás de grande extensão territorial. Dessa forma, como terceira hipótese, acredita-se que esses artistas vislumbraram na criação de um novo estado uma oportunidade de iniciarem a criação da representatividade de seu povo por meio de canções, reforçando uma identidade 16 resistente aos processos globalizantes que acontecem no país e mantendo as raízes no local onde vivem. Pois, acredita-se que a construção dessa identidade esteja pautada no resgate de tradições e costumes advindos da sociedade agropastoril que ainda é a base econômica do estado (sertanejo, regionalismo). Como objetivos esta pesquisa propõe-se: analisar as razões pelas quais os compositores selecionados consideram-se regionais e/ou pioneiros do Tocantins; identificar se há a presença de um discurso pautado no regionalismo e se existe uma representação (identificação) do povo tocantinense nessas canções. Este estudo comporá um arcabouço teórico e prático sobre a identidade tocantinense e servirá como base para outras pesquisas sobre a história do Tocantins e a cultura regional. Acredita-se que a produção cultural do estado do Tocantins esteja em franco desenvolvimento, especialmente no que tange as composições regionais dos artistas pioneiros. Assim, com a desconstrução e reconstrução por meio da análise dos discursos desses compositores, conseguiremos entender qual é a trajetória que está sendo criada para a identidade do estado mais jovem da Federação. O corpus e a metodologia O corpus dessa pesquisa é construído por textos de letras de canções dos compositores regionais tocantinenses, selecionados de acordo com os objetivos elencados anteriormente, são eles: Genésio Tocantins, Juraildes da Cruz e Dorivã. Esses compositores foram escolhidos tendo como critério características que fazem de cada um deles compositores regionais pioneiros, ou seja, o local de nascimento (todos são do antigo norte goiano); a permanência no estado do Tocantins desde sua fundação e a produção musical (composições regionais). Os elementos auxiliares na confirmação ou refutação das hipóteses elencadas e para que sejam atingidos os objetivos desta pesquisa serão compostos por recortes (excerto de textos) de entrevistas que os compositores regionais concederam a um (ou mais de um) veículo de comunicação, bem como, recortes de entrevistas realizadas pela pesquisadora, além de textos construídos por acadêmicos de pós- graduação que se dispuserem a interpretar as canções regionais escolhidas para análise. Os critérios que utilizaremos permitirão que cheguemos à compreensão de como o discurso funciona produzindo sentidos, mais especificamente, criando uma identidade regional. Para a linguista Eni Orlandi (2005, p. 63): [...] a construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas: decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas. [...] considera-se que a melhor maneira de atender à constituição do corpus é construir montagens discursivas que obedeçam critérios que decorrem de princípios teóricos da análise de discurso, face aos objetivos da análise, e que permitam chegar à sua compreensão. Esses objetivos em consonância com o método e os procedimentos não visam a demonstração, mas a mostrar como o discurso funciona produzindo (efeitos de) sentidos. Ao analisar-se o discurso, considera-se que não há um contato inicial com o objeto completo de estudo. Isso porque ele não se dá como algo pronto, mas é resultante de uma (re)construção do analista. Essa reconstrução será realizada pelo viés da estética da recepção que considera o receptor como parte imprescindível e pela análise dialógica que apresenta a interação entre os interlocutores do discurso (enunciador e enunciatário). Dessa forma, não se trata de uma análise objetiva, contudo deve ser o menos subjetiva possível, apresentando, o mais próximo possível, a intenção na produção dos sentidos do objeto analisado. O analista parte do texto e [...] o remete imediatamente a um discurso que, por sua vez, se explicita em suas regularidades pela sua referência a uma ou outra formação discursiva que, por sua vez, ganha sentido porque deriva de um jogo definido pela formação ideológica dominante naquela conjuntura (ORLANDI, 2005, p. 63). Além da análise do corpus da pesquisa, construir-se-á uma base teórica, explicitando fatos da história do Brasil por meio da literatura e da música que são essenciais para o entendimento da construção da identidade nacional e, consequentemente da identidade regional. Posteriormente, conheceremos um 17 pouco da história do norte goiano que abrigava uma população que estava em busca de enriquecimento por meio de exploração de pedras e metais preciosos. Com a falência desse meio de subsistência a população passou a ser em grande parte agropastoril, criando o espaço regional com costumes e tradições sertanejas que, posteriormente, foram transferidas ou resgatadas para o Tocantins. Essas bases servirão como ponto de partida para a defesa da tese de que a identidade do Tocantins, associada às influências políticas, sociais e culturais, também é construída pelos compositores pioneiros do estado por meio da historicidade contida em seus discursos e que esses discursos representam o povo tocantinense. Nesse sentido, este trabalho consiste em uma de pesquisa qualitativa e será realizada com os métodos: bibliográfico, análise/teoria dialógica do discurso e estética da recepção. Também será realizada uma pesquisa de campo com entrevistas não estruturadas com questões abertas. Para Santos (2013, p.27), esse tipo de pesquisa é interpretativa e não segue um roteiro preelaborado, rígido, e não é conduzida “pelo entrevistador de forma a levar o entrevistado a elaborar uma resposta que venha ao encontro de uma suposição teórica prévia”. Quanto à realização da pesquisa bibliográfica, serão pesquisados conteúdos disponíveis em livros historiográficos sobre a construção da nação e da cultura na formação da sociedade brasileira e tocantinense, portanto o método histórico será utilizado inicialmente. Para as professoras Eva Maria Lakatos e Maria de Andrade Marconi (2003, p. 107): [...] o método histórico consiste em investigar acontecimentos, processos e instituições do passado para verificar a sua influência na sociedade de hoje, pois as instituições alcançaram sua forma atual através de alterações de suas partes componentes, ao longo do tempo, influenciadas pelo contexto cultural particular de cada época. Seu estudo, para urna melhor compreensão do papel que atualmente desempenham na sociedade, deve remontar aos períodos de sua formação e de suas modificações. Entendendo que a literatura e a canção sempre estão irmanadas com acontecimentos históricos do Brasil e com a finalidade de estruturar esta pesquisa, serão elencados fatos históricos pelo viés da literatura e da canção nacional que deram origem à construção da Nação brasileira que será apresentada desde a colonização ao Tropicalismo na década de 1960. Para tanto, entre os teóricos que fundamentarão esta pesquisa estão: Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Alfredo Bosi (1936), Antônio Cândido (1918- 2017), Gilberto Freyre (1900-1987) entre outros. Análise dialógica do discurso e estética da recepção Utilizarei como metodologia a Análise Dialógica de Discurso (ADD), aliada à Estética da Recepção, concepções teóricas que se complementam e foram desenvolvidas pelo denominado “Círculo de Bakhtin”3 que contava com os russos Valentim Voloshinov, Pável Medvedev e outros teóricos da linguagem liderados pelo filósofo e teórico da cultura europeia e das artes, o também russo, Mikhail Bakhtin. Para alguns pesquisadores, como Beth Brait (2019)4, Bakhtin tornou-se o representante do Círculo, sem apagar as peculiaridades autorais de cada um dos componentes. Dessa forma, consideramos seu nome nas citações deste trabalho. Para Bakhtin a palavra, considerando aqui as letras das canções, não pertence a nenhuma pessoa específica, mas a todas as pessoas que dela fazem uso, dessa forma [...] não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc.. