BRUNA PIMENTA SOARES O ENSINO DE CIÊNCIAS DA NATUREZA NO CÁRCERE: O USO DE SEQUÊNCIAS DE ENSINO INVESTIGATIVAS PARA A PROMOÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA Presidente Prudente 2023 1 BRUNA PIMENTA SOARES O ENSINO DE CIÊNCIAS DA NATUREZA NO CÁRCERE: O USO DE SEQUÊNCIAS DE ENSINO INVESTIGATIVAS PARA A PROMOÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP/Campus de Presidente Prudente, como exigência para obtenção do título de Mestra em Educação. Orientador: Prof. Dr. Paulo Cesar de Almeida Raboni Co-orientadora: Profa. Dra. Gesilane de Oliveira Maciel José Presidente Prudente 2023 2 3 4 Dedico, A minha avó, Salete. Que com suas velas e rezas me encorajou e ensinou muito sobre a força que podemos encontrar naquilo que acreditamos. 5 AGRADECIMENTOS Aos meus alunos, aos quais ensino muitas coisas, ao mesmo passo que me ensinam, todos os dias, a ser mais humana e, consequentemente, melhor professora. Sem vocês esse trabalho não seria possível e muito menos teria algum sentido. Sou eternamente grata! A minha família A Dona Rosângela, minha amada mãe, meu maior exemplo de honestidade e humildade. Obrigada por todas as noites em claro, dedicação e, também, por todas as mudinhas de plantas que cultivou esperando minha chegada para me presentear. Ao Sr. Zequinha, meu amado pai, o homem que mais amo na vida. Obrigada por respeitar todas as minhas escolhas e me amar incondicionalmente. Aos dois juntos, que mesmo me querendo sempre por perto, nunca me deixaram desistir dos meus sonhos e me fizeram seguir adiante. Obrigada por serem meus maiores fãs. A Bia, minha irmã mais velha, que mesmo tão longe se faz presente em nossas vidas. A Rafaela, minha irmã artista, que me mostra que a vida pode ser mais calma. Ao Rafael, meu irmão caçula, por ter me dado a Hellen, minha sobrinha tão amada. A Daiane, minha cunhada, menina que o mundo precisa conhecer. A Juliana, minha prima, que aos meus 17 anos me fez acreditar que a universidade também era para mim e que a revolução do pobre, se faz por meio da educação. Lucas, meu companheiro e primeiro leitor. Obrigada por me achar a melhor professora do mundo. Sou eternamente grata a toda a família Pimenta, que mesmo em meio às diferenças somos nossa própria fortaleza. Saibam que Dona Salete ainda olha por nós. As professoras e ao professor Ao Professor Doutor Paulo, meu orientador, que acreditou nessa pesquisa desde quando era apenas um singelo projeto. Meu muito obrigado pela oportunidade e por toda orientação. 6 À Professora Doutora Gesilane, minha coorientadora, por todas as trocas e contribuições imensuráveis a esta pesquisa. Meu maior acerto foi convidá-la para coorientação. À Professora Doutora Leny, pela leitura atenta deste trabalho e pelas contribuições tão significativas e humanas que me auxiliaram na finalização desse ciclo. À Professora Doutora Eli, também pela leitura atenta deste trabalho e contribuições tão significativas que tornaram esse trabalho mais forte. Às professoras e aos professores que, diariamente, dividem o ônus e o bônus em lecionar dentro do sistema penitenciário. Em especial a Patrícia, Tarcísio e ao Gustavo pelas palavras de motivação em épocas difíceis. A toda gestão da Escola João Gomes Martins e ao Setor da Educação e Trabalho da unidade penitenciária pesquisada, por me ajudarem no que estava ao alcance para a concretização desta pesquisa. Às amigas e aos amigos que o tempo não foi capaz de afastar: Alice, Bárbara, Dida, Iris, Marcelo, Natasha, Pedro, Rafinha, Serginho, Thais e Vanessa. Obrigada por chorarem meu choro e sorrirem meu sorriso. Em especial aos meninos, Mateus e Renan, por dividirem coisas que vão além do aluguel. Obrigada pelas em muitas tardes, risadas e colo. E a Cássia, amiga amada que o mestrado me trouxe. Vocês me deram forças para não desistir desse sonho. As minhas psicólogas A Mônica, minha primeira psicóloga, por todos os chacoalhões e as risadas. A Jéssica, que atualmente me acompanha, por me mostrar que a respiração é um santo remédio. Agradeço também a Rainha do Mar, por levar para o fundo do mar, lá onde o galo não canta, todas minhas incertezas e angústias. Meu muito obrigada! 7 Epígrafe Aonde a pele preta possa incomodar Um litro de Pinho Sol pra um preto rodar Pegar tuberculose na cadeia faz chorar Aqui a lei dá exemplo: mais um preto pra matar Boca de Lobo, canção de Criolo. 8 RESUMO O objetivo desta pesquisa de mestrado foi analisar o uso desenvolvimento de Sequências de Ensino Investigativas (SEI) em aulas de Ciências da Natureza para alunos privados de liberdade tendo em vista a promoção da Alfabetização Científica (AC). A pesquisa foi realizada por meio do planejamento e uso de uma SEI a alunos reclusos em uma unidade penitenciária do interior do estado de São Paulo. À luz desta proposta, estabelecemos algumas considerações importantes ao abordarmos a educação no espaço carcerário, isso porque estamos tratando da intersecção de duas políticas: a educacional e a prisional. Isso fez com que tomássemos como premissa a promoção da alfabetização científica que, por sua vez, coloca enquanto necessidade a investigação de metodologias de ensino e aprendizagem dentro da área das Ciências da Natureza desenvolvidas no espaço prisional. Neste trabalho, realizamos a produção dos dados através da aplicação de questionários, análise documental das atividades realizadas ao longo da SEI e das observações registradas em diário de bordo que, seguidamente, foram aprofundadas pelo crivo metodológico da Análise de Conteúdo. Deste modo, pode-se aferir que a SEI contribuiu para a promoção da Alfabetização Científica dos alunos participantes da pesquisa. Com isso, reforçamos que tais estratégias contribuem com o processo formativo-científico destes alunos, bem como estimula o sistema penitenciário a cumprir seu papel, o de tornar a pessoa reclusa apta a conviver em sociedade novamente. Palavras-chave: Educação em prisões; Ensino de ciências; Alfabetização científica; Sequência de ensino investigativa. 9 ABSTRACT Investigative Teaching Sequences (ITS) in Natural Science classes for incarcerated students with a view to promoting Scientific Literacy (SL). The research was carried out through the planning and use of an ITS for incarcerated students in a penitentiary unit in the interior of the state of São Paulo. In light of this proposal, we established some important considerations when addressing education in the prison space, as we are dealing with the intersection of two policies: educational and prison. This led us to take as a premise the promotion of scientific literacy which, in turn, places the investigation of teaching and learning methodologies within the area of Natural Sciences developed in prison space as a necessity. In this work, data were produced through the application of questionnaires, documentary analysis of activities carried out throughout the ITS and observations recorded in a logbook that were subsequently deepened by the methodological sieve of Content Analysis. Thus, it can be inferred that ITS contributed to the promotion of Scientific Literacy among participating students. With this, we reinforce that such strategies contribute to the formative-scientific process of these students, as well as stimulate the penitentiary system to fulfill its role, that of making incarcerated people able to live in society again. Keywords: Education in prisons; Science teaching; Scientific literacy; Investigative teaching sequence 10 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Espaço escolar dentro da unidade prisional ............................................................. 24 Figura 2 - Visão da professora em sala de aula ........................................................................ 27 Figura 3 - Visão dos alunos em sala de aula ............................................................................ 27 Figura 4 - Armário utilizado para guardar o material didático em sala de aula ....................... 28 Figura 5 - SP......................... 51 Figura 6 - Um detento, em sua cela, reza diante da torre central de vigilância ........................ 73 Figura 7 - Prisão de Petite Roquete .......................................................................................... 74 Figura 8 - Mapa de distribuição das unidades prisionais em São Paulo................................... 92 Figura 9 - Mapa de distribuição das unidades prisionais da coordenadoria da região do oeste do estado ................................................................................................................................... 95 Figura 10 - Resolução de exercício efetuado pelo aluno ........................................................ 149 Figura 11 - Atividade sobre o chuveiro elétrico ..................................................................... 153 11 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - A Sequência de Ensino Investigativa (SEI) ........................................................... 61 Quadro 2 - Documentos que abordam a premissa da educação para todos ............................ 103 Quadro 3 - Evolução da situação mundial e do ensino de ciências ........................................ 117 12 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Quantitativo de dissertações e teses selecionadas na biblioteca digital brasileira de teses e dissertações (BDTD) ..................................................................................................... 38 Tabela 2 - Quantitativo de dissertações e teses selecionadas no catálogo de teses e dissertações da CAPES ............................................................................................................. 39 Tabela 3 - prisional - .................................................................................................. 40 Tabela 4 - Taxa da população prisional na América do Sul ..................................................... 79 Tabela 5 - Crescimento da população prisional em 10 anos na América da Sul ...................... 80 13 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Projeção de crescimento da população carcerária para o ano de 2050 .................. 80 Gráfico 2 - Déficit total e Vagas por ano Valores absolutos ................................................. 91 Gráfico 3 - Faixa etária dos alunos participantes da pesquisa ................................................ 132 Gráfico 4 - Raça/cor ou etnia dos alunos participantes da pesquisa ....................................... 133 Gráfico 5 - Número de filhas/os dos alunos participantes da pesquisa .................................. 134 Gráfico 6 - Alunos que foram/são beneficiários do programa bolsa família.......................... 136 Gráfico 7 - Tempo de reclusão dos alunos participantes da pesquisa .................................... 137 Gráfico 8 - Tempo que os alunos ficaram afastados da escola ............................................... 139 Gráfico 9 - Grau de curiosidade dos alunos em relação ao estudo de Ciências da Natureza . 158 Gráfico 10 - Nível de necessidade e importância dos alunos referente à aprendizagem de ciências da natureza ................................................................................................................ 160 Gráfico 11 - Ligação entre a metodologia de ensino utilizada e a aprendizagem dos alunos 163 Gráfico 12 - Significados estabelecidos pelos alunos pela relação entre os conteúdos de ciências da natureza e o dia a dia na unidade penitenciária .................................................... 164 Gráfico 13 - Compreensão dos alunos no que tange aos conteúdos estudados ...................... 165 Gráfico 14 - Onde existe ciências na percepção dos alunos ................................................... 