MARILANI SOARES VANALLI A CONSCIÊNCIA ESTRATÉGICA DAS VOZES NARRATIVAS EM ‘ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA’ DE JOSÉ SARAMAGO E ‘A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO DÁGUA’ DE JORGE AMADO. ASSIS 2019 MARILANI SOARES VANALLI A CONSCIÊNCIA ESTRATÉGICA DAS VOZES NARRATIVAS EM ‘ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA’ DE JOSÉ SARAMAGO E ‘A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO DÁGUA’ DE JORGE AMADO. Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientador: Dr. Rubens Pereira dos Santos ASSIS 2019 Dedicatória A Deus acima de todas as coisas. À minha mãe Lourdes Vieira. À Comunidade Gumercindo Viera. A Valmir Rogério Faili, irmão de Alma. Agradecimentos A Dr. Rubens Pereira dos Santos, pela paciência, humildade, além de grande orientador, um Pai. VANALLI, Marilani Soares. A Consciência estratégica das vozes narrativas em ‘Ensaio sobre a cegueira’ de José Saramago e ‘A morte e a morte de Quincas Berro Dágua’ de Jorge Amado. 2019. 228 f. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Estadual Paulista. (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2019. RESUMO Esta tese se apresenta com os olhos centrados na VOZ, e, para tanto, explorar-se-á pela análise do discurso, as estratégias praticadas por este elemento em duas instâncias narrativas, que são: “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”, de Jorge Amado, e, “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago. Se é o discurso dessa realidade narrativa que está em jogo, o plano da história, isto é, a organização funcional e sequencial do texto, será posto à parte assim como, portanto, qualquer observação quanto ao sentido diegético dos elementos que compõem essa organização; é a narrativa enquanto discurso e não a narrativa enquanto história, que está aqui em causa. Os problemas da narrativa podem ser organizados através dos da análise do discurso narrativo, segundo categorias tomadas da gramática do verbo, e que se reduzirão a três classes fundamentais: as que estão ligadas às relações temporais entre narrativa e diegese, sob a categoria do tempo; as que estão ligadas às modalidades (formas e graus) de representação narrativa, logo aos modos da narrativa, e por último as que estão ligadas à forma pela qual se encontra implicada na narrativa a própria narração no sentido de instância narrativa, e, com ela, seus dois protagonistas: o narrador e seu destinatário real ou virtual. O tempo e o modo funcionam ambos ao nível das relações entre história e narrativa, enquanto a Voz designa, simultaneamente, as relações entre narração e narrativa e entre narração e história. Sendo Genette, um dos referenciais teóricos, entende-se que a análise do discurso será o foco desta pesquisa para esmiuçar, dentro destas categorias acima mencionadas, os percursos, atuações e consequências desta Voz que é a responsável pela construção da narrativa, entendendo-a, pelo filtro deste teórico francês, como o significante, enunciado, discurso ou texto narrativo em si. Conhecendo a dificuldade de sustentar esta pesquisa somente com as teorias desenvolvidas por Genette, em ‘Discurso da Narrativa - Figuras III’, traz-se os conceitos de Mikhail Bakhtin, ‘Questões de Literatura e de Estética’, ‘Estética da Criação Verbal’, entre outros deste referido autor, para explorar o emprego do dialogismo e polifonia, que hão de completar dentro das narrativas, as análises que a elas serão realizadas. Consolidando o arcabouço de conceitos teóricos complementares de voz, traz-se Oscar Tacca, em ‘As vozes do Romance’. É relevante compreender que este elemento da narrativa Voz, guarda a responsabilidade de conduzir eventos narrados e revela na constituição do romance, ideias em confronto; pontos de vista em constante interação. A partir dos dois objetos de pesquisa “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago e “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”, de Jorge Amado, far-se-á uma comparação destas vozes, com o propósito de investigar as estratégias e performances praticadas pelos narradores, bem como apurar os momentos de aproximação e afastamento e as consequências desta prática. Palavras-chave: voz, “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago, “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua” de Jorge Amado, análise do discurso, comparação das vozes, consequências. VANALLI, Marilani Soares.The strategic awareness of narrative voices in José Saramago’s ‘Blindness Essay and ‘Quincas Berro Dágua’s death and death by Jorge Amado. 2019. 228 f. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Estadual Paulista. (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2019 ABSTRACT This research is presented with the eyes centered on the VOICE, and, therefore, it will be explored by the discourse analysis, the strategies practiced by this element in two narrative instances, that are: “The death and the death of Quincas Berro D 'Água', by Jorge Amado, and 'Blindness Essay', by José Saramago. If it is the discourse of this narrative reality that is at stake, the plane of history, that is, the functional and sequential organization of the text, will be set aside as well as, therefore, any observation as to the diegetic meaning of the elements that compose this organization; It is narrative as discourse rather than narrative as history that is at stake here. Narrative problems can be organized through those of narrative discourse analysis, according to categories taken from the grammar of the verb, which will be reduced to three fundamental classes: those that are linked to the temporal relations between narrative and diegese, under the category of time; those that are linked to the modalities (forms and degrees) of narrative representation, then to the modes of narrative, and finally those that are linked to the way in which narrative itself is implicated in narrative in the sense of narrative instance, and with it , its two protagonists: the narrator and its real or virtual recipient. Time and mode both function at the level of the relations between history and narrative, while the Voice simultaneously designates the relations between narration and narrative and between narration and history. Being Genette, one of the theoretical references, it is understood that the discourse analysis will be the focus of this research to investigate, within these categories mentioned above, the paths, actions and consequences of this Voice that is responsible for the construction of the narrative, understanding it. , by the filter of this French theorist, as the signifier, utterance, discourse or narrative text itself. Knowing the difficulty of supporting this research only with the theories developed by Genette, in 'Narrative Discourse - Figures III', brings the concepts of Mikhail Bakhtin, 'Questions of Literature and Aesthetics', 'Aesthetics of Verbal Creation', among others by this author, to explore the use of dialogism and polyphony, which will complete within the narratives, the analyzes that will be performed to them. Consolidating the framework of complementary theoretical concepts of voice brings Oscar Tacca in 'The Voices of Romance'. It is relevant to understand that this element of the Voice narrative bears the responsibility of conducting narrated events and reveals in the constitution of the novel ideas in confrontation; points of view in constant interaction. From the two research objects “Essay on Blindness” by José Saramago and “The Death and Death of Quincas Berro D'Água” by Jorge Amado, a comparison of these voices will be made, with the purpose of investigate the strategies and performances practiced by the narrators, as well as ascertain the moments of approach and withdrawal and the consequences of this practice. Key-words: voice, José Saramago’s “Blindness Essay’, “Quincas Berro Dagua’s Death and Death, discourse analysis, voice strategies and performances, voices’ comparatives, consequences. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9 1. PLANO DA HISTÓRIA.......................................................................................... 13 1.1 “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago. ............................................... 13 1. 2 “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua” de Jorge Amado. .................... 40 2. ANÁLISE DO DISCURSO .................................................................................... 52 2.1 Em “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saragamago ..................................... 52 2.2 Em “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua” de Jorge Amado. ............... 78 3. COMPARAÇÃO DAS VOZES. ........................................................................... 123 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 194 ANEXOS ................................................................................................................. 206 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 226 9 INTRODUÇÃO Esta tese tem como objetivo central explorar o elemento Voz, as estratégias que pratica; as consequências que pulveriza na narrativa, revelando desta forma, como conta, aquilo que conta. Ao trazer Genette como um dos referenciais teóricos, entende-se que é pela luz desta teoria da análise do discurso, o foco desta pesquisa para esmiuçar, os percursos, atuações e consequências desta Voz que é a responsável pela construção da narrativa. Esclarece-se, porém, a dificuldade de sustentar uma pesquisa desta magnitude somente com as teorias desenvolvidas por Genette, em ‘Discurso da Narrativa - Figuras III’. Para tanto, a utilização dos conceitos de Mikhail Bakhtin, com ênfase no dialogismo e polifonia além de outros conceitos que este teórico desenvolve, completam, dentro das leituras pretendidas para estas narrativas, as análises realizadas. Compreender que este elemento da narrativa Voz, traz a potência de conduzir eventos narrados, e guardar na constituição do romance, ideias em confronto; pontos de vista em constante interação. Como texto complementar, utilizar-se-á o autor Oscar Tacca, em ‘As vozes no romance’. É pela análise do discurso, e as estratégias praticadas por este elemento em duas instâncias narrativas, que são: “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua”, de Jorge Amado, e, “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago que a pesquisa se orientará. Se é o discurso dessa realidade narrativa que está em jogo, o plano da história, isto é, a organização funcional e sequencial do texto, será menos explorado, conferindo-se menor atenção a qualquer observação quanto ao sentido diegético dos elementos que compõem essa organização; é a narrativa enquanto discurso e não a narrativa enquanto história, que está aqui em causa. Com Genette, sente-se o debruçar no discurso para pormenorizar os passeios desta VOZ, através de estudos da duração (temporal); aspectos de frequência; de modo (sobre as questões problemáticas erguidas pelo ponto de vista do narrador) e de voz (assunção das condições de enunciação pela instância narrativa, que serão utilizados nesta pesquisa). Para tanto, este teórico francês (1972, p. 27) pormenoriza que: 10 História e narração só existem para nós, pois, por intermédio da narrativa. Mas, reciprocamente, a narrativa, o discurso narrativo não pode sê-lo senão enquanto conta uma história, sem o que não seria narrativo, e porque é proferido por alguém, sem o que não seria, em si mesmo, um discurso. Enquanto narrativo, vive da sua relação com a história que conta; enquanto discurso, vive da sua relação com a narração que profere. A análise do discurso será, pois, para nós, essencialmente o estudo das relações entre narrativa e história, entre narrativa e narração, e (enquanto se inscrevem no discurso da narrativa) entre história e narração Os problemas da narrativa podem ser organizados através dos da análise do discurso