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida (BRAIT, 2006, p. 96). 3 O Círculo de Bakhtin situa-se no contexto da episteme soviética, especialmente nas décadas de 20 e 30 do século 20. Inicialmente, não podemos falar do Círculo sem mencionar a importância da amizade entre seus membros (Bakhtin, Vo- lochinov e Medvedev, entre outros não menos importantes) e seus escritos teórico-filosóficos, às vezes construídos a mais de duas mãos e, alguns, por meio de trocas de identidades sob pseudônimos, como forma de resistência à visão totalitária do stalinismo (PAULA, 2013, p. 243). 4 Mini-curso “Texto, discurso e gênero em perspectiva dialógica”, 22 e 22 de agosto, Simpósio Mundial da Língua Por- tuguesa, Porto de Galinhas- PE, 2019. 18 Acompanhando o posicionamento da autora, consideramos que cada compositor coloca em seu discurso sua ideologia5 e a partir de então, em seu processo artístico, propõe ao seu interlocutor que reaja conforme o esperado por ele, porém não pode ter controle sobre a recepção de seus textos, afinal seus enunciatários são atingidos de diversas maneiras e trazem consigo seus conhecimentos de mundo e suas ideologias. Segundo a teoria bakthiniana, “o discurso deve ser entendido como uma abstração: uma posição social considerada fora das relações dialógicas, vista como uma identidade” (FIORIN, 2006, p. 181), sendo assim, o discurso somente encontra sua materialidade ao se tornar um texto (escrito) e, quando lidos ou ouvidos (enunciados), esses discursos encontram o dialogismo. Ao compor suas canções, os letristas “dão a ele uma identidade essencial”. A partir dessa identidade criada inicialmente pelo enunciatário, verificaremos os sentidos estabelecidos nas composições musicais que são produções escritas, mas também transmitidas na linguagem oral, portanto com características próprias dessas duas modalidades da linguagem. Para Bakhthin, “O sentido não pode construir-se senão nas relações dialógicas” (FIORIN, 2006, p. 180). Nessa concepção de análise, não são aplicados conceitos a fim de compreender um discurso, mas deixar que os discursos revelem sua forma de sentido, a partir de ponto de vista dialógico num encontro de vozes discursivas. O discurso nas letras das canções, como uma manifestação artística, não é meramente reflexo ou reprodução de um eventos sociais, mas desempenha um processo ativo com a participação de sujeitos discursivos (enunciador e enunciatário). Para a professora Regina Zilberman (1989, p. 50), o discurso artístico [...] como se comunica com o leitor, passa-lhe normas, que, enquanto tais, são padrões de atuação. Porque a recepção representa um envolvimento intelectual, sensorial e emotivo com uma obra, o leitor tende a se identificar com essas normas, transformadas, assim, em modelos de ação. O enunciado nas letras das canções tem como função social artística persuadir o receptor que o lê ou ouve. Nessa interação entre o enunciado e o enunciatário surge a possibilidade de diversas interpretações por parte do receptor de acordo com o seu conhecimento prévio acerca do conteúdo nele contido. De acordo com a linguista Beth Brait (2006), a análise/teoria dialógica do discurso ou apenas Análise Dialógica do Discurso (ADD), não apresenta uma definição fechada. Em contrapartida, pode-se compreender seu embasamento construtivo que estabelece uma relação indissociável entre a língua, as linguagens, a história e os sujeitos que não está comprometida com teorias e metodologias que dominam em determinada época (modismo). Mas, tem uma visão mais ampla, preocupa-se com a concepção da linguagem em uso, de construção de sentidos que estão ligados intrinsecamente às relações discursivas realizadas por sujeitos historicamente situados. Esses estudos são realizados no campo da Metalinguística e são revestidos das relações dialógicas que são, por excelência, extralinguísticas. Assim, para as relações dialógicas é notória a importância do contexto em que se encontram os fatos históricos e sociais contidos nas letras das canções regionais que serão analisadas. Bakhtin (2002, p. 183), afirma que [...] as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. [...] Toda vida da linguagem, seja qual for seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística etc.), está impregnada de relações dialógicas. 5 A noção de ideologia pode ser compreendida como um corpus de representações e de normas que fixam e prescrevem de antemão o que se deve e como se deve pensar, agir e sentir. Com o objetivo de impor os interesses particulares da classe dominante, esse corpus produz uma universalidade imaginária. A eficácia da ideologia depende, justamente, da sua capacidade de produzir um imaginário coletivo em cujo interior os indivíduos possam localizar-se, identificar-se e, pelo autorreconhecimento assim obtido, legitimar involuntariamente a divisão social. Sua coerência está atrelada a uma lógica da lacuna e do silêncio sobre sua própria gênese, isto é, sobre a divisão social das classes. A anterioridade do corpus, a universalização do particular, a interiorização do imaginário como algo coletivo e comum e a coerência da lógica lacunar fazem com que a ideologia seja uma lógica da dissi- mulação (da existência de classes sociais contraditórias) e uma lógica da ocultação (da gênese da divisão social) (CHAUÍ, s/p, 2016). 19 Entende-se, portanto que as relações dialógicas ocorrem a partir dos pontos de vista tanto interno quanto externo do discurso, envolvendo os sujeitos responsáveis pela heterogeneidade construtiva do enunciado6. Considerando o gênero canção, objeto desta pesquisa, é importante que se conheçam as tradições nas quais esses discursos se inserem para que se possa “participar ativamente das esfera da produção, circulação e recepção, encontrando sua identidade nas relações dialógicas estabelecidas com outros discursos, com outros sujeitos” (BRAIT, 2006, p.14). Nesse sentido, é possível reconhecer a linguagem não apenas em sua dimensão sistemática, abstrata, invariável, mas vista em seu uso no que diz respeito ao individual, variável e criativa. O sujeito, dessa forma, pode ser visto como múltiplo, inserido em sua história, na sociedade em que vive, em sua cultura e nas linguagens as quais está exposto. Dessa forma, ocorre a interação entre o “eu” e o “outro” no discurso, na enunciação concreta. Para Bakhtin (2003, p. 45), um dos conceitos chave para a análise dialógica do discurso é a alteridade, sobre a qual