166 14 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AC Alfabetização Científica ASP Agentes de Segurança Penitenciária BDTD Biblioteca Digital Nacional de Teses e Dissertações BSCS Biological Science Curriculum Study BNCC Base Nacional Comum Curricular CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CBA Chemical Bond Aproach CF Constituição Federal CHEM Chemical Study Group CV Comando Vermelho CNE Conselho Nacional de Educação CNEA Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo CNER Campanha Nacional de Educação Rural CNPCP Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária CNT Ciências da Natureza e suas Tecnologias CONFINTEA Conferência Internacional de Educação para Todos DE Diretoria de Ensino EJA Educação de Jovens e Adultos ENEM Exame Nacional do Ensino Médio FUNAP FUNBEC Fundação Brasileira para o Ensino de Ciências FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação FUNDEF Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério FCT Faculdade de Ciências e Tecnologia GIR Grupo de Intervenção Rápida IBECC Instituto Brasileiro de Ciências e Cultura IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação Básica 15 INFOPEN Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LEP Lei de Execução Penal MCPCT Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura MEC Ministério da Educação MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização ONU Organização das Nações Unidas PCC Primeiro Comando da Capital PCNs Parâmetros Curriculares Nacionais PEP Programa Educação nas Prisões PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos PNE Plano Nacional de Educação PNEDH Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos PROMEN Programa de Expansão e Melhoria do Ensino PRONASCI Programa Nacional de Segurança com Cidadania PROUNI Programa Universidade Para Todos PSSC Physical Science Study Commitee TCLE Termo de Consentimento e Livre Esclarecido SAP Secretaria da Administração Penitenciária SENAPPEN Secretaria Nacional de Políticas Penais SEI Sequência de Ensino Investigativa UNESCO Organizações das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNESP UP Unidade Penitenciária SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 18 1.1 Vertente pessoal e profissional ....................................................................................... 19 1.1.1 Primeiro dia em uma unidade penitenciária ............................................................. 24 1.2 Vertente social e científica .............................................................................................. 31 1.3 Objetivo geral ................................................................................................................. 42 1.3.1 Objetivos específicos ................................................................................................... 43 2 CAMINHO METODOLÓGICO ....................................................................................... 46 2.1 Caracterização da pesquisa qualitativa ........................................................................... 47 2.2 Pesquisa do tipo intervenção pedagógica ....................................................................... 48 2.3 Lócus da pesquisa ........................................................................................................... 50 2.4 Instrumentos utilizados para a coleta de dados ............................................................... 55 2.4.1 O método da intervenção: a elaboração da SEI ........................................................ 55 2.4.2 O método da avaliação da intervenção ..................................................................... 65 2.5 Metodologia de análise ................................................................................................... 67 3 CONTEXTUALIZAÇÃO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO ....................................... 69 3.1 O nascimento das prisões ................................................................................................ 69 3.2 O sistema prisional brasileiro ......................................................................................... 79 3.3 Cenários das prisões no estado de São Paulo ................................................................. 86 3.3.1 Região oeste do estado de São Paulo ....................................................................... 94 4 EDUCAÇÃO NAS PRISÕES BRASILEIRAS ................................................................. 97 4. 1 O direito da pessoa jovem e adulta à educação.............................................................. 98 4.2 O direito da pessoa privada de liberdade à educação no estado de São Paulo ............. 106 5 O ENSINO DE CIÊNCIAS E O COMPROMISSO COM A ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA ........................................................................................................................ 113 5.1 Breve histórico do caminhar do ensino de ciências: um olhar para a alfabetização científica .............................................................................................................................. 115 5.2 Alfabetização científica (AC): como promovê-la? ....................................................... 120 5.3 Sequência de Ensino Investigativa (SEI): um caminho para a promoção da alfabetização científica .............................................................................................................................. 122 6 RESULTADOS E ANÁLISES ......................................................................................... 129 6.1 Momento 01: Conhecendo os alunos ............................................................................ 131 6.1.1 Questionário 1 - Análise das características socioculturais e econômicas dos alunos ......................................................................................................................................... 131 6.2 Momento 02: O uso da Sequência de Ensino Investigativa (SEI) ................................ 143 6.2.1 O uso da Sequência de Ensino Investigativa (SEI) ................................................ 144 6.2.2 Questionário 02 Olhares prévios e construídos pelos alunos frente ao ensino de ciências da natureza ......................................................................................................... 158 6.3 Momento 03: A avaliação da SEI ................................................................................. 167 6.2.1 Questionário 3 Avaliação da Sequência de Ensino Investigativa (SEI).............. 167 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 173 REFERÊNCIAIS .................................................................................................................. 178 ANEXOS ............................................................................................................................... 190 APÊNDICES ......................................................................................................................... 196 INTRODUÇÃO Trouxe meu olfato, meu paladar, minha visão, minha audição e meu tato, mas também trouxe meu coração, porque acredito que a realidade não é completa se não é sentida [...]. (QUEIROZ, 2015, p. 18). Previamente, justifico o fato de o texto estar escrito em primeira pessoa do singular, recorrendo-me, assim, a minha formação inicial em Licenciatura em Química. Desde o meu primeiro contato com práticas laboratoriais e relatórios, fui condicionada a utilizar - - - - porém, esse meu distanciamento com o evento químico ou no discorrer dos relatórios sempre me inquietou. Segundo Coracini (2007), as pesquisas científicas geralmente apresentam escritas no impessoal ou em primeira pessoa do plural, como se o objeto falasse através da/o cientista, a/o qual não poderia ser detentora/detentor de voz, e que se assim fosse, sua pesquisa perderia a cientificidade. Como seria de se esperar em vista das convenções científicas, o sujeito-enunciador assume, o tempo todo, a postura de um observador distante do objeto observado, como que provando, com sua ausência explícita, a ausência do sujeito-pesquisador na etapa da investigação científica (CORACINI, 2007, p. 104). Respaldada em Coracini (2007), saliento que a ligação da/o cientista com o texto, apenas evidencia a subjetividade de quem o escreve e do lugar que escreve, não lhe tirando, assim, o caráter e rigor científico. É por esta razão que esta dissertação de mestrado foi desenvolvida em primeira pessoa do singular. Posto isso, início o primeiro capítulo deste trabalho, lugar onde busco elucidar alguns fatores pessoais e profissionais que culminaram no desejo em escrever essa dissertação, assim como sua relevância social e científica, elencada com o contexto em que a pesquisa ocorreu e o lugar que ocupo dentro deste espaço com a finalidade de que a leitora ou leitor possa ter uma melhor compreensão do caminho que foi percorrido, por mim aqui exposto. O interesse em compreender este universo tão mistificado pela sociedade teve início em um estágio remunerado que realizei, ainda na graduação, durante o ano de 2018, porém alguns fatores, anteriores e posteriores a essa experiência, contribuíram para que ela se construísse da forma que se constitui. Assim, meu entusiasmo em escrever esta dissertação se dá a partir de quatro vertentes, sendo elas: as questões pessoais, as profissionais, as sociais e 19 as científicas, cada qual tem suas particularidades e inquietações, no entanto, foram a partir das suas relações que culminaram em meu anseio de pesquisa. 1.1 Vertente pessoal e profissional Inicialmente, o interesse advindo da vertente pessoal se deu porque sou em parte produto das políticas sociais, que desde a minha infância se fazem presentes. Minha família é composta pelos exemplos de respeito que são meus pais, minhas duas irmãs e meu irmão caçula e tenho bem fresco em minha memória os momentos de amor, diálogo e compreensão. Porém, tenho também os de dificuldade, principalmente as que cerceiam nossa vida econômica, uma vez que meu pai era o único que detinha, na época e por um longo período, renda fixa. Tenho como marco das dificuldades o fogão à lenha de minha mãe, ela o acendia todas as noites para economizar gás e ao mesmo tempo energia, dado que tomávamos banho em um balde com a água aquecida nele. Outra lembrança bem viva em minha memória é a de minha mãe, durante toda a minha infância e das de minhas irmãs e irmão, saindo da zona rural, onde residimos, com sua bicicleta para ir buscar leite, do Programa Viva Leite, que complementava nossa alimentação. Assim, programas como Renda Cidadã, Bolsa Família e Jovem Aprendiz, entre outros, fizeram parte da manutenção do meu lar e sempre serão lembrados por minha família. Concomitantemente, a minha educação básica foi marcada pelo ensino público e, em todos os meus anos de escolaridade, motivada pelo dinheiro das bolsas que auxiliavam a renda da minha família e também pela esperança de alguma mobilidade social, busquei participar de Projetos Sociais e Culturais ofertados pelos municípios rurais de Paraibuna-SP e Jambeiro-SP. Recordo, hoje com um olhar mais cuidadoso e crítico, sobre o programa a qual tive acesso no final da minha educação básica, este programa é adotado por empresas de diversos setores econômicos e busca a profissionalização de jovens de baixa renda regularmente matriculados no ensino médio de escolas públicas e com renda per capita de até um salário mínimo, o programa se chama Formare. Por meio do Formare, visualizei a oportunidade de ter meu primeiro emprego formal em uma empresa grande, com diversos benefícios, uma vez que algumas funcionárias e funcionários já haviam participado do mesmo programa, muitos delas/es eram até professoras/es voluntárias/os do programa, pois viam nele uma potencialidade para outras/os 20 jovens. Mediante o Formare, pela primeira vez senti o desejo de ter uma profissão e, além