UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP BRUNO PEROZZI DA SILVEIRA Utopia e pessimismo: Contribuições de Herbert Marcuse à Educação. Araraquara / São Paulo 2014 BRUNO PEROZZI DA SILVEIRA Utopia e pessimismo: Contribuições de Herbert Marcuse à Educação. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – UNESP – campus de Araraquara para obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Linha de Pesquisa: Estudos históricos, filosóficos e antropológicos sobre escola e cultura. Orientadora: Profª Drª Paula Ramos de Oliveira. Araraquara / São Paulo 2014 Silveira, Bruno Perozzi da Pessimismo e Utopia: Contribuições da Teoria Crítica de Herbert Marcuse à Educação. / Bruno Perozzi da Silveira – 2014 218 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Educação Escolar) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara) Orientadora: Paula Ramos de Oliveira l.Teoria Crítica da Sociedade. 2.Herbert Marcuse.3.Unidimensionalidade. 4. Educação e Emancipação. 5. Fim da Utopia. I. Título. BRUNO PEROZZI DA SILVEIRA Utopia e pessimismo: Contribuições de Herbert Marcuse à Educação. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – UNESP – campus de Araraquara para obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Linha de Pesquisa: Estudos históricos, filosóficos e antropológicos sobre escola e cultura. Orientadora: Profª Drª Paula Ramos de Oliveira. Data da defesa: 21/ 08/2014 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Profª. Drª. Paula Ramos de Oliveira (UNESP/FCL-Ar) Presidente e Orientadora Membro Titular: Profª Drª Maria Ribeiro do Valle (UNESP/FCL-Ar) Membro Titular: Profº Drº Luiz Roberto Gomes (UFSCar) Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara À minha mãe Sonia. (Porto seguro e força motora) Agradecimentos Todo conhecimento humano é compartilhado. Podemos dizer que o conhecimento é parte constitutiva da experiência e que, do mesmo modo, a experiência se sintetiza em conhecimento. Assim, esta dissertação não é um trabalho individual, mas uma construção social, que sintetiza tanto os conhecimentos obtidos pelo estudo e pela dedicação, quanto aquele oriundo de conversas e diálogos, formais e informais. Todo conhecimento é construído na relação com o outro. Esses outros são tão inúmeros que é impossível de se contabilizar, mas quero deixar aqui o meu agradecimento àquelas pessoas que mais próximas estiveram (mesmo quando distantes geograficamente) e que me ajudaram não somente na construção do conhecimento presente neste trabalho, mas que de diversas maneiras me auxiliaram na formação intelectual e ética, como mestrando e pessoa. Agradeço primeiramente a Professora Paula Ramos de Oliveira, que me atendeu ainda na graduação, mesmo sendo um “estrangeiro” das Ciências Sociais, e me ajudou a dar forma aquele turbilhão de ideias que formavam o início de minha monografia. Quando optei pelo mestrado em Educação Escolar na UNESP de Araraquara novamente pude contar com a sua orientação e com sua amizade. Sou imensamente grato por sua aposta e por seus esclarecimentos. Quero ainda registrar o meu agradecimento e admiração pelo Professor Newton Ramos de Oliveira (in memoriam), que não conheci pessoalmente, mas que me auxiliou com seus textos e interpretações que o colocam como expoente do estudo da educação pela perspectiva da Teoria Crítica da sociedade. (Sinto como se o tivesse conhecido pelo contato com sua filha e suas obras.) Sou profundamente grato aos professores que compuseram a Banca de qualificação: Professor Dr. Ari Fernando Maia e Professora Drª. Maria Ribeiro do Valle. E aos professores que comporão a Banca de Defesa: novamente a Professora Drª.Maria Ribeiro do Valle e o professor Dr. Luiz Roberto Gomes, da UfSCar, que atenderam prontamente ao convite e que contribuíram e contribuirão de maneira essencial para a minha formação. Gostaria de registrar minha admiração pelo trabalho intelectual destes professores e pelas pessoas que são. Obrigado Ari, pelos esclarecimentos tão essenciais e, obrigado Maria Ribeiro, pela análise séria e aberta de meu trabalho, que gerou modificações esclarecedoras e contribuições imprescindíveis. Quando ingressei na turma de mestrado em 2012 não tive tempo de me sentir sozinho ou isolado, agradeço por isso às minhas colegas de turma e amigas queridas: Juliana Duci (amiga de tempos, de ocupações, elucubrações e preocupações), Juliana Pimenta (por sua humanidade e doçura, essência maternal para o recém-chegado Sebástian) e Jéssica (com a profundidade de suas teorias e a diversão de sua presença). Não poderia deixar de agradecer imensamente meus grandes amigos, “irmãos de espírito”, meus товарищи: Erick (amigo de longa data e de longas caminhadas, interlocutor sempre pronto para o diálogo, nos corredores da universidade, nas madrugadas e etc. Grande amigo é também responsável pelos caminhos que trilhei, pelas reflexões e problematizações); Pedro (por sua companhia sempre assídua, pela compreensão e pela humanidade que seu libertarismo emana); Maria Teresa (que sempre me afirmou, mesmo quando eu mesmo não o fazia, que teve paciência com meus textos teóricos e poéticos, que está sempre por perto, mesmo tão longe) e Bruno (“mesmo que o tempo e a distância digam não”). Minha família, não somente pelos laços consanguíneos, mas pelo espírito de comunhão, pela ética de cumplicidade. Em especial a minha mãe Sonia (que não somente me gerou e criou, mas me permitiu ser criativo e me mostrou uma humanidade que é um contraponto a desumanidade dominante. Que tomou para si a tarefa de formar seus filhos e o fez de forma brilhante. É exemplo para mim de formação humanista, para a autonomia), e meus irmãos Rodrigo e Fabrício. Por fim agradeço minha companheira inalienável Luiza. Que escolheu trilhar comigo essas tortuosidades dos caminhos, que me apresentou um sentimento que é inexprimível na pauta fria, que me convenceu do brilhantismo do Guimarães Rosa (eu gracilianista convicto), que navegou dias, meses e madrugadas junto a mim e me ajudou nas incertezas, sendo amiga e interlocutora. Por me mostrar que a eudaimonia é possível. Agradeço a todos que de qualquer forma me ajudaram e me esclareceram, de forma direta ou indireta, em todos vocês imagino um abraço. XI Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert; es kömmt drauf an, sie zu verändern. XI Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo. (MARX e ENGELS, 1977, p.14) Resumo A presente dissertação se insere no campo da educação escolar, mais especificamente no campo da filosofia da educação. Assim, partindo de uma pesquisa de cunho bibliográfico, de caráter essencialmente conceitual tivemos por objetivo demonstrar quais contribuições os conceitos de Herbert Marcuse oferecem ao estudo da educação, mais do que isso procuramos dialogar com a obra de Marcuse e de outros autores da tradição crítica como Kant, Hegel e Marx, e assim como outros frankfurtianos como Adorno, Horkheimer e Benjamin, para compreendermos suas interpretações sobre o contexto político, ideológico, econômico e cultural de seus períodos, para, de posse destas informações, analisarmos nosso próprio contexto, atualizando e mantendo-nos sempre abertos ao diálogo e às problematizações. Partindo desta análise conceitual e contextual pudemos inserir o “problema da educação” e analisá-lo do ponto de vista da Teoria Crítica da sociedade, sempre focados em compreender o contexto existente e suas possibilidades. E é justamente nesta perspectiva dialética entre a compreensão do contexto de ampla dominação e coordenação − de redução do pensamento e do comportamento à dimensão do que é imposto − e as possibilidades de modificação qualitativa que podemos vislumbrar e nas quais encaixamos as possibilidades da educação. Nesta dialética entre o pessimismo e a realização da utopia tentamos apontar as possibilidades de uma educação para a emancipação e a formação para a autonomia, não como potencialidades irrealizáveis, mas como começos de caminhos trilháveis. Deste modo pudemos perceber, ao analisar textos de Marcuse e de outros autores frankfurtianos, tendo o cuidado da atualização, que a educação para a emancipação e a formação para a autonomia se inserem naquilo que Marcuse chama como “fim da utopia”, ou seja, como possibilidades de modificação qualitativa realizáveis, mas que vêm sendo constantemente impedidas pelas forças de afluência que visam a manutenção da realidade estabelecida através da redução do pensamento e do comportamento a uma só dimensão (unidimensionalidade do pensamento e do comportamento). Palavras–chave: Herbert Marcuse. Redução a uma dimensão. Educação. Emancipação. Fim da Utopia. Abstract The following work is inserted in the Education area, focusing specifically on Philosophy of Education. Thus, we start from an essentially conceptual biographical research in order to demonstrate some contributions of Herbert Marcuse’s concepts to the study of Education. We also strived to perform a dialogue between Marcuse’s work and other authors from the critical tradition such as Kant, Hegel and Marx, and Frankfurtians as Adorno, Horkheimer and Benjamin, to comprehend their interpretations about the political, ideological, economical and cultural contexts of their time so we can analyze our own context to keep ourselves open and updated to dialogues and problematization. Starting from this contextual and conceptual analysis we were able to insert the “educational problem” in it and analyze it under the Critical Theory of Society point of view, focusing on understanding the existing context and its possibilities. Through this dialectical perspective between the comprehension of a wide domination and coordination context – with the reduction of thinking and behavior to what is imposed – and the possibilities of a qualitative change, we are able to foresee where to fit the possibilities of education. Under this dialectic between pessimism and the performance of the utopia, we try to point out the possibilities of an education for emancipation and autonomy formation not as unperformable potentialities, but as starting points of possible paths. In this work we were able to perceive, analyzing Marcuse’s texts and other Frankfurtian author as well as keeping in mind the necessary updates, that an education for emancipation and autonomy formation are inserted in Marcuse’s “end of utopia”, that is, real possibilities of qualitative change, but ones that have been constantly stopped by forces that look forward the maintenance of a reality established through thinking and behavior reduction to only one dimension (known as the unidimensionality of thinking and behavior) Keywords: Herbert Marcuse. One dimension reduction. Education. Emancipation. End of Utopia. SUMÁRIO Introdução 01 1: Fundamentos da Teoria Crítica da Sociedade: Perspectivas para a Educação. 07 1.1 Algumas Bases teóricas e conceituais da Teoria Crítica da sociedade 07 1.2 Contribuições da Teoria Crítica da sociedade para pensarmos a Educação. 17 1.2.1 Theodor W. Adorno: Indústria cultural e semiformação 19 1.2.2 Walter Benjamin e o esvaziamento da experiência: algumas consequências para a Educação. 24 1.2.3 Herbert Marcuse: educação em contextos de pensamento e comportamento reduzidos a uma dimensão. 28 2: O bloqueio do pensamento conceitual: contribuições de Herbert Marcuse para compreendermos o atual contexto. 30 2.1 Restrição do pensamento e do comportamento na sociedade industrial: o homem reduzido a uma dimensão. 31 2.2 Novas perspectivas dialéticas: o conceito de negação em contextos de ampliação da dominação ideológica 32 2.3 A necessidade da compreensão crítica da redução do pensamento a uma dimensão. . 35 2.3.1 O pensamento restritivo: A consciência Feliz. 