esclarece: Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldura-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento. Por meio dessa análise metodológica inicial, chegamos à Estética da Recepção que pressupõe que o pesquisador tenha liberdade para utilizar os dispositivos de interpretação que lhe forem plausíveis, considerando o sujeito histórico do discurso. Dessa forma, ocorre o processo apresentado por Bakhtin, no qual o pesquisador se coloca no lugar do pesquisado, utilizando seus conhecimentos prévios e adquiridos no decorrer da pesquisa; busca a interpretação de outros enunciatários e volta às letras para constatar o que foi pressuposto antes da análise. Essa ação não exclui a possibilidade de análise por outros pesquisadores que difiram do que será analisado, pois não há como o pesquisador despir-se de seus conhecimentos prévios, de mundo e de sua ideologia7 para analisar as letras das canções, ou seja, seu corpus. Nesse tipo de análise, considera-se que o enunciado não diz tudo o que está contido em palavras escritas, mas vai além, e cabe ao pesquisador buscar os efeitos dos sentidos para o que foi dito no momento histórico em que foi dito, pois a análise não é focalizada apenas no conteúdo, mas no “não dito”, nos subentendidos, nos vazios do texto. Sobre os vazios do texto, o pesquisador alemão Wolfgang Iser (1926-2007), em seu livro “O ato da leitura” explica: “Os lugares vazios omitem as relações entre as perspectivas de apresentação do texto, assim incorporando o leitor ao texto para que ele mesmo coordene as perspectivas [...] fazem com que o leitor aja dentro do texto” (ISER, 1996, p.107). Os vazios promovem, assim, na perspectiva da análise do discurso, a interação entre o analista e o texto. Para o crítico literário Luiz Costa Lima (1937): Se os vazios do texto ficcionais orientam (os atos de representação do autor) contra o pano de fundo da linguagem pragmática, contribuindo para a desautomatização das expectativas habituais do leitor, então este precisa reformular para si o texto formulado, a fim de ser capaz de recebê-lo. Quanto maior a quantidade de vazios, tanto maior será o número de imagens construídas pelo leitor (COSTA LIMA, 1979, p. 105). Entende-se que, assim como o leitor virtual8, ao reconstruir o texto, o analista tem duas possibilidades 6 A língua não é entendida como um sistema abstrato de formas linguísticas à parte da atividade do locutor, mas como um processo de evolução ininterrupto, constituído pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação, que é a sua verdadeira substância (BAKHTIN, 2006, p. 127). 7 Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico etc. [...]. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico (BAKHTIN, 1997, p. 32). 8 [...] o leitor, antes de ter uma realidade histórica (individual ou coletiva), é antes de mais nada, [...] uma figura virtual: o destinatário implícito para o qual o discurso se dirige. Essa imagem do leitor definida pelo texto não somente é instituída pelo gênero ao qual a obra pertence (um romance policial pressupõe um leitor-detetive, um conto filosófico um leitor crítico), mas também pela enunciação particular de cada obra [...] (JOUVE, 2002, p. 37). 20 de leitura: a horizontal – sintagmática- e a vertical-paradigmática9. Em ambas, cabe a ele preencher os vazios que surgem, para tanto, deve buscar respostas em seus conhecimentos linguísticos e sociais. Vale lembrar, que a análise não pode ocorrer de maneira aleatória, mas, aproximar-se o máximo que conseguir da intenção do compositor, dessa forma, deve seguir parâmetros, respeitar os limites impostos pela própria estrutura do texto e sua construção tanto ideológica como linguisticamente. Constata-se que a estética da recepção considera a junção da ideologia, tanto do enunciador como do enunciatário10. É o momento histórico da composição da letra da canção e a linguagem utilizada pelo “eu” sujeito discursivo (enunciador) que vai revelar sua intenção quanto ao “outro” sujeito discursivo, o ouvinte (enunciatário), ou seja, o que ele quer transmitir para seu receptor. Para que o pesquisador obtenha sucesso em sua análise, é necessário que crie um dispositivo de interpretação, também denominado mecanismo de antecipação, que é o que determina o que o sujeito discursivo dirá de uma maneira e não de outra, de acordo com o que quer transmitir ao seu interlocutor. Afinal, todo discurso é produzido para que alguém o leia ou ouça. Para Orlandi (2005, p. 59): Esse dispositivo tem como característica colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz, mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras. De acordo com as palavras da autora, retomamos a concepção de Iser (1996) em relação ao preenchimento dos vazios do texto, aqui denominados como dispositivos de interpretação. Quando a autora fala sobre o “lugar do outro enunciado”, refere-se ao “lugar da interpretação, manifestação do inconsciente e da ideologia na produção dos sentidos e na constituição dos sujeitos” (ORLANDI, 2005, p.59). Na análise do corpus dessa pesquisa, é imprescindível que sejam consideradas as condições de produção do discurso, conforme já mencionamos, na relação do sujeito discursivo (enunciador) com seu momento histórico, social e político. Para reforçar essa ideia, Orlandi (2005, p. 40) explica: Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica. Temos assim, a imagem da posição do sujeito locutor [...] mas também da posição do sujeito interlocutor [...] e também a do objeto do discurso [...] é pois todo um jogo imaginário que preside troca de palavras. Assim, ao se analisar um discurso coloca-se em ação o imaginário do analista em relação ao discurso analisado para a melhor compreensão do que é dito ou como os sentidos são produzidos, então se coloca em prática a memória discursiva do pesquisador, assim como mobiliza a aquisição de outros conhecimentos para a interpretação do dito e, especialmente, do “não dito”, dos vazios do texto. Nos estudos sob o prisma da Análise dialógica do discurso e da Estética da recepção, as letras das canções serão realizadas pela perspectiva dos enunciadores11 que são os compositores regionais que farão da pesquisa de campo como entrevistados, afim de que possam esclarecer a intencionalidade do que querem transmitir aos seus receptores. Esses enunciadores são produtores do discurso regional que 9 Dois são os processos de associação ou organização das coisas: por contiguidade (proximidade) ou por similaridade (semelhança). Esses dois formam dois eixos: um é o eixo da seleção (por similaridade), chamado paradigma ou eixo paradigmático; outro é o eixo de combinação (por contiguidade) chamado sintagma ou eixo sintagmático (Pignatari, 2005, p. 13). 10 De acordo com Bakhtin (2004), o enunciador e o enunciatário são sujeitos do discurso, “parceiros da comunicação discursiva”. Isso significa que o receptor (enunciatário) ao ler/ ouvir o texto passa a compor a cena comunicativa na condição de sujeito, de agente social que participará do discurso em uma parceria comunicativa com o emissor (enunciador). 