disso, notei que era possível. Já em 2011, após ter concluído a educação básica, adentrei no cursinho Prevest- Unesp desenvolvido pelo Campus da UNESP de São José dos Campos, projeto de extensão esse que foi decisivo para que eu pudesse acreditar e sonhar com a Universidade Pública. Assim, no ano de 2012 ingressei no curso de Licenciatura em Química na FCT-UNESP e agora era a vez das políticas de permanência estudantil universitária se tornarem presentes durante minha estadia na FCT-UNESP. Entretanto, para ter acesso a tais políticas eu deveria ter um aproveitamento de 70% das disciplinas cursadas no ano anterior, condição que não foi possível, pois não consegui ter o rendimento esperado para o curso. Hoje tenho a percepção que a educação básica a qual tive acesso não foi suficiente para acompanhar a universidade pública de qualidade que ingressei e ter que trabalhar para me manter durante a graduação também me custou o rendimento esperado. Em 2015, totalmente desmotivada resolvi que abandonaria o curso e voltaria para casa dos meus pais, porém com o incentivo deles resolvi prestar novamente o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e tentar bolsa pelo Programa Universidade Para Todos (Prouni) para concluir o curso. Assim, em 2018 consegui finalizar minha graduação que havia escolhido aos meus 17 anos, graças às políticas de permanência e acesso à universidade, muitas delas criadas pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Desta forma, é notória, a importância que as diferentes políticas, oportunidades, espaços, estrutura familiar, incentivo etc., a que tive acesso tiveram em meu itinerário, graças a muitas delas consegui dar início ao interesse derivado da segunda vertente: a profissional. Quero salientar que a vertente profissional teve início no momento em que iniciei os estágios obrigatórios. As três experiências de estágio foram realizadas em escolas estaduais, as quais possuem um público advindo de famílias de baixa renda, que residem em bairros distantes da escola e possuem pouco acesso a bens de consumo e cultura. Durante todo o ano de 2018, pude participar do Programa de Ensino Integral Cidadescola, ofertado a alunas/os do ensino fundamental I e II da rede municipal de Presidente Prudente SP. No programa eu era uma das responsáveis pela manutenção e elaboração das aulas práticas laboratoriais que tinham como objetivo proporcionar às/aos alunas/os o encantamento pelas Ciências da Natureza em geral. Foi nesse período com um contato mais intenso com as/os alunas/os, que desenvolvi um olhar mais cuidadoso para as diferentes realidades e subjetividades ali presentes. 21 Algumas me remetiam a experiências que eu vivi durante a educação básica, outras me mostravam como a desigualdade se faz gritante e corriqueira para muitas/os, onde a fome, o tráfico, a violência, a marginalização, a negação dos direitos se fazem no cotidiano da vida de muitas famílias e crianças. Situações de exclusão social, que se torna um terreno muito fértil para o condicionamento de crianças e adolescentes a destinos segregados da outra parcela da sociedade. Tal segregação, que vem se construindo e solidificando-se desde a inexistência do princípio de isonomia durante a legislação ainda no Brasil Colônia, mas que perpetuam até hoje em nossa sociedade. As questões que permeiam o sistema penitenciário me saltaram aos olhos quando um dos alunos que participava do Projeto Cidadescola não conseguiu reproduzir um dos experimentos realizados dentro do projeto com seu pai, pois ele encontrava-se privado de liberdade em uma penitenciária da região de Presidente Prudente SP. O aluno relatou que os agentes penitenciários não autorizaram a entrada do bicarbonato de sódio, um dos reagentes utilizado para o experimento. Diante disso, o sistema penitenciário me despertou a curiosidade. Tais premissas despertaram em mim incontáveis inquietações, como: Será que meu aluno vive em um ciclo geracional? Qual a probabilidade de ele ter um futuro diferente ao do seu pai? Quais possíveis direitos foram negados ao seu pai e que continuam sendo negados, agora, a ele? Meu aluno era incentivado a estudar? Até quando ele seria ou poderia ter condições para estudar? Assim, iniciei minhas leituras sobre o sistema prisional e foi em uma dessas leituras que fiz a descoberta da existência da educação em espaços de privação de liberdade, dado que durante minha formação inicial nunca havia sido sequer citado tal possibilidade. Depois de algumas leituras, uma das perturbações que mais me acompanhava era: a necessidade em olhar para a educação no sistema carcerário brasileiro, visto que está superlotada de ex- alunas/os, que por múltiplos fatores sociais, desistiram dos estudos, pois lhes faltaram oportunidades diferentes das que observaram todos os dias, encontrando, muitas vezes, na criminalidade, respeito e condição financeira digna. Assim, em setembro de 2019, nessa busca de entender e principalmente vivenciar minhas inquietações, me inscrevi no Programa Educação nas Prisões (PEP) da Diretoria de Ensino (DE) da Região de Presidente Prudente SP. As atribuições de aula para o ensino regular ocorriam toda quarta-feira na DE, às 9h da manhã e desde o começo do ano, toda terça-feira eu conferia o site para verificar as aulas disponíveis. Em uma dessas conferências tomei ciência do credenciamento emergencial para aulas de matemática no PEP e, como na 22 minha inscrição havia matemática como disciplina correlata, decidi me inscrever e foi na quarta-feira, no último dia possível para inscrição, que me inscrevi. Nesta quarta-feira em questão, cheguei à DE e me informei sobre o local para realizar a inscrição e a moça disse para me sentar que ela realizaria. Ao pegar o livro de inscrição de imediato visualizei que não havia nenhum inscrito, logo em seguida a moça com tom de brincadeira disse o que eu já imaginava que eu era a primeira inscrita e que provavelmente seria única. Confesso que fiquei feliz neste momento, uma vez que se tivesse qualquer outra professora ou professor eu não seria selecionada, era recém-formada e sem experiência. Depois de alguns dias entraram em contato comigo para agendarem a entrevista, que era realizada com a supervisora de ensino em conjunto com os coordenadores responsáveis pelo setor da educação dentro da unidade penitenciária. No dia da entrevista, como já havia lido sobre a aparência das/os professoras/es em minhas leituras, fui com uma roupa neutra, alpargata no pé, calça jeans e uma camiseta preta, bem larga, óculos de grau, sem maquiagem e sem brincos. As perguntas que permearam a entrevista foram em relação a minha experiência profissional. Perguntaram-me sobre meu tempo de magistério, se já havia trabalhado com jovens e adultos, com salas multisseriadas, etc. As respostas eram todas negativas para as perguntas, fato que a supervisora já havia previsto, posto que não constava pontuação alguma 1. Isso não pareceu ser um problema naquele momento, eles estavam há meses sem professora/or de matemática. Em seguida, cada coordenador e coordenadora responsável pelo setor da educação dentro da unidade explanaram sobre a dinâmica de cada penitenciária. No total eram três unidades penitenciárias, sendo uma funcionando dentro do regime semiaberto e as outras duas no regime fechado de segurança máxima, as três atendem ao sexo masculino. A primeira descrição foi em relação ao regime aberto, que dentro das três era caracterizada como a mais tranquila, contava, em média, com 200 homens. Explicou sobre o espaço físico da unidade e salientou que as/os professoras/es andavam entre as pessoas privadas de liberdade, que era um ambiente totalmente diferente das outras duas unidades. 1 contrato é válido por três anos e dez meses na rede Estadual de São Paulo. 23 A segunda penitenciária tinha uma dinâmica totalmente diferente, a/o professora/or era escoltada/o até a sala de aula a qual continha um teto de grade onde um agente2 armado ficava de guarda durante a aula. Diferente da terceira penitenciária, que havia uma grade que separava a/o professora/or dos alunos, nessa, os alunos ficavam no mesmo espaço que os docentes. O terceiro coordenador responsável pelo setor da educação explicou como a escola se adéqua à unidade penitenciária, ele abordou com uma riqueza maior de detalhes sobre a sua unidade, uma vez que a entrevista era para suprir uma professora de matemática que havia saído daquele local. A primeira coisa que ele salientou foi sobre o horário, que impreterivelmente às 13h da tarde eu deveria estar no portão que dá acesso aos raios3, tinha que estar de jaleco que cobrisse o corpo até os joelhos e de preferência sem maquiagem e com o cabelo preso. Neste momento, ele me pediu desculpas e disse que era normal os alunos mandarem 4 relatando estarem apaixonados ou algo do gênero, salientou que muitos deles estão há muito tempo presos, muitas vezes sem visitas, assim, ficam vulneráveis emocionalmente. Já outros, tentam se aproximar para conseguirem utensílios para benefício próprio, na tentativa de corromper, uma vez que sou um dos com o mundo fora da penitenciária. O coordenador terminou sua fala dizendo que caso isso viesse a acontecer era para eu informar o quisessem mandar 5 que eles sabiam o que era e o lugar que se encontrava. Memoro que a supervisora de ensino me tratou muito bem, disse que eu iria adorar a escola, responsável pela educação da unidade prisional, que provavelmente iria conseguir completar a carga horária na mesma escola e não precisaria ficar migrando de escola em escola. Ela relatou sua experiência na penitenciária, que na primeira vez é normal ficar um pouco impressionada, muitas grades, portões e cadeados, mas que iria me acostumar e ver que que eles não iriam me olhar no olho, eles sempre falam de cabeça baixa, sem contato visual, salientou também que ninguém quer lecionar no prisional, mas quem está lá não quer sair. Neste momento, meu corpo feminino relaxou de alívio. 2 Está em trâmite a promulgação da Ementa Constitucional nº 104/ 2019, em que os agentes penitenciários passaram a ser denominados policiais penais. 3 4 São recados que eles enviam por escrito quando necessitam de algo. 5 Lugar onde os pipas são colocados para serem encaminhados aos setores correspondentes. 