41 3: A teórica crítica de Herbert Marcuse: Caminhos teóricos entre o pessimismo e o fim da utopia. 53 3.1. Apontamentos sobre o referencial teórico-metodológico de Herbert Marcuse. 54 3.1.1 Materialismo Histórico e interpretações de Sigmund Freud em Marcuse: A importância das atualizações da perspectiva hegeliano-marxista 59 3.1.2Materialismo-histórico e fenomenologia: Influências de Heidegger na obra de Marcuse. 63 3.2 Possibilidade e potencialidades na Educação: Caminhos e Utopias 66 4 Educação e utopia. Possibilidades de uma educação para emancipação no atual contexto 73 4.1 Formação cultural (Bildung) e Semiformação (Halbbildung): A questão da formação na sociedade administrada. 74 4.2 Educação para a Emancipação 83 4.2.1 Educação − para quê? Emancipação e autonomia. 90 Introdução A insurgência de Maio de 1968 foi um fato de suma importância na história contemporânea. A onda de protestos que se levantou na universidade de Nanterre e se alastrou por toda a França se ampliando por diversos países da Europa, atingiu diversas frentes de contestação. (DEBORD, 1997). Contestou-se a sexualidade reprimida e repressiva, o modo de vida burguês em pleno welfarestate, a estética envelhecida, as condições de trabalho dos operários e campesinos, as diretrizes enrijecidas das velhas universidades com suas patrulhas ideológicas. Maio de 68 construído através de uma série de questionamentos, críticas e ações, foi o alerta generalizado, o protesto contra o que é, um grito, essencialmente jovem, contra a velha burguesia que se esbaldava em seu conforto estabelecido. De fato, estes protestos se dão, como reitera Herbert Marcuse, contra a ideia de progresso que impulsionou o capitalismo desde os tempos da Revolução Industrial do século XIX. As promessas do progresso, que encantaram liberais e iluministas e que fomentaram as agitações otimistas com perspectivas de pacificação e diminuição da labuta, revelaram uma terrível capacidade de gerar barbárie. O século XX foi o mais sangrento da história, as grandes guerras dizimaram o otimismo, e mostraram que a razão pode ser utilizada como instrumento para a mortandade. Este progresso, visto como a marcha ininterrupta da história oculta, a cada passo, possibilidades e potencialidades de outras formas de organização da sociedade, perpetuando a abundância e a miséria − através do amplo oferecimento dos bens de consumo e não de sua privação (MARCUSE, 1979, p.29) −, aproximando civilização e barbárie. Relembrar o fantástico levante de 1968 é sempre necessário, não só para pensarmos sobre as contestações do século XX, mas para compreendermos a capacidade criativa que pode surgir em um contexto de administração total. Um fato curioso ao pensarmos sobre o Maio de 68 é que, frente ao otimismo do levante, frente à realização daquela “carência da sociedade”1, a obra de Marcuse, publicada nos Estados Unidos em 1964 One-dimensional man: Studies in theIdeologyofadvanced Industrial Society tenha alcançado altos níveis de venda. O texto em si demonstra-se pessimista2 quanto à ideia de progresso disseminada, já que Marcuse trata da ampliação da dominação em um contexto de bem estar social, o que facilitaria segundo ele, a ampliação quase irrestrita da ideologia dominante. O pessimismo demonstrado por Marcuse nesta obra lançada em 1964 contrasta, sem dúvidas, com o otimismo de um período de profundas efervescências como a insurgência de 1968. Segundo Ilan Gur-Ze´Ev, justamente na obra One-dimensional man: Studies in theIdeologyofadvanced Industrial Society3, 1Marx descreve esta carência nos Manuscritos de 1844, ao falar sobre as reuniões dos socialistas franceses, onde a “fraternidade humana não é uma frase vazia entre eles, mas uma verdade, e a nobreza da humanidade brilha nessas figuras endurecidas pelo trabalho.” (MARX apud LÖWY, 2002, p.112). 2 Devemos deixar claro que o sentido do pessimismo desenvolvido por Marcuse não é o mesmo do uso comum ou do que encontramos nos dicionários, ou seja, como uma “disposição de espírito que leva o indivíduo a encarar tudo pelo lado negativo, a esperar de tudo o pior; caráter das doutrinas metafísicas ou morais que afirmam a supremacia do mal sobre o bem e costumam levar a adoção de uma atitude geral de escapismo, imobilismo ou conformismo [...]” (AURELIO, 1999, p.531). Devemos compreender este pessimismo proposto por Marcusede uma perspectiva dialética, que, partindo da compreensão crítica da realidade possa encontrar e propor caminhos e possibilidades alternativas. 3 É importante termos cuidado com a tradução da expressão One-dimensional manpara “Homem unidimensional”. Esta tradução poderia nos levar ao engano de entender que, para Marcuse, na atual sociedade não existiriam outras “dimensões”, o que levaria a afirmação de que o Homem é unidimensional. De fato, como veremos adiante, para Marcuse as múltiplas dimensões de possibilidades e críticas estão, em nosso contexto,reduzidas a uma dimensão pela dominação ideológica e material vigente, o que não exclui a existência real de inúmeras outras possibilidades e potencialidades. Utilizaremos, por vezes, a tradução para o português de GiasoneRebuá, da 5ª edição da Zahar editores, de 1979, com o título:A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional,onde os termos são traduzidos por unidimensional, por isso, sempre que necessário, recorreremos ao termo em inglês, ou a notas de rodapé para clarificar a compreensão. Marcuse manifesta um pessimismo histórico que difere muito do pessimismo filosófico manifestado por Benjamin, Adorno ou Horkheimer. [...] Uma reconstrução da Ideologia da sociedade industrial, de Marcuse revela duas concepções de progresso em sua obra: uma delas é concebida como “genuína” ou “boa”, enquanto a outra nada mais é do que a sofisticação e progresso do mal. E é esta última, de acordo com Marcuse que está sendo realizada desimpedidamente na presente sociedade pós- industrial. (Marcuse 1971, p.20, 32) [...] Resumindo este ponto em outro texto também não publicado, Marcuse conclui: “A sociedade industrial não têm futuro” (Arquivo Marcuse 569.00) E, em outro texto não publicado, diz ele a esse respeito: “Ser hoje um realista significa tornar-se um pessimista.” (Arquivo 406.00, p.36). (GUR-ZE´EV, 2004, p.21-22). A questão que emerge, frente ao pessimismo de Marcuse, é: quais os motivos que levariam à leitura e à exaltação desta obra em pleno maio de 68, e mais do que isso, o que levaria Marcuse a se identificar com estes movimentos e com diversos outros que ele presenciava em seu refúgio nos Estados Unidos? É justamente esta indagação que dá início à presente dissertação, a compreensão histórica das dimensões utópicas e pessimistas. Ou seja, a compreensão de que estas perspectivas estão profundamente enraizadas no contexto em que Marcuse escreve. Não devemos esquecer a afirmação do materialismo histórico de Marcuse, o que torna claro que o pessimismo ou o maior vislumbre de possibilidades e potencialidades dependem das condições materiais específicas de dado período histórico. Ao contrário do que se afirmou até mesmo por autores do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, Marcuse não encontra nos movimentos de contestação da década de sessenta uma resposta definitiva para os problemas da organização proletária, muito menos via naqueles um atalho para a revolução, pelo contrário, o apoio que Marcuse oferece a esses movimentos deve ser entendido de acordo com o contexto específico no qual está inserido, uma vez que, Ainda não há, apesar da eclosão dos movimentos estudantis, de libertação colonial, dos direitos civis, dos hippies, uma organização solidária que promova a confluência de tendências tão diversas. As contestações econômicas, políticas e culturais, tanto no Ocidente como no Oriente, são consideradas por Marcuse – que em momento algum deixa de reconhecer as suas limitações – forças que permitem vislumbrar a “realização da utopia”, desde que estejam dirigidas à ruptura do sistema. Ao defender o fim da utopia, Marcuse afirma continuar sendo o marxismo o guia da oposição, que deve empenhar-se para atualizar os seus conceitos com o intuito de evidenciar as possibilidades de superação da ordem existente. (VALLE, 2006, p.107, 108). Esta compreensão histórica, portanto, descortina a utilização do método do materialismo-histórico, por Marcuse, de maneira profundamente dialética. Em nosso contexto, onde aquela “sofisticação e progresso do mal” (GUR-ZE´EV, 2004, p.22) se amplia de maneira assustadora, onde a dominação ideológica propõe o crescente esvaziamento do pensamento conceitual, da crítica e da reflexão filosófica, em que o pensamento e o comportamento se encontram reduzidos à uma só dimensão: à dimensão do que é proposto, aceito e incessantemente reproduzido; torna-se de suma importância não só a compreensão do método dialético proposto por Marcuse, mas da aplicação deste método, atualizando esta perspectiva, aos estudos da educação. Desta forma, nosso primeiro intuito, em linhas gerais, será o de compreender qual a situação da crítica em nosso contexto, quais as consequências deste gigantesco esvaziamento do pensamento, desta ampliação irracional da administração do indivíduo para o processo de obtenção do conhecimento historicamente acumulado. E, partindo destas atualizações da Teoria Crítica da sociedade, compreender a utopia como revelação das possibilidades existentes e encobertas pela naturalização da ideologia dominante. Neste sentido, partindo dos pressupostos da Teoria Crítica da Sociedade, tentaremos entender se a educação para a emancipação e para a autonomia aparece como possibilidade, como potencialidade em nosso contexto. Para começar a trilhar este caminho, partimos de um rápido levantamento de algumas referências teóricas e conceituais da tradição teórica crítica. Por isso o que nos propomos na primeira seção (Fundamentos da Teoria Crítica da Sociedade: Perspectivas para a Educação) é uma breve rememoração acerca das bases da crítica, em especial a alemã, partindo de Kant com seu criticismo, que tem como base a síntese entre o racionalismo e o empirismo. Após este primeiro contato com a crítica kantiana, passaremos à análise teórica de Hegel e o desenvolvimento de sua dialética. A análise que Marcuse realiza em Razão e Revolução será essencial para compreendermos a importância de Hegel para a teoria crítica alemã e mais do que isso para entendermos Hegel em seu contexto mais amplo, como espectador e crítico da Revolução Francesa. Com a morte de Hegel abre-se espaço para diversas correntes teóricas se proliferarem na Alemanha de meados do século XIX, desde aqueles que abandonam a dialética hegeliana até as correntes hegelianas de esquerda nas quais um jovem brilhante desponta. Marx, inserido em seu contexto, dialoga teoricamente com Kant e Hegel e encontra no materialismo de Feuerbach um bom começo para a formulação de seu materialismo histórico. O jovem-Marx na construção de seu caminho teórico parte da crítica do idealismo hegeliano e da crítica ao materialismo de Feuerbach para formular sua teoria crítica. O materialismo-histórico dialético muda para sempre a maneira de se compreender o contexto histórico e a própria história. Marx relega aos homens não somente a culpa pela crescente desumanização capitalista, mas também lhes entrega a capacidade de fazer história, de construir uma nova história. Esta rápida apresentação demonstra as bases mais sólidas das formulações teóricas dos frankfurtianos. Esta tradição é atualizada e aplicada à crítica das novas formas materiais, ideológicas e culturais de dominação. E é nesta análise mais ampla que inserimos o problema da educação, ou seja, devemos partir de uma análise crítica das bases materiais e espirituais de nosso contexto, para, partindo desta base, entender o problema da formação e da educação, e