11 Bakhtin (1997) denomina o locutor (quem fala) do discurso como enunciador e o ouvinte ou receptor (quem recebe a fala) como enunciatário. Ambos são considerados “sujeitos do discurso”, “parceiros da comunica- ção discursiva”. Dessa forma, o receptor não é um ouvinte passivo, mas participante ativo da comunicação verbal. Nessa perspectiva não existe um falante ativo e um receptor passivo: ambos são sujeitos ativamente responsivos, constituem a condição necessária para que o sentido seja construído. 21 é recebido pelo enunciatário (alunos de pós-graduação) e ocorre a partir do momento de sua execução dentro de um contexto narrativo. Nessa perspectiva, temos a interpretação, ou seja, o enunciatário recebe o discurso e aplica a ele seus conhecimentos prévios e, por vezes, os conhecimentos que adquire a partir da leitura das canções. Assim, será aplicada a estratégia de análise que considera os aspectos linguísticos do texto, tendo como base o papel do enunciador, enquanto sujeito do discurso, mas, especialmente, do enunciatário que ocupa o lugar de outrem, aquele que recebe o texto, preenche seus vazios e dá sentido às palavras pronunciadas pelo enunciador. Nesse caso, a interpretação inicial será realizada pela pesquisadora para que posteriormente possam ser respondidas as questões elencadas por essa tese. Muitas vezes, nas composições de letras de músicas, o autor (sujeito discursivo) não se preocupa com a escrita nos moldes da gramática normativa ou da linguagem culta e isso também tem um propósito; persuadir seu ouvinte (enunciatário). Por meio dessa estratégia, chega mais perto do outro com um linguajar popular. Esse fato ocorre muito nas composições regionais que serão analisadas. Dessa forma, temos a hipótese de que os compositores regionais consideram a construção da identidade do Tocantins pautada no resgate de tradições e costumes advindos da sociedade agropastoril que ainda é base econômica (sertanejo, regionalismo) do estado. Segundo Orlandi (1996ª), para que um texto seja compreendido deve ser inteligível, interpretável e compreensível. Para tanto, estabelece um hierarquia entre essas condições. Para a autora, todo texto pode ser inteligível, mesmo que não tenha coerência, mas tenha coesão, pois a interpretação vai além do que está escrito. Na compressão, o analista deve conseguir sensibilizar-se com a exterioridade do texto (interdiscurso), ou seja, com os sentidos do “não dito”. A autora considera ainda dois importantes momentos da análise: 1. [...] a interpretação faz parte do objeto da análise, isto é, o sujeito que fala interpreta e o analista deve procurar descrever esse gesto de interpretação do sujeito que constitui o sentido submetido à análise. 2. [...] não há descrição sem interpretação, então o próprio analista está envolvido na interpretação. Por isso é necessário introduzir-se um dispositivo teórico que possa intervir na relação do analista com os objetos simbólicos que analisa, produzindo um deslocamento em sua relação de sujeito com a interpretação [...] (ORLANDI, 2005, p. 61). Após esses dois momentos explicitados pela autora, compreendemos que o analista não trabalha em uma posição neutra, ele constrói um lugar para si, lugar esse que apresenta a alteridade do pesquisador, a outra leitura que ele pode produzir. A partir de então, pode analisar a interpretação de outrem e retornar ao texto analisado para constatar se suas expectativas foram contempladas ou refutadas. Assim, no primeiro capítulo, que se inicia com o nome de um dos álbuns musicais de Genésio Tocantins “Brasis: apontamentos gerais sobre a formação da identidade e da cultura brasileira” buscar- se-á o resgate da história da construção da nação brasileira dando destaque ao caráter agrícola do Brasil que até a atualidade tem uma grande produção de produtos que é comercializada dentro e fora do país. Também se apresenta a dicotomia existente entre campo e cidade que ocorre desde a ocupação do litoral pelos portugueses, a exploração do interior por pesquisadores estrangeiros e a fuga para o campo de famílias que resolveram se dedicar às atividades agropastoris. Na formação da sociedade brasileira serão abordados assuntos referentes aos povos que habitavam o país antes dos invasores estrangeiros e os que vieram habitá-lo por vontade própria ou por serem impelidos em algum momento histórico, como os negros, por exemplo. Discutir-se-á as políticas públicas que foram adquirindo formas com o passar do tempo por meio de conquistas do povo brasileiro, sempre com apoio dos intelectuais e artistas, especialmente pela literatura e pela música. No segundo capítulo “Novas promessas e frutos: a formação cultural do antigo norte goiano/ Tocantins”, cujo título apresenta um verso da canção “Lira do povo” de Genésio Tocantins, a pesquisa focalizará a criação do estado do Tocantins, desde a separação do estado de Goiás em Capitania do Norte e Capitania do Sul, passando pela emancipação do estado por meio da Constituição Federal de 1988 até 22 a atualidade. Essa análise será realizada por meio de pesquisa bibliográfica tendo como autores: Alfredo Bosi (1936-); Gilberto Freyre (1900-1987); Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982); Luis Palacín Gómez (1927- 1998) e outros. Apresentar-se-á uma explanação sobre o discurso que é proferido no espaço regional o qual reforça a dicotomia entre cidade e sertão, para tanto, recorre-se aos mitos e ao mito fundador que influenciaram de sobremaneira a criação do estado do Tocantins, e, consequentemente, a “transformação” do povo do antigo norte goiano em tocantinense por meio da criação de símbolos e tradições. Também será realizada uma análise prévia de discursos que acompanharam a trajetória da criação do estado do Tocantins, para tanto utilizaremos o conceito de dialogismo bakhtiniano que considera que o sujeito discursivo ao falar ou escrever, imprime em seu texto, querendo ou não, marcas de seu núcleo familiar, sua sociedade, suas ideologias, experiências, além de pressuposições sobre o que o interlocutor gostaria ou não de ouvir ou ler. De acordo com Bakhtin (2004, p. 123): A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato fisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. Assim, é necessário que o pesquisador conheça o momento histórico e considere as condições sócio-políticas da produção do discurso. Nos textos analisados pudemos observar que apresentam características positivas que enaltecem o estado do Tocantins, como as belezas naturais, por exemplo, mas, especialmente, funcionam produzindo sentidos para o estabelecimento do mito fundador que é analisado na perspectiva da linguista Eni Orlandi (1942). No último capítulo “Nóis é jeca, mais é jóia: a composição de artistas regionais na construção da identidade do Tocantins”; que carrega um dos versos mais conhecidos da música tocantinense “Nóis é Jeca, mais é jóia” de Juraildes da Cruz, será realizada a análise dos discursos selecionados dos compositores regionais tocantinenses Genésio Tocantins, Juraildes da Cruz e Dorivã. Para a escolha desses artistas, utilizou-se como critério características que fazem de cada um deles compositores regionais pioneiros, ou seja, o local de nascimento (todos são do antigo norte goiano); a permanência no estado do Tocantins, desde sua fundação, e a produção musical que consideram composições regionais. Esses compositores serão entrevistados para que a pesquisadora possa compreender a razão de se considerarem compositores