24 1.1.1 Primeiro dia em uma unidade penitenciária Neste momento da dissertação, busco elucidar meu primeiro contato com a unidade penitenciária, aqui anseio transferir todos os sentimentos e sentidos de uma jovem professora recém-formada ao chegar pela primeira vez em uma penitenciária masculina de segurança máxima. Figura 1 - Espaço escolar dentro da unidade prisional Fonte: Aluno privado de liberdade. Recordo-me de apertar a cordinha para o ônibus parar, desci bem em frente à unidade, totalmente insegura e pensando o que eu estava fazendo naquele lugar, no meio de uma rodovia e de frente para uma penitenciária. Neste momento, conseguia ver a fachada do prédio e ao lado esquerdo uma barraca, depois de algum tempo fui descobrir que ela abre aos finais de semana para os familiares dos presos comprarem água e comida nos dias de visita. Atravessei a rodovia e segui em direção ao primeiro portão da unidade, consegui ver a guarita, mas no vidro havia película escura e o logotipo da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP-SP). Conforme me aproximei do portão, ele abriu automaticamente e uma agente saiu da guarita, lhe dei boa tarde e em seguida informei que 25 era a nova professora, neste momento já estava com o jaleco vestido, e ela me orientou a seguir para o próximo portão. Neste momento, um professor também estava chegando, lembro-me de ficar mais aliviada quando o avistei, pois já havíamos nos conhecido na escola. Caminhei aproximadamente uns 200 metros até o portão, nestes 200 metros se eu olhasse para a minha direita conseguia ver a entrada para as casas dos diretores e responsáveis pela unidade. Mais ao lado estava o estacionamento dos funcionários, na minha esquerda, em 6 e ambulâncias. Segui até o portão que havia sido orientada. Em uma porta azul com um quadrado de vidro que dava a possibilidade ao agente ver quem estava do lado de fora, o professor bateu e ficamos esperando a destranca. Essa porta fica ao lado de um portão, também azul, grande de ferro totalmente fechado, é nesse portão lugar, registrei a digital na entrada7, o agente penitenciário me forneceu uma chave de armário para eu guardar minha bolsa com o celular desligado, neste local já não existe mais sinal de celular. Peguei o material que eu precisava para dar aula, caderno, folhas, estojo transparente de lápis e o meu relógio de pulso para não ficar perdida no tempo dentro da unidade. Coloquei tudo dentro de uma bacia branca para eles passarem pela máquina de scanner enquanto eu passava pelo detector de metais, em seguida a agente me revistou manualmente, peguei meus pertences e, novamente, eles destrancaram outra porta, agora a que dá acesso ao pátio da penitenciária. Essa porta nos dá acesso a uma área aberta, ao meu lado direito conseguia ver alguns homens de calça bege, camiseta branca e avental branco de plástico trabalhando no açougue, outros arrumando o jardim e na minha frente, lá ao fundo do pátio, avistei outros, agora sem o avental branco de plástico, porém sujos de graxa, trabalhando em um galpão, todos são os 8. O prédio administrativo fica à minha esquerda, dei a volta em um jardim cuidado pelos internos e entrei no prédio. Avisto um bebedouro à minha esquerda, ao olhar para a minha direita há uma escada que leva ao administrativo, ao seu lado existe uma prateleira com troféus de campeonatos de futebol e na minha frente, a porta que é a sala das/os professoras/es. Uma sala improvisada que tem uma máquina, não sabemos ao certo sua 6 Carro responsável pelo transporte das pessoas privadas de liberdade. 7 Registro de entrada e saída da unidade. 8 No raio/pavilhão dois, moram os homens que estão terminando de cumprir a pena. Eles já podem trabalhar fora do pavilhão durante o dia. 26 função, mas o ar-condicionado tem que estar sempre ligado para ela não esquentar muito, a sala é bem fria e pequena. O ônibus para em frente à penitenciária 12h25 em média, até eu entrar na unidade o relógio marca, em média, 12h40, deixo meu material na sala dos professores e vou almoçar, afinal estava desde as 7h dando aula e tive apenas 15 min de intervalo na escola regular. O refeitório é no mesmo nível que a sala das/os professoras/es, é só seguir o corredor até o final e entrar à esquerda. Lá trabalham outros internos, eles que fazem a comida de todos os funcionários, porém, não é a mesma comida que servem para os outros homens privados de liberdade, eles têm uma cozinha dentro do raio e são outros homens privados de liberdade os responsáveis por ela. Muitas vezes eles fazem bolos, pizzas e pão doce para o café da tarde dos funcionários e vão oferecer na sala das/os professoras/es, às vezes, estamos almoçando e eles oferecem suco de laranja também. Meu primeiro dia na penitenciária foi em uma quinta-feira, e justamente nessa houve 9, e não houve aula. Foi então que o coordenador quis me mostrar como eram as salas dentro dos raios, ele além de ser o responsável pela educação dentro da unidade também é agente penitenciário, assim, pode andar sem escolta dentro da muralha e me escoltar. Atravessamos o pátio e chegamos ao outro portão que dá acesso aos raios, a partir daquele espaço em diante só posso andar se for escoltada por algum agente10, como estava com coordenador, tinha autorização. Seguimos até o Raio 1, subimos uma escada de ferro que dava em uma porta que estava trancada, depois de abrir entramos em um corredor, à minha direita, logo na entrada, havia outra porta que também estava trancada e que dava acesso a parte da sala de aula, da lousa da/o professora/or, ao lado dessa porta havia uma janela com grades. Olhei pela janela e consegui avistar as vinte carteiras escolares separadas por uma grade da lousa. É um ambiente com pouca iluminação, sujo, pouco ventilado e com um cheiro único e inigualável que não consigo descrever, de cadeia. Recordo-me da sensação de impotência que senti quando entrei naquele lugar pela primeira vez, o que mais me chamava a atenção era a grade que me separava deles, me sentia presa em uma gaiola sendo protegida de animais, me veio um sentimento misturado de tristeza, revolta e medo. 9 Gíria interna utilizada quando o Grupo de Intervenção Rápida (GIR) adentra as celas para realizar buscas e revistas. 10 Apenas agentes homens realizam as escoltas. 27 Figura 2 - Visão da professora em sala de aula Fonte: da autora (2023). Figura 3 - Visão dos alunos em sala de aula Fonte: da autora (2023). 28 Do lado da/o professora/or tem um armário de duas portas de madeira bem velho, as portas não fecham mais, nesse raio específico o passarinho faz ninho dentro do armário onde estão os materiais dos alunos. Figura 4 - Armário utilizado para guardar o material didático em sala de aula Fonte: da autora (2023). Cada aluno recebe, no começo do semestre, um kit composto por um caderno de brochura, lápis, borracha, apontador e caneta preta que fica tudo dentro de um saco plástico com o nome do aluno no armário. Toda aula a/o professora/or entrega o kit para eles e ao final da aula eles devolvem, é proibido descer para o raio com qualquer material da escola, a não rmário, porém não ficam no saco plástico, pois são muitas disciplinas e não cabem todas no saco plástico, que acaba rasgando. Existem duas salas por raio, pois de manhã funciona a alfabetização (ensino fundamental I) e o ensino fundamental II. Em todos os raios, a escola funciona da mesma 29 forma e a organização do espaço físico é a mesmo, não existe a possibilidade de ir ao banheiro na escola, primeiro porque não tem banheiro na parte da escola, apenas embaixo no setor que eles trabalham, segundo porque o agente penitenciário não pode abrir a porta que dá acesso ao corredor. Ficamos no raio cerca de duas a três horas seguidas, levamos uma garrafa de água nossa para conseguirmos beber água, os alunos levam garrafas pets cheias e todos dividem a água, no período em que escrevi esse capítulo, 2020, apenas o ventilador do raio 2 funcionava, atualmente todos os raios contam com ventiladores. No dia seguinte, sexta-feira, retornei à unidade prisional e, novamente, estava nervosa e insegura para lecionar aula. Entretanto, meu primeiro motivo de insegurança advinha do fato de ser mulher naquele ambiente hostil. Durante toda a minha vida fui ensinada a não falar, não me impor, não expressar minhas opiniões, visto que aqueles homens não seriam diferentes dos homens que temos fora daquele espaço, sentia que meu corpo feminino estava ocupando um espaço totalmente misógino. A segunda era por ser recém-formada e com pouca experiência no exercício da minha profissão. No primeiro dia que realmente lecionei, um professor que atua há quase uma década na unidade me acompanhou. Nesse dia, lecionaria no raio 4 e recordo de ter demorado cerca de 20 minutos para que o agente liberasse os alunos, nesse intervalo minha ansiedade só aumentava, conversava com o professor que estava comigo para me distrair e tentar não comecei a ouvir passos subindo a escada de ferro no fundo da sala de aula. Eles passam pela primeira sala e chegam até a minha, ficam surpresos que teriam aula de matemática, fazia muitos meses que não tinham professora/or da disciplina. O primeiro a entrar foi o Rafael11, ele era um homem que aparentava uns 40 anos de idade, negro, alto e com muitas cicatrizes no rosto, com uma voz grave cumprimentou o professor e me deu boa tarde, na sequência vieram os outros alunos e foram sentando nas fileiras, naquele momento parecia que 20 homens haviam se transformado em 200, respirei e me apresentei. Peguei os sacos com os materiais deles, cada saco continha um nome, fui chamando e o monitor12 foi pegando pela fresta na grade que nos separava e entregando para eles. De início, realizei com eles o contrato pedagógico, em seguida, como eles estavam há meses sem 11 Nome fictício. 12 Pessoa privada de liberdade que já concluiu a educação básica e presta monitoria remunerada. Ele também auxilia a professora ou professor durante as aulas e na organização das atividades que são direcionadas para dentro dos pavilhões. 30 aula de matemática e eu não sabia o nível da turma, resolvi dar uma aula sobre as quatro operações básicas e aplicar uma avaliação diagnóstica. Eu estava extremamente nervosa, pois o giz quebrou várias vezes na lousa até que um dos alunos disse para eu me acalmar, que estava tudo bem. Percebi a intenção dele em me deixar mais confortável naquele primeiro contato. No momento que um deles disse para eu ficar mais calma, dei risada, as coisas correram melhor e a aula fluiu. Fiquei meio tensa depois para conhecer os alunos dos outros raios, mas nada comparado com esse primeiro dia. Todos os professores falavam sobre o raio 4, que era o mais perigoso, talvez seja por isso que fiquei tão nervosa nessa primeira aula. Às 15h15 comuniquei para guardarem o material e em seguida me entregaram e perguntaram se poderiam descer, respondi que poderiam, sim. Agradeceram a aula e foram embora para dentro do raio. O agente os trancou, na sequência veio abrir a minha porta e fomos embora. Conforme o tempo foi passando fui me adaptando a eles, a tensão dos primeiros dias foi substituída por risadas e brincadeiras. Fui os conhecendo, distinguindo suas caligrafias, suas dificuldades, suas facilidades, e também suas espertezas. Com o tempo vamos percebendo a "malícia" de alguns deles, muitos tentam corromper professoras/es na primeira oportunidade e cabe à professora ou ao professor se manter firme na sua única finalidade ali dentro. Outros tantos gostam da escola, seja para remir pena13, o que lhes é direito, seja para matar o ócio que os corrói ou simplesmente para esquecerem que estão em uma cadeia, como alguns deles já me relataram. Com essa troca, muitos preconceitos foram quebrados, me tornei mais humana com aqueles/esses homens, desenvolvi um olhar mais amplo para as diferentes histórias que cerceiam um ato infrator, não justificando ou generalizando todos, mas agora consigo ver de perto que as circunstâncias de exclusão e desigualdade, muitas vezes, culminam a esse destino. São homens que erraram e que admitem, alguns relatam que pretendem mudar e outros admitem que a mudança não é uma possibilidade. São homens carentes de afeto, que sentem frio, calor, dor, fome, ansiedade, medo, alegria, fé e saudade de seus familiares ou de alguém que está aqui fora. Houve um aluno que quis me mostrar sua família e num dia de aula subiu com as fotos de seus filhos e companheira todo orgulhoso. No último dia de aula de 2019, realizamos a dinâmica da teia, ficamos em círculo, amarrei um barbante no meu dedo, passei o rolo pelo buraco em que passo os materiais deles 13 Questões sobre remir pena serão mais bem abordadas posteriormente no decorrer dos capítulos. 