até mesmo vislumbrar possibilidades e apontar começos de caminhos para transformações qualitativas. Na continuidade de nossa proposta, a segunda seção (O bloqueio do pensamento conceitual: contribuições de Herbert Marcuse para compreendermos o atual contexto) se inicia com uma análise mais aprofundada das ideias de Marcuse, em especial aquelas contidas em sua obra de referência One-dimensional man: Studies in the Ideology of advanced Industrial Society. Este estudo, em linhas gerais, tem por intuito demonstrar o avanço do processo de redução do pensamento e do comportamento a uma só dimensão. Neste sentido podemos compreender não somente quais as bases sobre as quais Marcuse realiza sua crítica da sociedade industrial, mas também quais críticas ainda se mantêm, quais devem ser atualizadas e, ainda, quais as consequências do processo de redução do pensamento e do comportamento a uma dimensão, para a educação, entendida como processo social e intelectual. Assim o itinerário que seguimos nos leva a problematizar a redução e o bloqueio da capacidade de pensar conceitualmente, assim como a progressiva perda da capacidade de refletir filosoficamente sobre a realidade e, por fim, o fechamento da possibilidade crítica da arte e da imaginação. Esta seção trilha um caminho que nos leva a uma perspectiva pessimista, pois demonstra o fechamento e o ocultamento das possibilidades de transformação qualitativa de nossa realidade. Esse caráter pessimista perpassa a obra de Marcuse de maneira muito profunda. Não obstante, para Marcuse é exatamente destas constatações terríveis que devemos partir para (re)encontrar as potencialidades e possibilidades impedidas pelo projeto ideológico e cultural de nosso período. Devemos tomar este pessimismo, esta compreensão profunda da realidade, como força motora para propor o fim da utopia, ou seja, devemos entender quais as possibilidades materiais e intelectuais encontram-se ocultas em nosso período e realizar estas utopias. Justamente partindo destas proposições que a terceira seção (A teoria crítica de Herbert Marcuse. Caminhos teóricos entre o pessimismo e o fim da utopia.) apresenta a teoria crítica de Marcuse. De início é importante compreender quais são as bases teóricas e metodológicas do autor, desde o materialismo-histórico dialético, até a psicanálise freudiana, passando pelas claras influências de Heidegger. Deste modo será possível compreender as proposições de Marcuse que nos possibilitem partir de uma profunda análise crítica de nosso período para a tentativa de descortinar as possibilidades de realização das utopias. E é como possibilidade realizável que entendemos a educação para a emancipação. Os caminhos entre o pessimismo e o fim da utopia nos possibilitam entender a educação enquanto meio para a transformação qualitativa. Esta será a proposta da quarta e última seção: Educação e Utopia. Possibilidades de uma educação para emancipação no atual contexto. A ideia de educação para a emancipação será central na última seção. Desse modo, partimos de Adorno, com seus profícuos estudos sobre formação cultural e educação, para descortinar as possibilidades de uma educação transformadora, que impeça a possibilidade que Auschwitz ocorra novamente e que demonstre as possibilidades de resistência à barbárie que a civilização carrega consigo. Por fim, realizaremos uma aproximação entre Adorno e Marcuse no que diz respeito à compreensão da educação para a emancipação e a construção da autonomia como possibilidades que se encontram impedidas e que só podem se realizar com uma nova perspectiva sobre a formação cultural (Bildung) e a educação, com a realização destas utopias. Seção 1: Fundamentos da Teoria Crítica da Sociedade: Perspectivas para a Educação. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troco a moeda miúda do “atual”. […] Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. (BENJAMIN, 1987, p.119) Fazer um levantamento sobre os fundamentos da chamada Teoria Crítica é uma tarefa de grandes proporções. Por isso o que nos propomos nesta primeira seção é uma rápida descrição de algumas bases teóricas e conceituais do que podemos chamar de tradição teórica crítica, tendo como foco, em específico, alguns autores essenciais, dentre eles Kant, Hegel e Marx. Esta descrição, mesmo que breve, é importante para uma contextualização sobre as produções dos autores da primeira geração da “Escola de Frankfurt” que são a base teórica central deste trabalho. Assim, feita uma breve rememoração sobre as origens do que entendemos por crítica, chegamos a apresentação dos autores frankfurtianos Tal apresentação têm como fio condutor seus conceitos centrais e de maneira mais direta aqueles que dialogam com o problema da educação. Assim, esta seção abre as portas para uma discussão que visa aproximar conceitos de Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse inserindo-os na problemática ampla da educação. 1.1 Algumas bases teóricas e conceituais da Teoria Crítica da sociedade A análise crítica da sociedade não é novidade dentro do campo das ciências humanas. Esta perspectiva acompanha o desenvolvimento do pensamento ocidental, sendo, talvez, formulada de maneira mais complexa e sistematizada por Kant. Após Kant desenvolver e demonstrar a importância da análise crítica para a filosofia, o pensamento ocidental jamais pode ficar impune frente a esse tipo de análise. O criticismo kantiano surge em um intenso diálogo com as correntes empirista, de David Hume e John Locke e racionalista, fundada por René Descartes. Kant, para a formulação de sua teoria crítica, parte de um reordenamento dessas duas linhas teóricas. Pois, por um lado, para a realização do projeto kantiano, o empirismo seria necessário, pois com ele seria possível controlar os “excessos” racionalistas, visto que na visão do criticismo, o conhecimento não derivaria somente dos fundamentos da razão. Por outro lado, deve-se evitar que o empirismo negue as idéias inerentes à razão, já que elas são essenciais à estruturação do conhecimento humano. Desta maneira, a o projeto da filosofia crítica de Kant é demonstrar que a metafísica tem por pressuposto a demonstração dos princípios a priori que condicionam e experiência humana e como eles funcionam diante do mundo empírico. No entanto, se Kant sistematiza de maneira mais complexa o pensamento crítico, é possível afirmar que em Hegel encontramos uma preocupação metodológica essencial, que inaugura um novo momento não só na filosofia alemã, mas como em todo o pensamento ocidental. Herbert Marcuse realiza um profundo estudo sobre o pensamento hegeliano em sua obra Razão e Revolução (1978). Assim, ao afirmar que o idealismo alemão, de Kant à Hegel, surge nas últimas décadas do século XVIII4 e se desenvolve como resposta ao desafio vindo do conturbado cenário sócio-histórico que precede e acompanha a Revolução 4 A obra de Kant Crítica da Razão Pura é de 1781. Francesa, Marcuse nos leva à compreensão de que as novas características da sociedade nascente determinam de maneira geral a forma pela qual os homens pensam sobre si e sobre sua sociedade. É dessa perspectiva que o autor afirma que este idealismo alemão representa, na história do pensamento europeu, uma perspectiva coerente com contexto de profundas mudanças sociais e políticas, uma visão da potencialidade e da autonomia que livraria a humanidade da opressão das forças naturais e sociais. Assim, a Razão que fora princípio motor do apogeu da filosofia grega5 podia retornar de fato e realizar tudo aquilo que o Renascimento e a Revolução Científica que se iniciaram no século XVI previram. Abriu-se a possibilidade de levar ao limite o pensamento iluminista que movimentou a paixão dos revolucionários burgueses. “Daí em diante, a luta contra a natureza e contra a organização social deveria ser orientada por seu próprio progresso no conhecimento. O mundo deveria tornar-se uma ordem de razão.” (MARCUSE, 1978, p. 17-18). O pensamento hegeliano tem como estrutura essencial uma série de conceitos derivados diretamente da ideia de razão. Devemos ter o cuidado de não identificar esse aspecto conceitual do sistema hegeliano com uma “obscura metafísica que de fato nunca foi” (MARCUSE, 1978, p. 19). A perspectiva de Hegel tem um profundo caráter histórico; o significado de seus conceitos não pode ser compreendido separado do contexto histórico em que fora produzido. Marcuse afirma que o próprio Hegel havia relacionado seu conceito de razão com a Revolução Francesa. O caráter histórico da construção conceitual hegeliana fica claro na passagem das dissertações sobre a filosofia da história que Marcuse destaca: Ainda não se havia percebido, desde que o sol se fixara no firmamento, os planetas girando à sua volta, que a existência do homem tinha como centro sua cabeça, isto é, o pensamento, sob cuja inspiração se construiu o mundo da realidade, Anaxágoras foi o primeiro a dizer que o Nous governa o mundo: nunca porém, até agora, atingira o homem a compreensão do princípio que afirma que o pensamento deve governar a realidade espiritual. Todos os seres pensantes participam do júbilo desta época. (HEGEL apud MARCUSE, 1978, p.19) O pensamento hegeliano demonstra, dessa forma, não só a confiança na potencialidade humana em um contexto de profundas mudanças, mas também a capacidade 5 O período clássico da filosofia grega, também chamado de período socrático, se desenvolveu entre os séculos V e IV a. C. e teve como características a ênfase nas questões antropológicas e a maior sistematização do pensamento através do uso da Razão. do pensamento humano de “submeter a realidade dada aos critérios da razão.” (MARCUSE, 1978, p.19). O caminho para atingir estas potencialidades seria através do uso da crítica como forma de compreender a realidade. O pensamento racional crítico é, portanto, pressuposto para que o homem possa organizar a realidade de acordo com suas capacidades e potencialidades. Essa perspectiva positiva acerca da potencialidade da razão na realização da história humana, que rendeu críticas à Hegel pelo caráter conceitual, deve ser compreendida em seu contexto sócio-histórico. Hegel escreve em uma Alemanha que não tinha ainda uma classe média forte e consciente. Assiste com assombro e deslumbre os acontecimentos franceses, e desta plataforma propõe a razão como o caminho da emancipação e da luta contra o absolutismo e os resquícios medievais que ainda assolavam a Alemanha fragmentada. Sua visão é resultado das possibilidades que se abrem em momentos de reviravolta da História. Na esteira do criticismo kantiano, que tenta compreender qual seria o verdadeiro valor do conhecimento, colocando a razão em julgamento para entender o que pode ser conhecido e quais conhecimentos não têm fundamento, Hegel entende a razão como histórica, ou seja, parte da ideia de que a verdade é construída no tempo e que a consciência interfere ativamente na construção da realidade. Sua filosofia do devir, que compreende a dinâmica do real através da dialética é essencial para a compreensão do turbulento período histórico em que viveu. A compreensão de razão que estrutura o sistema filosófico hegeliano é mais do que um delírio metafísico, ela é profundamente histórica e abre a possibilidade de entendimento de que é a razão que movimenta e transforma a realidade de fato. A razão, portanto, é essencialmente uma força histórica. Sua realização constitui um processo no mundo espácio-temporal e, em última análise, é a história total da humanidade. A palavra que designa razão como história é espírito (Geist): o mundo histórico considerado em relação ao progresso racional da humanidade – um mundo histórico que não é uma cadeia de atos e acontecimentos, mas uma luta incessante para adaptar o mundo às crescente potencialidades da