pioneiros do Tocantins ou não; o regionalismo contido nos discursos de suas composições e o sentimento de pertencimento (identificação) do povo tocantinense nessas canções. Quanto às composições, serão escolhidas 3 (três) de cada compositor que apresentem no discurso elementos regionais como a linguagem, o clima, a natureza, a população, a cultura e a tradição tocantinense. Como parte da pesquisa de campo foi realizado um trabalho na disciplina de “Leitura e produção de texto” em uma turma da Universidade Estadual do Tocantins (Unitins) de pós-graduação, com alunos advindos de diversas cidades do estado como Porto Nacional, Pium, Miracema, Goiatins, Arraias, Palmas e outras, o que nos propiciou uma amostragem com pessoas de diversas regiões por meio da pesquisa interpretativa. A atividade consistiu em apresentar os compositores regionais do Tocantins pesquisados e distribuir as letras das canções selecionadas, de forma impressa, para que sejam interpretadas pelos acadêmicos. Então, teremos a visão do receptor/enunciatário das canções, conforme os preceitos da Análise dialógica do discurso e da estética da recepção bakhtiniana. Também serão entrevistados os responsáveis pela Rádio UFT12 e Rádio 96 FM13, que são públicas, 12 A UFT FM é uma emissora de rádio educativa administrada pela Universidade Federal do Tocantins (UFT) e que tem como missão oferecer programação de rádio fundamentada em Educação, Cultura, Cidadania e Diversidade. Sediada em Palmas/TO, a Rádio opera na frequência 96,9 FM e também pela internet para todo o país. Informações disponíveis em: , acesso em: 03/ AGO./2018. 13 A 96FM é uma rádio pública e plural que tem uma programação que contempla as preferências dos mais 23 para os quais serão realizadas perguntas sobre a divulgação da música regional tocantinense, a fim de que se entenda a repercussão delas no Tocantins, no Brasil e no exterior, visto que as emissoras também têm transmissão via internet. Os coordenadores das rádios serão questionados sobre o projeto de lei, aprovado em 11 de julho de 201314, que dispõe sobre a obrigatoriedade da programação com conteúdos regionais e independentes nas emissoras de rádio e televisão públicas. Essas entrevistas terão como finalidade situar, os leitores deste trabalho, no cenário no qual as músicas regionais tocantinenses circulam e de que maneira. É importante que se ressalte que o projeto já foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Unitins. Esclareço que o título da tese foi escolhido por último, pois representa o que senti depois de conhecer parte essencial do Tocantins, sua história e, principalmente; as pessoas que aqui habitam, tanto os nativos, quanto as que escolheram aqui morar. “Tocante Tocantins”, não representa somente o corpus deste trabalho, ou seja, o sentido transmitido pelas canções regionais. “Tocante”, além fazer parte do título de uma canção de Genésio Tocantins, também significa, segundo o dicionário Houaiss em uma de suas entradas “2. que enternece, que comove, que emociona” (2009, p.1850) e também é, ao meu ver, dar-se a oportunidade de sentir algo especial pelo lugar onde se vive. É o que o Tocantins fez comigo, tocou em meu coração e me arrebatou para si. Gostaria que outras pessoas se contagiassem com esse sentimento por meio deste trabalho. Dessa forma, contando com todos os procedimentos explicitados até o momento e convidando Juraildes da Cruz para auxiliar-me na afirmação que “isso não é história de nariz comprido15”, convido vocês, como enunciatários, para fazerem parte de minha enunciação que tem início na próxima página. variados tipos de ouvintes. São programas informativos, esportivos, educativos, culturais e de entretenimento que visam fomentar a consciência crítica do cidadão. Na 96 FM todos os tipos de ritmos têm espaço, [,,,] Em destaque, a música popular brasileira e a tocantinense [...], o radiojornalismo com informação útil para o dia-a- -dia da comunidade, valorizando e promovendo a diversidade cultural do Tocantins. Informações disponíveis em: < https://96fm.to.gov.br/institucional/>, acesso em; 03/AGO/2018. 14 O texto do projeto de lei ainda será tramitado no Senado e na Câmara Federal. Informações disponíveis em:< https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/07/1309627-comissao-aprova-lei-que-obriga-emissoras-a-ter- -programacao-regional.shtml>, acesso em 03/AGO./2018. 15 Disponível em: . Acesso em 23 set. 2019. 24 Capítulo I 25 CAPÍTULO 1 BRASIS: APONTAMENTOS GERAIS SOBRE A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE E DA CULTURA BRASILEIRA As selvas te deram nas noites ritmos bárbaros Os negros trouxeram de longe reservas de pranto Os brancos falaram de amores em suas canções E dessa mistura de vozes nasceu o teu canto David Nasser A canção “Canta Brasil”16, com letra de David Nasser (1917-1980) e música de Alcyr Pires Vermelho (1906-1994), é um dos sambas conhecidos como samba-exaltação criados em uma fase da música brasileira ufanista (1941). A canção apresenta o país como uma “mistura de vozes” (do povo) e o convida a cantar “Canta Brasil”, com intuito de persuadir o povo que, embora sofresse com a situação instaurada na sociedade brasileira na Era Vargas, tinha um país no qual o céu é mais belo que em outros lugares “onde o azul é mais azul”, entre outras belezas. Nessa época, o importante era a superação de problemas sociais com otimismo, situação na qual o Brasil foi colocado durante sua trajetória desde o início como colônia e assim por diante, pois os governos sempre procuraram a adesão popular para fortalecerem-se. Há muitas maneiras de se contar a história do Brasil, optamos por uma visão social e histórica, apresentada por meio da literatura brasileira e da música que se constituiu em território nacional, as quais nos conduzirão à formação de uma nacionalidade, cujas dificuldades de afirmação esbarram em muitos problemas, especialmente os de ordem social. Uma das principais catástrofes aconteceu no início da invasão do solo brasileiro, foi a destruição da cultura indígena, no século XVI, durante o período da colonização pelos portugueses. Nosso país “perdeu” costumes, tradições e crenças; inicialmente, com a invasão dos portugueses e o genocídio de indígenas; posteriormente, com a chegada de estrangeiros e o tráfico negreiro, houve uma mistura de raças17 e consequentemente de culturas, o que transformou o Brasil em um país multicultural, multiétnico e multilinguístico. Somente no início da República é que os intelectuais brasileiros da época “descobrem, não sem perplexidade, a existência da diferença” (ABREU, 2010, p. 245). Nosso fio condutor para descrever esses acontecimentos sócio-históricos serão os textos literários nacionais e letras de canções que fazem parte de nosso patrimônio artístico e sempre acompanharam a história do nosso país. A formação da sociedade brasileira De acordo com o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), o Brasil e os brasileiros tiveram sua formação a partir “da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos” (RIBEIRO, 1995, p.19). 16 Disponível em: , acesso em 18. Jan. 2019. 