narrativo, segundo categorias tomadas da gramática do verbo, e que se reduzirão a três classes fundamentais: as que estão ligadas às relações temporais entre narrativa e diegese, sob a categoria do tempo; as que estão ligadas às modalidades (formas e graus) de representação narrativa, logo aos modos da narrativa, e por último as que estão ligadas à forma pela qual se encontra implicada na narrativa a própria narração no sentido de instância narrativa, e, com ela, seus dois protagonistas: o narrador e seu destinatário real ou virtual. Sintetizando, o tempo e o modo funcionam ambos ao nível das relações entre história e narrativa, enquanto a Voz designa ao mesmo tempo, as relações entre narração e narrativa e entre narração e história. É relevante compreender que o elemento da narrativa Voz, traz a potência de conduzir eventos narrados e guardar na constituição do romance, ideias em confronto; pontos de vista em constante interação. A obra ‘A morte e a morte de Quincas Berro Dágua”, de Jorge Amado estabelecerá diálogo com o romance português “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago. Tais vozes no romance após comparadas - entre confluências e divergências – trazem como tentativa a de se obliterar fronteiras numa atividade de aproximação, estabelecendo os alcances e consequências na ambientação da narrativa. A partir destes dois objetos de pesquisa, far-se-á uma análise da comparação das vozes nas obras acima mencionadas, e, com isso, carrega o propósito de investigar as estratégias e performances praticadas pelo narrador. Mais que isto, é examinar as consequências desta prática. Para averiguar tais proximidades ou não na construção do discurso entre os narradores, estabelecer-se-á uma leitura analítica verticalizada de alguns excertos das obras referendadas. No capítulo 1, Plano da História, far-se-á uma explicação do plano da história em ambas narrativas, para, didaticamente, orientar a leitura, daqueles que porventura, não tenham lido as obras e consigam, através deste capítulo, entendê- 11 las na direção de uma compreensão mais verticalizada. Parte-se para o eixo temático de cada uma das narrativas, para depois, debruçar-se sobre o plano do discurso, força maior de análise da tese. No capítulo 2, Análise do discurso, centrar-se-á força na enunciação, ou melhor, na análise discursiva, que é a pormenorização do como se conta, o que se conta. Serão apresentados exemplos que elucidarão o trabalho das estratégias praticadas pelas vozes nas instâncias ficcionais já mencionadas. Clarificar para o leitor, as ferramentas discursivas empregadas; os jogos de luz e sombra articulados pela voz; cena e sumário; prolepses e analepses, paralepse e paralipses, resumindo, as performances praticadas pelas vozes, constituir-se-ão como fundamento maior deste capítulo. No capítulo 3, Comparação das vozes, centra-se a alma da tese. É elucidar com primazia o comportamento de aproximação e de afastamento das vozes nos referidos romances. É consolidar através de excertos pertinentes, a concentração das vozes multidiscursivas; de vozes que se pretendem fazer ouvir; de vozes que se querem únicas na ambientação do ambiente narrativo. E por último, a conclusão, que não se tem a pretensão de esgotar leituras, como considerações finais pretendem contemplar algumas delas, sobre o estudo executado nesta pesquisa. Abrir possibilidades de discussão e fomentar ideias que possam desaguar em outras, em espaço infinito de análise textual. Ao debruçar-se em análises sobre os dois textos, emergem deles, narradores que além de assumirem o papel para o qual foram destinados, transcendem tal função conferindo às narrativas, um teor elevado de artisticidade. Adotam estratégias discursivas de organizar a narrativa, assumindo uma temporalidade ora linear, ora transgressiva, incluindo analepses e prolepses; estabelecer um narrar com maior ou menor velocidade, atendendo ou não, conforme lhe convier para a economia da narrativa, descrições e digressões; adotar a perspectiva de uma ou de várias personagens, colocando-se num ponto de vista onisciente. Tais narradores ora se valem de discursos enobrecidos da cultura oficial, ora um discurso que brota da informal oralidade, culminando na bivocalidade, e que, esta combinação de estilos, na diversidade social dos falantes, traz à tona, a palavra citada, como discurso de outrem. Uma observação importante a se fazer é que a linguagem retirada nos excertos – quer dos teóricos, quer dos romances, alvo desta pesquisa – manter-se- ão fidedignos à edição reportada na bibliografia e do país ao qual pertencem. 12 É com estas e muitas outras manobras discursivas, com estratégias inusitadas, que os narradores conduzem o ato de narrar: do interior do discurso para a exterioridade da recepção. 13 1. PLANO DA HISTÓRIA 1.1 “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago. O romance é um complexo e sutil jogo de vozes; é espelho, registro. Quando se pensa em romance, narrativa, o que se deve fazer é recusar a venda nos olhos, é desejar e querer ver, é descortinar pelos recursos da narrativa utilizados pelo narrador, as intenções mais secretas. A obra de José Saramago “Ensaio sobre a Cegueira” estabelecerá diálogo com a novela brasileira “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”, de Jorge Amado. Tais vozes no romance após comparadas - entre confluências e divergências – intentam obliterar fronteiras numa atividade de aproximação x afastamento, estabelecendo pelo discurso que praticam, os alcances e consequências na ambientação da narrativa. O universo diegético de “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago consolida-se como uma exotópica escrita literária que se determina a realizar um convite para o leitor: as reflexões existenciais de âmbito intrapessoal. Para tanto, o autor, dono de uma criticidade carregado de intencionalidades, desreferencializa o leitor em espaço/tempo quando o joga em uma situação cotidiana: a parada obrigatória em um semáforo, e assim se pronuncia “O disco amarelo iluminou-se” (1995, p. 11) A recepção quando abre este romance se dá conta de localizar-se em uma cidade contemporânea, cujos personagens são desnomeados, mas demarcados pelos papeis sociais. O semáforo - em cor amarela - representa dentro das regras de trânsito, que os motoristas e pedestres, ambos, devem redobrar a atenção para a próxima mudança de cor. É assim que principia esta narrativa. Nesta abertura de cenário romanesco, o escritor pode nutrir o desejo de obliterar fronteiras para que o leitor também se posicione da mesma forma: em alerta. Contudo, no caso da recepção, a cor pode sinalizar semanticamente vários alertas, como por exemplo: atenção redobrada para com a leitura do tecido literário, que sub-repticiamente, guarda muitas intenções camufladas na malha textual; os aspectos simbólicos que o amarelo pode representar na vida do ser humano - assim como no semáforo, a cor é a responsável para significar ‘atenção’ da mudança para outra cor - analogamente na vida, pode metaforizar um convite para as mudanças 14 comportamentais; além de outras reflexões e autoanálises que pode suscitar. É imprescindível destacar os níveis divergentes na ficção: embora como leitor faça parte do terreno narrativo, ocupa outro espaço na diegese, localizando-se fora das malhas textuais, do cenário linguístico e ficcional, uma vez que é um ser empírico real. Pormenorizando: nível da vida real: leitor; nível ficcional: narratário e todos aqueles pertencentes à narrativa de fato. Logo em seguida, o sinal abre e a cor verde aparece. Porém, um condutor do automóvel permanece parado, provocando parte da obstrução do tráfego. Algumas pessoas aproximam-se e perguntam o que acontecera, e, ele gritando desesperadamente responde “estou cego” (1995, p. 12). Este é intitulado ao longo da ficção como ‘o primeiro cego’ de muitos outros que irão aparecer. Saramago arranca da normalidade as características comuns da ‘cegueira negra’ e edifica a instância ficcional com a ‘cegueira branca’. O fato surpreendente desta última é a constatação realizada pela voz narrativa, que ao analisar de uma forma superficial e grosseira o globo ocular, a íris e a esclerótica parecem sadios, não encontrando razão alguma para tal doença. Perguntas sem respostas concludentes começam a aparecer, mas o ingresso gradual na cegueira ultrapassa os limites da compreensão, não escolhe pessoas, não espera, nem tampouco pede licença. A epidemia do ‘mal branco’ vai se instalando. É o espaço para a desrazão, metáfora do homem enjaulado em si mesmo, como um exercício da animalidade que o habita. Tematicamente, a ficção parte da ‘cegueira ocular’ para caminhar esculpindo as cegueiras interiores. Uma viagem lenta, mas que polvilha o desequilíbrio, medo, desordem como palco inicial da representação. O ser humano nasce, normalmente, dotado com os cinco órgãos do sentido, todavia quando se vê facultado de algum deles, aprimoram-se os demais para suprir tal deficiência. Acredita-se em um processo metamórfico de adaptação para otimizar as condições humanas. Saramago toca em uma pedra fundamental e considerada por muitos, como o principal dos órgãos do sentido: a visão. É através dela que o homem desde o momento em que acorda, ao abrir os olhos, depara-se com as cenas matinais que constroem a ambientação em que vive. Ou melhor, os olhos veem tudo aquilo que o indivíduo é capaz de captar. É também, aquele que simultaneamente ao ver as cenas, constrói axiologias sobre elas. Tais julgamentos nem sempre condizem com 15 a verdade, por serem instantâneos, fragmentados, descontextualizados com o tempo/espaço, o que é possível deduzir, que a pessoa – como um juiz – crie internamente julgamentos equivocados e os tenha como verdadeiros. Esta atitude avaliativa e precipitada revela uma característica singular do homem: o quão – grande parte das pessoas – deixa-se levar pelas aparências. Como consequência, no caso da situação do ‘primeiro cego’, ali mesmo, na rua, ele pede ajuda para que alguém o leve para casa. Diante de várias vozes que ali se encontravam, alguém se prontifica a levá-lo, como realmente assim acontece. Descompensado emocionalmente, repete inúmeras vezes “não vejo, não vejo, não vejo” (1995, p. 13). E tomado pela fragilidade em que se encontrava, ele ainda diz ao motorista “Não sei como lhe hei de agradecer, e o outro respondeu, Ora, não tem importância, hoje por si, amanhã por mim, não sabemos para o que estamos guardados” (1995, p. 13). Analisando este diálogo, o que parece é uma atitude altruísta deste motorista ao gentilmente se oferecer para tal ação. Assim sendo, ‘o primeiro cego’ orienta o condutor do automóvel à localização da sua casa. Ao chegarem em frente ao prédio, travaram o seguinte diálogo, conforme se apresenta no excerto (1995, p. 14-5): Está alguém em sua casa que possa tomar conta de si, e o cego respondeu, Não sei, a minha mulher ainda não deve ter vindo do trabalho, eu hoje é que calhei de sair mais cedo, e logo me sucede isto, Verá que não vai ser nada, nunca ouvi dizer que alguém tivesse ficado cego assim de repente, Que eu até me gabava de não usar óculos, nunca precisei, Então, já vê. Tinham chegado à porta do prédio, duas mulheres da vizinhança olharam curiosas a cena, vai ali aquele vizinho levado pelo braço, mas nenhuma delas teve a ideia de perguntar, Entrou-lhe alguma coisa para os olhos, não lhes ocorreu, e tão-pouco ele lhes poderia responder, Sim, entrou-me um mar de leite. Já dentro do prédio o cego disse, Muito obrigado, desculpe o transtorno que lhe causei, agora eu cá me arranjo, Ora essa, eu subo consigo, não ficaria descansado se o deixasse aqui. Entraram dificilmente no elevador apertado, Em que andar mora, No terceiro, não imagina quanto lhe estou agradecido, Não me agradeça, hoje por si, Sim, tem razão, amanhã por si [...] A porta abriu-se à terceira tentativa. Então o cego perguntou para dentro, Estás aí. Ninguém respondeu, e ele, Era o que eu dizia, ainda não veio [...] Como poderei agradecer-lhe, disse, Não fiz mais que o meu dever, justificou o bom samaritano, não me agradeça, e acrescentou, Quer que o ajude a instalar- se, que lhe faça companhia enquanto a sua mulher não chega. O zelo pareceu de repente suspeito ao cego, evidentemente não iria deixar entrar em casa uma pessoa desconhecida que, no fim de contas, bem poderia estar a tramar, naquele preciso momento, como haveria de reduzir, atar e amordaçar o infeliz cego sem defesa, para depois deitar a mão ao que encontrasse de valor. Não é preciso, não se incomode, disse, eu fico bem, e repetiu enquanto ia fechando a porta lentamente, Não é preciso, não é preciso. 