humanidade. (MARCUSE, 1978, p.23). Em uma Alemanha em franca decadência, Hegel se utiliza do pensamento e da razão crítica elegendo-os como caminhos e maneiras de realizar a liberdade e as potencialidades humanas. O caráter histórico de suas teorias as retira do campo do idealismo puro, da filosofia transcendental, e as coloca no campo da história ao mesmo tempo em que “fez da filosofia um fator histórico concreto, e trouxe a história à filosofia.” (MARCUSE, 1978, p.27). Essa perspectiva dialética e histórica faz de Hegel uma das grandes referências do pensamento crítico. Se Kant havia, com toda a complexidade de suas teorias, sistematizado a razão crítica e a utilizado como método de compreensão da realidade, Hegel inaugura uma teoria crítica que se aproxima da história. Essa abertura filosófica torna central a compreensão da história. “A história, porém, quando plenamente compreendida, destrói o esquema idealístico.” Desta maneira “o sistema de Hegel está necessariamente associado a uma filosofia política.” (MARCUSE, 1978, p.28), e é dessa perspectiva histórica que este sistema deve ser compreendido. Hegel ainda viveu para ver a traição dos sonhos revolucionários na França, a ambição napoleônica e a frieza burguesa6 crescendo em ritmo acelerado. Seu otimismo, refutado pela racionalidade instrumental disseminada aceleradamente pelo progresso burguês, se esvai, mas o sentido crítico de sua filosofia permanece e gera consequências. O vácuo deixado por sua morte em 1831 é aos poucos preenchido pelos círculos intelectuais alemães. Neste contexto hegelianos de direita e os chamados jovens hegelianos desenvolvem suas interpretações. De qualquer forma, é inegável que a filosofia é totalmente transformada pela teoria crítica hegeliana. Lukács, na obra Ontologia do ser social (1979), se refere ao processo de dissolução da filosofia hegeliana como uma “virada materialista” (LUKÁCS, 1979, p.12). Após a morte de Hegel torna-se necessária uma profunda revisão da filosofia até então desenvolvida na Alemanha sob os domínios do idealismo. A cisão entre os hegelianos faz com que caminhos diferentes sejam trilhados. Inúmeros intelectuais passam a desenvolver suas teorias tendo como base a herança hegeliana, desde Max Stirner − com seu “anarquismo individualista”, orbitando uma fantasmagoria conceitual: o “Eu” − até Bruno Bauer. Os hegelianos ora se aproximam do liberalismo burguês, ora propõem um “socialismo de Estado” e até mesmo tentam aproximar o hegelianismo do protestantismo. (LÖWY, 2002, p. 88). 6 Termo utilizado por Adorno para se referir à indiferença que caracteriza as relações burguesas. Podemos encontrar este termo no famoso texto Educação após Auschwitz: “ Aqui vem a propósito algumas palavras acerca da frieza. Se ela não fosse um traço básico da antropologia, e, portanto, da constituição humana como ela realmente é em nossa sociedade, se as pessoas não fossem profundamente indiferentes ao que acontece com todas as outras (...) Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não teriam aceito.” (ADORNO, 2003, p.133 e 134) Porém, dentre os hegelianos dos círculos intelectuais alemães destaca-se Ludwig Feuerbach, que empreende o que Lukács (1979) denomina como uma virada materialista de caráter ontológico, ao confrontar o idealismo hegeliano ao materialismo ─ que Feuerbach retoma do século XVIII ─ e ao propor, dessa maneira, uma nova orientação filosófica. A importância das teorias de Feuerbach é potencializada pelas interpretações que Marx realiza de seus escritos, inicialmente como um elogio ao seu materialismo (retomado dos materialistas franceses do século XVIII), e posteriormente como uma superação dialética (Aufhebung) da cisão entre práxis e poiésis, entre o discurso teórico e a prática das classes trabalhadoras, explícita nas Teses Sobre Feuerbach. É justamente na esteira desta virada materialista que Karl Marx desenvolve suas interpretações da realidade. Os escritos do “jovem Marx” dialogam diretamente com o sistema filosófico hegeliano. O desenvolvimento teórico de Marx não pode ser compreendido descolado de seu desenvolvimento político e filosófico. Seus escritos de juventude revelam, de certa forma, uma transição desde o jovem-hegelianismo até a formulação teórica do método materialista-histórico dialético. O estudo que Michael Löwy realiza no livro A teoria da revolução no jovem Marx (2002) demonstra este caminho traçado por Marx. O ponto de partida deste percurso são os escritos compreendidos entre 1844 e 1848. Neste curto período de tempo Marx se defronta com uma cisão problemática comum à filosofia alemã, e de certo modo a toda a filosofia ocidental: a separação entre os âmbitos do pensamento e da história, da teoria e da prática. Marx reconhece nas proposições feurbachianas a única tentativa filosófica a ser tratada com seriedade no período de dissolução da filosofia hegeliana, porém não deixa de reconhecer os limites do materialismo de Feuerbach. Em textos como Os manuscritos econômicos e filosóficos de 1844, Marx já abandona a temática idealista jovem-hegeliana, passando a ter como foco a análise materialista da condição proletária. Nestes escritos, porém, Marx ainda permanece “feurbachiano” (LÖWY, 2002, p.139), aplicando o esquema de crítica da alienação religiosa, proposto por Feuerbach, à crítica da economia política, encontrando na alienação do trabalho o cerne desta crítica. Já no artigo publicado na revista parisiense Vorwärts, sob o título Glosas críticas marginais do artigo “O rei da Prússia e a reforma social”, Marx começa a se distanciar daquele materialismo proposto por Feuerbach. O ponto de partida deste distanciamento é um fato social e político: a insurreição dos tecelões da região alemã da Silésia em 1844. A insurreição dos tecelões, de certa maneira, “desencadeou” em Marx o processo de elaboração teórica que, em 1846, leva à ruptura definitiva com todas as implicações do jovem-hegelianismo, incluso Feuerbach. Durante esse processo desenvolve-se progressivamente, em seus diversos aspectos, a concepção marxista do movimento revolucionário comunista. Essa elaboração não se faz ex nihilo; ela parte de tendências reais do movimento operário europeu e de suas expressões ideológicas. Também parte, no entanto, de uma análise científica e crítica da sociedade burguesa e da condição proletária, análise que aproveita (criticando-os) os dados da ciência e da filosofia contemporânea: a economia política clássica, a “sociologia” dos socialistas utópicos, a dialética hegeliana. (LÖWY, 2002, p.138, grifos do autor) Este acontecimento dá início, portanto, a uma nova fase teórica de Marx, e pode ser considerado o começo do caminho que levaria à formulação da Ideologia Alemã e das Teses sobre Feuerbach, textos que viriam a inaugurar um momento novo no pensamento crítico, superando, através da dialética, a profunda cisão entre teoria e prática, já há muito fossilizada na filosofia alemã. A esse movimento de superação Marcuse denomina “advento da teoria social” estudo que compõe a segunda parte da obra Razão e Revolução (1978). Nesta análise é demonstrada uma modificação fundamental na filosofia alemã. Se Hegel havia trazido a “filosofia ao âmbito do estado e da sociedade” (MARCUSE, 1978, p.231), focando a análise em categorias sociais e econômicas, o havia feito através de conceitos filosóficos. “Mesmo os primeiros trabalhos de Marx não são filosóficos. Eles expressam a negação da filosofia” (MARCUSE, 1978, p.239). Assim, Marcuse afirma que “no sistema de Hegel todas as categorias acabam por se aplicar à ordem existente, enquanto que no sistema de Marx elas se referem à negação desta ordem.” (MARCUSE, 1978, p.239). O exemplo definitivo desta transição da teoria social fechada na ideia de razão e operada através de conceitos filosóficos para uma proposição de filosofia da práxis e, mais do que isso, de uma práxis revolucionária, está nas famosas Teses sobre Feuerbach (MARX e ENGELS, 1977, p.11). O tamanho da importância das famosas Teses sobre Feuerbach contrasta com sua extensão escrita. As proposições ali contidas dão início a um novo e frutífero momento nas teorias críticas. Marx, após um percurso de distanciamento do idealismo hegeliano e uma aproximação com o materialismo desenvolvido por Feuerbach, distancia-se deste último também para formular seu método. O materialismo-histórico dialético revoluciona o modo como a compreensão da realidade se dá: o pensamento crítico se desloca do plano das ideias e passa a integrar a materialidade. A teoria crítica passa a servir à transformação qualitativa da realidade dos homens e desse modo se torna práxis. A oitava e a décima primeira teses sobre Feuerbach resumem de modo sucinto e brilhante essa proposição do materialismo histórico: VIII Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que levam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis. [...] XI Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo. (MARX e ENGELS, 1977, p.14, grifos do autor) Esse longo caminho percorrido pelo pensamento crítico, desde o diálogo kantiano com o empirismo de Hume e com o racionalismo oriundo do cartesianismo, até a formulação do materialismo-histórico dialético por Marx é reflexo, constituído e constituinte de uma sociedade em plena transformação. A ascensão da burguesia ao poder desde o século XVII (com as conquistas burguesas na Inglaterra, que culminam na Revolução Gloriosa entre 1688 e 1689) transforma profundamente todos os âmbitos da vida humana. O modo de produção capitalista que se implanta de maneira total em meados do século XIX na Europa e se espalha por todo o globo no século XX não é somente um modo de produção da vida material, mas necessariamente e também um modo de produção espiritual. A burguesia ao chegar ao poder dissemina não somente seu modo de produção e reprodução da riqueza − baseada na existência da propriedade privada e, portanto, na existência de classes antagônicas – mas também sua ideologia. Encontramos na “Ideologia Alemã” a célebre passagem: As ideias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a elas sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais concebidas como ideias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as ideias de sua dominação. (MARX e ENGELS, 1977, p.72, grifos dos autores) Esta explicação tem como foco uma questão que se aprofunda e se complexifica. Na Ideologia Alem㸠publicada em 1846, Marx formula a “ontologia da produção”, esta obra de suma importância coroa o desenvolvimento intelectual de Marx, uma vez que nesta obra ele “rompe [...] com um dos mais antigos tabus da filosofia desde a antiguidade grega: a distinção radical entre a práxis, a ação livre de auto-transformação humana, e a poiêses, a fabricação das coisas no afrontamento com a natureza.” (LÖWY, 2002, p.21). Ao conceber suas teorias sobre a importância essencial da dominação ideológica para a perpetuação da dominação material, Marx se antecipa a uma temática central do século XX e de qualquer debate contemporâneo. Para Marx a alienação se manifesta na vida do proletário quando o produto do seu trabalho deixa de lhe pertencer, assim, não somente o produto do trabalho, mas como também o próprio trabalho aparece como um ente estranho, alheio ao trabalhador, dominando-o. Para que o trabalhador não possa tomar consciência de sua própria situação a ideologia oculta estas contradições. Assim, o indivíduo é levado a agir, pensar e sentir da maneira conveniente à classe dominante. Os indivíduos adaptam-se portanto às representações e normas não compreendendo de maneira total as diferenças de classes e os conflitos sociais, aceitando os interesses e ideais disseminados pela ideologia dominante, o que o leva, por conseguinte a não questionar a organização material da sociedade. A