17 De acordo com a pesquisadora Célia Pedroza (1994, p. 165) “[...] o conceito de raça, em seu significado biológico, permite a identificação das diferenças culturais a ideia de uma natureza rica, mas selvagem, que precisa ser trabalhada e desse modo justifica os rigores da ação colonizadora. E, por outro lado, porque, em seu significa- do genético, permite a interpretação genealógica das mesmas diferenças, sustentando assim o discurso histórico fundamental à legitimação do sentido de nacionalidade”. 26 Dessa maneira, a formação do povo brasileiro foi constituída a partir da miscigenação entre os povos que aqui habitavam e os que vieram habitar após a colonização dos portugueses. Então, é importante que resgatemos alguns dados quantitativos a fim de que possamos ter uma visão mais ampliada sobre as origens da população brasileira. Para isso, contamos com os dados do fim do período colonial de acordo com o historiador Boris Fausto (1930): Negros e mulatos representavam cerca de 75% da população de Minas Gerais, 68% de Pernambuco, 79% da Bahia e 64% do Rio de Janeiro. Apenas São Paulo tinha uma população majoritariamente branca (56%). Cativos trabalhavam nos campos, nos engenhos, nas minas, na casa-grande. Realizavam nas cidades tarefas penosas, no transporte de cargas, de pessoas, de dejetos malcheirosos ou na indústria da construção. Foram também artesãos, quitandeiros, vendedores de rua, meninos de recado etc. (FAUSTO, 1996, p.40). Nessa fase, os indígenas, ainda subjugados pelos colonizadores, recebiam tratamento menos discriminatório do que os negros. Pois, criara-se o mito de que a miscigenação entre brancos (portugueses) e índios era a criação do brasileiro, excluía-se o negro do plano ideal para construir-se o representante legítimo das terras colonizadas (NAXARA, 2004), afinal eram escravos. Nessas circunstâncias, incentivava- se o casamento entre indígenas e brancos. Assim, o indígena teve alguns poucos privilégios na sociedade porque era considerado como raça superior à negra. Em “Casa Grande e Senzala”, Gilberto Freyre (1900-1987) apresenta uma defesa sobre a miscigenação entre brancos, índios e negros, mostrando que a sifilização18, trazida pelos portugueses e não pelos negros como era difundido no país, provocou muitos males na formação da população brasileira, nas palavras do autor: “Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram as negras das senzalas. Por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem” (FREIRE, 2003, p. 208). De acordo com a historiadora Emília Viotti da Costa (1928-2017), Freyre cria, mesmo sem deixar explícito em “Casa Grande e Senzala”, o polêmico mito da democracia racial que, de acordo com o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), mascarou um padrão opressivo das relações sociais no Brasil, expressando um país tradicional que não admitia o preconceito e a discriminação racial. Essa visão ia de encontro ao pensamento dos cientistas sociais dos anos 50 (cinquenta), liderados por Florestan Fernandes, que representavam um Brasil contemporâneo e reconheciam as desigualdades raciais existentes. Segundo Costa (1999, p. 366), na década de 70 (setenta), cientistas sociais chegaram à conclusão de que [...] a maioria da população negra permaneceu numa posição subalterna sem nenhuma chance de ascender na escala social. As possibilidades de mobilidade social foram severamente limitadas aos negros e sempre que eles competiram com os brancos foram discriminados. A caracterização ortodoxa predominante de que o Brasil é uma democracia racial passou a ser um mero mito para os revisionistas, que começaram a falar na “intolerável contradição entre o mito da democracia racial e a real discriminação contra negros e mulatos”. Essa realidade, com algumas atualizações, encontra-se enraizada em nossas origens e permanece fazendo parte da sociedade brasileira. Entendendo que era inevitável a miscigenação racial no Brasil, os colonizadores trataram de organizar, logo no início da colonização, uma sociedade na nova colônia. Nesse 18 Sífilis- S. f. 2n. Med. Doença infecciosa e contagiosa, transmitida sobretudo por contato sexual, trans- missível à descendência, passível de acordo com a fase evolutiva, de causar lesões em diferentes órgãos (os- sos, articulações, sistema nervoso central, sistema cardiovascular etc.) (FERREIRA, 1999, p. 1852). A doença começou aparecer quando houve as primeiras relações sexuais entre os europeus e as indígenas nas praias da costa brasileira. Essa doença infectocontagiosa pode provocar danos irreversíveis como a má formação fetal e nos primeiros meses de vida da criança, deformidades e cegueira, entre outras complicações. Em muitas passagens de “Casa Grande e Senzala”, Gilberto Freyre fala sobre o processo da sifilização aponta a sífilis como “a doença por excelência das casas-grandes e senzalas”. Era a doença “a que o filho do senhor de engenho contraía quase brincando entre negras e mulatas ao desvirginar-se precocemente aos doze ou aos treze anos” (FREYRE, 2003, p. 191). 27 sentido, formaram famílias de acordo com regras patriarcais advindas de seu país natal. Encontraram-se nas terras brasileiras culturas19 diversas, em sua maioria, de pessoas que não possuíam estudos, mas expressavam suas crenças e tradições por meio de cultos e devoções trazidos dos países de origem para manterem a relação identitária com esses locais. Freyre (2003, p. 48) explica o sincretismo religioso que ocorreu no Brasil colonial e que permanece até os dias atuais: Da maior parte das expressões da cultura não letrada se poderá dizer que são um complexo de formas significantes cujo sentido comum é o culto, a devoção. São instituições regradas de tal modo que a comunidade possa atualizar em si o sentimento da própria existência e da própria identidade. Tudo o que é necessário necessariamente retorna. A repetição das fórmulas, o reiterar dos ritmos, o risco abstrato do desenho indígena, a expressividade fixa e retida na máscara africana, os rituais em toda parte ciosamente idênticos a si mesmos, a marcação regular de cada partícipe no coro e na dança — tudo reflete uma vontade de conjurar, com fórmulas poucas e pregnantes, a temida e adorada transcendência (dos mortos, dos deuses, do Outro) que segura nas mãos o destino da pessoa e do grupo. A cultura letrada20 que invadira o país não aceitava esse tipo de manifestação cultural como parte da formação do povo brasileiro e buscava manter suas tradições convivendo em um mundo paralelo importado totalmente da Europa. Também vieram da Europa, os primeiros textos lidos em terras brasileiras e que inspiraram a escrita dos nacionais. Segundo o sociólogo e literato brasileiro António Cândido (1918-2017): A sociedade colonial brasileira não foi, portanto (como teria preferido que fosse certa imaginação romântica nacionalista), um prolongamento das culturas locais, mais ou menos destruídas. Foi transposição das leis, dos costumes, do equipamento espiritual das metrópoles. A partir dessa diferença de ritmos de vida e de modalidades culturais formou- se a sociedade brasileira, que viveu desde cedo a difícil situação de contacto entre formas primitivas e formas avançadas, vida rude e vida requintada. Assim, a literatura não “nasceu” aqui: veio pronta de fora para transformar-se à medida que se formava uma sociedade nova (CÂNDIDO, 1999, p.9). Assim, a literatura trazida para o Brasil era requintada, com