16 Este fragmento tematicamente guarda possíveis análises no que diz respeito às aparências. As vizinhas vendo que o morador era conduzido por alguém, lançaram um olhar curioso e comentaram que estava sendo guiado, talvez na tentativa curiosa de desvendar o motivo da necessidade de tal ajuda, mas não um interesse verdadeiro, somente especulação e motivo para fofocas. É o universo das aparências, que atua na superfície e não investiga mais a fundo a verdadeira causa dos acontecimentos. O homem o conduz até a porta de seu apartamento, e se oferece para entrar e se prontifica a esperar a chegada da mulher do cego. O excesso de zelo do motorista desperta o cego do torpor em que se encontrava. Recuperado um pouco o equilíbrio, agindo com a razão e nutrido de desconfianças é assombrado pelo medo de ser roubado, agradece e dispensa o homem ali mesmo. Desde o momento no semáforo até chegar em casa, o cego mergulhado no desespero só pretendia alguém que o ajudasse nesta tarefa. Aquele que se prontificara naquele instante, atendeu-o nas necessidades básicas. Mas, ao sentir ajuda em demasia, lembra-se da vida em sociedade e julga os sentimentos de interesse que boa parte das vezes movimentam o homem. Muda de conduta, não permitindo a entrada do motorista em seu apartamento. Esta atitude de precaução pode ser entendida pelas relações de interesse, moedas de troca com que a maioria das pessoas se tratam. Normalmente, nestes casos, o que se objetiva é tirar algum proveito, mediante uma aparente boa ação praticada. Um homem sempre impulsionado a extrair alguma vantagem da situação. Mas, nesse caso, a possibilidade do roubo se concretizou, pois, o ladrão embora não tenha entrado no apartamento, roubara-lhe o carro. A intenção de realizar esta análise um pouco mais minuciosa vai ao encontro de denotar com clareza, a complexidade da trama narrativa elaborada por Saramago – que como observador astuto do ser humano e de suas fraquezas – dota os leitores de lentes poderosas que potencializam a visão da condição humana desde as páginas iniciais do romance, para além do óbvio. O artifício discursivo usado por Saramago nesta obra é da metáfora/cegueira, figura esta que carrega de dramaticidade; tensão; fronteiras de violência, assim como também os pequenos gestos de sensibilidade humana. O plano da história segue com a mulher do primeiro cego que vai em busca de uma consulta oftalmológica. Quando lá chegam, encontram “um velho com uma 17 venda preta num dos olhos; um rapazinho que parecia estrábico acompanhado por uma mulher que devia ser a mãe, uma rapariga nova de óculos escuros, duas outras pessoas sem sinais particulares à vista, mas nenhum cego, os cegos não vão ao oftalmologista” (1995, p. 21). Com preocupação de contágio, talvez, o médico atende o que ficara cego deixando os demais pacientes à espera. Realiza um exame clínico geral investigando pistas que justificassem a doença repentina. Logo em seguida, segue para a análise oftalmológica detalhada e nada encontra de irregular: na córnea, na esclerótica, na íris, na retina, no cristalino, na mácula lútea, no nervo óptico. O paciente no limite de fragilização indaga o médico do porquê de encontrar- se privado da visão, mas ele não encontra nenhuma causa fisiológica ou anatômica como explicação plausível para tal cegueira, e diz-lhe que necessitará realizar exames mais detalhados para uma contundente explicação. Mal podiam prever os pacientes da sala de espera, que todos seriam contaminados pelo mal branco, inclusive o médico. É no terreno do inexplicável que a Cegueira branca vai se espalhando pela cidade e põe em curso os acontecimentos. E, assim que começou a assumir proporções de contágio efetivo, o médico oftalmologista avisa as autoridades sanitárias para tomarem medidas urgentes para que esta doença fosse contida. Nesse mesmo instante, o médico fora avisado pelo funcionário, ao telefone, para que pegasse alguns pertences mínimos e junto com os demais já diagnosticados como cegos, seriam recolhidos a uma condição de isolamento. O fragmento a seguir é capaz de esclarecer quais os critérios de escolha do local foram usados (1995, p. 46): Agora falta decidir onde os iremos meter, senhor ministro, disse o presidente da comissão de logística e segurança, nomeada rapidamente para o efeito, que deveria encarregar-se do transporte, isolamento e suprimento dos pacientes, De que possibilidades imediatas dispomos, quis saber o ministro, Temos um manicómio vazio, devoluto, à espera que se lhe dê destino, umas instalações militares que deixaram de ser utilizadas em consequência da recente estruturação do exército, uma feira industrial em fase adiantada de acabamento, e há ainda, não conseguiram explicar-me porquê, um hipermercado em processo de falência, Na sua opinião, qual deles serviria melhor aos fins que temos em vista, O quartel é o que oferece melhores condições de segurança, Naturalmente, Tem porém um inconveniente, ser demasiado grande, tornaria difícil e dispendiosa a vigilância dos internados, Estou a ver, Quanto ao hipermercado, haveria que contar provavelmente, com impedimentos jurídicos vários, questões legais a ter em conta, E a feira, A feira, senhor ministro, creio ser preferível não pensar nela, Porquê, A indústria não gostaria com certeza, estão ali 18 investidos milhões, Neste caso, resta o manicómio, Sim, senhor ministro, Pois então que seja o manicómio, Percebe-se que os homens se apartam de seus escrúpulos morais e, numa atitude desumana e de pura conveniência e contenção de gastos, é o manicômio que consideram como melhor escolha. Melhor escolha para quem? As autoridades sanitárias têm pressa no isolamento como tentativa de minimizar a proliferação de contágio, mas antagonicamente a este pensamento, a preocupação humanitária é nula. O que realmente objetivam é ficarem livres do problema com os menores gastos possíveis e sem complicações de ordem política. A escolha pelo manicômio pode saltar aos olhos do leitor como uma identificação irônica, se comparada tal solução com as que acontecem na vida empírica. Na vida real em sociedade, quando a competência humana não dá conta de resolver os problemas mentais com soluções pertinentes, o espaço normalmente escolhido é o manicômio. Lá, são colocados todos os casos aparentemente insolúveis. Torna-se um depósito de gente nas mais variadas circunstâncias e níveis de doença psíquica, drogados ou distúrbios que exijam muito tempo da família. Ao fazerem assim, os homens consideram ter solucionado o problema de forma imediata; livram-se do trabalho de cuidar e de outras inconveniências vistas de maneira preconceituosa pela sociedade. Todavia, no âmbito do terreno narrativo, a epidemia que se instala é a da cegueira, doença que não se encaixaria nesse espaço escolhido pelas autoridades. Não se pode esquecer a espiral de violência e de crueldade a que as ações humanas são capazes de alcançar, sejam os opressores ou os oprimidos. De forma rápida e pouco sensata a escolha fora feita: “Pois então que seja o manicómio” (1995, p. 46). Conforme havia sido dito, no dia anterior ao médico oftalmologista, a condução viera buscá-lo, e, no exato instante da sua entrada na ambulância, sua mulher surpreende a todos, inclusive a ele, ao fingir-se de cega. Ultrapassa as fronteiras de “mulher frágil” na contramão de como é normalmente enquadrada, e, numa conduta de ousadia e coragem, acompanha o marido, pois reconhece os limites de fragilidade e de dependência do esposo. Após essa ação por ela praticada, é pertinente reavaliar a classificação do binômio: sexo forte e sexo frágil, relativizando estas fronteiras e ajustando-as a uma nova situação. A partir de então, o médico oftalmologista e sua mulher passarão a ser personagens de destaque desta história. 19 Metaforicamente, para o autor, cego é aquele que se ergue à cobiça; o poder como bandeira de vida; a perda da sensibilidade e de valores básicos para uma vida em sociedade; que age como opressor diante dos mais frágeis, economicamente falando; doença que corrompe a alma e desumaniza. Um universo caótico. Uma cegueira sobrepondo-se as outras. A mulher do médico é a única personagem que durante toda a narrativa permanecerá com sua visão intacta e a que fora – voluntariamente - para aquele claustro de exclusão destinado aos cegos. É possível inferi-la, um ser humano livre no meio dos aprisionados. Nas obras de Saramago, a mulher tem um papel relevante, talvez porque no mundo dos pobres ela cultive no dia a dia algumas virtudes anonimamente não reconhecidas: mas, uma consciência aberta da dignidade. A mulher do médico, parece desafiar o leitor com as questões: por que não foi acometida pela doença? Por quê? São dúvidas por explicar, lacunas diversas que preenchem seus pensamentos como fortes indagações de vida. O que fizera para não merecer tal castigo? Diante de perguntas sem respostas é que no emaranhado das ideias, num mergulho vertical em sua alma, instalam-se possíveis pensamentos: é despida de vaidades e das relações de interesse; moralmente íntegra; preocupada mais com a ação do que com as aparências; ser humano que verdadeiramente ama o seu próximo, no caso o marido. Serão estes os ingredientes para uma receita de vida em plenitude? Agir em acordo com estes valores morais poderia trazer como consequência o benefício da visão? Estas e outras indeléveis reflexões habitam o consciente da mulher do médico no percurso de toda a narrativa. Foram eles, a mulher do médico e o médico oftalmologista os primeiros a serem transportados para o manicômio, embora ainda não soubessem deste destino. Ao chegarem lá, os guardas os introduzem no prédio e orientam a localização geográfica que iriam ocupar, uma vez que o espaço era grande e dispunha de várias camaratas. A mulher do médico, assim que adentra no local, faz uma avaliação generalizada; dá-se conta da inadequação de limpeza: cozinha malcheirosa; lixo por toda a parte; árvores malcuidadas, cenário grotesco de descuido com a manutenção e camisas de força em armários: hospício. Constatada a escolha feita pelas autoridades, a mulher do médico em diálogo com o marido, assim se manifesta (1995, p. 48): 20 És capaz de imaginar onde nos trouxeram, Não, ela ia acrescentar, A um manicómio, mas ele antecipou-se-lhe, Tu não estás cega, não posso consentir que fiques aqui, Sim, tens razão, não estou cega, Vou pedir-lhes que te levem para casa, dizer-lhes que os enganaste para ficar comigo, Não vale a pena, de lá não te ouvem, e ainda que te ouvissem não fariam caso, Mas tu vês, Por enquanto, o mais certo é cegar também um dia destes, ou daqui a um minuto, Vai-te embora, por favor, Não insistas, aliás aposto que os soldados não me deixariam por um pé nos degraus, Não te posso obrigar, pois não, meu amor, não podes, fico para te ajudar, e aos outros que aí venham, mas não lhes diga que eu vejo, Quais outros, Com certeza não crês que vamos ser os únicos, Isto é uma loucura, Deve de ser, estamos num manicómio. A confirmação de ser humano sensível, delicado e altruísta pode ser percebida neste excerto com clareza, quando a mulher do médico, oferece-se numa atitude de sacrifício e compaixão a permanecer ao lado do marido, para dele cuidar. Em seguida, estende aos outros que vão chegando, ações benignas; ajuda desinteressada sem moeda de troca. Outra consideração de extrema