morte de Marx em 1883 não possibilitou que este visse surgir e se disseminar instrumentos como o rádio, cuja invenção data de 1896, e o cinema, criado em 1895. Esses instrumentos tornam-se, ao longo do século XX, meios de comunicação de massa, desembocando na criação da televisão e, já no fim do século, dos computadores e do acesso à internet. De fato, em si, os meios de comunicação não representam as ideias da classe dominante, porém, a massificação do acesso a estes meios, a centralização da propriedade de horários e programas nas mãos de poucos, geram grandes impérios de rádio e televisão − Hollywood nos Estados Unidos, talvez seja a cidade que melhor demonstre esta centralização. A ampliação do acesso aos aparelhos de recepção levou a uma utilização múltipla, porém com características comuns: a redução à forma mercadoria. A produção industrial de “mercadorias culturais” como nos demonstram Adorno e Horkheimer, deixam claro como esta popularização da recepção e a centralização da emissão, tornam estes aparelhos, estas medias, disseminadores quase unilaterais da ideologia dominante. Desta forma, o uso dessas mass media, não somente para a propaganda e o auto- elogio, mas também como imposição de um modo de vida, de um comportamento padronizado (mesmo que o padrão seja a multiplicidade) e de uma aceitação quase sem críticas do que é, passou a ocupar, desde meados do século XX, um importante papel na reprodução e na aceitação das relações materiais existentes. Frente à massificação desses poderosos instrumentos de dominação ideológicos as teorias que utilizam a crítica como método de análise não podem se furtar a contribuir neste debate. Deste modo, as rápidas transformações que ocorrem desde o fim do século XIX − a disseminação da razão instrumental como a única forma de pensar, as inovações tecnológicas, a primeira grande guerra, a Revolução Russa, meios de transporte mais rápidos e eficazes, o avião, dentre inúmeras outras − tornam urgente uma revitalização e uma atualização do pensamento crítico. O estudo do conceito de ideologia exige uma atualização constante, uma vez que de um ponto de vista materialista-histórico, as ideologias se modificam na medida em que as relações materiais da sociedade a qual elas pertencem se modificam. Assim, é compromisso de quem pretenda estudar de maneira crítica a sociedade e a história, uma preocupação constante com o estudo da ideologia. A base teórica da presente dissertação é a Teoria Crítica da sociedade, de modo que ao longo do escrito a preocupação com os aspectos ideológicos da dominação material de nossa sociedade terá um lugar central. A crítica marxista da ideologia não pode ser abandonada, mas sim atualizada, compreendida, para que possamos entender o papel central da ideologia na manutenção e reprodução das relações sociais e políticas de nossa sociedade. Assim, é central a compreensão desta forma de análise crítica que é base teórica e conceitual da presente dissertação e que se convencionou chamar Teoria Crítica da sociedade. Esta denominação está associada aos autores do Instituto de Pesquisas Sociais, na cidade de Frankfurt, na Alemanha. A proposta inicial para a criação do instituto era desenvolver estudos históricos tendo como objeto central o socialismo e os movimentos trabalhistas. O foco em tal objeto torna-se necessário em um contexto em que o marxismo era majoritariamente excluído dos círculos acadêmicos na Alemanha. Mas a partir de 1931, quando a direção do instituto é assumida por Max Horkheimer, as análises de cunho economicistas, até então vigentes, dão espaço para um novo tipo de abordagem. A centralidade da análise passa para a filosofia e para a história, e novas formas de se fazer teoria crítica, com abordagens culturais e sociais, são incentivadas e desenvolvidas pelos autores associados. As temáticas contemporâneas são contempladas ao mesmo tempo em que uma retomada do pensamento crítico, desde os gregos, é feita para a formulação de uma análise que, não por acaso, é denominada enquanto Teoria Crítica da sociedade. Os pesquisadores do instituto se utilizam dessa retomada conceitual para atualizar a teoria crítica e, partindo de suas premissas, desenvolver análises de sua sociedade em diversos campos teóricos: da filosofia até a psicologia, dos estudos da ética até os da estética. A base filosófica que permeia a maior parte da produção teórica deste primeiro momento do instituto é diversificada, com leituras e influências de múltiplos autores, desde Kant, Hegel e Marx, até Nietzsche e Freud, porém o fio condutor para as formulações frankfurtianas é a idéia de Razão enquanto esclarecimento e libertação (Aufklaerung). Ao desenvolver uma teoria crítica tendo como intuito a compreensão das contradições da Razão os pesquisadores das primeiras gerações da Escola de Frankfurt realizam a crítica da razão instrumental, da racionalização que promoveu o desencantamento do mundo, em um contexto repleto de esperanças que ecoavam da Rússia e de assombros e frustrações frente ao esvaziamento ético, ao aprofundamento das contradições sociais e a frieza burguesa se expandindo por todos os meandros da vida humana, tomando, em um mundo já dominado materialmente, a ideologia e o espírito de todos os setores da sociedade. Desta forma a junção entre tecnologia e morte − ensaiada na guerra da secessão norte-americana, testada na primeira guerra mundial e implantada totalmente na segunda guerra mundial − assim como a ascensão nazista na Alemanha e fascista na Itália, são antevistas e profundamente analisadas pela Teoria Crítica da sociedade. Os estudos relacionados ao Instituto de Pesquisas Sociais se desenvolvem até os dias de hoje expandindo-se para diversas áreas do conhecimento. Assim, na presente dissertação, teremos como foco as ideias e análises de Herbert Marcuse tendo como suporte as teorias de outros autores da primeira geração: Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e Walter Benjamin. Este recorte, além de necessário, delimita o campo de análise e a base teórica deste escrito. Ao nos debruçarmos nas ideias fecundas destes pesquisadores é possível eleger algumas análises e conceitos que têm centralidade na Teoria Crítica da sociedade e que devem ser centrais em nossas elaborações. Assim, ao direcionarmos essa base teórica central para o campo da Educação Escolar, podemos destacar, dentre as principais ideias destes autores, a profunda e inovadora reflexão sobre o conceito de história e sobre o esvaziamento da experiência autêntica de Walter Benjamin; as ideias de Horkheimer e Adorno acerca da indústria cultural, como dominação cultural e ideológica, e os escritos de Adorno que tratam da superação da barbárie plausível na sociedade tecnológica (como nos ensina a memória perturbadora do campo de concentração de Auschwitz), a massiva disseminação da semiformação a qual devemos contrapor uma educação para emancipação. E, por fim, o autor que será o principal foco de nossas elaborações: Marcuse crítico da sociedade tecnológica que desenvolve o conceito central desta dissertação: a redução do pensamento e do comportamento, no atual contexto, a uma só dimensão, através da administração total, do esvaziamento do pensamento conceitual e da reflexão filosófica, e o ocultamento das possibilidades de compreensão histórica e de intercambiar experiências. 1.2 Contribuições da Teoria Crítica da sociedade para pensarmos a Educação. As perspectivas apresentadas demonstram a importância das ideias dos autores acima citados para desenvolvermos uma análise crítica de nossa sociedade. Por esse mesmo motivo, a utilização deste suporte teórico para pensarmos a educação torna-se clara. Inúmeras publicações sobre educação têm sido produzidas utilizando-se desta perspectiva conceitual7. Isso demonstra, de certa forma, não somente a necessidade de uma perspectiva crítica do que hoje entendemos como educação, mas também a busca incessante de caminhos e possibilidades para a realização das potencialidades humanas de libertação, emancipação e autonomia. O campo da educação sempre se apresentou como contraditório. Se por um lado o ensino institucionalizado serve aos interesses da perpetuação, da aceitação e reprodução da dominação ideológica e cultural, por outro lado, a via da educação apresenta, por seu caráter peculiar, possibilidades de crítica, de proposições novas e, principalmente, de esperança, de utopias. Utopias estas que não devem ser compreendidas como algo nebuloso e irreal, pelo contrário, é possível pensarmos em uma formulação materialista para este termo. Marcuse deixa claro que o “fim da utopia” é sua realização, em determinado contexto social e histórico (MARCUSE, 1969). Assim, ao pensarmos na educação para a 7 Ao consultar o Banco de Teses da CAPES tivemos os seguintes resultados: Palavras-chave Teoria Crítica; Educação, foram encontrados 391 teses e dissertações. Palavras-chave Adorno; Educação, 102 resultados. Palavras-chave: Marcuse; Educação, 17 resultados. Palvaras-chave Walter Benjamin; Educação¸45 resultados. Palavras-chave Horkheimer; Educação, 33 resultados. emancipação, pensamos em algo possível, materialmente plausível, mas cuja realização, em nosso período histórico, encontra-se impedida por forças materiais e ideológicas contrárias às mudanças qualitativas. Desta forma podemos pensar em uma crítica à educação tendo como telos uma abertura de possibilidades de realização da emancipação e da formação cultural (Bildung)8 direcionada para a autonomia. Ao escolher o suporte teórico da Teoria Crítica o que propomos de fato é a utilização desta perspectiva como uma forma de compreender e situar a educação dentro do atual contexto histórico e, mais do que isso, entender, frente a uma análise das características gerais da dominação ideológica apresentada por Marcuse, quais as potencialidades de uma educação para a emancipação em nosso contexto histórico, abrindo, desta forma, o vislumbre de caminhos possíveis para a realização desta utopia. Os autores da Teoria Crítica da sociedade trabalham com o problema da educação por diversas vezes. Mesmo que não haja uma sistematização direcionada, o tema é recorrente em todos os autores da primeira geração da Escola de Frankfurt. A Teoria Crítica não se propõe a desenvolver uma teoria educacional específica. Pretende sim, a partir de suas análises sobre os problemas sociais do mundo ocidental, especificamente dos problemas culturais, trazer luzes e enfoque novos à concepção dialética da educação que vem sendo constituída, por muitas mãos e mentes, a partir de Marx. (PUCCI, p. 54, 1994) A importância das proposições dos autores da Teoria Crítica da sociedade, suas profundas análises da indústria cultural, seus questionamentos do conceito de história progressiva e homogênea, e a percepção do totalitarismo da dominação ideológica em sociedades reduzidas a uma dimensão, dotam essa perspectiva de grande atualidade, já que possibilitam a compreensão aprofundada dos diversos modos de dominação ideológica e material. Essa compreensão é pressuposto para pensarmos sobre os limites do conhecimento em nossa época. As formulações kantianas sobre o papel da crítica já delegavam a esse método de interpretação da realidade a imprescindível tarefa de conhecer os limites de cada período histórico. 8 Conceito desenvolvido principalmente por Adorno, que propõe uma formação integral, ampla, conceitual e histórica, e que se contrapõe ao seu esvaziamento, sua democratização sob a forma limitada de semiformação.