31 pela grade que nos separa e escolhi um deles. Em seguida, falei uma qualidade do aluno que escolhi e lhe fiz uma pergunta, após responder a minha pergunta ele faria o mesmo que havia feito. Ao final, mão e seria amarrado a cada vez. Um dos alunos me escolheu para elogiar e fazer a pergunta, no elogio ele me agradeceu por estar ali com eles. Em sua fala, ele era muito grato, não apenas pelo meu trabalho, mas pelo trabalho de todas/os as/os professoras/es. Agradeceu-me por estar ali, pois eu poderia estar lecionando em qualquer outro lugar mais limpo, organizado, cheiroso e talvez com ar-condicionado, mas eu estava ali com eles, sem nenhum preconceito e os tratando de igual para igual. Já como professora, foram incontáveis as situações nas quais não me sentia preparada para lecionar naquele espaço, me sentia sem aparato pedagógico e sem instrução suficiente. As dificuldades iam desde o espaço físico e insalubre até a dificuldade de contextualização dos conteúdos abordados, trabalhar de forma multisseriada, etc. Enfim, de entender como a minha área do conhecimento, ciências da natureza, poderia contribuir para com aqueles homens. necessidade, enquanto professora neste espaço, em melhor compreender a importância do ensino de ciências da natureza dentro deste contexto. Santos e Schnetzler (2010) consideram que a cidadania nada mais é do que a atuação dos indivíduos na sociedade, deste modo, fica certo que para a efetivação dessa atuação é necessário que se apodere de informações que estão ligadas diretamente com problemas sociais, exigindo desta forma, um posicionamento que busque soluções a tais problemas, assim sendo, tais informações incluem e carecem de conhecimento científico. Deste modo, a fim de proporcionar a formação de cidadãos críticos e conscientes do seu papel na sociedade, alfabetizá-los cientificamente se torna uma necessidade imprescindível dentro da prática pedagógica. 1.2 Vertente social e científica Outra vertente que culminou na escrita dessa dissertação é a vertente social, a qual almeja evidenciar a importância da política educacional dentro de unidades penitenciárias e, também, a relevância da alfabetização científica nesse contexto. Neste item, discorro 32 brevemente14 acerca dessas duas questões apenas para que a leitora ou leitor compreenda os motivos pelos quais o problema de pesquisa desse trabalho foi levantado. Pensando em como iniciar esse subtópico, me veio à mente uma situação que aconteceu hoje15 no transporte público chegando à unidade penitenciária. Uma mulher, que habitualmente utiliza o mesmo transporte que eu, perguntou se eu comparecia todos os dias na penitenciária e antes mesmo que eu conseguisse responder ela me interrompeu questionando se eu era enfermeira ou médica da unidade, respondi que era professora e logo veio o semblante de confusão mental em seu rosto. O ônibus parou e eu desci sem dar tempo de explicar que a pessoa que se encontra em privação de liberdade tem o direito à educação. Ao encontro desse relato, quando tenho a oportunidade de explicar os motivos pelos quais pessoas privadas de liberdade têm acesso à educação sou atravessada pela interseccionalidade de gênero. De maneira quase unânime, quando digo que sou professora em uma penitenciária a pergunta subsequente, e quase toada como uma exclamação, é se leciono em uma penitenciária feminina, uma vez que eu, enquanto mulher, não poderia estar à Moreira (2008) explana que: Uma parcela muito pequena da nossa sociedade tem conhecimento da existência de escolas dentro das penitenciárias. Quando comentamos sobre o nosso trabalho em RA, 2008, p. 46). O autor diz que, , com o autor, a massa carcerária brasileira é composta por pessoas para as quais todas as oportunidades socialmente -se o risco de que as falhas se multipliquem com a persistência recusa em reconhecer aos presos os direitos que não foram atingidos pela sentença de 14 No decorrer da dissertação, essas temáticas são aprofundadas. 15 10 de maio de 2022. 33 Por mais paradoxal que possa parecer, devido às condições que a prisão apresenta serem mais propícias ao castigo e à humilhação, uma parcela cada vez maior da sociedade espera da prisão uma eficácia que nenhum outro setor à instância dessa mesma sociedade (família, escola etc.) teve quando era sua a responsabilidade de educar: reabilitar jovens e adultos presos para que se tornem cidadãos úteis, produtivos e conscientes de duas responsabilidades sociais (MOREIRA, 2008, p.46). Refletindo sobre isso, o autor diz que o aluno que comparece na EJA em espaços prisionais na sua maioria vivenciou o escolar o autor parte do pressuposto de fracasso tem sido mais de nossos sistemas educacionais do que exclusivamente deste ou daquele segmento (professores, alunos, dirigentes, comunidade, políticos etc.) 46). Nessa perspectiva, é evidente que existem outros fatores extraescolares que também impactam, entretanto, a escola dificilmente está preparada para receber essas especificidades (MOREIRA, 2008). Aspirando ideais freireanos, Moreira (2008) refere-se a uma concepção dialética sobre a educação em que diz que a educação em estabelecimentos penais tem que estar compromissada com a percepção de que a vocação antológica de homens e mulheres é a de ser sujeito e que pela educação ter condições para tal, a mesma deve-se manter distante das práticas penitenciárias. Ou seja, a educação deve aproveitar de suas condições inerentes e ir Para o autor, as contribuições freireanas são importantes para que possamos assumir a prática docente como um compromisso político, ou seja, um compromisso definitivo com a premissa de que a educação é um direito de todas as pessoas. Neste momento, vale ressaltar que a educação sozinha não tem a responsabilidade única e exclusiva de transformar indivíduos, entretanto tem potencial para somar na autonomia das/os alunas/os reclusas/os e apresentar novas alternativas e sonhos para sua própria vida, fora da criminalidade. Uma vez que o espaço escolar se diferencia de toda a dinâmica prisional, pois são perceptíveis os vínculos que ali se constroem, de respeito entre professoras/es e alunas/os e alunas/os com alunas/os circundados com sentimentos de esperança, autoconfiança e motivação. Todavia, esse momento vem sendo desperdiçado em inúmeras unidades penitenciárias, em razão da dinâmica penitenciária que impõe seus limites à gestão escolar, e as professoras e professores que ali atuam dia pós dia. Tornando a escola apenas mais uma engrenagem de um sistema que foi engendrado para falhar (MOREIRA, 2008). 34 Dessa forma, quando penso nessa oferta de educação e realizo um recorte para a educação em ciências da natureza, recorte dessa pesquisa de mestrado, alguns questionamentos emergem, como: Por que as pessoas precisam saber ciências da natureza? No que o ensino de ciências contribui para a vida das pessoas? Para Cachapuz et al. (2005), existe uma necessidade de promover a educação científica para todas as pessoas. O autor em seu texto cita uma afirmação do National Research Council (1996), que diz: Num mundo repleto pelos produtos da indagação científica, a alfabetização científica converteu-se numa necessidade para todos: todos necessitamos utilizar a informação científica para realizarmos opções que se nos deparam a cada dia; todos necessitamos ser capazes de participar em discussões públicas sobre assuntos importantes que se relacionam com a ciência e com a tecnologia, e todos merecemos compartilhar a emoção e a realização pessoal que pode produzir a compreensão do mundo natural (CACHAPUZ, 2005, p. 20). ico (SANTOS; MORTIMER, 2001; MAMEDE; ZIMMERMMAN, 2005). Há aquelas/es que HO; TINOCO, 2006; MORTIMER; MACHADO, 1996). Entretanto, apesar de tais diferenciações acerca da nomenclatura, essas autoras e autores têm em comum o interesse na formação cidadã de alunas e alunos para que assim haja o fortalecimento da atuação ativa na sociedade. Desta forma, inicio esclarecendo m Sasseron e Carvalho (2016), na concepção dada por Paulo Freire (1967) sobre alfabetização: [...] a alfabetização é mais do que o simples domínio psicológico e mecânico de técnicas de escrever e de ler. É o domínio dessas técnicas, em termos conscientes. É entender o que se lê e escrever o que se entende. É comunicar-se graficamente. É uma incorporação. Implica, não uma memorização visual e mecânica de sentenças, de palavras, de sílabas, desgarradas de um universo existencial coisas mortas ou semimortas mas numa atitude de criação e recriação. Implica numa autoformação de que possa resultar uma postura interferente do homem sobre seu contexto (FREIRE, 1967, p. 110). Desta forma, assim como as autoras, acredito que a alfabetização deve propiciar a um indivíduo na construção de uma consciência mais crítica em relação ao (SASSERON; CARVALHO, 2011, p. 61). Tais capacidades permitem a adoção de diferentes posturas diante do contexto em que esse indivíduo está inserido, partindo dessa forma para ações mais assertivas em sua vida e comunidade. 35 Fundamento-me também na concepção de Lorenzetti e Delizoicov (2001) frente ao alfab vitalícia (LORENZETTI; DELIZOICOV, 2001, p. 48). questionamentos propostos por Lorenzetti e Delizoicov (2001, p. 46) são necessários e ífica? [...] Como promovê- Em relação ao significado da alfabetização científica, os autores em sua obra propõem l a linguagem das Ciências da Natureza adquire significados, constituindo-se um meio para o indivíduo ampliar o seu universo de conhecimento, a sua cultura, como cidadão inser DELIZOICOV, 2001, p. 53). Para os autores, o ensino de ciências deve proporcionar aos alunos e alunas uma base para que sejam capazes de interpretar e debater assuntos científicos e não somente ter como objetivo principal a formação de futuros cientistas. Ainda de acordo com Lorenzetti e Delizoicov (2001), o ensino não deve se limitar apenas à aprendizagem de fórmulas, conceitos e vocabulários científicos, é imprescindível que os estudantes adquiram habilidades frente à forma como o conhecimento científico se constrói e consigam relacionar os conhecimentos adquiridos no espaço escolar com os problemas e questões encontradas em seu cotidiano. Sasseron significa oferecer-lhes condições para que possam tomar decisões conscientes sobre meramente ligado à expressão de opinião: envolve análise crítica de uma situação, o que pode Ao encontro disso, Chassot (2003) retoma aos anos de 1980 e início dos anos 1990. Época em que não era segredo 36 [...] o quanto a transmissão (massiva) de conteúdos era o que importava [...] Um estudante competente era aquele que sabia, isto é, que era depositário de conhecimentos. [...] Talvez mais de um dos leitores deste texto poderá recordar quantos conhecimentos inúteis amealhou especialmente quando foram feitas as primeiras iniciações na área das ciências que há muito, afortunadamente, os deletou. Quantas classificações botânicas, quantas famílias zoológicas cujos nomes ainda perambulam em nossas memórias como cadáveres insepultos, quantas configurações eletrônicas de elementos químicos, quantas fórmulas de física sabidas por um tempo até o dia de uma prova e depois desejadamente esquecidas (CHASSOT, 2003, p. 90, grifo do autor). Nesse sentido, durante o processo de ensino e aprendizagem de ciências da natureza é essencial desmistificar a ciência, no movimento de demostrar a sua presença no dia a dia. Assim, Deve-se garantir, no ensino, uma abordagem na qual esteja explicito que o conhecimento é resultado de práticas sociais de pessoas tão reais como cada um de nós, motivando assim os alunos para a apropriação do conhecimento científico, mostrado, além disso, que, como em qualquer outra prática social, fazem parte do campo científico o conflito e a dúvida, os dilemas as incertezas (PRESIDENTE PRUDENTE, 2020, p. 691). Também fundamentado nos ideais freireanos, Chassot (2003, p. 90) alega que atualmente não se pode mais pensar o ensino de ciências sem a preocupação com as questões iais e pessoais dos . De acordo com o autor, ainda existe uma resistência frente a essa ideia, principalmente quando se movimenta para os diferentes níveis de ensino. Entretanto, com o passar dos tempos, existe uma adesão cada vez maior a esses novos pensamentos. Ainda de acordo com autor, A ciência pode ser considerada como uma linguagem construída pelos homens e pelas mulheres para explicar o nosso mundo natural. Compreendermos essa linguagem (da ciência) como entendemos algo escrito numa língua que conhecemos (por exemplo, quando se entende um texto escrito em português) é podermos compreender a linguagem na qual está (sendo) escrita a natureza. Também é verdade que nossas dificuldades diante de um texto em uma língua que não dominamos podem ser comparadas com as incompreensões para explicar muitos dos fenômenos que ocorrem na natureza (CHASSOT, 2003, p. 91). Deste modo, precisamos pensar a ciência como uma linguagem que nos ajuda na leitura do mundo natural e que saber realizar essa leitura nos ajuda a entendermos a nós mesmos e ao ambiente em que estamos inseridos, permitindo que atuemos de maneira consciente em nossas próprias vidas e na vida de quem nos cerceia. Nessa perspectiva, Chassot (2003) declara que a linguagem é o artefato social e culturalmente construído mais importante. 