valia é a instalação da dúvida: loucura ou cegueira? Qual a relação estabelecida entre elas? De que maneira, elas interpenetram-se? Num movimento máximo de alcance, o leitor assiste esses momentos de ponderação e compartilha deste segredo nutrido por ambos: ‘a mulher do médico enxerga’. E mais, são revelados também os seus sentimentos puros de cumplicidade, amor e caridade. O exemplo de ser humano que todos deveriam ser. Ela escolhe a camarata que iriam ocupar e acomodam-se dentro das condições possíveis. Tematicamente seguindo a narrativa, outros cegos começam a chegar em bandos, e a instalação da desordem se avoluma com eles. A voz narrativa concede à mulher do médico a função de um farol que ilumina a vida dos cegos; lentes de contato; “a responsabilidade de ter olhos quando todos os outros os perderam” (1995, p. 241). Como protagonista da visão, acha-se numa situação especialmente delicada, mas sutil e discretamente, na medida do possível, vai ajudar a todos. E ela tinha razão. Pouco mais tarde chegaram outros cegos em bando maior e, logo, foram escolhendo as camas que desejariam ocupar. Pela descrição que a mulher do médico fizera para seu marido, ele pôde identificar os seus pacientes que estiveram no consultório no dia anterior. Os demais cegos começaram a desenvolver a audição, pois pela voz ele fora identificado como ‘o médico’. Quando o primeiro cego reconheceu a voz do ladrão a confusão foi geral, incluindo socos e pontapés. Com o auxílio de uns, com os 21 conselhos equilibrados do médico e da sua mulher, os ânimos foram se acalmando. Teriam que exercitar respeito mútuo, pois haveriam de conviver por tempo indefinido. Do alto-falante, uma voz explicava as quinze regras a que estariam subordinados desde o momento da entrada no manicômio. Elas deveriam ser obedecidas fielmente, e, cada atitude em contrário, teria como resposta, morte na certa. Receberiam comida três vezes por dia, mas eles mesmos teriam a função de dividi-la. Quaisquer adversidades ou problemas de saúde e de outra natureza, deveriam resolvê-los sozinhos; se um cego morresse, os outros deveriam enterrá-lo. Se houvesse incêndio, os bombeiros não seriam acionados. Resumindo, estavam entregues à própria sorte, sem qualquer ajuda externa. Este é o tratamento concedido à maioria das pessoas na vida empírica que apresentam uma anormalidade que foge das explicações científicas. As autoridades sanitárias com este procedimento de enclausurar os doentes no manicômio e com estas regras a eles estabelecidas não visavam a cura, mas sim, afastá-los socialmente dos sãos. Para a área da Saúde, este não parece um procedimento adequado, pois além da exclusão da convivência social comum, não serão estudadas cientificamente as prováveis possibilidades da origem desta doença. É o homem vendo rebaixada a linha da dignidade da qual pertencera, um processo inicial de zoomorfização. E os problemas não deixam de aparecer, pois atender a uma simples necessidade básica de urinar, pode, naquele contexto, transformar-se em pesadelo. A mulher do médico se oferece para ajudá-los, escamoteando a verdade que ela enxerga. Diz saber o caminho, porque pelo olfato, sentira o cheiro peculiar de banheiros menos limpos. Organizam-se em fila e todos vão juntos. Neste interstício de tempo entre a saída da camarata até a chegada às retretes, o ladrão pratica assédio sexual, em atitude libidinosa e descontrolada e provoca mais um desentendimento, como se pode perceber, no fragmento que segue (1995, p. 57): Colocado atrás da rapariga de óculos escuros, o ladrão, estimulado pelo perfume que se desprendia dela e pela lembrança da erecção recente, decidiu usar as mãos com maior proveito, uma acariciando-lhe a nuca por debaixo dos cabelos, a outra, directa e sem cerimónias, apalpando-lhe o seio. Ela sacudiu-se para escapar ao desaforo, mas ele tinha-a bem agarrada. Então a rapariga jogou com força uma perna atrás, num movimento de coice. O salto do sapato fino como um estilete, foi espetar-se no grosso da coxa nua do ladrão, que deu um berro de surpresa e de dor. 22 A mulher do médico assume a liderança das boas ações e vai ao encontro das necessidades básicas alheias. Cada ponto de vista, realmente, é a vista de um ponto, já dizia o escritor Leonardo Boff, em “A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana”, pois o ladrão aproveita-se desse posicionamento na fila para ‘atacar a sua presa’. Num gesto machista e individualista, impõe os seus desejos sexuais sobre a rapariga. Neste contexto, todos os cegos já se viam mergulhados em inúmeros problemas e são surpreendidos por mais um. Depois de solucionado parcialmente o problema do assédio sexual e que todos tinham satisfeito as necessidades no banheiro, voltaram para as camaratas diferentes da forma que haviam saído. Cada incidente trazia consigo uma lição e era necessário que juntos alcançassem a solução mais adequada para o momento. O que se analisa deste comportamento masculino do ladrão é a incontrolável necessidade que muitos homens sentem em subjugar sexualmente o sexo oposto. Como se aquele contexto de cegueira de todos, oportunizasse o palco ideal para os seus desejos incontroláveis, saindo da esfera do humano para posicionar-se abaixo da linha de sexualidade praticada pelos animais irracionais. É assim, no cenário de terror, que as pessoas vão se desnudando e revelam a verdadeira identidade: um animal vestido de homem. O ladrão, depois do incidente com a rapariga de óculos escuros, teve como consequência do seu ato, um agravamento da ferida ali provocada pelo salto do sapato, resultando em grave infecção. Numa tentativa de apelo à humanidade dos soldados, saíra de sua camarata e dirigira-se para a frente do manicômio aonde eles ficavam. Arrastara-se até lá, pois as condições de sua perna eram gravíssimas: ou enfrentava os guardas num pedido de auxílio com remédios, ou morreria pela septicemia. Ao aproximar-se da pequena sala em que estavam os soldados, o ladrão apoiando-se como podia, tentava erguer-se, mas fizera barulho ao arrastar- se. As sentinelas com os ouvidos atentos, perceberam alguma anormalidade, mas não o viram pela localização em que se encontrava quase embaixo deles. Ao se erguer, o ladrão mostra bem próximo a sua cara e os vigilantes cravejam de balas o rosto e o corpo do cego. Eis a primeira morte de muitas outras que aconteceriam dentro daquele recinto. Foi assustador para todos. O tempo vai passando e chega a hora da distribuição da comida. As caixas foram depositadas perto do prédio principal, mas a boa distância dos cegos na 23 camarata. Havia cordas que separavam tais limites e os cegos só podiam vir buscar a comida, tão logo os guardas saíssem. Inicialmente, as porções foram distribuídas equitativamente entre todos. Porém, com o passar dos dias, e mais cegos chegando em grupos maiores e de forma constante, as porções entregues - que permaneceram as mesmas - não supriam as necessidades. A solução que encontraram foi adotar o racionamento de comida. A confusão era geral. Cegos brigavam entre si, por pequenas porções de alimentos. Como a quantidade de pessoas aumentara significativamente, os banheiros não deram conta de atender a todos. Faltava água para o banho. Homens que abaixavam as calças e ali mesmo, no chão, faziam as necessidades. Um cheiro fétido se desprendia para o ar. Diante de tais fatos, ergue-se a interrogação: é bom ter olhos e ver o execrável, ou melhor tê-los cegos? Por conta de um contingente avolumado de cegos foi necessária a implantação de uma regra para a organização entre eles. Decidiram por atribuir-se números como forma de identificação, pois nomes, ali dentro, não eram importantes. Assumindo esta conduta organizacional, os cegos davam mais um passo rumo à despersonalização e caminhavam vertiginosamente para a massificação. Eis a sociedade na ficção da qual parece que o ser humano já faz parte na vida empírica. Nesta última, cada pessoa é identificada pelo seu CPF, RG, senha de banco, de cartões, RA escolar, e a lista de números segue assustadoramente. É o homem reificado pelos números. Em seguida, ouviu-se uma confusão de gritos, um barulho forte vindo do átrio do prédio principal. Os cegos sabiam do que se tratava: mais cegos sendo trazidos em rebanho, esbarrando-se, assustados, agarravam-se uns aos outros aos tropeções, não se sabe quantos foram pisados. Todas as camaratas estavam ocupadas e o temor de chegarem mais cegos a qualquer hora, intensificava tal espera. Com este novo ‘rebanho’ uma nova redistribuição de comida deveria ser feita entre eles. Mas, lá pelas tantas, horário do almoço, a refeição começou a demorar. Ficaram irrequietos; esbravejaram; alguns gritavam desesperados, mas nada de chegar o alimento. E a tarde inteira foi de espera. A noite vinha caindo lentamente. Era melhor dormir. No dia seguinte, a mulher do médico predispôs-se a ir até onde estavam os soldados, e, cautelosa, disse que precisavam de uma pá para enterrar o cego 24 ladrão. Aproveitando o ensejo de estar diante deles, perguntou sobre a comida, como se verifica a seguir (1995, p. 85): E a comida, aproveitou a mulher do médico a ocasião para recordar-lhe, A comida ainda não chegou, Só do nosso lado já há mais de cinquenta pessoas, temos fome, o que estão a mandar não chega para nada, Isso da comida não é com o exército. Alguém tem de resolver a situação, o governo comprometeu-se a alimentar-nos. Voltem lá para dentro, não quero ver ninguém nesta porta, A enxada, ainda gritou a mulher do médico, mas o sargento tinha-se ido embora. A manhã estava em meio quando se ouviu a voz do altifalante na camarata, Atenção, atenção, os internados alegraram- se, pensaram que era o anúncio da comida, mas não, tratava-se da enxada, Alguém que a venha buscar, mas nada de grupos, só sai uma pessoa, Vou eu, que já falei com eles antes, disse a mulher do médico. O excerto pode comprovar a atitude proativa da mulher do médico que com muita coragem enfrenta o próprio medo e vai ao encontro da necessidade básica e humanitária para todos, que seria enterrar o morto. Concede a este, um enterro próximo da dignidade, e aos demais, ali no manicômio, cegos ou soldados, a condição de não terem um corpo exposto a céu aberto, pois em pouco tempo, estaria em estado de putrefação. Outra atitude adotada por ela é a de aproveitar a ocasião e perguntar sobre a comida e lembrar do que o Estado prometera: alimentá- los, pelo menos. É importante evidenciar que esta situação excepcional de cegueira – que condicionam muitas pessoas neste espaço de reclusão – coloca-os em dependência total de sobrevivência pela distribuição de comida que o governo prometera suprir. Mais uma vez pode ser estabelecida uma comparação, quando a ficção toca nas fronteiras da vida real humana numa condição análoga de representação. No universo humano empírico, percebe-se por parte dos representantes do governo um descaso com a população, principalmente com os menos favorecidos economicamente, no que diz respeito às obrigações do Estado para esta parcela da população. Ainda explorando o fragmento apresentado, a atitude do soldado é a de esquivar-se de responsabilidade, quando responde que com relação à comida, ultrapassava os limites de ação do exército, e nada podiam fazer. Este tipo de comportamento parece ser bastante apropriado, quando a intenção é não se importar, uma vez que é com o outro o problema. Entra-se na esfera da individualidade e o coletivo passa a ser desprezado. Talvez, este universo ficcional materialize, pela escrita, o espaço adequado para tais denúncias. 