(ADORNO, 2010, p.13). Ao perceber as limitações que são impostas ao conhecimento em sociedades cujo pensamento e o comportamento das pessoas encontram-se reduzidos a uma dimensão, podemos pensar em caminhos, possibilidades e utopias que não só se contraponham a esta redução a dimensão do positivo e da aceitação, mas que possam propor, pela via da educação para emancipação, a superação deste período. No limite, abrir possibilidades para que possamos “agarrar o freio de emergência da locomotiva da história” e realizar um “salto de tigre” – na alegoria benjaminiana (BENJAMIN, 1987, p.223-224) – por sobre a catástrofe contínua. Deste modo, ao compreender os limites do conhecimento e ao situar a educação dentro destes limites estreitos − que são afirmados pela ideologia da sociedade industrial e reproduzidos pela semiformação − devemos encontrar maneiras para que essas limitações sirvam de base para a efetivação do esclarecimento e de motor para uma prática educativa transformadora. 1.2.1 Theodor W. Adorno: Indústria cultural e semiformação. Adorno é sem dúvida um grande erudito do século XX. Sua crítica e seus conceitos centrais abrangem inúmeros campos de análise. Dessa forma, a vastidão de sua obra nos obriga a realizar certos “recortes” para nos determos na análise crítica da educação. Por isso a utilização dos conceitos de semiformação e da análise crítica da indústria cultural (realizada em parceria com Horkheimer) serão utilizadas ao longo da presente dissertação. Não propomos, entretanto, uma análise aprofundada da obra desenvolvida por Adorno, tendo em vista o tamanho desta tarefa e o caminho pelo qual seguiremos neste texto. Adorno é o único entre os autores das primeiras gerações de Frankfurt que trata diretamente do problema pedagógico e da educação. Adorno trabalha com o problema da educação diversas vezes em sua obra. Nas publicações em português temos alguns textos que se referem de maneira direta a esta temática, cuja maioria é composta por transcrições de conferências radiofônicas. Os preceitos fundamentais de seus escritos sobre educação talvez estejam em uma afirmação direta e clara do autor sobre o papel desta nas sociedades contemporâneas: evitar que Auschwitz se repita. Essa afirmação nos parece distante após quase setenta anos do término da Segunda Guerra Mundial. Mas o alerta contido nestas palavras não se perdeu com o tempo. Adorno trata desta questão em uma palestra denominada “Educação após Auschwitz” publicada em 1969. Neste texto pungente o autor demonstra algumas contradições essenciais do atual período histórico, tendo como foco o progresso irrefreável do processo civilizatório através da criação e exaltação de meios anticivilizatórios (ADORNO, 2003, p.119). Esta é umas das contradições essenciais de nosso período histórico e um dos principais problemas tratados pelos autores da Teoria Crítica da sociedade. O progresso e desenvolvimento do esclarecimento, tal como ele se dá, denota um avanço tecnológico sem precedentes, não obstante, este progresso carrega consigo desumanização crescente, um retorno eminente à barbárie. Esta crítica central ao progresso do esclarecimento através da razão instrumental é uma das preocupações centrais dos teóricos frankfurtianos. Frente a essa razão pervertida é necessário contrapor a razão crítica para compreender os limites do conhecimento em nossas sociedades. Assim a Teoria Crítica da sociedade se incumbe do papel histórico de compreender, de forma profunda e ampla, estes processos de perversão da razão, de desumanização e de dominação total. Mais do que isso, é pressuposto para tal análise crítica da sociedade “o julgamento de que, em determinada sociedade, existem possibilidades específicas de melhorar a vida humana e modos e meios específicos de realizar essas possibilidades.” (MARCUSE, 1979, p.14). Desta maneira Adorno afirma que o papel da educação deve ser o de possibilitar a autorreflexão crítica. O sentido maior da educação seria, desse modo, a emancipação, a autonomia (ADORNO, 2003, p.169). Este tipo de educação não permitiria o avanço da barbárie e a possibilidade de que um novo horror, tal como o de Auschwitz. Para Adorno as “tentativas pedagógicas” não têm sido suficientes. Já que a “formação cultural” (Bildung) é esvaziada e transformada em caricatura. A compreensão da semiformação é central para pensarmos a educação de uma perspectiva crítica. Isto por que a democratização da formação acaba por produzir uma deformação, ou melhor, “uma semiformação socializada, na onipresença do espírito alienado, (...) que não antecede à formação cultural, mas a sucede.” (ADORNO, 2010, p.9). Esta deformação a que Adorno se refere não deve ser entendida como uma formação interrompida, ou pela metade, mas como a formação esvaziada de crítica, que tem por pretensão a inserção e a adaptação dos indivíduos ao que é dado, da forma que é dado. Assim, este processo de semiformação impede não somente o surgimento de uma consciência crítica, mas também cria as bases para a “consciência coisificada”. Na obra de Adorno e Horkheimer outra ideia central e amplamente debatida é a de indústria cultural. Tal conceito é de suma importância para desenvolvermos esta dissertação, uma vez que diz respeito a uma crítica atual e que tem implicações diretas sobre a educação e o processo de ensino. O termo “indústria cultural” é criado para substituir o termo “cultura de massas” ─ que Adorno e Horkheimer vinham utilizando ─ visto que diversos enganos surgiam com o uso desta terminologia. Esses enganos dizem respeito ao entendimento de que essa cultura, da qual tratavam os autores, surgia espontaneamente das massas, sendo por isso legitimável. O que ocorre é o contrário: toda a produção de bens culturais é mais ou menos planejada, já que os produtos determinam o consumo e o consumo reproduz essa determinação em um processo infinito. Desta maneira, a indústria cultural é a integração deliberada pelo alto, sobre os consumidores. A indústria cultural promove a falsa união entre aquilo que Adorno denomina de “arte superior” (as Belas Artes) e “arte inferior” (arte popular). Essa união, porém, é realizada de tal maneira que se elimina de ambas qualquer caráter crítico e de oposição. Após o início da primeira Revolução industrial o consumidor passa a ocupar um lugar de objeto no processo da indústria cultural; as massas são elementos secundários, meras partes do processo que se impõe sobre elas. Desta forma, ocorre uma inversão: o consumo passa a ser quase todo determinado pela produção. Não obstante, a indústria cultural se traveste de uma aparência de inofensividade, de um apelo que se expressa enquanto geral. Isto se torna explícito na sua denominação mais comum: mass media. O que é colocado implicitamente por trás dessa aparência é a autoridade irrepreensível da “voz dos senhores”, a consolidação e o reforço infindável de uma mentalidade que exclui qualquer opção, crítica e transformação. As mercadorias da indústria cultural são orientadas pelo valor e não por seu conteúdo. Dessa forma, a indústria cultural exonera qualquer sentido artístico puro, qualquer capacidade emancipatória da arte e anula, por conseguinte, a força crítica da razão. Portanto, a autonomia da obra é negada pela primazia do efeito (que sob o capitalismo desenvolve-se como valor) sobre a obra. A cultura é totalmente absorvida pela lógica do mercado e assimila assim as condições existentes sob as quais vivem os homens. Mais do que isso: sob a incessante produtividade da indústria cultural, a cultura transforma-se de forma completa em uma mercadoria, em diversas mercadorias. Este conjunto de mercadorias, no entanto, é de ordem diferente uma vez que detém, além de suas funções de venda e troca, a função de disseminar, implantar e fortalecer o consentimento e o reconhecimento total e acrítico de cada indivíduo na sociedade que o envolve. Por baixo da aparência de total dinâmica, que é bandeira da indústria cultural, esconde-se a estagnação, o esqueleto do “sempre-igual”, que guia pela busca incessante do lucro pela via da aceitação e passividade. É importante deixarmos claro, entretanto, que quando Adorno elege o termo “indústria” para tratar da produção e distribuição dos bens culturais, não o aplica em sentido estrito, mas somente ao processo de racionalização das técnicas de distribuição e à estandartização da produção cultural. A indústria cultural reveste-se, no processo de distribuição, da aparência de individualizadora; seus produtos propõem o reconhecimento de cada individualidade, o que de fato mascara todas as fases anteriores do processo produtivo. Assim, aquilo que é totalmente reificado aparece como exemplo da pura imediaticidade e do bem viver. Esse mascaramento que leva ao engodo presta serviço à ideologia dominante. Por essa via, a expressão da massificação da ideologia dominante sob a fantasia dos bens culturais e da arte, mascara e sustenta o que há de desumano em suas conseqüências sociais. É possível afirmar os benefícios deste setor baseado no fato de a indústria cultural divulgar informações, conselhos e modos de comportamento. Ora, a questão de fato não é a existência ou não dessa divulgação, mas o que é comunicado, como é comunicado e o que é de fato consumido (ADORNO, 1977, p.291), desse prisma é possível concluir que as informações passadas são débeis e parciais, os conselhos tendenciosos e os modelos de comportamento aprovam, reproduzem e defendem o conformismo e a aceitação. Quanto à capacidade que supostamente os consumidores têm de aceitar ou não e de contestar os benefícios da indústria cultural, esta, ao que parece, encontra-se adormecida. Obviamente, há um nível de escolha e de aceitação voluntárias, porém, diversas instituições realizam o preparo anterior para tornar o indivíduo receptáculo do conformismo, ou mais ainda, fazem com que esta posição de receptáculo passe a parecer escolha do próprio indivíduo. O espectador ao se deparar com as necessidades criadas pela indústria cultural encontra na satisfação destas necessidades falsas um conforto mediado, que dificulta uma posição crítica quanto ao que é oferecido e consumido. Alguns defensores da indústria cultural atestam a capacidade que esta tem de promover a ordenação em uma realidade mutável e caótica: por o consumidor “no passo da realidade”. Porém, o que a indústria cultural faz, por detrás das aparências, é destruir as convenções erigidas sobre a Razão, segundo as quais a cultura deve reduzir a labuta e o sofrimento e ao ideal de uma vida justa. Mas, os conceitos de ordem que a indústria cultural inculca são aqueles que legitimam o status quo sem críticas nem análises, de maneira autoritária e unilateral. As conseqüências da amplitude que a indústria cultural atinge em nosso período são enormes. Pensar a educação em um momento em que esta forma de dominação se disseminou de tal modo que invade a sala de aula, promovendo um esvaziamento do pensamento conceitual e da compreensão histórica, é uma tarefa eminentemente crítica. A ampliação na utilização das tecnologias de informação e comunicação (TICs) deve ser analisada de maneira profunda e crítica. Neste momento, frente ao agigantamento da tecnologia no cotidiano das novas gerações devemos questionar, mais do que o uso dessas tecnologias, a maneira difusa e híbrida que a dominação ideológica atinge, tendo sempre em mente o alerta feito por Adorno: “Através da ideologia da indústria cultural a adaptação toma o lugar da consciência”. (ADORNO, 1977, p.294, grifos do autor) 1.2.2 Walter Benjamin e o esvaziamento da experiência: algumas consequências para a Educação. O conceito de experiência perpassa toda a complexa obra de Walter Benjamin, mas, segundo Jeanne Marie Gagnebin, em seu texto “Walter Benjamin ou a história aberta” publicado como prefácio para a segunda edição brasileira da reunião de textos de Benjamin intitulada “Magia e técnica, arte e política” (1987), é a partir da década de 1930 que o autor vai inserir este conceito dentro de uma nova problemática, diferenciando dois tipos específicos de