37 Chassot (2003, p. 97), sob a luz de Furió (et al, 2001), comunica que a alfabetização científica significa uma poderosa possibilidade para que a maioria da população disponha de conhecimentos científicos e tecnológicos necessários para se desenvolver na vida diária, ajudar a resolver os problemas e as necessidades de saúde e sobrevivência básica, tomar Retornando aos questionamentos de Lorenzetti e Delizoicoc (2001, p. 46), ainda fica em aberto a questão acerca da alfabetização - E na tentativa de compreender minha própria prática dentro de um sistema que limita tanto a prática docente é que levanto a questão que norteia esse estudo, que é: Como promover a Alfabetização Científica (AC) junto a alunos privados de liberdade, por meio do estudo de Ciência da Natureza? Baseada nesse questionamento e ancorada em Carvalho (2013), essa dissertação de mestrado considera que a Sequência de Ensino Investigativa (SEI), que será melhor detalhada no capítulo cinco, é um instrumento pedagógico que apresenta grandes contribuições para a promoção da Alfabetização Científica neste espaço. Em relação à vertente científica, almejei quantificar teses e dissertações acerca da temática, a fim de visualizar se e/ou como o assunto vinha sendo discutido na academia. Para isso, realizei um breve levantamento bibliográfico, utilizando duas bases de dados, sem recorte temporal, uma vez que são escassos os trabalhos específicos sobre o assunto. O levantamento bibliográfico foi realizado em outubro de 2022 nas seguintes bases de dados: Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES. Adotaram- aplicados descritores similares para uma maior abrangência, sendo e As tabelas abaixo apresentam o quantitativo de dissertações e teses encontradas nas duas bases de dados. A seleção foi realizada num primeiro momento através da leitura do título e em seguida do resumo, foram considerados os trabalhos que mais se aproximaram das discussões que envolvessem simultaneamente a educação em prisões e o ensino de ciências. 38 Tabela 1 - Quantitativo de dissertações e teses selecionadas na biblioteca digital brasileira de teses e dissertações (BDTD) DESCRITORES DISSERTAÇÕES TESES TOTAL SELECIONADOS 6 - - 1 2 - 2 1 2 - 2 - AND "alfabetização científica" - 1 1 - "educação prisional" AND "letramento científico" - - - - "educação em prisões" AND "letramento científico" - - - - "sequência de ensino investigativa" - - - AND "sequência de ensino investigativa" - - - - Fonte: Organizado pela autora. 39 Tabela 2 - Quantitativo de dissertações e teses selecionadas no catálogo de teses e dissertações da CAPES DESCRITORES DISSERTAÇÕES TESES TOTAL SELECIONADOS 2 acadêmico 1 profissional - 3 1 1 - - 1 - - - - AND "alfabetização científica" - - - - "educação prisional" AND "letramento científico" - - - - "educação em prisões" AND "letramento científico" - - - - "sequência de ensino investigativa" - - - - AND "sequência de ensino investigativa" - - - - Fonte: Organizado pela autora. Depois da seleção e análise, localizaram-se três dissertações e nenhuma tese. Para uma melhor compreensão sobre os estudos encontrados foi organizada a tabela abaixo. 40 Tabela 3 - - ensino de DESCRITOR ANO TIPO IES TÍTULO AUTOR ORIENTADOR 2018 Dissertação Universidade Estadual do Centro-Oeste Ensino de química para jovens e adultos privados de liberdade: o jogo como recurso didático Rodrigues, Fernand Rosa, Marcos Roberto de 2021 Dissertação Universidade Federal do Rio Grande do Sul Buscando convergências entre valores e práticas pedagógicas : o ensino de ciências em um ciclo de pesquisa-ação na escola em uma prisão Giongo, Sandro Luiz Heidemann, Leonardo Albuquerque 2017 dissertação PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO Entre o ensino e a ressocialização: práticas de professores de ciências na educação prisional masculina no município do Rio de Janeiro Tatiane Almeida Diorio Fonte: Organizado pela autora. 41 privados de liberdade: o jogo como recurso didático busca verificar a utilização de atividades lúdicas de caráter experimental a alunos privados de liberdade em aulas de Química. O autor demonstra como essas atividades contextualizadas estimulam a participação e promovem a interação entre os alunos, contribuindo muito no processo de ensino e aprendizagem neste espaço tão ímpar. Cabe ressaltar que o jogo proposto nesta atividade foi realizado com materiais de baixo custo e de fácil acesso e com a permissão da unidade prisional em questão. Já a dissertação d práticas pedagógicas: o ensino de ciências em um ciclo de pesquisa-ação na escola em uma , almejou responder a seguinte questão: incorporação de valores alinhados com uma educação emancipatória às práticas pedagógicas pesquisa, o autor verificou que os professores e professoras apresentam um alinhamento com os ideais de uma educação freireana, valorizando a autonomia, criticidade, humanização e a justiça social. Em relação aos alunos, o autor explana que eles apresentam uma atitude passiva amento humano que a escola oferece em contraste com o ambiente prisional, ou ainda devido a um Já n práticas de professores de Ciências na educação prisional masculina no município do Rio de , a autora tem como objetivo a investigação da prática educativa de professoras e professores de ciências em espaços prisionais. De acordo com a autora, o corpo docente acaba por utilizar as mesmas estratégias didáticas efetuadas em escolas extramuros, desconsiderando as especificidades do espaço e do ensino em sistemas penitenciários. Tais interpretações são importantes, pois demonstram como os saberes e experiências de professoras/es necessitam urgentemente ser ouvidos, para que, assim, haja discussões acerca das possibilidades no cotidiano da sala de aula que os professores de Ciências compreendem a especificidade do ensino em prisões e, a partir disso, constroem as suas práticas p.6). Após a leitura dessas pesquisas, verificou-se que mesmo as dissertações que se prisional - m como objetivo central alfabetização científica ou a sequência de ensino investigativa em espaços prisionais. 42 Deste modo, justifico a relevância desta dissertação pautada principalmente na escassez de pesquisas que interseccionam essas duas políticas: a educacional e a prisional com o objetivo de demonstrarem como a alfabetização científica do aluno em condições de cárcere pode ser promovida. Assim, para que a educação no sistema prisional seja desenvolvida e cumpra com seus objetivos, é necessário que compreendamos a prática docente dentro desse espaço, assim contribuindo para com professoras/es de ciências que atuam no sistema prisional, para que mesmo em meio a tanta adversidade que o espaço impõe, consigamos juntos propiciar a alfabetização científica de nossos alunos e alunas, contribuindo para sua formação cidadã e lhes ofertando o que lhes foi negado inúmeras vezes ao longo da vida: o direito à educação de boa qualidade. Assim, a elaboração desta pesquisa emerge do desafio que ainda é a educação dentro das unidades prisionais, em específico a educação científica, mesmo tal população sendo classificada com a menor renda e os mais baixos índices de educação. Manifesta-se também de todas as minhas inquietações e angústias quanto professora de ciências da natureza dentro do sistema prisional, dada a necessidade de compreender minha prática neste lugar tão ímpar e mistificado pela sociedade. Anseio que futuras conclusões sejam compartilhadas além da comunidade acadêmica, tendo o dever de chegar à sociedade. Anseio, sobretudo, que a pesquisa alcance suas principais atrizes e atores: o corpo escolar que resiste dentro do sistema penitenciário, especialmente as/os professoras/es que exercem sua profissão neste espaço, jovens e adultas/os privadas/os de liberdade lhes dando o direito que lhes foi negado, a todas/os que, de alguma maneira exercem atividades socioeducativas dentro deste cenário e ao servidor -lo como o elo necessário à efetivação da política pública e das (TORRES, 2019, p. 6). Assim, contribuindo para que diferentes sistemas em conjunto, que excluíram suas educandas e educandos uma vez, não continuem o fazendo. 1.3 Objetivo geral Analisar o uso do desenvolvimento de Sequência de Ensino Investigativa (SEI) em aulas de Ciências da Natureza para alunos privados de liberdade, tendo em vista a promoção da Alfabetização Científica (AC). 43 1.3.1 Objetivos específicos 1. Contextualizar o sistema penitenciário e a realidade dos alunos privados de liberdade. 2. Analisar os principais documentos e políticas educacionais a respeito da educação inserida em unidades prisionais. 3. Descrever as especificidades da rotina, possibilidades, desafios e condições de trabalho de professoras/es que atuam na unidade prisional pesquisada. 4. Planejar e desenvolver atividades envolvendo Sequência de Ensino Investigativa para alunos privados de liberdade mediante registro de aulas. 5. Interpretar as potencialidades da Sequência de Ensino Investigativa (SEI) para a efetivação da Alfabetização Científica (AC) de alunos privados de liberdade.F Para alcançar os objetivos presentes nessa pesquisa, optou-se pela abordagem qualitativa do tipo intervenção pedagógica, a qual utilizou a Sequência de Ensino Investigativa (SEI) como interferência. Para a coleta de dados, foram utilizados os seguintes instrumentos: (i) Análise documental: empregue para contextualizar o sistema penitenciário e a realidade do aluno privado de liberdade (objetivo específico 1); analisar os principais documentos e políticas que tangem a educação e espaços prisionais (objetivo específico 2) e investigar as atividades realizadas pelos alunos ao longo do desenvolvimento da SEI. (ii) Observação registradas em Diário de Bordo: operada para descrever as especificidades da rotina, possibilidades, desafios e condições de trabalho de professoras/es de ciências da natureza que atuam na unidade prisional pesquisada (objetivo específico 3); condições essas que precisaram ser consideradas para a elaboração da SEI. As observações também foram utilizadas para capturar minuciosidades dos alunos durante as atividades realizadas em sala de aula para poderem ser contrapostas aos questionários aplicados. (iii) Questionários: Q1- Questionário sociocultural e econômico, para caracterizar os alunos participantes da pesquisa; Q2 - Questionário sobre os olhares prévios e construídos pelos alunos frente ao ensino de ciências da natureza, utilizado para capturar os interesses que os alunos apresentavam antes e depois da aplicação da SEI e as contribuições da mesma; e o Q3 - Questionário de avaliação da prática pedagógica, espaço pensado para que os alunos pontuassem aspectos positivos e negativos das aulas de ciências da natureza no período em que a SEI foi desenvolvida. Posteriormente à coleta de dados, a análise dos mesmos foi realizada a partir da Análise de Conteúdo (FRANCO, 2005). Deste modo, a partir dos objetivos aqui propostos e 44 da metodologia escolhida compreendemos se a Sequência de Ensino Investigativa (SEI) é uma interferência que contribui para a promoção da alfabetização científica. Conseguinte, para a melhor compreensão do caminho percorrido ao longo dessa pesquisa, a dissertação foi organizada da seguinte maneira: Nesse primeiro capítulo de introdução foram demonstrados os motivos que me levaram a realizar esse recorte de pesquisa. Foram considerados aspectos pessoais, profissionais, sociais