25 Os cegos são surpreendidos pelo alto-falante que anuncia a chegada da enxada, ferramenta que – mal sabiam eles – passariam a usar com maior frequência do que o esperado. Novamente na liderança, a mulher do médico se propõe a ir buscar a enxada para o enterro do homem. E o fizeram de forma discreta, silenciosa, da maneira como acharam melhor. A morte pode trazer isso: o apagamento das discórdias; fazer brotar o sentimento de respeito humano; deixar de lado todas as dívidas. Mas, nem sempre é assim que acontece. E o enterro foi finalizado sem aparato e desprovido de orações. E a fome aumentava. Em determinada hora do dia, os soldados trouxeram as caixas e as depositaram no átrio, não levariam mais perto, pelo medo do contágio. Mas, tamanha era a voracidade, fome, descontrole, que muitos cegos ouvindo os estalidos das caixas postas no chão, não puderam esperar o comando dos soldados, e, numa ação inconsequente, puseram-se a correr na direção delas. Os soldados que se retiravam do local, possuídos pelo medo, dispararam uma rajada de balas na direção dos cegos: foi uma matança geral. Uma cena desumana e indescritível. Como a fome era muita, houve quem comesse duas vezes e deixasse o outro cego sem a porção que lhe era de direito, atitude peculiar de grande parte da humanidade: pensar e si primeiro. Os cegos da segunda camarata decidiram enterrar aqueles corpos depois que se alimentassem, porque a pressa para comer era maior que a de enterrar. Mais comportamentos reprováveis, talvez porque estando cegos preocupassem-se menos com as aparências e com o espetáculo trágico que tinham diante dos olhos: nove corpos caídos no átrio, ensanguentados e repletos de balas. Decidiram que cada camarata enterraria seus mortos e assim o fizeram. Alguns dias depois, no momento da entrega e distribuição da comida, assim que os soldados deram a ordem, alguns cegos, agindo de forma desleal, surrupiavam caixas a mais de comida, como numa tentativa de ter reserva para os dias em que ela não viesse. Os outros cegos perceberam a injustiça e o roubo, além da cegueira que estava em cena, e assim se manifestaram “Se não podemos confiar uns nos outros, aonde é que vamos parar” (1995, p. 107). As condições eram precaríssimas e cada um procurava salvaguardar a própria pele em atos de pura sobrevivência, porém com desonestidade de atitude, uma vez que todos ali estariam sujeitos àquela sub-humanidade. 26 E mais cegos chegaram, como carneiros indo ao matadouro. Já passavam de duzentas pessoas com a cegueira branca, mais precisamente falando, eram duzentas e sessenta pessoas no espaço das camaratas no manicômio. Não havia acomodações para todos. E começaram a disputar cama, espaço, refeição. Quem os visse, entenderia a cena como um hospício real, uma vez que se comportavam como loucos aos socos e pontapés, e não como cegos. Uma massa humana desgovernada e aparentemente desprovida de raciocínio. Mas essa quantidade assustadora de cegos recém-chegada ao manicômio, trouxe consigo uma condição positiva: as autoridades sanitárias conscientizaram-se da necessidade de enviar comida em quantidade suficiente para todos. E após todo aquele estardalhaço de gente se pisoteando, esmurrando-se, caindo, sendo pisados; maltratados uns pelos outros, depois de acalmada tal contingência, o anúncio da chegada do almoço caiu como um bálsamo para a alma dolorida. É possível imaginar o quanto seria difícil limpar a sujeira provocada por duzentas e sessenta pessoas comendo, deixando pequenas sobras; fazendo suas necessidades em um ambiente onde a quantidade de água era precária e insuficiente para todos. Com esta nova demanda de cegos redistribuídos pelas camaratas, ainda ficaram uns vinte para dormir no chão, já não havia cama para eles. Na primeira camarata, encontravam-se aqueles que cegaram e chegaram ao manicômio nas primeiras levas, entre eles, o médico e a sua mulher. O velho da venda preta chegara nesta última leva de cegos, e, como ainda não se acomodara, parou na primeira camarata e perguntou se alguma cama estava vazia. Para sua surpresa, havia uma única ainda desocupada. Tão logo ele chegou, já fora reconhecido pelo médico oftalmologista, que o identificara pela voz. Em seguida, calma e cordialmente cada cego foi se apresentando numa atitude de comportamento respeitoso e comunitário. Assim eram os cegos da primeira camarata: mais respeitosos e gentis. Talvez, devessem agir sempre os homens, sem a necessidade de serem postos em condições de extrema penúria para se lembrar de que todos são iguais e agir com honestidade, equilíbrio e afabilidade. É o princípio da humildade que nivelaria a humanidade. O velho da venda preta anunciou que tinha consigo um rádio. Um pouco de distração seria um lenitivo para doença tão amarga. E sintonizou em uma emissora 27 que tocava uma canção qualquer, como assim se verifica no excerto a seguir (1995, p. 121): O ponteiro de sintonização continuava a extrair ruídos da pequena caixa, depois fixou-se, era uma canção sem importância, mas os cegos foram-se aproximando devagar, não se empurravam, paravam logo que sentiam uma presença à sua frente e ali se deixavam ficar, a ouvir, com os olhos muito abertos na direção da voz que cantava, alguns choravam, como provavelmente só os cegos podem chorar, as lágrimas correndo simplesmente, como de uma fonte. A canção chegou ao fim, o locutor disse, Atenção, ao terceiro sinal serão quatro horas. Uma das cegas perguntou rindo, Da tarde ou da madrugada, e foi como se o riso lhe doesse. Disfarçadamente a mulher do médico acertou o relógio e deu-lhe corda, as quatro eram as da tarde, ainda que a um relógio tanto lhe faz [...] Então o médico pediu, fale-nos de como está a situação lá fora. O velho da venda preta disse, Pois sim, mas o melhor é o que me sente, não me posso ter de pé. Desta vez aos três e quatro em cada cama, de companhia, os cegos acomodaram-se o melhor que puderam, fizeram silêncio, e então o velho da venda preta contou o que sabia, o que vira com os próprios olhos enquanto os tivera, o que ouvira dizer durante os poucos dias que decorreram entre o começo da epidemia e sua própria cegueira. Em um contexto diferente, um rádio a pilha pareceria motivo para piada, mas nas circunstâncias em que se encontravam os cegos, era a distração momentânea que de tanto precisavam. Lenta e organizadamente, foram se aproximando para ouvir a canção. A alma humana é capaz de guardar inúmeros segredos, inclusive fazer aflorar a sensibilidade, tão pouco utilizada neste manicômio. Estavam ali esquecidos, jogados à própria sorte e sem quaisquer condições de higiene. Contudo, a canção era capaz de libertar do horror, emoções aprisionadas nos corpos de todos, que até então, a preocupação resumia-se à subsistência básica: comer. Alguns choravam expressando pelas lágrimas um turbilhão de sentimentos. Por estarem mergulhados num mar de leite que os consumia, e presos no manicômio, perderam a noção das horas. O tempo no mundo real estabelece a quantidade de horas que devem ser cumpridas: hora de chegada e saída do trabalho, da escola, do cinema - o relógio - o senhor do tempo. No rádio, o locutor anunciara quatro horas e, somente a mulher do médico entre eles ali, aquela que tudo assistia em segredo, poderia saber que eram quatro horas da tarde, por enxergar a luz do dia lá fora. Depois deste pequeno momento de alegria, a pedido do médico, o velho da venda preta começou a relatar como se encontrava o mundo ‘lá fora’. De forma parcial e fragmentada, o velho da venda preta pôde narrar parte dos fatos. As autoridades, em momento de calamidade ou urgência pública, notificam à 28 população parte da verdade, para evitar pânico geral, além dos problemas que já teriam que solucionar. Mal sabiam eles no manicômio, que a epidemia atingira o seu ápice lá fora: a cegueira se alastrara descontroladamente. Escaparam das mãos das autoridades, medidas cabíveis que pudessem conhecer cientificamente o ‘mal branco’ que envolvia a todos. A população fora atingida pela cegueira, sem motivo aparente que justificasse tal acontecimento. E, neste cenário caótico, as autoridades requisitaram mais prédios para instalar os cegos recentes. Famílias inteiras foram assoladas pela cegueira. Motoristas de transporte público que cegaram dirigindo, provocando desastres no trânsito em volumosas proporções; aviões que colidiram, morrendo todos os passageiros e tripulantes; pessoas nas ruas que gritavam estarem cegas pedindo ajuda a outras. Assim estão as coisas lá fora, disse o velho da venda preta, narrando somente o que pudera ainda ver. Depois de atualizados das condições desastrosas da cidade, decidiram com a participação dos outros cegos ali espalhados nas camas, dizer o exato instante em que cegaram, e, como num jogo, foram matando o tempo contando a experiência individual. Um após outro relatara com particularidades a última visão que tiveram. Chegara a vez da rapariga de óculos escuros que, em diálogo com outro cego que não se identifica, metaforizaram conceitos reais tão conscientes e lúcidos, como nunca o fizeram antes. O fragmento a seguir pode ilustrar esta afirmação (1995, p. 131): O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui. Estas vozes apresentadas no excerto revelam à recepção uma das formas de cegueira: o medo. A rapariga de óculos escuros quando tacitamente afirma “o medo cega” explora as cargas semânticas que recobrem tais palavras, como se as tirasse de um dicionário comum e as mergulhasse neste contexto de loucura e cegueira, aonde ambas ditam as regras. A reflexão mais profunda acontece com a oração “já éramos cegos quando cegamos”. O que se depreende sinonimicamente falando, é que as vozes que se completaram neste excerto, estabeleciam entre si um diálogo capaz de induzir o 29 leitor a pensar junto, nestas extremadas condições de cegueira. Como se ela, a cegueira, fosse constituída por várias camadas e uma delas ‘o medo’. A polifonia que recobre este fragmento reduz os seres humanos a simples ‘vozes’ que representam ideias de cegos. Uma cegueira calcada em outras vai distanciando o humano da realidade a que pertencia e o conduzindo para mundos mais animalescos e profanos. Como se pelo anonimato do mal branco, todos estivessem livres para as mais absurdas ações. E assim, um cenário escatológico tomava conta do manicômio. Excrementos formavam uma segunda camada no chão, desprendendo um cheiro fétido no ar. Muitos cegos incapazes de esperar àqueles que usavam as retretes, faziam suas necessidades aonde melhor lhes conviesse. Havia, portanto, um contínuo tapete de excrementos mil vezes pisados por eles mesmos. E a animalidade se acentuava pelas atitudes impertérritas. Era a humanidade que se esboroava diante desta realidade. Estava ruim, mas ficaria ainda pior. Um dos cegos da terceira camarata possuía arma e munição e estabeleceu a regra de que para comer, todos deveriam entregar seus pertences de valor: dinheiro, joias, relógios, tudo que pudesse ser convertido em capital. E, quando as caixas de comida foram depositadas no átrio pelos soldados, o cego com arma e um outro cego, de nascença, fizeram um cerco, impedindo o acesso à comida. A mulher do médico fez perguntas de quanto valeriam as joias em troca da comida, mas o cego da pistola disse que primeiro fariam o pagamento, e, a refeição, depois. Ele sente o enfrentamento da mulher do médico e travaram o seguinte diálogo ríspido, “não me hei-de esquecer da tua voz, Nem eu da tua cara, respondeu a mulher do médico” (1995, p. 141). O absurdo era tamanho e o horror mais ainda, que aqueles que estavam ouvindo esta troca de ofensas, não se deram conta da fala praticada pela mulher do médico, como alguém que vê. Fora instalado um novo sistema dentro do manicômio: o capitalismo. A exploração parecia absurda, uma vez que não havia razão para esta transação capitalista, em um local em que mal podiam satisfazer suas necessidades físicas básicas. E todos aceitaram, entregando os bens que pertenciam para saciarem parte da fome que sentiam. O cego da arma era assessorado pelo cego de nascença, que exercia a função de contador, escriturando tudo que era recebido, de forma organizada, e em braile. As porções foram divididas em maiores ou menores, 30 relativas ao valor monetário que havia sido entregue por pessoa, em cada camarata. É a acintosa exploração do homem pelo homem, se é que se pode enxergá-los assim. Passados alguns dias e não havendo mais