experiência, a Erfahrung e a Erlebnis. Com essa diferenciação Benjamin nos coloca frente ao problema do esvaziamento da Erfahrung na sociedade capitalista, e a consequente ampliação e imposição da Erlebnis. Para compreendermos a importância desses conceitos na obra de Benjamin é necessário explicitar que não há contradição entre o uso do conceito experiência e o método materialista proposto pelo autor. Este alerta se faz necessário para que não se abra a possibilidade a uma interpretação mistificante da obra de Benjamin, que o retire do solo do materialismo-histórico. Deve-se ter claro que o conceito de experiência de Benjamin é construído de maneira dialética, tendo como preocupação as bases materiais e objetivas das formas de experiências que estão sendo progressivamente suprimidas. A experiência (Erfahrung), enquanto conceito central da filosofia benjaminiana, deve ser compreendida como parte da concepção filosófica e histórica do autor. Assim, ao afirmar no texto sobre o narrador que “as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo” (BENJAMIN, 1987, p. 198), Benjamin está se referindo às profundas transformações no mundo material e ético que vêm ocorrendo com uma rapidez sem precedentes. Transformações estas que já não possibilitam a experiência comunicável, pois retiram, no mundo capitalista moderno, a capacidade do indivíduo comunicar suas experiências, uma vez que esta comunicação exige uma comunidade e um tempo completamente distintos do isolamento e da rapidez do tempo progressivo imposto de maneira totalitária sobre os indivíduos. Dessa forma não devemos reduzir a concepção de experiência proposta pelo autor ao seu caráter romântico e nostálgico, também presente no obra de Benjamin, mas como parte integrante de sua contrução teórica, permeada por inúmeras referências, desde o judaísmo herdado da sua tradição familiar, até o romantismo alemão e o marxismo. A experiência (Erfahrung) está intimamente ligada à arte de contar, ou seja, à possibilidade de intercambiar aprendizados e juízos, à capacidade de compartilhar sentimentos e histórias presentes em um mundo rico em comunidade. “Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo destruiu.” (GAGNEBIN, 1987, p.10). E, mais do que isso, as ações de experiência vêm progressivamente perdendo suas bases materiais e éticas pelo isolamento e pela substituição da experiência comunitária e comunicável pela experiência vivida (Erlebnis) no isolamento. Dessa forma a Erfahrung se esgota ao perder suas bases de memória e tradição comuns, e o “indivíduo isolado, desorientado e desaconselhado (o mesmo adjetivo em alemão ‘ratlos’)” (GAGNEBIN, 1987, p.10) perde gradativamente a capacidade de comunicar e aprender através da experiência. Amigo e admirador de Benjamin, Theodor W. Adorno também trata da importância da experiência ao longo de sua obra. Apesar de não utilizar as mesmas categorias de Benjamin, Adorno e Horkheimer utilizam-se de uma metáfora curiosa em uma nota presente na Dialética do Esclarecimento (2007), denominada “Sobre a Gênese da Burrice”. Nesta nota o autor compara a inteligência às antenas do caracol, que através de sua visão tateante conhece o mundo, podendo se retrair frente a algum perigo, identificando-se, dessa forma, novamente com o todo. Assim, a maior liberdade e a existência mais esclarecida dependem do contínuo posicionamento para novas direções, e a manutenção dessas “antenas” no perímetro externo, no extra perimeter. O que Adorno propõe é que essas antenas atrofiam-se pelo medo e pela repressão das possibilidades e, assim, tendo “sido definitivamente afugentado da direção que queria tomar, o animal torna-se tímido e burro” (ADORNO, p. 239, 2007). Este processo se aproxima da análise que Benjamin faz no texto sobre o narrador (1987) ao alertar sobre a perda de uma faculdade eminentemente humana: a faculdade de intercambiar experiências. O problema colocado no famoso texto de Benjamin é o progressivo e incontível agigantamento das forças produtivas sobre o homem. A imposição de uma mixórdia cultural, técnica e científica erigida acima do “frágil e minúsculo corpo humano” (BENJAMIN, 1987, p.198) de forma tão devastadora que a transmissão da Erfahrung ─ pela autoridade da velhice ou pelo viajante conhecedor de outras paisagens ─ desaparece em um contexto onde o pensamento e a ação humana são direcionados para a afluência e a aceitação do sistema social como um todo. O aparato ideológico e cultural desse sistema social vende um padrão de comportamento que exclui a visão tateante, propagando e propagandeando a retração do conhecimento e a manutenção da inteligência no perímetro do afluente, do impositivamente aceito. Dessa maneira, as possibilidades de uma experiência comunicável, por sua memória e tradição comuns, sucumbem frente ao avanço da experiência vivida (Erlebnis). Este processo é percebido em forma de alerta por Benjamin: [...] quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie. (BENJAMIN, 1987, p.115). Este processo histórico indicado por Benjamin se impõe de forma ampla e espetacular e, portanto, mais aterrorizante. Dilacera as “antenas de caracol” da inteligência (para retomarmos a metáfora de Adorno), impossibilita o intercâmbio de experiências, e sobre essa cicatriz dolorosa, a “nova barbárie” começa a afundar suas raízes. A Erlebnis é fruto desse processo. Suas bases são o isolamento e a redução do universo da palavra e do pensamento a uma única dimensão: à dimensão do imposto e aceito, do total e afluente. Essa forma de experiência, oriunda do mundo capitalista moderno, reduz todo o comunicável ao afluente, ao aceito e incessantemente reproduzido. “O progresso separa literalmente as pessoas. (…) A comunicação cuida da assimilação dos homens isolando-os” (ADORNO e HORKHEIMER, 2007, p. 206-207) A memória e a tradição comuns, e a comunidade de vida e discurso são esvaziadas de sentido. O indivíduo isolado é refém de suas experiências prescritas por uma forma de domínio material e ético que Herbert Marcuse denominou como redução do pensamento e do comportamento a uma dimensão. Este conceito é apresentado por Marcuse em uma obra publicada pela primeira vez em 1964: One-dimensional man: Studies in the Ideology of advanced Industrial Society9. O homem reduzido a uma dimensão (one-dimensional man) é o produto ideológico por excelência da sociedade capitalista moderna (a sociedade industrial avançada, nos termos de Marcuse). A assimilação total dos indivíduos pela ideologia superimposta, que opera através do isolamento e do esvaziamento da comunidade, e do sentimento de comunidade − que Marx identificou nas reuniões dos operários franceses − e, dessa forma, o esvaziamento da experiência comunicável se torna total no one-dimensional man. O indivíduo passa a se reconhecer nas necessidades impostas o que reduz e até mesmo anula a capacidade deste para identificar e questionar o universo de necessidades estabelecido em termos de sua veracidade ou falsidade, e mais, anula a capacidade de comunicar a experiência, restando ao indivíduo isolado a única forma de experiência possível em um contexto de redução à dimensão do positivo, experiência vivida, a Erlebnis. A experiência comunicável oriunda da comunidade entre vida e palavra é impedida pelo esvaziamento da comunidade da experiência no nível ético e pela criação e satisfação de falsas necessidades ─ “satisfação repressiva” ─ no nível material. A Erfahrung é pressuposto para libertação e para o reconhecimento das necessidades verídicas: aquelas que designam condições objetivas para a satisfação 9 Ver nota de rodapé 3, na página 2. universal das necessidades vitais, além da progressiva suavização da labuta e da pobreza. Porém, no homem que está reduzido a uma dimensão, e desta forma restrito ao pequeno espaço da experiência vivida, da Erlebnis, ocorre uma progressiva anulação das necessidades que exigem a libertação e a superação dessa mesma sociedade. Esta é a pobreza da qual Benjamin se lamentava: a transformação sem precedentes que anuncia uma nova barbárie, a transformação material e ética em que a nossa sociedade, com a produção e a distribuição em massa, ancorada e justificada por um amplo projeto ideológico e exaltada pela indústria cultural exige o indivíduo por inteiro, seu passado, seu presente e seu futuro. A Erlebnis é compartilhada, imposta e reproduzida pelo “pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros, na maioria barbáros, mas não no bom sentido” (BENJAMIN, 1987, p.119). É aqui que o progresso da alienação torna-se inteiramente objetivo; no momento em que o indivíduo alienado é completamente absorvido por sua existência alienada, quando já não encontra espaço para a oposição, quando o “poder crítico da Razão” é transformado em neurose e impotência, e frente à grande e irreprimível produtividade do todo, é reduzido à dimensão do positivo, da afluência, e neste momento toda experiência deixa de ser comunicável. A possibilidade de uma educação entendida como emancipação perde o sentido em um momento onde o esvaziamento da experiência autêntica é imposto. O estudo desse processo de esvaziamento da Erfahrung é essencial para compreendermos quais os limites do conhecimento e quais as consequências para a educação em nosso contexto. Mais do que isso, a proposta de uma educação para a autonomia passa necessariamente pelo entendimento desta enquanto espaço de experiência autêntica, enquanto possibilidade de intercâmbio de experiências. 1.2.3 Herbert Marcuse: educação em contextos de pensamento e de comportamento reduzidos a uma dimensão. Herbert Marcuse nos coloca questões de suma importância para o pensamento crítico e para pensarmos nos limites do conhecimento em nosso contexto. Seus conceitos originais como o de unidimensionalidade do pensamento nos remetem a uma crítica profunda do pensamento e da ideologia afluente. Tal crítica, muito mais do que apontar os mecanismos ideológicos pelos quais opera a dominação do pensamento em nossa sociedade, demonstra caminhos e possibilidades para outras formas de pensar, para as possibilidades sempre plausíveis de novos caminhos, de um futuro que não dê continuidade a “catástrofe” que Walter Benjamin alertava em suas teses sobre o conceito de história (1987). Devemos ter em conta que Marcuse não chega a tratar especificamente do problema da educação de uma maneira mais aprofundada ao longo de sua obra; porém, ao pensarmos na escola como reprodutora de instâncias ideológicas, e ao tomarmos a educação em suas possibilidades latentes de emancipação e autorrealização humana, apontaremos o campo de análise crítica onde Marcuse desenvolve suas ideias. A crítica que o autor faz à ideologia da sociedade industrial (1979) diz respeito ao fato de que as forças de coesão e integração do capitalismo maduro não são forças meramente ideológicas ou espirituais, mas forças sociais materiais poderosas que têm o poder de barrar a negação que movimenta a dialética, e mesmo de transformá-la em força positiva que reproduz o todo repressivo ao invés de destruí-lo. Para o autor na sociedade industrial desenvolvida o aparato produtivo e suas mercadorias e serviços acabam por impor um sistema social de maneira total. Os produtos doutrinam e manipulam, promovem uma falsa consciência que é imune a sua falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos à disposição de maior número de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que eles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida. É um bom estilo de vida ─ muito melhor do que antes ─ e, como um bom estilo de vida, milita contra a transformação qualitativa. Surge assim um padrão de pensamento e comportamento unidimensionais no qual as ideias, as aspirações e os objetivos que por seu conteúdo transcendem o universo