e científicos com a finalidade de justificar a relevância desse trabalho, em especial para com alunas/os e professoras/es do sistema prisional. Foram traçados os objetivos que essa pesquisa apresenta, assim como a metodologia escolhida para alcançá-los. Durante o segundo capítulo são dispostos os procedimentos metodológicos utilizados para a realização dessa pesquisa de maneira mais detalhada. Nele constam a caracterização da pesquisa qualitativa, a justificativa da escolha da pesquisa do tipo intervenção pedagógica, a apresentação do Lócus da pesquisa, alcançando assim, o terceiro objetivo específico desse trabalho que consiste na descrição das especificidades da rotina, possibilidades, desafios e condições de trabalho de docentes que atuam na unidade penitenciária em questão. Também foram expostos os métodos adotados tanto para a elaboração da SEI (objetivo especifico 04) quanto para a avaliação da SEI frente ao objetivo de promover a alfabetização científica e ao final explano sobre a metodologia de análise adotada para a interpretação desses dados. São utilizadas autoras e autores como: André (2013); Damiani et al. (2013); Lüdke e André (1986); e Franco (2005). No decorrer do terceiro capítulo busco alcançar o primeiro objetivo específico dessa dissertação, que consiste em contextualizar o sistema penitenciário e a realidade dos alunos privados de liberdade. Explano acerca do nascimento das prisões e seus mecanismos de punição. Na sequência, afunilo para as prisões brasileiras até chegar às prisões paulistas com o intuito de entender as condições que o sistema penitenciário oferta e, dessa forma, compreender como a educação se efetiva nesse espaço. Para essa compreensão, foram utilizados autoras e autores como: Jilião (2020); Torres (2019); Foucault (2014); e Wacquant (1999). Já no quarto capítulo anseio o segundo objetivo específico que consiste em analisar os principais documentos e políticas educacionais a respeito da educação inserida em unidades prisionais. Assim, realizei discussões sobre as principais políticas educacionais que garantem a efetivação da educação nas penitenciárias brasileiras. Para isso, foi necessário contextualizar o desenvolvimento histórico da modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil, para que, assim, a leitora ou leitor compreenda como o direito à educação de 45 pessoas jovens e adultas caminhou até o espaço prisional. Deste modo, autoras como Arelaro e Kruppa (2007); José (2019); Pierro; Joia; Ribeiro (2001) foram utilizadas/os. Para as discussões que tangem o ensino de ciências da natureza e a alfabetização científica reservei o quinto capítulo. Nele, foram pontuados os principais documentos e estudos que declaram a alfabetização científica como um dos principais objetivos do ensino de ciências da natureza. Depois diálogo frente às contribuições que a Sequência de Ensino Investigativa (SEI) apresenta para a efetivação da alfabetização científica. Para essas discussões foram utilizadas autoras como: Krasilchik (1992); Lorenzetti (2020); Bachelard (1968); e Carvalho (2013). Os resultados e análises estão resguardados ao sexto capítulo, no qual almejo atingir o quinto objetivo específico dessa pesquisa. Irei discorrer acerca da aplicação da Sequência de Ensino Investigativa (SEI) e seus resultados, interpretando as potencialidades da SEI para a efetivação da AC de alunos privados de liberdade. As autoras e autores utilizadas/os para o capítulo foram: Sasseron e Carvalho (2008) e Freire (2002). 2 CAMINHO METODOLÓGICO Se não há regras, ou se não há uma comunidade para controla-las, não há mais pesquisa, há uma conversa de botequim sobre educação (CHARLOT, 2006, p. 11). deve controlar seus conceitos e se apoiar em dados. Ou seja, existem regras, e se elas não são estabelecidas de maneira compreensível não existe mais uma pesquisa, o que resta é André (2001) também nos alerta de a importância substancial da pesquisa ser procedimentos rigorosos, que a análise seja densa e fundamentada e que o relatório descreva claramente o processo seguido e os caminhos metodológicos que foram traçados. Como resultado, ao longo deste capítulo busco apresentar a caracterização detalhada da pesquisa qualitativa (ANDRÉ, 2013), da pesquisa do tipo intervenção pedagógica (DIMIANI et al. 2013), do contexto escolar na penitenciária escolhida, dos instrumentos utilizados para a coleta de dados: questionário (LÜDKE; ANDRÉ, 1986); observações registradas em diário de campo e análise documental das atividades realizadas pelo alunos (LÜDKE; ANDRÉ, 1986); e no que tange a análise dos dados, admitiu-se a perspectiva da análise de conteúdo (FRANCO, 2005). Neste momento, enfatizo que a perspectiva adotada nesta pesquisa é a de Paulo Freire (2002), uma vez que acredito em uma educação popular, que se constitui de codificar e decodificar temas geradores que permeiam as lutas populares, assim, colaborando com os -se de diminuir o impacto da crise social da pobreza, e de dar voz à indignação e ao desespero moral do pobre, do oprimido, do indígena, do camponês, da também, da pessoa privada de liberdade. 47 2.1 Caracterização da pesquisa qualitativa -se cair no extremo de chamar de qualitativo , o que Conforme André (2013), os termos qualitativos e quantitativos devem ficar num determinado momento foi até interessante utilizar o termo qualitativo para identificar uma perspectiva de conhecimento que se contrapunha ao positivismo, esse momento parece Assim, segundo a autora, [...] a necessidade agora é ir além, ultrapassar a dicotomia qualitativo-quantitativo e tentar encontrar respostas para as inúmeras questões com que nos defrontamos diariamente, entre as quais podemos citar: O que caracteriza um trabalho científico? O que diferencia o conhecimento científico de outros tipos de conhecimento? Quais os critérios para se julgar uma boa pesquisa? O que se pode considerar como válido e confiável na pesquisa? Como deve ser tratada a problemática da generalização? Qual o papel da teoria na pesquisa? Como articular o micro e o macrossocial? Como trabalhar a subjetividade na pesquisa? Quais as formas mais apropriadas de análise de dados qualitativos? (ANDRÉ, 2013, p. 22). Logo, para André (2013), a pesquisa qualitativa engloba a obtenção de dados descritivos, obtidos com contato direto das/os pesquisadoras/es com a/o participante do estudo, enfatiza mais o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva das/os participantes. Nesse aspecto, busca-se compreender, conhecer e analisar a natureza de um fenômeno social para em sequência buscar soluções teóricas e práticas para os eventos vivenciados, segundo Lüdke e André (1986). Assim, optar por desenvolver uma pesquisa, cuja metodologia consiste em retratar a realidade de forma intrínseca, utilizando uma variedade de fontes de informação na busca da descoberta de diferentes e, às vezes, conflitantes pontos de vista de um determinado contexto social, não é uma tarefa das mais fáceis (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p.18-20). Isto porque, requer das/os pesquisadoras/es, a necessidade de declinar alguns conhecimentos prévios e opiniões estabelecidas ao longo de toda a sua itinerância formativa. A seguir, manifesto que a metodologia estabelecida foi a pesquisa do tipo intervenção pedagógica, uma vez que era a que mais representava os objetivos deste trabalho. Sendo 48 assim, esta escolha realizou-se de maneira rigorosa e comprometida, considerando as condições limitantes que a pesquisa dispõe, assim como a seleção dos instrumentos de coleta e análise dos dados. 2.2 Pesquisa do tipo intervenção pedagógica Na literatura encontramos uma aproximação conceitual entre a pesquisa-intervenção e pesquisa-ação, fato que inúmeras vezes levamos a equivalência entre os conceitos. Neste sentido, Damiani et al. (2013, p. 59-60), ancorados basicamente nas ideias de Tripp (2005) e Thiollent (2009), ressaltam pontos de semelhança e diferenças entre essas metodologias. Nos aspectos que tangem às semelhanças, temos: 1) O intuito de produzir mudanças: Este propósito diferencia as pesquisas do tipo intervenção e as pesquisas-ação das pesquisas observacionais, cujo objetivo se restringe a descrever e/ou explicar os fenômenos investigados, sem neles interferir. 2) A tentativa de resolução de um problema: Segundo Thiollent (2009), a especificidade da pesquisa-ação está na organização, no desenrolar e na avaliação de uma ação voltada à resolução de um problema coletivo, na qual pesquisadores e participantes atuam de modo cooperativo ou participativo. Tripp (2005), igualmente, descreve a pesquisa-ação, voltada ao contexto educativo, como um método que, essencialmente, envolve tentativas continuadas, sistemáticas e empiricamente fundamentadas de aprimorar determinada prática, ou seja, de testar maneiras de enfrentar os problemas nela detectados. Essa tentativa de resolução de problemas também se aplica à pesquisa do tipo intervenção pedagógica. 3) O caráter aplicado: Conforme Tripp (2005), a pesquisa- pesquisa feita pelo prático, Tal afirmação aplica-se, da mesma forma, às intervenções [...] 4) A necessidade de diálogo com um referencial teórico: De acordo com Thiollent (2009), sem o diálogo com as teorias existentes, uma pesquisa não teria significado. A esse respeito, o autor acrescenta que a pesquisa-ação não se limita à ação, o que poderia caracterizá-la como ativismo. Além da resolução de problemas, a pesquisa-ação tem o propósito de aumentar o conhecimento dos pesquisadores sobre as maneiras de enfrentar tais problemas. Esses dois aspectos também caracterizam as pesquisas do tipo intervenção pedagógica, que apresentam potencial para testar a pertinência das ideias teóricas que as embasam. 5) A possibilidade de produzir conhecimento: Thiollent (2009) argumenta que a produção de conhecimento proveniente de pesquisas- e para a definição de objetivos de ação pedagógica e de transformações mais pondo-as em prática, as intervenções pedagógicas têm o objetivo de promover avanços nessas ideias, contribuindo para a produção de teoria educacional (DAMIANI et al., 2013, p. 59-60). Entretanto, apesar da existência de semelhanças entre pesquisas do tipo intervenção e pesquisas-ação, se torna necessário, assim como suas semelhanças, pontuar os aspectos que as diferenciam. Damiani et al. (2013, p. 60, grifo meu), sob a luz de Thiollent (2009, p. 16) diz 49 [...] que muitos partidários da pesquisa-ação associam- Isso não ocorre, necessariamente, na pesquisa intervencionista. Esta, embora vise a promover avanços educacionais, não apresenta, como foco principal, tais objetivos emancipatórios, de caráter político-social [...]. Outra diferença estaria no quesito participação que, no planejamento e na implementação de uma pesquisa-ação, envolveria todos os participantes (THIOLLENT, 2009). Nas pesquisas interventivas, é o pesquisador quem identifica o problema e decide como fará para resolvê-lo, embora permaneça aberto a críticas e sugestões, levando em consideração as eventuais contribuições dos sujeitos-alvo da intervenção, para o aprimoramento do trabalho (DAMIANI et al., 2013, p. 60, grifo meu). Isso posto, a seguir, justifico a escolha da pesquisa do tipo intervenção pedagógica. Segundo as concepções de Damiani et al. (2013, p. 58), as pesquisas do tipo intervenção pedagógica [...] são investigações que envolvem o planejamento e a implementação de interferências (mudanças, inovações) destinadas a produzir avanços, melhorias, nos processos de aprendizagem dos sujeitos que delas participam e a posterior avaliação dos efeitos dessas interferências. Os autores e autoras defendem a coerência em considerá-las pesquisas científicas, nos ressaltando seu aspecto aplicado, ou seja, as pesquisas do tipo intervenção pedagógica apresentam como objetivo a colaboração para a solução de problemas práticos (DAMIANI et al., 2013, p. 58). Ainda de acordo com Damiani et al. (2013), Robson (1995) nos alerta sobre a distância que existe entre a produção acadêmica e a prática dos profissionais que trabalham com ens verificar se foram adequadamente avaliadas e que impactos, efetivamente, produzem nos et al., 2013, p. 58). Assim, Para contrapor-se a tal problema, Robson (op. cit.) enfatiza o potencial das pesquisas aplicadas para, por exemplo, subsidiar tomadas de decisões acerca de mudanças em práticas educacionais, promover melhorias em sistemas de ensino já existentes, ou avaliar inovações. É por meio da pesquisa aplicada que, segundo esse autor, a produção acadêmica pode produzir o desejado impacto na prática. [...] Ele entende que o impacto da pesquisa sobre a prática pode ser incrementado por meio da realização de pesquisas aplicadas, especialmente aquelas nas quais os próprios professores desempenham papel de investigadores (DAMIANI et al., 2013, p. 58, grifo meu). Assim, esta pesquisa é desenvolvida sob a análise da experiência/prática da própria pesquisadora enquanto professora da área de ciências da natureza. Neste sentido, falo como uma professora que leciona há mais de três anos, logo, tomo a posição de uma investigadora observadora que tem um envolvimento completo com a instituição. 