pertences a serem entregues, o cego da arma bem como todos da terceira camarata, chamados de cegos malvados, estipularam que o pagamento agora seria em mulheres, como se pode verificar no fragmento que segue (1995, p. 165): Passada uma semana, os cegos malvados mandaram recado de que queriam mulheres. Assim, simplesmente, Tragam-nos mulheres. Esta inesperada, ainda que não de todo insólita, exigência causou a indignação que é fácil imaginar, os aturdidos emissários que vieram com a ordem voltaram logo para comunicar que as camaratas, as três da direita e as duas da esquerda, sem exceção dos cegos e cegas que dormiam no chão, haviam decidido, por unanimidade, não acatar a degradante imposição, objectando que não se podia rebaixar a este ponto a dignidade humana, neste caso feminina, e que se na terceira camarata lado esquerdo não havia mulheres, a responsabilidade, se as havia, não lhes poderia ser assacada. A resposta foi curta e seca, Se não vos trouxerem mulheres, não comem. O excerto é adequado para desnudar os inescrupulosos comportamentos de machos no cio, exercendo à força do poder vinculado à fome alimentar que os demais cegos sentiam. Ratifica-se o apagamento das fronteiras da decência, da moral, dos valores e da dignidade humana, descendo fundo neste antro de perdição, local em que a voz imperante é a da sexualidade. Estabelecido o ultimato, as mulheres se viram forçadas a atender à exigência feita pelos cegos malvados para que os demais pudessem alimentar-se. É o uso da prepotência, do machismo sobre as mulheres, subjugando-as a condições degradantes de sexualidade. Uma lei imposta de uma camarata sobre as demais, semelhante ao regime ditatorial do mundo empírico. Assim é o homem, especializado na crueldade em humilhar, impondo os sórdidos desejos sexuais. De forma consciente e em nova atitude de enfrentamento, a mulher do médico foi a primeira das mulheres que disse o sim, e, subsequente a ela, outras mais decidiram-se por ir. A mulher do primeiro cego contrapôs-se à vontade de seu marido ao dizer que iria com ou sem a permissão dele. Quando adota tal postura, parece ficar claro, que os homens enxergam as mulheres como propriedade e só eles podem ser aqueles capazes de fazer o que desejam com elas, atingindo altos índices de violenta humilhação. 31 Eram 21 homens para sete mulheres. De forma grotesca diziam “elas aguentam, riram todos de uma vez” (1995, p. 173). Quando elas chegaram à camarata, a seleção fora feita inicialmente pelo cego da arma, que ficara com duas; apalpando-as; sugando-lhes a vida; o brio; uma escrava sexual; um depósito de espermas, de animais violentamente descontrolados. A noite fora louca e terrivelmente longa para as sete mulheres, ou melhor dizendo, seis, pois uma morrera pelo exagerado descontrole sexual a ela imposto. Farrapos humanos eram aquelas seis mulheres que mal podiam suster-se em seus próprios pés e sentiram-se no dever de carregar a cega das insônias ‘morta’. Salvaguardariam pelo menos, a caridade de limpá-la e enterrá-la com decência. O manto do silêncio recobriu aquelas seis mulheres quando chegaram às camaratas que pertenciam, marcadas pela dor. Sentiam vergonha de fazerem parte daquela raça intitulada humana. Degradação, ódio, violência, abusos. Era inominável. O desejo de vingança mesclado ao da sobrevivência assediavam a mulher do médico que investiga uma maneira de matar o cego chefe dos malvados. Ela haveria de equilibrar o comportamento entre as camaratas novamente, pelo menos, dentro dos limites da igualdade. Foi nutrida de tais pensamentos, que a mulher do médico, planejou uma forma de matá-lo, e ela, aproveitaria a segunda noite de sexo desenfreado para os homens da terceira camarata. As mulheres da segunda e terceira camaratas foram as escolhidas desta vez, e, a mulher do médico, sorrateiramente, infiltrou-se sub-repticiamente naquele espaço em que a selvageria sexual corria solta. Chegara na cama do cego da arma e ele nem percebera, tamanho era o deslumbre sexual em que se via envolvido. Ela aproveita-se de sua distração e o apunhala na garganta, desferindo-lhe um golpe mortal. Mata-o. Tão logo os cegos descobriram o assassinato, a confusão foi intensa. Atacavam e defendiam-se como podiam. As mulheres foram escapando uma a uma no meio daquela balbúrdia, mas a mulher do médico, descontente ainda, desafia os cegos daquela camarata, pois afirma que matou e tornará a matar se for preciso. E assim, finaliza dizendo que voltaria a pegar as caixas de comida e não haveria quem a impedisse. Com o assassinato acontecido nas dependências do manicômio, a mulher do médico reinstala o equilíbrio no que diz respeito a alimentação de todos. E a comida não viera, e os dias, passando. A fome apertava. Uniram-se homens e mulheres numa tentativa de roubar a terceira camarata, mas o resultado 32 foram mais dois mortos à bala. Uma coisa estranha acontecera, mas só a mulher do médico fora capaz de perceber: as luzes de todo o manicômio se apagaram, e ela, acreditou que fora algum problema relativo a gerador, ou pane geral. O escuro envolvia as dependências do manicômio. Horas passando e de repente, a mulher do médico se lembrara de ter trazido um isqueiro. O plano era perfeito, decide pôr fogo nos colchões e cobertores que cobriam as camas que formavam uma barricada na porta. E o fez. Logo, as labaredas consumiam aqueles maltrapilhos colchões que guardavam a entrada daquele quarto. O fogo foi se alastrando para as demais camas da terceira camarata, consumindo tudo, inclusive os cegos que ali habitavam. Tão depressa os cegos sentiram o cheiro de fumaça e o barulho das labaredas, correram dos seus aposentos e dirigiram-se ao átrio, aos empurrões; maltratavam-se em busca da salvação da vida. Desgovernadamente, foram se aproximando das salas onde ficavam os soldados e imploravam que os deixassem sair. A mulher do médico tomara à frente, gritava aos soldados que não atirassem. E os holofotes continuavam apagados. Caminhou em direção ao portão e constatou o que parecia impossível: os soldados não estavam lá. Cegaram também? Pensou ela. O excerto a seguir, explicita a situação (1995, p. 210) “O portão está aberto de par em par: os loucos saem”. Após o tempo indeterminado que ficaram excluídos dos demais habitantes da cidade, e por estarem privados da visão, não sabiam como agir: sair ou ficar? Desconheciam o espaço imenso que tinham pela frente, pois não seriam guiados por alguém, nem sequer tinham um cão como guia. O medo dominava e era aterrorizante. Ficaram por muito tempo a sentir o calor daquele fogo que dominava as dependências do hospício, e eles ficaram encolhidos, mas juntos, como um rebanho que não quer se apartar. A oração retirada como exemplo, esclarece o contexto daquelas pessoas ao leitor, a verdade daqueles seres humanos: entraram cegos, saíram cegos e loucos. Os cegos da primeira camarata formam um grupo e decidem ficar junto da mulher do médico, líder que os protege conforme seja possível. Ela orienta que deveriam esperar amanhecer para ir em busca de comida. O dia nasceu e quando percorrem a cidade, a mulher do médico decide deixar o seu grupo escondido em local determinado. Aí, ela se dá conta do caos instalado: a cidade estava entregue à sua própria sorte: grupos de cegos que farejavam por 33 comida; cachorros que perambulavam pelas ruas sem destino definido; pessoas mortas pelas guias; mercados saqueados e desabastecidos de comida: a anarquia se instalara. Ela como por instinto, vai à procura de comida. Depois de andar um pouco, avista um mercado e entra desesperadamente nele. Prateleiras vazias. Tudo já fora consumido e era resto de sujeira por toda parte. Farejando como um cão e aguçada pela fome, sentira o cheiro de chouriço. Descobre que há um subsolo no mercado e para lá chegar, haveria de descer três lances de escada, no escuro. Consegue vencer este obstáculo e alcança prateleiras recheadas de comida enlatada, alimentos variados e chouriço. Coloca em sacos plásticos, aquilo que conseguiria carregar. Alimenta-se primeiro e sai de lá, protegendo as iguarias. Na saída do mercado, os cegos esfomeados sentiam o cheiro desprender-se da comida e atacavam na direção dela. Ela corre para livrar-se deles, mas conseguem puxam seus trapos, desnudando quase toda a parte superior que cobria seu corpo, caminhando quase nua pelas ruas da cidade. Mas não havia pudor em sua alma, afinal, todos estão acometidos pela cegueira e não poderão vê-la seminua. Despistara-se dos cegos que a perseguiam, porém fora acompanhada pelo cão das lágrimas. Chega ao local em que escondera o seu grupo, depois de orientar-se por um mapa que avistara num outdoor informando a localização das ruas e bairros centrais da cidade. Quando ela chega, eles festejam e celebram a comida. O velho da venda preta perguntara a ela como estava o mundo e ela responde estabelecendo uma analogia com o manicômio: não havia diferença entre dentro e fora, entre o cá e o lá, entre poucos e muitos. As pessoas, disse ela, são verdadeiros fantasmas, sem comida, sem direção e sem poder ver. Foi neste instante que todos daquele grupo orientados, conduzidos e alimentados pela mulher do médico, puderam perceber que a humanidade se encontrava igualada, sem distinção: econômica; social; política; comportamental; psicoemocional, de forma coletiva ou individual: uma cegueira que os envolvia. O silêncio se instalara mediante a condição drástica e aparentemente insolúvel. Partindo destas condições, a rapariga de óculos escuros, em diálogo com a mulher do médico, assim se manifesta sobre a cegueira (1995, p. 241): 34 Mais tarde ou mais cedo todos vamos ser como ela, e depois acabamos, não haverá mais vida, Por enquanto ainda vivemos, Escuta, tu sabes muito mais do que eu, ao pé de ti não passo duma ignorante, mas o que penso é que já estamos mortos, estamos cegos porque estamos mortos, ou então, se preferes, que diga isto doutra maneira, estamos mortos porque estamos cegos, dá no mesmo, Eu continuo a ver, Felizmente para ti, felizmente para o teu marido, para mim e para os outros, mas não sabes se continuarás a ver, no caso de vires a cegar tornar-te-ás igual a nós [...] Hoje é hoje, amanhã será amanhã, é hoje que tenho a responsabilidade, não amanhã se estiver cega, Responsabilidade de quê, A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam, Não poder guiar nem dar de comer a todos os cegos do mundo, Deveria, Mas não podes, Ajudarei no que estiver ao meu alcance, [...] A voz delega à rapariga de óculos escuros a chave do enigma: morte pela cegueira, ou cegueira pela morte? Parece que quando os olhos perdem a capacidade de enxergar para fora, fazem-no para dentro da alma, em busca de repostas que expliquem a razão deste ‘castigo’ a que se viram impostos. É com a perda da sensibilidade; com voracidade capitalista pelo poder, que os homens se encontram subdivididos: os que dominam daqueles que são dominados; abusos extremados de sexualidade desregrada, convertida em comportamentos altamente reprováveis; perda dos valores humanos, em geral, que este excerto explicita com clareza para o leitor o porquê a mulher do médico ainda vê. Ela parece ser nutrida de outra carne; de Alma pura; de possuir valores e comportamentos altruístas, quando os demais os perderam. Analisando semanticamente este diálogo, é possível comprovar que a forma negativa de enxergar o mundo, otimiza ainda mais a cegueira que cada um possui, ao passo que a mulher do médico parece julgar-se na responsabilidade de auxiliar quantos ela puder, demonstrando-se incapaz de assumir comportamentos egocêntricos e procura agir em favor do coletivo. São olhos que enxergam além daquilo que humanamente poderiam ver: detectar as necessidades; as fraquezas; os desejos; e, na medida do possível, ir ao encontro deles. Desapega-se quase que totalmente do individual para suprir àquilo que ‘seu grupo’ necessita. Essas parecem ser as lentes corretas para se ler a vida; olhos que vão enxergar até o término da narrativa, para confirmar que é necessário o resgate de valores; de comportamentos realmente humanos; que o individual deve ceder espaço para o coletivo, e, é esta a receita para o ‘bem’ comum. E Saramago, o autor, seleciona um tema emblemático e fulcral: espécie humana está se construindo de peles das quais se envergonham; todavia não se motivam a mudar. 