estabelecido da palavra e da ação são repelidos ou reduzidos a termos desse universo. (MARCUSE, 1979, p. 32).10 Dessa maneira, a ideologia da sociedade industrial acaba por produzir sua criatura mais acabada, sua mercadoria mais valiosa e desumanizada, esvaziada de experiência, de consciência e de objetivos que possam questionar o universo estabelecido: o homem reduzido a uma dimensão, à dimensão do positivo. A análise dessa limitação imposta ao pensamento e ao comportamento e suas funestas consequências para o conhecimento e para a educação, compõem o tema central da presente dissertação. A proposta de Marcuse, de que a sociedade industrial promove a redução do pensamento e o comportamento a uma dimensão, é o vértice para nossa proposta de 10 Ver nota de rodapé 3, na página 2 pensarmos sobre os limites do conhecimento na atualidade e, para através desta crítica, vislumbrar a utopia da educação como emancipação e o fim da utopia com a realização desta educação. Seção 2: O bloqueio do pensamento conceitual: contribuições de Herbert Marcuse para compreendermos o atual contexto.11 A distinção entre consciência verdadeira e falsa, entre interesse real e imediato, ainda tem significado. Mas a própria distinção tem de ser validada. O homem tem que vê-la e passar da consciência falsa para a verdadeira, do interesse imediato para o interesse real. Só poderá fazê-lo se viver com a necessidade de modificar seu estilo de vida, de negar o positivo, de recusar. (MARCUSE, 1979 p.17) O itinerário para a compreensão da crítica realizada por Marcuse em Eros e Civilização e, de forma mais aprofundada, em One-dimensional man: Studies in the Ideology of advanced Industrial Society nos demonstra o processo de introjeção da afluência e da aceitação na dimensão interior do indivíduo, dimensão esta que, segundo Marcuse, possibilita a compreensão da realidade de um ponto de vista crítico. Como parte deste processo de introjeção, o pensamento conceitual, ou seja, aquele pensamento formulado, dialético e histórico, é também invadido e esvaziado, reduzido à dimensão do existente. 11 Algumas partes desta seção têm como base a monografia de conclusão do curso de Ciências Sociais, feita por mim e entregue no ano de 2010, sob a orientação da Profª Drª Paula Ramos de Oliveira. Marcuse é profundamente pessimista ao descrever a redução do pensamento e do comportamento a uma só dimensão. Este pessimismo é oriundo da constatação do fechamento do universo de locução, do esvaziamento do pensamento conceitual e da reflexão crítica e da repressão à comportamentos oposicionistas. Não obstante, a compreensão do avanço deste processo, ainda nas décadas de 1940 a 1960, leva o autor − e por conseguinte leva-nos também − a buscar alternativas, possibilidade e potencialidades que, no momento – talvez até mais do que no período em que escreveu Marcuse – se encontram restritas. Neste caminho, o entendimento crítico do avanço da redução do pensamento e do comportamento a uma dimensão é ponto de partida para a busca de alternativas. Aqui, a educação para a emancipação e para a autonomia descortina-se como possibilidade e nos cabe a tentativa de encontrar o começo deste caminho. Portanto, nesta seção, a análise deste amplo processo nos dará a possibilidade de aprofundarmos a crítica e de problematizarmos as potencialidades de uma educação para a emancipação e para a formação de sujeitos autônomos e críticos. 2.1 Restrição do pensamento e do comportamento na sociedade industrial: O homem reduzido a uma dimensão. A crítica da ideologia que Marcuse faz é de suma importância para compreendermos a amplitude da dominação material e “espiritual” (geist) de nossa sociedade. Os escritos de juventude de Marx demonstram, de certa forma, um caminho de amadurecimento teórico que culmina em duas obras essenciais para as formulações da teoria crítica: A ideologia alemã (I-Feuerbach) e O Manifesto do partido comunista, a primeira de 1846 e a segunda de 1848. O caminho teórico de Marx, que o levou do jovem- hegelianismo às formulações do materialismo-histórico dialético construiu uma base sólida para o desenvolvimento conceitual nos campos da filosofia e da economia política. A crítica à ideologia que Marx desenvolve, principalmente na A ideologia Alemã (Feuerbach) é essencial para compreendermos como a dominação ideológica é produzida e reproduzida sobre as bases materiais concretas, servindo para perpetuá-las e para ocultar as contradições impostas por estas mesmas bases materiais. Esta compreensão é pressuposto para qualquer análise da sociedade contemporânea que se proponha crítica. Se no contexto específico de Marx as forças materiais se demonstravam claramente com todo o seu horror, se o trabalhador se tornava, pela alienação e pela reificação, a imagem das contradições daquele período, hoje as brumas da ideologia dominante tendem a apaziguar essas contradições, mas sem contestar de fato as bases materiais que as geram. As bases materiais que determinam a dominação e exploração de uma classe sobre a outra ainda existem e se aprofundam. Porém, o nível da dominação ideológica, a amplitude da produção massiva de ideologia, o consumo crescente de mercadorias culturais − que são o meio para o lucro crescente da indústria cultural − tomam, cada vez mais, a centralidade do processo produtivo. Desta forma a compreensão deste processo de ampliação ilimitada da dominação ideológica, que perpetua as formas concretas de existência, torna-se imprescindível para pensarmos sobre o problema do conhecimento e do pensamento conceitual. O trecho selecionado como epígrafe para esta seção demonstra a importância que Marcuse dá ao caráter negativo da dialética e à capacidade essencial de recusar. Desta forma é importante partirmos de uma discussão básica sobre a questão da negação na dialética. Esta discussão se faz necessária para compreendermos e atualizarmos a dialética como método de compreensão da realidade. As novas formas de dominação ideológica exigem que revisitemos a teoria marxista com outro olhar. 2.2 Novas perspectivas dialéticas: o conceito de negação em contextos de ampliação da dominação ideológica. Na obra Ideologia da Sociedade Industrial (1979), Marcuse realiza uma profunda crítica à ideologia dominante. Partindo de referências que abrangem, além dos autores da teoria crítica alemã como Kant, Hegel e Marx, autores da filosofia clássica grega e autores que partem de outros métodos, como Heidegger, com sua fenomenologia, e Nietzsche, com o martelo minucioso da genealogia, Marcuse busca elementos que demonstrem a importância da criação de outra dimensão de percepção da realidade. Esta dimensão serve como crítica da realidade dada e como impulso para a mudança qualitativa na sociedade. Marcuse remonta, portanto, à filosofia clássica para demonstrar a dialética básica proposta por Platão: a tensão entre o “é” e o “deve”. Essa dialética enuncia o caráter negativo da realidade empírica, pois julgada a partir de sua essência e ideia a existência empírica, dos homens e coisas, aparece como diferente daquilo que realmente é. Assim o pensamento opõe sua verdade ao que é dado, ou seja, a realidade em questão. Essa verdade aparece então como Ideia, e em termos de realidade dada, como potencialidade. Mas a potencialidade essencial não é como as muitas possibilidades contidas no universo da locução e ação em questão; a potencialidade essencial é de ordem muito diferente. Sua realização compreende a subversão a ordem estabelecida, pois pensar de acordo com a verdade é um compromisso de existir de acordo com a verdade. [...] Assim, o caráter subversivo da verdade impõe ao pensamento uma qualidade imperativa. A lógica se concentra em julgamentos que são, como proposições demonstrativas, imperativos ─ o predicado “é” implica um “deve”. (MARCUSE, 1979, p. 133; grifo no original). Marcuse reitera que esse caráter subversivo, essa característica contraditória do pensamento, é pressuposto essencial não somente à lógica dialética, mas também a qualquer teoria que se preocupe realmente com a análise crítica da realidade. Todo fato traz em si a negação de possibilidades reais, da potencialidade. Assim, por exemplo, o trabalho alienado, mais do que um fato em si, é a negação do trabalho livre para a satisfação das necessidades reais dos homens e a propriedade privada é a restrição da possibilidade de apropriação coletiva dos meios produtivos pelos homens12. A práxis humana incorpora em seu cerne a negatividade. Ao negar a forma livre e universal de trabalho humano ─ através do trabalho alienado e da forma total de alienação, ou seja, a propriedade privada ─ a sociedade capitalista carrega em si sua própria negatividade, e para a teoria marxista carrega também o caminho para a superação dessa negatividade. Ao levar às contradições da sociedade de classes essa negatividade atua como “motor do progresso social”. A negatividade dentro da visão dialética marxista é uma condição histórica, uma condição social associada a uma forma definida de sociedade. Essa sociedade é a sociedade de classes e, portanto, a negatividade que movimenta a dialética através das contradições é a negatividade das relações de classes. Quando Marx retira a base ontológica do sistema fechado ─ sob a totalidade da razão ─ hegeliano para aplicá-la ao processo histórico de reprodução social, transforma o método dialético em um método histórico. Essa posição imanente da concepção dialética marxista detém um duplo caráter: ao abarcar a negatividade vigente propõe necessariamente sua negação. Marcuse coloca de maneira clara esta questão ao tratar de um conceito central dentro da análise dialética marxista: a negação da negação. Um dado estado de coisas é negativo e só pode ser tornado positivo pela 12 Deve-se ter claro que a apropriação coletiva dos meios de produção não é, para a teoria marxista, um fim em si. A socialização desses meios não passa de um fato econômico, cabendo aos homens, a maneira como estes utilizarão esses meios socializados, a transformação efetiva da ordem social. A abolição da propriedade privada será efetivada de maneira total se indivíduos livremente associados se tornarem senhores desses meios socializados. libertação das possibilidades a ele inerentes. Isto, a negação da negação, se realiza pelo estabelecimento de uma nova ordem de coisas. A negatividade e sua negação são duas fases diferentes do mesmo processo histórico, associadas pela ação histórica do homem. O “novo” estado é a verdade do velho, mas essa verdade não cresce firme e automaticamente a partir do estado mais antigo; ela só pode ser libertada por uma ação autônoma dos homens, ação que anulará a totalidade do estado negativo existente. (MARCUSE, 1979, p. 287) Não obstante, é justamente essa visão progressiva da negação que Marcuse vai criticar em um pequeno texto intitulado “Sobre o conceito de Negação na dialética” (1981). Para ele encontramo-nos frente a certas dificuldades para analisar o conteúdo histórico da sociedade industrial avançada com os conceitos originais da teoria marxista. Esta constatação é importante e clara se analisamos a sociedade de uma perspectiva dialética, nos termos que Marx já havia proposto ao aplicar a base ontológica ao processo histórico, transformando o método dialético hegeliano em método histórico. Segundo Marcuse, o “período atual parece representar algo como uma imobilização da dialética da negatividade” (MARCUSE, 1981, p. 160) e uma das tarefas da teoria crítica passa a ser a de desenvolver um conceito de dialética adaptado a esse contexto. Assim, para o autor a principal dificuldade em aplicar os conceitos originais da teoria marxista às novas formas do capitalismo seria a concepção dialética de que a negação se desenvolve no seio da realidade dada como um dese