influências do Renascimento italiano, do Humanismo e das tradições greco-latinas. Os textos literários apresentavam a realidade de um mundo selvagem, desconhecido em relação ao do colonizador e foi utilizada “como instrumento colonizador, destinado a impor e manter a ordem política e social estabelecida pela Metrópole, através inclusive das classes dominantes locais” (CÂNDIDO, 1999, p.10). Portanto, a literatura no Brasil, assim como em outros países colonizados, foi imposta inicialmente e ao longo do tempo foi definindo suas particularidades, ajustando-se à realidade social e cultural do país. O Padre José de Anchieta é considerado o patriarca da literatura brasileira e descrito por Cândido (p.14) como: Homem de boa formação clássica, profundamente identificado ao país e aos índios, devem- se a ele não apenas relatórios penetrantes sobre a atuação da sua Ordem, iluminando a vida social da Colônia, mas obras especificamente literárias, em quatro línguas, algumas vezes misturadas: português, espanhol, latim e tupi. Seu poema épico “De Gestis Mendi de Saa” (A Saga de Mem de Sá), poema épico sobre as realizações 19 [Do lat. Cultura.]S.f.1. Ato ou efeito de cultivar [...] 5. O conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade (FERREIRA, 1999, p. 591). Consideramos aqui, cultura como o conjunto das práticas, técnicas, símbolos e dos valores que devem ser transmitidos às novas gerações para garantir a reprodução de um estado de coexis- tência social (BOSI, 1992). 20 Para se entender cultura letrada, retoma-se o termo “cidade letrada” utilizado pelo escritor Ángel Rama, citado por Naxara (2004, p. 35), “como centro hegemônico de produção do saber, de dominação e poder”, portanto fazem parte da cultura letrada, pessoas que tiveram oportunidade de estudar, ou seja, os intelectuais da época que além do saber possuíam bens materiais. 28 do Governo Geral Mem de Sá, escrito em latim e impresso em Lisboa em 1563, é sua principal obra latina e foi considerada a primeira obra literária brasileira21, traduzida em 1958 para o português pelo Padre Armando Cardoso. Para se aproximar dos povos e das aldeias indígenas, os jesuítas aprenderam o Tupi, língua dos indígenas que ocupavam quase todo litoral brasileiro no século XVI. Assim, puderam submeter o idioma às normas gramaticais da língua portuguesa e criarem a “’língua geral’, o principal veículo de comunicação entre colonizadores e indígenas; depois, entre os descendentes dos colonizadores, muitos deles mestiços” (CÂNDIDO, p.19). Conhecedor da língua geral22, também chamada de nheengatu, José de Anchieta a utilizou ostensivamente em seus textos. Esse fato preocupou os governantes da época que tinham como instrumento de dominação a língua portuguesa e rechaçavam a língua geral. O uso do nheengatu foi proibido pelo Marquês de Pombal (1699-1782), em 1759, ainda no período colonial, quando expulsou a Companhia de Jesus do Brasil e decretou que a língua oficial seria o português. Assim, houve o predomínio linguístico das classes dominantes e a literatura seguiu esse caminho até o século XVIII. A nação brasileira: o discurso que ordena o caos O filósofo da linguagem, Mikhail Bakhtin (1895-1975), defende que “A identidade nacional é um discurso e, por isso, ela, como qualquer outro discurso, é constituída dialogicamente (1988, p.86). Corroborando com o autor, o linguista José Luiz Fiorin (2009) elucida que a identidade nacional começa a ser construída no século XVIII e se desenvolve plenamente no século XIX. Até então não se pode falar em nações em nenhuma parte do mundo. De acordo com o autor, o primeiro passo para a construção de uma identidade nacional era estabelecer um patrimônio comum às diversas regiões do país, fazer uma reconstituição de sua história. Mas, muitas regiões não tinham história, então, era preciso, antes de tudo, inventá-la. Assim, apresenta uma “receita” com um conjunto de elementos simbólicos e materiais para a construção de uma nação: [...] uma história, que estabelece uma continuidade com os ancestrais mais antigos; uma série de heróis, modelos das virtudes nacionais; uma língua; monumentos culturais; um folclore; lugares importantes e uma paisagem típica; representações oficiais, como hino, bandeira, escudo; identificações pitorescas, como costumes, especialidades culinárias, animais e árvores-símbolo (FIORIN, 2009, p. 116). Para que todos esses elementos fossem construídos, estudiosos iniciaram pesquisas e dedicaram-se a essa missão. A língua escrita, assim como a literatura são “fundamentais para a construção e definição da identidade, bem como da unidade nacional” (FIORIN, 2009, p. 116). Nesse sentido, o domínio pertence àqueles que têm conhecimento sobre a língua escrita e sobre linguagens artísticas, no caso, detinham o poder basicamente, os brancos de classe social abastada, os fidalgos que tiveram oportunidade de se dedicarem aos estudos no exterior, ou seja, os intelectuais da época. No século XVIII a Europa busca um conceito para a civilização ocidental baseando-se no conhecimento dos espaços geográficos, da natureza e das populações que habitavam os países considerados civilizados. Em linhas gerais, julgavam como marca de civilidade a capacidade do ser humano em interpretar uma obra de arte, sabendo discernir entre o sublime e o belo, a sensibilidade e o juízo. Estudiosos da época, considerando os fatos políticos, econômicos, religiosos, técnicos, morais e sociais de cada localidade, constataram que todas essas características podem ser natas no ser humano ou podem ser adquiridas por meio de estudos. Esse conceito tido como universal, municia os europeus para a civilização de outros 21 Entendemos o termo literário como aquilo que foi produzido com o caráter eminentemente ficcional, embo- ra não careçam de qualidades estéticas os primeiros textos coloniais, como a Carta de Caminha, as correspondên- cias dos primeiros jesuítas, os estudos etnográficos, etc. Foi publicado em Coimbra, em 1563, todavia sem autoria (Possebon, 2007). 22 “O nheengatu, ou língua geral amazônica, é uma língua da família tupi-guarani, suas raízes estão ligadas ao processo de colonização portuguesa da Amazônia. [...]. Embora filiada às línguas indígenas, não se configura como uma língua tribal. Trata-se de uma língua de conquista e ocupação [...] uma língua surgida em consequência da colonização, e foi como tal que se tornou a língua materna de uma população supraétnica” (BORGES, 1996, p.44). 