35 Constatada a crise de cegueira que a mulher do médico verificou enquanto perambulava pelas ruas em busca de comida, analisou a situação e dividiu os pensamentos com o grupo (1995, p. 244): estou convencida de que toda a gente está cega, pelo menos comportavam- se como tal as pessoas que vi até agora, não há água, não há eletricidade, não há abastecimentos de nenhuma espécie, encontramo-nos no caos, o caos autêntico deve de ser isto, Haverá um governo, disse o primeiro cego, Não creio, mas, no caso de o haver, será um governo de cegos a quererem governar cegos, [...] Dialogando com os demais, apresenta sua leitura de vida dizendo que eles não têm futuro, somente o presente, e não garante o resultado desta cegueira instalada depois de algum tempo na humanidade. Conjecturando, propõe ao grupo que se mantenham unidos para sobreviver, para que não sejam destroçados pela massa, pela fome, pelo caos. Oferece a própria casa, visto ser bem maior que as dos outros cegos do bando, pois nela poderia acomodar a todos com respeito. Ela coloca em votação se eles aceitam a proposta e decidem pela união e pelo bem comum. É assim maneira, que o leitor pode enxergar a mulher do médico, como aquela que propõe uma vida em comunidade, e que, tentaria suprir as necessidades básicas na defesa do seu grupo. O cão das lágrimas que a seguia desde às ruas, também a acompanha e se integra ao grupo composto por sete pessoas. É possível constatar uma veemente crítica político-ideológica desdobrando- se, com clareza, de dentro da diegese para a recepção. Não se pode mensurar há quanto tempo todos os humanos já estejam mergulhados como pessoas nesta cegueira, e, consequentementente, neste regime governamental. A narrativa se propõe a apresentar-se verossímil à vida empírica. Historiar o real, parece ser para Saramago, a tarefa mais contundente. A mulher do médico e seu grupo saem do abrigo em que se encontravam e vão caminhando pelas ruas da cidade. De tudo ela vê: excrementos nos variados estados; lixo que se avoluma a cada instante; pessoas ensandecidas em busca de alimento; um morto a ser devorado por uma matilha de cães. Quão difícil deve ser para esta mulher, a responsabilidade que tomara para si. Vai guiando o grupo na intenção de chegar à sua casa. E enquanto caminham a mulher do médico pergunta sobre os bancos e o velho da venda preta, antes de ser acometido pela doença e ser levado ao manicômio, narra a todos, os fatos 36 econômicos que pudera acompanhar. As pessoas que possuíam dinheiro em poupança ou aplicado, vinham às máquinas eletrônicas desesperadas para resgatar as economias, alegando a imprevisibilidade do dia de amanhã. A mulher se surpreendera com as reações. Pensava que os homens quando colocados diante de problemas relacionados à cegueira, preocupar-se-iam com outras necessidades, e, deixariam para segundo plano, as atividades econômicas. Parece que não. Mesmo diante de um quadro tão funesto, as pessoas que ainda enxergavam iam desesperadas em busca de suas posses, e assim, os bancos ficaram sem um vintém, gerando calamidade e falência. Dentro de si, a mulher do médico declinara da ideia de que uns pudessem ajudar aos outros; para aqueles, o mais importante era o dinheiro, e dele, não queriam se separar. E a cegueira continuava a engolir vorazmente a todos, como um dragão esfomeado. Chegaram defronte ao prédio em que moravam, e enquanto subiam ao quinto andar, imaginava como estaria o seu apartamento. Subiam como podiam pela escada. Diante da porta, a mulher do médico percebe as tentativas fracassadas de arrombamento. Pegara a chave com o marido e abrira a porta. Que surpresa agradável fora sentir o cheiro de casa fechada; a ausência daquele cheiro podre no ar a que estavam submetidos na viagem até ali. Tudo em ordem, exceto uma camada de pó que recobria os móveis. Conduz todos para dentro, mas pede que tirem os sapatos imundos e as roupas. Vai até o seu guarda roupa e procura vestir a todos de forma digna para livrá-los da sujeira. O pouco de comida em latas de conserva que havia na dispensa da casa, dividira em porções iguais para os integrantes daquele grupo, mas verifica que no dia seguinte, haveria de buscar mais alimentos para suprir a todos. Naquela noite, chovia torrencialmente e a mulher do médico não conseguia dormir. Decide aproveitar a tempestade para lavar os sapatos; reservar água e lavar- se. Estava na varanda começando esta tarefa, quando foi surpreendida pela rapariga dos óculos escuros e pela mulher do primeiro cego. Elas pressentiram a atividade da mulher do médico e com a sensibilidade peculiar de querer ajudar, foram ao encontro, de somarem juntas, os esforços para o bem de todos. É possível sentir o desapego do individual indo em direção ao coletivo, novos passos no intuito de uma vida comunitária em que as pessoas começam a sentir necessidade em ajudar. Elas tomaram banho naquela chuva, ao mesmo tempo em que lavavam os sapatos. Três mulheres nuas na varanda, a se deixarem lavar pela chuva que caía 37 do céu. Os demais integrantes do grupo depois que amanhecera, foram avisados da água que elas haviam recolhido e foram convidados a banhar-se. Alguns o decidiram pelo banheiro e assim o fizeram. O grupo todo assumia contornos mais humanos, mas agora precisavam de comida. A mulher do médico continua na liderança e diz que vai sair em busca dos alimentos e é acompanhada pelo primeiro cego e sua mulher que se voluntariam para esta atividade. No caminho, decidem ir à casa do primeiro cego e quando lá chegam a casa está habitada. A pessoa que abre a porta diz que é escritor. Depois de conversarem um pouco, o primeiro cego pergunta o nome do escritor e a resposta assim vem “os cegos não precisam de nome, eu sou esta voz que tenho, o resto não é importante” (1995, p. 275). A narrativa parece se assumir como uma voz, e neste fragmento, coincidentemente, de um escritor. Não seria muito aguçado raciocinar e estabelecer a conexão de que esta VOZ pode acumular vozes que a ela se somam, como por exemplo, a voz do personagem somada à voz empírica do autor, mesclada com a do narrador. Para tanto, acumular-se-iam três vozes, que polvilham os meandros na ficção, erguendo-se com força para representar, na instância ficcional, o mundo real. Fronteiras movediças que se interpõem e se mesclam, como que numa atividade orquestral em que o ‘maestro’ da escrita também se assume como coparticipe, num acúmulo de funções projetando-se dentro, estando fora da diegese. Voltaram à casa do médico com comida suficiente para alguns dias, e à noite, como tinha que ser, ela, a mulher do médico leu para todos, algumas páginas de um livro que trouxera da biblioteca. Ao que parece, ingeriram o bastante para aquele dia de comida, alimento para o corpo físico, e – com a leitura - alimento para a alma, e o cão de lágrimas estava ali a participar de tudo. Os dias foram passando e eles desenvolveram um sentimento de ajuda recíproca, dividindo pequenas tarefas para não sobrecarregar demais a mulher do médico, e as outras mulheres, procuravam auxiliar. Nas ruas, o contexto se mantinha: pequenas aglomerações de cegos que tentavam desafortunadamente organizar-se diante daquela desordem total. Não havia governo, pois o desgoverno é que reinava. Grupos defendiam-se como podiam, numa tentativa inexequível de sobrevivência. E a cidade estava invadida de uma enorme sorte de problemas. Mortos a serem comidos por cães; cegos que já se julgavam mortos, dadas as condições a que se viam impostos; cheiro fétido que se 38 desprendia no ar, causando repugnância e náuseas em todos; ausência quase que total de comida e água; os serviços públicos, todos deixaram de funcionar; cegueira por toda a parte. Anoiteceu e o grupo da mulher do médico pôde alimentar-se com cautela. Deviam saborear a escassa comida de que dispunham. Chegara o momento da distração que ocupava as noites desta pequena comunidade: a leitura. Eles estavam reduzidos a ouvir ler; ainda bem que a mulher tinha olhos para ver. Mal sabiam eles, o medo interior que sequestrava o sossego da mulher do médico. Ela temia a hora em que se igualaria a eles. Nos dias que se seguiram, a vida foi alcançando proporções incalculáveis. Ela, a mulher do médico, junto com o marido resolveram ir em busca de comida, pois a que dispunham em casa era insuficiente para o grupo. Voltara naquele supermercado onde encontrara da primeira vez, no subsolo, prateleiras recheadas de comida, como uma despensa subterrânea daquele comércio. Ela e seu marido dirigiram-se para lá. Quando chegaram, ela viu uma cena horrenda: vários cegos mortos na escada em estado de putrefação. Imaginou que ao sentirem o odor da comida que ela carregava nos sacos de plástico, foram à procura. Como não dispunham da visão, não se deram conta da escada vertical que os aguardava e caíram vários deles, uns sobre os outros, como num precipício, causando a morte de vários deles. A cena da decomposição da carne somada ao cheiro horrível que dela exalava transformara-se em execrável. Valendo-se de todas as forças que dispunha, pede ao marido que a retire dali e mal sustendo-se nas pernas, dirigem-se para uma Igreja. O cão de lágrimas que os acompanhava ao entrarem na Igreja, foi por rosnar que conseguiu um lugar para ela sentar, aguardando a vertigem passar. Passados alguns minutos, recobrara os sentidos. Assustou-se ainda mais, quando ao lançar um olhar pela Igreja, verifica que ela estava toda ocupada de cegos, mas um fato prendeu a sua atenção. As imagens. O homem pregado na cruz com uma venda a tapar-lhe os olhos. Todas as imagens estavam com os olhos vendados com um pano branco, e outras, como se alguém tivesse passado uma demão de tinta branca sobre eles. Ela acredita estar em processo de alucinação ou à beira da loucura. Como estariam todas as imagens assim? Por quê? Quem as teria coberto os olhos? Uma a uma das imagens estavam assim apresentadas, somente uma mulher que não tinha os olhos tampados, porque ela os levava 39 arrancados numa bandeja de prata, conforme se constata biblicamente como sendo “Santa Luzia”. Estarrecida, a mulher do médico narra ao marido tudo o que via diante de si. Ela pensara que havia sido o sacerdote que providenciara aquela situação, talvez, numa tentativa de evitar que os santos e Deus vissem o horror que a humanidade se encontrava. Quando os cegos que estavam próximos ouviram a mulher falar sobre o cenário das imagens com os olhos cobertos por panos brancos, horrorizaram-se e como cegos assustados, atropelaram-se em busca da saída da Igreja. Ali, não mais representava um espaço de paz para as almas aflitas. Estavam entregues à própria sorte; parece até que os santos lhes viraram às costas. Nesta aflição da fuga, deixaram os seus restos de comida e a mulher do médico e o médico saíram pela porta da Igreja com sacos meio cheios de porções de comida, só não sabiam se aproveitariam tudo o que neles continha. Retornaram ao apartamento e narraram o relato dos acontecimentos, e, para todos, convertia-se em cenas trágicas e horripilantes. Mas a verdade era uma só: comeram o resto da comida de outros cegos. Comida roubada. Almoçaram lentamente, e, aquela noite, ninguém comeu. As provisões eram poucas e mal dariam para a próxima refeição. Depois da leitura, fato inédito sucedera: o primeiro cego em conversa com sua mulher dissera que estava com medo, pois ficara realmente cego, que migrara de uma cegueira para a outra: a negra. Em seguida, abriu os olhos e viu. Grita bem alto: “eu vejo” (1995, p. 306) e saiu correndo para abraçar a mulher do médico, era a primeira vez que a via, e assim sucessivamente, foi reconhecendo todos os pertencentes àquele grupo. E repetia alegremente “eu vejo, eu vejo” (1995, p. 307). E em uma alegria contagiante, foi abraçando e comunicando a todos a sua visão recuperada. Depois do primeiro cego, pouco a pouco os demais integrantes daquele grupo começaram a recuperar a visão, ou melhor, o que a experiência dos tempos lhes trouxe de informação é que não há cegos, mas cegueiras que envolvem os humanos. A felicidade parecia retornar. Pela janela aberta, podia-se ouvir o rumor das vozes alteradas que vinham de fora na rua gritando como em uníssono “Vejo” (1995, p. 310). E depois que a multidão lá fora se identificava com visão, a mulher do médico no apartamento vai até à janela e olha para baixo para ver as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu tudo branco e o pavor tomou conta dela, 40 imaginando ser a sua hora de cegar. Todavia, ao retornar os olhos para baixo a cidade estava toda ali. Assim, finaliza-se o plano da história da narrativa “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago. 1. 