50 muitos trabalhos em que se analisa a experiência do próprio pesquisador ou em que este desenvolve a pesquisa com a colaboração das participantes. (ANDRÉ, 2001, p. 54, grifo meu). Se por um lado existem autoras/es que apresentam suas preocupações acerca dos perigos da extrema participação das/os pesquisadoras/es com as/os participantes do estudo, por outro lado existem as/os que acreditam na potencialidade desta técnica. Nessa perspectiva, a investigadora, ou investigador, os detalhes relevantes dos triviais, aprender a fazer anotações organizadas e utilizar métodos rigorosos para validar suas o ANDRÉ, 1986, p. 26). Bogdan e Biklen (1994, p. 133) também dizem sobre os sentimentos das pesquisadoras - dificuldade de uma pess rigorosamente as técnicas de recolha de dados de maneira sistemática e controlada, conseguirei cumprir os objetivos e garantir a cientificidade da pesquisa. 2.3 Lócus da pesquisa Conhecer o universo prisional significa também desvelar inúmeras regras, normas e procedimentos, muitas vezes não oficiais, não ditos que convivem entre si, numa intensa negociação diária, denota conhecer outra cultura, outro mundo. Vivenciar o espaço prisional, mesmo restrito aos ambientes e horários permitidos, pouco a pouco, nos possibilita conhecer as características e a organização desse outro mundo, suas lógicas, as relações de poder e as estratégias de sobrevivência, as formas de imposição da disciplina, segurança e as táticas de resistências e de sobrevivência num ambiente tão hostil. (LEME, 2018, p. 17) Neste item anseio demonstrar o universo prisional da unidade em que leciono desde 2019, e que é o lócus relações de poder. ntradições, vivemos o dilema entre punição e educação, entre vigilância e emancipação, en , 2018, p. 18). Martinópolis possui regime fechado do cumprimento de pena e caracteriza-se como uma 51 penitenciária de segurança máxima, atendendo ao público masculino. Segundo dados da SAP, a unidade apresenta 56.522 m2 construídos na Rodovia Homero Severo Lins Km, 542 - SP 284, a construção abarca 1.28316 custodiados para 872 vagas, ou seja, a unidade apresenta um déficit de 461 vagas. Figura 5 - SP Fonte: Google Maps. O modelo adotado para a construção da penitenciária em questão foi dissipada na edifícios formados por quatro raios independentes (raio 1, raio 2, raio, 3 e raio 4), ou seja, os homens de um raio não possuem contato com os de outro raio e cada raio abarca espaços para a escola e para as oficinas de trabalho (LEMES, 2018). 16 Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2023. 52 Na unidade pesquisada existe um perfil determinado para cada raio, normalmente reclusos ligados a facções criminosas residem no raio 4, já o raio 2 é de limpeza, cozinha, jardinagem, horta, etc. Normalmente são homens que já cumpriram parte significativa das suas penas e estão perto de obterem o semiaberto ou a liberdade. Já os raios 1 e 3 são raios intermediários na periculosidade. Ao chegar à unidade, passamos pela portaria, nela acontece o primeiro reconhecimento. Com o tempo, os funcionários passam a nos reconhecer e esse processo se torna rápido, uma vez que é apenas o portão que permite o acesso ainda à área extramuro da unidade. Depois da portaria seguimos para a porta de ferro da recepção, local onde veículos que adentram intramuros passam, por 17. Já dentro deste espaço temos a recepção e outras estruturas que fazem parte do aparato de segurança, sendo as principais a sala do scanner corporal, scanner de bagagens e o detector de metal. Todos os professores passam diariamente pelo scanner corporal e seus pertences são analisados pelo scanner de bagagem. Já os funcionários da unidade penitenciária passam apenas pelo detector de metais e seus objetos pelo scanner de bagagem.18 Cada minuciosidade da segurança é muito presente na rotina prisional, a cada porta de ferro ocorre um procedimento de identificação e verificação da pessoa, sempre sob constante suspeita. Depois de passarmos pelos scanners, entramos para a parte interna da penitenciária, a nossa frente temos a muralha, uma pequena horta e o jardim com flores bem cuidadas. À esquerda temos o açougue, e à direita o prédio do administrativo, local onde se localiza a sala dos docentes e o refeitório. Portela (2020, p. 38) salienta que a prática do cultivo e criação de hortas é frequente em unidades prisi limpeza, organização de maneira geral, são feitas pelas pessoas que se encontram privadas de liberdade na unidade. São elas que cozinham para os funcionários, que limpam os banheiros, chão, salas, que capinam áreas em que a vegetação cresceu etc. Vale ressaltar que neste momento uma das orient 19estiver 17 Automóvel utilizado para transportar as pessoas privadas de liberdade. 19 Pessoa privada de liberdade, do raio do trabalho (raio 2), responsável pela limpeza do prédio do administrativo. 53 o preso responsável pela faxina sozinho na sala. As salas de aula ficam nas extremidades de cada raio, no piso superior. Às 13h, saímos da sala das/os professoras/es e nos direcionamos para a revisora20, único local que permite o acesso para dentro da muralha. Ficamos neste espaço esperando os agentes penitenciários para nos escoltarem até o raio, uma vez que dentro da muralha apenas podemos andar escoltadas. Já cheguei a esperar 1h em pé o agente vir escoltar ou até alguém avisar que naquele dia não seria possível lecionar por falta de funcionário. A partir disso, nota-se que os mecanismos de controle se fazem sempre presentes, mesmo não sendo verbalizados são impostos, esperar é a regra que nunca foi necessário entoar. Miranda (2016, p. todos que frequentam a escola, seja aluno, sejam as professoras e professores, seja algum Da espera pelo agente na revisora até o início da aula leva em média 15 minutos. São muitas portas e grades para o agente abrir, se ele não tem o hábito de ir naquele raio pode demorar mais tempo para localizar a chave de cada cadeado ou porta. Quando o agente termina de abrir o acesso para os alunos, ele realiza um sinal, geralmente bate com as chaves na grade, ou fala alto , já que o agente vigia pelos dois simultaneamente. Instantaneamente após a resposta do agente ouço ecoar pelo pavilhão a palavra escola, diversas vezes, como um sino soando, com a função de avisar aos alunos que devem se dirigir para a escola e os que desejam ir para a quadra que o façam naquele exato momento. A aula tem duração de 2h, das 8h às 10h ou das 13h às 15h, que é o se adéqua à rotina Existem diversos procedimentos internos rotineiros na unidade, um dos que mais toda quinta-feira no período da manhã, impossibilitando o professor ou professora de lecionar no uma revista, cela por cela, onde os agentes literalmente batem no chão a fim de encontrar algum túnel para fuga ou esconderijo na parede com objetos suspeitos etc. 20 Revisora é a única passagem para dentro da muralha. É nela que aguardamos a escolta para entrarmos nos pavilhões. 54 Outro procedimento, a blitz, é realizado pelo Grupo de Intervenção Rápida (GIR). Criado em 2001, o GIR é formado por Agentes de Segurança Penitenciária (ASP) e está sob a responsabilidade da SAP, sendo que seu objetivo primordial é a atuação na prevenção e intervenção de rebeliões dentro das penitenciárias paulistas. De acordo com Miranda (2016), o GIR foi criado a fim de combater as chamadas organizações criminosas que se articulavam no interior do estado de São Paulo, com atenção especial para o PCC, uma vez que as duas grandes rebeliões ocorridas no sistema prisional paulista, a primeira 2001 e a segunda em 2006, foram articuladas pelo PCC. Normalmente, quando a blitz acontece o procedimento ocorre durante o dia todo, inviabilizando as atividades educacionais, uma vez que todos os Diante de todo esse cenário, é importante compreender como a educação se adéqua a esse espaço em questão. Logo, a seguir descrevo a rotina da educação dentro da unidade penitenciária para que então compreendamos suas possibilidades, desafios e condições de trabalho ofertadas para a execução de uma intervenção pedagógica. As aulas na UP são divididas em Ensino Fundamental I ou Alfabetização21, Ensino Fundamental II e Ensino Médio. No período da manhã, acontecem as aulas da Alfabetização (das 8h às 12h10) e do Ensino Fundamental II (das 8h às 12h30) e, no período da tarde, as aulas do Ensino Médio (das 13h às 17h30 e/ou 16h45). Entretanto, as aulas na prática não seguem o horário de maneira fidedigna, uma vez que a rotina organizacional, a disponibilidade de agentes penitenciários para realizar as escoltas até os raios, a arquitetura da UP etc. BORDO, 2022), frase bastante reforçada para as/os docentes. Então, por exemplo, na segunda-feira leciono a disciplina de química nas duas primeiras aulas no Ensino Médio do raio 01 (M1)22, as outras três aulas seriam no Ensino Médio do raio 02 (M2)23, entretanto, pela arquitetura da penitenciária a troca de turma é inviável. Desta forma, permaneço até às seja, a troca de turma não é possível e todas as aulas são finalizadas às 15h, uma vez que é 21 e o Ensino Fundamental II. 22 M1 Ensino Médio do pavilhão/raio 01. 23 M2 Ensino Médio do pavilhão/raio 02, etc. Nas turmas de Ensino Fundamental II utilizamos a letra F seguindo a mesma lógica (F1, F2, F3 e F4). Nas aulas da Alfabetização (Ensino Fundamental II) utilizamos a letra A e seguimos o mesmo raciocínio (A1, A2, A3 e A4). 55 neste horário que a população prisional da unidade se dirige até as celas. Assim, totalizam em média, 2h de aulas semanais por área do conhecimento24. Outro fator que influencia a sequência estabelecida pelo horário de aula é que com o advento da pandemia, as escoltas das/dos docentes foram ainda mais prejudicadas e até o momento25 permanecem com a mesma dinâmica. As escoltas estão sendo realizadas por meio de rodízios, isto é, alternando, um dia escoltam os raios ímpares e no outro os raios pares. Isso dificulta extremamente o trabalho docente, pois, permanecendo 2h semanais em cada pavilhão e lidando com toda a complexidade desse espaço, já é um desafio, com a alternância das escoltas e consequentemente diminuição do tempo em sala de aula a situação fica ainda mais dificultosa. A UP justifica essa dinâmica por conta de inúmeros servidores terem se aposentado e alguns vindo a óbito com a COVID-19, dessa forma, o quadro de funcionários encontra-se debilitado. 2.4 Instrumentos utilizados para a coleta de dados Damiani et al. (2013, p. 62) explanam que o método das pesquisas do tipo intervenção apresentar o método, devem ser identificados e separados esses dois componentes principais: o método da intervenção (método de ensino) e o método da avaliação da intervenção (método de pesquisa