29 povos que não fazem parte de seu mundo (NAXARA, 2004). Surge nesse contexto o movimento literário denominado Romantismo. A postura romântica, de acordo com Naxara (2004, p.75), é [...] voltada para os sentimentos e emoções e a veneração da natureza; o historicismo voltando-se para as raízes do povo como forma de alcançar e definir a identidade. A valorização da diferença, do que distingue pelo sentimento, pelo vínculo às raízes e às origens, à floresta de onde os homens vieram para então construir a comunidade e a nação. Nesse sentido, o Romantismo é considerado como um produto das histórias de um grupo específico de indivíduos, especialmente de suas culturas. Nas artes, o artista é valorizado de acordo com a expressão de suas emoções e subjetividade na criação e, especialmente, o que a obra de arte provoca em seu receptor. Para Antônio Cândido, no início do século XIX o Brasil estava numa situação contraditória, não apenas em sentido político, mas também cultural. “Colônia de um país atrasado como Portugal, o estatuto de dependência já atrapalhava os movimentos de suas classes superiores, que desejavam cada vez mais ser também dirigentes” (CÂNDIDO, 2002, p.7). Os intelectuais brasileiros, como Nina Rodrigues (1862-1906), Oliveira Viana (1883-1951) e Sílvio Romero (1851-1914), que tinham estudado na Europa, estavam insatisfeitos com a situação do país, que não tinha educação superior, tipografia e nem periódicos. O ensino era destinado somente à mínima parte da população e limitava-se a oferta do que conhecemos hoje como ensino médio. As poucas bibliotecas que existiam eram precárias e encerradas em conventos; o teatro era deficiente com a ausência de artistas e materialmente, com a falta de figurinos, som, iluminação entre outras coisas. Muitos dos artistas ocupavam cargos públicos conquistados pela competência que demonstravam na administração de saberes diversos. Eles estavam integrados ao sistema de dominação, mas [...] eram pela própria existência elemento de contradição, mostrando o paradoxo de uma colônia cerceada nas suas aspirações, mas que começava a fornecer peças importantes para o funcionamento da cultura e da administração metropolitana, por meio de seus cientistas, magistrados, eclesiásticos, escritores, funcionários (CÂNDIDO, 2002, p. 8). Assim, não apenas os brasileiros começavam a pensar nas letras e ciências, mas a produção local começava a se destacar nas artes plásticas e na música. Além das contradições econômicas e sociais, havia uma sensível contradição cultural. Nesse momento, encontravam-se no país dualidades entre a civilização e o bárbaro, o inferno e o paraíso, referindo-se às cidades como civilização e ao sertão que deveria ser desbravado, civilizado. Dessa forma, a literatura e a história unem-se com o intuito de criarem uma Nação, em busca de características próprias que identificassem o Brasil, exaltando aspectos que o apresentam como civilizado, mostrando um lugar repleto de belezas naturais, com potenciais para desenvolvimento econômico e social, mas que ainda deveria ser conhecido, dominado pelos homens e desmistificado em relação ao temor pelo desconhecido quanto às forças naturais e a formação do povo mestiço. Então, era necessário que se construísse uma literatura independente da metrópole que mostrasse temas, problemas e sentimentos da nação. Nesse cenário, iniciou-se o processo de construção da Nação brasileira “um momento de (re) invenção do povo; de preocupação com o conhecimento que proporcionasse a intervenção sobre a ‘realidade’ e de apropriação da cultura popular, como forma de identificação e descoberta do povo brasileiro” (NAXARA, 2004, p.104). Procuravam-se características peculiares que determinassem a construção da nação, para tanto, a história foi considerada como ponto de partida para a elaboração da “alma brasileira” unindo- se a cultura popular com a erudita, resgatando mitos da formação do país e contos populares que se encontravam apenas no domínio oral. Nesse intento, os românticos brasileiros por meio da literatura e da transcrição da língua original, escreveram os poemas que inauguraram o nacionalismo brasileiro. Sílvio Romero (1851-1914) foi um dos autores que ressaltou a necessidade da escrita da cultura popular oral respeitando a variação linguística 30 existente no país resultante de uma língua que misturava o português com elementos indígenas e negros. Embora o autor fosse contra os preceitos do Romantismo, essa característica fez parte dos escritos desse movimento literário. Romero afirmava “que o Romantismo era uma sobrevivência prejudicial à boa compreensão do país e ao que a produção literária deveria ser” (Cândido, 2002, p. 83), ou seja, buscava- se uma literatura nacional independente de Portugal e sem interferências externas, consideradas por ele exageradas, como o sentimentalismo, por exemplo. Em contrapartida ao pensamento de Sílvio Romero, Euclides da Cunha acreditava que a literatura dessa época era importante por causa da sensibilidade romântica e, era por meio dos escritos literários, que se sintetizava a ciência e a arte (NAXARA, 2004). Com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1833, a responsabilidade de criação da Nação brasileira foi transferida para esse órgão que era autorizado pelo imperador D. Pedro II e tinha inspirações iluministas. Os membros dessa instituição deveriam elaborar a continuidade da história do Brasil resgatando suas origens “pensar o Brasil, seu espaço físico, seu povo, sua gênese, sua identidade – elaborar uma continuidade de sua história [...] num processo de integração [...] entre o ‘velho’ e o ‘novo’, para surgimento da nacionalidade” (NAXARA, 2004, p. 119). Esse trabalho deveria ser realizado somente por homens brancos, excluindo a maioria da população do país e foi denominado: “Como se deve escrever a História do Brasil”. Para a elaboração desse projeto os responsáveis por seu desenvolvimento deveriam pesquisar a cultura indígena com os jesuítas e resgatar com os anciãos, considerados sábios, mitos e lendas sobre a as terras brasileiras, enquanto aos negros e aos mestiços foi relegada a culpa pelo Brasil não ser civilizado. A partir de 1850 o IHGB passou a contar com a participação efetiva do Imperador D. Pedro II, que sempre fora envolvido com a vida intelectual de seu Império. A ideia de criar a historiografia nacional era o ponto central das reuniões dos intelectuais que buscavam reconstruir o passado com continuidades temporais e construir uma nação na qual não queriam a interferência de estrangeiros. O Imperador destinava recursos financeiros do Império para o instituto, assim incentivava ou auxiliava “poetas, músicos, pintores e cientistas e tomava parte de um grande projeto que implicava, além do fortalecimento da monarquia e do Estado, a própria unificação nacional, que também seria obrigatoriamente cultural” (SCHWARCZ, 2002, p. 127). O monarca comandava os intelectuais, selecionando historiadores para cuidar da memória, literatos para criarem símbolos e pintores para enaltecer a nacionalidade, entre eles Pedro Américo de Figueiredo e Melo. O músico e professor Marco António Carvalho Santos (2010, p.27), explica o conceito de nacionalismo segundo o pensamento da época: [...] pensamento autoritário e antiliberalismo compunham um conjunto de ideias que orientavam a defesa de um estado forte capaz de conduzir as massas populares, que, ora consideradas apáticas, ora consideradas perigosas, deviam ser mantidas fora da política, vista como algo alheio à sociedade e perturbador da ordem. A consolidação do movimento romântico como parte de uma cultura legítima brasileira, foi uma proposta de D. Pedro II para alavancar seu projeto nacionalista. Sua atuação era tão efetiva no mundo das artes que chegou a pronunciar a célebre frase “A ciência sou eu” referindo-se a habilidade de transformar todo Império por meio da difusão da cultura. Portanto, o movimento romântico no Brasil foi mais que um movimento estético, foi uma ação político-cultural e estreitamente ligada ao nacionalismo. De acordo com Ortiz (1994, p. 37), “O mov