2 “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua” de Jorge Amado. “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua”, de Jorge Amado edifica-se literariamente como a narrativa que estabelece um divisor de águas, face às escritas anteriores praticadas por este renomado autor. Dono de uma escrita peculiar, este baiano inicia tal atividade, muito jovem, por volta de 19 anos de idade. Vai amadurecendo as estruturas linguísticas e envereda-se pelos universos da literatura. Produz textos que se constituem em recordes de vendas, mesmo assim, não é reconhecido como escritor de qualidade. Talvez, as ideias comunistas e ter voltado o olhar contemplando às pessoas simples da Bahia, tenha conferido a ele, o estigma de literatura de massa. Grande parte instigante na constituição do complexo universo diegético “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua” (1959) recai sobre a polêmica instaurada no que diz respeito às várias versões de morte de Quincas e sobre às dúvidas que tais versões suscitam em torno da personagem protagonista. Com a manutenção da dúvida e dos mistérios por se desvendar, o autor intensifica o estímulo à leitura e incrementa a expectativa do enredo. O plano da história é aberto com a última frase dita por Quincas “ainda vivo”. Ele assim se pronuncia linguisticamente de forma indireta: “Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há” (Frase derradeira de Quincas Berro D’água, segundo Quitéria que estava ao seu lado) (AMADO, 1959, IX). Não fora Quincas que se manifestara no terreno narrativo por sua própria voz, mas indiretamente filtrado e reproduzido por Quitéria, que, junto dele, disse estar. O narrador opta por desviar de Quincas a responsabilidade de assumir na íntegra, tal discurso. É possível perceber a partir da epígrafe que o inusitado se anuncia. Quincas Berro D’água desrefencializa-se e assume a condição de anti-herói protagonista da história. O leitor sente o convite prazeroso da leitura quando se vê envolto nas possibilidades de mortes que a personagem vivencia. A primeira diferença entre romance e realidade é que o narrador possui um olhar totalizador – a narrativa 41 acontece por causa da morte. A trajetória só se completaria com a morte, pois é a partir dela, que se tem a possibilidade de criação de arte. Sem o elemento “morte” não haveria história ou, pelo menos, se caso existisse, não concentraria aí o teor ficcionalizante. O narrador constrói o discurso diegético instaurando as dúvidas com elipses narrativas, pausas descritivas, analepses e prolepses, velocidade mais acelerada e mais lenta de acordo com a necessidade, ordem temporal dos eventos narrados sendo apresentada de forma invertida, trazendo o final para o começo da narrativa, todos esses elementos e muitos outros mais que instigam a curiosidade do leitor, baseando-se consistentemente nessas incertezas. Em síntese, todo o conflito narrativo fica alicerçado em torno das mortes e só é depois delas, que passa a existir a criação da obra de arte. A história principia com a dúvida sobre a existência de versões apresentadas das mortes de Quincas: duas por parte da família e uma por parte dos amigos de cachaça. Quincas, por vinte e cinco anos, fora Joaquim Soares da Cunha, funcionário público, bem vestido, de boa índole, caseiro, totalmente controlado pela mulher e filha destituído de liberdade em seu próprio lar. Pressionado e manipulado, nunca demonstrara a insatisfação. Cansado da situação que o constrangia e incomodava, resolve pôr um fim: abandona a casa e a família e opta pela vida em liberdade nas ruas da Bahia. Arranja amigos fiéis de botequim e deles não mais se separa. A amizade, a vida livre, a ausência de cobranças o tornam um querido amigo de todos: bêbados, prostitutas, da gente simples da “cidade baixa”. Lá, sente-se com vida, por ir e vir, sem horário algum nem regras a obedecer. Transforma-se em Quincas Berro D’água, porque desde o dia em que saiu de casa, nunca mais havia tomado água, somente aguardente. A família (Vanda e Leonardo), envergonhada, omite aos netos a informação de que o avô estava vivo. Para as demais pessoas – vizinhos e outras do âmbito familiar – embora soubessem que Quincas estava vivo, negavam-se em tê-lo como membro e a ele nem sequer faziam menção. Portanto, é possível registrar a morte moral como sendo a primeira; era conveniente que fosse tido socialmente como morto. A voz narrativa instala o presente narrativo quando assim se pronuncia (1959, p. 1): 42 ATÉ HOJE PERMANECE CERTA CONFUSÃO EM TORNO DA morte de Quincas Berro D’Água. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranquila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte e quatro horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Bahia. A presentificação destes tempos verbais – permanece, há, mantém-se – parece construir um palco de paradoxalidades: o primeiro verbo ‘permanece’ pertence a voz do narrador que insiste em relativizar e permear pela dúvida a verdadeira versão de morte de Quincas. Assim fazendo, atinge um alcance máximo, e parece delegar ao leitor a responsabilidade da investigação. Os dois outros verbos marcados pelo tempo imperativo trazem pelo tom da imposição que este tempo verbal possui, obrigar a todos a crerem na versão de morte ventilada pela família e tê-la como única e verdadeira. O discurso praticado tanto pelos amigos de Quincas comparado com o familiar localizam-se em condições diametralmente opostas. O primeiro discurso traz o tom da irreverência; das pessoas simples, marcadas pelas cores da Bahia e da vida em liberdade, desvencilhados das preocupações de testemunhas e papéis que comprovem a narração dos fatos. Já o segundo, vem carregado de negatividade pelas marcas das tintas sociais; das aparências; das regras socialmente impostas e tidas como verdadeiras. A narrativa é aberta desta forma, e os fatos são inconcludentes, as versões são variadas, os tipos de morte extremamente opostos, grosseiramente reduzidos ao conflito binário, assim ficaria: vida com regras x ausência delas. Aquela morte de Quincas propalada pelos cantos da Bahia, tão comentada, representou para aquela gente simples mais que um testemunho profético, uma grande despedida do mundo. Mesmo que acontecida diante de tantas testemunhas idôneas, há quem negue o teor e a veracidade de tais fatos. Na casa de Vanda, aparece pela manhã um santeiro, para narrar em detalhes que Quincas fora encontrado por uma preta-velha, no quarto em que morava, morto. Apresenta pormenorizadamente os fatos, porque acredita haver interesse por parte deles em saber dos momentos finais daquele que pertencera à família. Impacientemente, eles escutam a versão do santeiro, e, logo em seguida, reúnem- 43 se para decidir o que fariam e a divisão das despesas. Depois disso, a filha vai ao encontro do pai, no quarto em que estava morto. Algumas pessoas espiavam o defunto, quando a filha chegou para comprovar-lhe a morte. Deparou-se com o cadáver do pai sujo, desleixado, dedo saindo pelo furo da meia, e no rosto um sorriso cínico. Ele parecia sorrir o tempo todo de tudo. Em pensamentos, ela revela-se ao leitor, apresentando o seu verdadeiro eu: cruel, devastador, manipulador; controlador. Esses eram os ‘sublimes’ sentimentos que Vanda nutria pelo pai. Agora, ela sentia o alívio, porque tudo terminava, aquele pesadelo estaria encerrado, um pai ou a mancha na dignidade familiar? Estaria então, preso, finalmente preso em sete palmos do chão. Será que herdaria a aposentadoria do pai? Este fora seu último solilóquio. Ela lançou um olhar vitorioso para os amigos ali presentes e ordenou que se retirassem, mas antes que o santeiro fosse embora, pediu a ele o favor de chamar um médico para que ele emitisse o atestado de óbito. O médico era um doutor novato que o santeiro encontrara rapidamente. Chegara, examinara, fizera perguntas à filha e comentara em voz alta “Ele está rindo, hein! Cara de debochado”. (1959, p. 21) A filha enrubescera de vergonha. Em um restaurante na Baixa do Sapateiro, o conselho de família discutia qual seria o destino do morto e onde seria o velório. Decidiram pela forma mais barata e discreta de sepultamento, e para tanto, contratariam uma funerária de um amigo conhecido do tio Eduardo, que faria um bom abatimento no preço. Saíram para comprar uma roupa nova, um par de sapatos pretos, camisa branca, gravata, par de meias, mas cuecas não eram necessárias, porque ninguém perceberia a ausência delas. Para quem era, o velório estava ficando bem organizado e com gastos demais. Entre os parentes da família, havia contrapontos no formato do velório: queriam a todo custo maquiar a verdade; dizer que morrera no interior e enterrá-lo, sem nenhum prestígio. Vanda insistia que não desejava ver o pai enterrado como um cão e gostaria de um velório simples, mas com as bênçãos de um padre. Enfim, concordaram. Porém, os parentes insistiram para que somente eles velassem o corpo, que não falassem para os netos, um avô que já havia falecido, e, não expusessem aos vizinhos o falecimento, dando motivos para comentários a noite inteira, sobre as façanhas de Quincas. Vanda concordou e as providências foram tomadas. Combinaram que se revezariam em turnos para velar o morto. Foi assim, que à tarde, a filha cumpriu o turno junto ao pai. 44 Arrumado em paletó e gravata pela funerária, era como se, vestindo-o, a filha recuperasse a dignidade e o controle perdidos. De Quincas, voltaria a ser Joaquim Soares da Cunha. Durante o tempo em que Vanda ficou com ele, sentiu no semblante do pai o riso permanente e até parecia ouvi-lo dizer: “jararacas”. Ela procurou não concentrar tanta atenção no riso do pai para observar o trabalho bem feito pela funerária: penteado, barbeado e bem vestido. Sentia-se vingada por tudo que o pai fizera a mãe sofrer. Estava satisfeita, domara-o. Nunca mais teria que ver estampada a fotografia do pai nos jornais da cidade, com as alcunhas que ele angariava: o cachaceiro-mor de Salvador; o filósofo esfarrapado da rampa do Mercado, o senador das gafieiras, o vagabundo por excelência, desses predicativos e da vergonha que eles representavam, ficaria finalmente livre. Recorda-se em pensamentos, de algumas cenas com o pai; de levá-la para passear em parques de diversão; de cuidar dela noites inteiras quando estava doente ou com febre; e, alguns anos à frente, quando trouxera Leonardo para apresentar à família. Poucas eram as lembranças com o pai, mas com a mãe sua memória estava repleta. Talvez, o pai não fosse visto nem sentido, quem sabe, subjugado sempre, uma sombra na vida das duas – mãe e filha. Somente no dia em que Leonardo viera à casa deles para ser apresentado à família, o pai da noiva o intitulara de bestalhão. Neste dia, Joaquim fora notado por ambas. Mas, é nesse mesmo dia, em que, enlouquecido de raiva, solta-lhes o adjetivo “jararacas” e vai embora para nunca mais voltar. E, depois de rememorar tantas lembranças, percebe-se ali, diante do caixão de seu pai, fitando o cad